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29 Outubro 2014
Foi este mês lançado em Itália “L’Uso dei Corpi” de Giorgio Agamben.
Com este volume Agamben termina a sua série “Homo Sacer”, iniciada em
1995 com a publicação de “Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida
Nua”. Deixamos aqui uma tradução apressada do seu prólogo, um olhar
extremamente lúcido sobre a figura de Guy Debord.
4. No final dos anos noventa, nas bancas de uma livraria parisiense, o segundo
volume de Panégyrique, contendo a iconografia, estava exposto – por acaso ou
por intenção irónica do livreiro – ao lado da autobiografia de Paul Ricouer.
Nada é mais instrutivo do que comparar o uso das imagens em ambos os casos.
Enquanto as fotografias do livro de Ricoeur retratam o filósofo exclusivamente
no decurso de convénios académicos, como se ele não tivesse tido outra vida fora
deles, as imagens de Panégyrique pretendiam um estatuto de verdade
biográfica que observava a existência do autor em todos os seus aspectos. “A
ilustração autêntica”, adverte a curta promessa, “ilumina o discurso verdadeiro…
saberemos finalmente então qual a minha aparência em diferentes idades; e que
tipo de rostos sempre me rodearam; e que lugares habitei…”. Uma vez mais, não
obstante a evidente insuficiência e banalidade dos seus documentos, a vida – a
vida clandestina – está em primeiro plano.
5. Uma noite, em Paris, Alice, quando lhe disse que muitos jovens em Itália
continuavam interessados nos escritos de Guy e que esperavam dele uma
palavra, repondeu: “Existimos, deveria ser-lhes suficiente”. Que queria dizer
“existimos”? Nesses anos viviam isolados e sem telefone entre Paris e Champot,
de certo modo com os olhos postos no passado, e a sua “existência” estava, por
assim dizer, totalmente achatada na “clandestinidade da vida privada”.
análises do livro não cessam de pôr em causa a vida. O espectáculo, onde “tudo o
que era directamente vivido se distancia numa representação”, é definido
enquanto uma “inversão concreta da vida”. “Quanto mais a vida do homem se
torna no seu produto, tanto mais ele é separado da sua vida”. A vida nas
condições espectaculares é uma “falsa vida”, uma “sobrevivência” ou um
“pseudo-uso da vida”. Contra esta vida alienada e separada, é postulado algo que
Guy chama “vida histórica”, que surge logo no renascimento como uma
“ruptura alegre com a eternidade”: “na vida exuberante das cidades italianas… a
vida é conhecida enquanto um disfrute da passagem do tempo”. Anos antes, em
Sur le passage de qualques personnes e em Critique de la séparation,
Guy afirma de si e dos seus companheiros que “queriam reinventar tudo todos
os dias, tornar-se patrões e donos da sua própria vida”, e que os seus encontros
eram como “sinais provenientes de uma vida mais intensa, que nunca foi
verdadeiramente encontrada”.
O que fosse esta vida “mais intensa”, o que era arruinado ou falsificado no
espectáculo ou simplesmente o que deve ser entendido por “vida na sociedade”
não é esclarecido em qualquer momento; e no entanto seria demasiado fácil
censurar ao autor incoerência ou imprecisão terminológica. Guy não faz que
repetir uma postura constante na nossa cultura, na qual a vida não é nunca
definida enquanto tal, mas é recorrentemente dividida em Bios e Zoè, vida
politicamente qualificada e vida nua, vida pública e vida privada, vida vegetativa
e vida de relação, num modo em que nenhuma das partições é determinável
senão na sua relação com a outra. E é talvez em última análise exactamente o
indecidível da vida que faz com que ela seja sempre de novo decidida singular e
politicamente. E a indecisão de Guy entre a clandestinidade da sua vida privada
– que, com o passar do tempo, devia parecer-lhe mais fugidia e indocumentável
– e a vida histórica, entre a sua vida individual e a época obscura e irrenunciável
na qual ela esteve inscrita, traduz uma dificuldade que, pelo menos nas
condições presentes, ninguém se pode iludir de ter resolvido de uma vez por
todas. De qualquer modo, o Graal obstinadamente procurado, a vida que
inutilmente se consome na chama, não era reduzível a nenhum dos termos
opostos, nem à idiotez da vida privada nem ao incerto prestígio da vida pública,
revogando assim a questão da própria possibilidade de as distinguir.
Ivan Illich observou que a noção corrente de vida (não “uma vida”, mas “a
vida” em geral) é percecionada enquanto “facto científico”, que não tem já
qualquer relação com a experiência do vivente singular. A vida é algo anónimo e
genérico, que pode designar tanto um espermatozoide, uma pessoa, uma abelha,
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19/02/2019 Guy Debord e a clandestinidade da vida privada. (Prólogo de “O Uso dos Corpos” de Giorgio Agamben) - Instituto Humanitas Unisi…
Assim como nessa vida se insinuou um resíduo sacro, a outra, a clandestina, que
Guy seguia, tornou-se ainda mais indescritível. A tentativa situacionista de
restituir a vida à política esbarra com uma dificuldade posterior, mas não é por
isso menos urgente.
O que significa que a vida privada nos acompanhe enquanto uma vida
clandestina? Acima de tudo, que está separada de nós como está um clandestino,
e do mesmo modo que é de nós inseparável no modo como, enquanto
clandestino, partilha subrepticiamente a vida connosco. Esta cisão e
inseparabilidade definem tenazmente o estatuto da vida na nossa cultura. A vida
é algo que pode ser dividido – e no entanto sempre articulado e reunido numa
máquina médica, filosófico-teológica ou biopolítica. Assim não é apenas a vida
privada que nos acompanha enquanto clandestina na nossa breve ou longa
viagem, mas a própria vida corpórea e tudo o que tradicionalmente se inscreve
na esfera da chamada “intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o
sono, a sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos
o procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a
clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais
amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa
roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar ainda que
lhe dilacere atrozmente a carne.
E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa
subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única
dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os
seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem
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19/02/2019 Guy Debord e a clandestinidade da vida privada. (Prólogo de “O Uso dos Corpos” de Giorgio Agamben) - Instituto Humanitas Unisi…
agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo
e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.
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