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19/02/2019 Guy Debord e a clandestinidade da vida privada.

(Prólogo de “O Uso dos Corpos” de Giorgio Agamben) - Instituto Humanitas Unisi…

Guy Debord e a clandestinidade da vida


privada. (Prólogo de “O Uso dos Corpos” de
Giorgio Agamben)

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29 Outubro 2014

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Foi este mês lançado em Itália “L’Uso dei Corpi” de Giorgio Agamben.
Com este volume Agamben termina a sua série “Homo Sacer”, iniciada em
1995 com a publicação de “Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida
Nua”. Deixamos aqui uma tradução apressada do seu prólogo, um olhar
extremamente lúcido sobre a figura de Guy Debord.

O postagem é de Tiago F. Duarte, publicado no blog L’Obéissance est


morte, 13-10-2014.

1. É curioso como em Guy Debord uma consciência lúcida da insuficiência da


vida privada era acompanhada pela mais ou menos consciente convicção de que
existia, na sua própria existência ou na dos seus amigos, algo de único e de
exemplar, que exigia ser recordado e comunicado. Já em Critique de La
séparation Debord evoca, enquanto algo de certo modo intransmissível, “essa
clandestinidade da vida privada sobre a qual nunca temos mais do que
documentos derisórios”; E todavia nos seus primeiros filmes e ainda em
Panégyrique não cessam de desfilar os rostos dos seus amigos um após outro,
o de Asger Jorn, o de Maurice Wyckaert, o de Ivan Chtcheglov, e

finalmente a sua própria cara, junto às das mulheres que amou. E não só, em
Panégyrique surgem também as casas que habitou, o nº 28 da via delle
Caldeie em Florença, a casa de campo em Champot, o Square des missions
étrangères em Paris (na verdade o nº 109 da rue du Bac, o seu último endereço
parisiense, na sala do qual uma fotografia de 1984 o retrata sentado num divã de
couro inglês que parecia agradar-lhe).
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Dá-se aqui uma contradição central, que os situacionistas não conseguiram


superar e, simultaneamente algo de precioso que exige ser retomado e
desenvolvido: talvez a obscura e inconfessada consciência de que o elemento
genuinamente político consiste exactamente nesta incomunicável e quase
ridícula clandestinidade da vida privada. Já que mesmo essa – a vida
clandestina, a nossa foma-de-vida – é tão intima e próxima, que se a tentamos
capturar nos deixa nas mãos apenas a impenetrável e tediosa quotidianidade. E
todavia talvez seja mesmo esta homónima, promíscua e sombria presença a
custodiar o segredo da política. A outra face do arcanum imperii na qual
naufraga toda a biografia e toda a revolução. E Guy, que era tão hábil e
perspicaz quando tinha de analisar e descrever as formas alienadas da existência
na sociedade espectacular, é então assim tão cândido e impotente quando tenta
comunicar a forma da sua vida e quando tenta olhar na cara e explodir a
clandestinidade com a qual partilhou a viagem até ao último momento.

2. In Girum imus nocte et consumimur igni (1978) abre com uma


declaração de guerra contra o seu tempo e prossegue com uma análise
inexorável das condições de vida que a sociedade mercantil no estádio supremo
do seu desenvolvimento instaurou sobre a totalidade do planeta.
Inesperadamente a meio do filme a descrição detalhada e impiedosa cessa para
dar lugar à evocação melancólica e quase débil das memórias e eventos pessoais
que antecipam a intenção declaradamente autobiográfica de Panégyrique.
Guy recorda a Paris da sua juventude, que já não existe, em cujas ruas e cafés
tinha partido com os seus amigos em obstinada busca desse “Graal nefasto, que
ninguém deseja”. Embora o Graal em questão, “fugazmente vislumbrado”, mas
nunca “encontrado”, tivesse indiscutivelmente um significado político, já que os
que o procuravam “se encontraram capazes de compreender a vida falsa à luz da
verdadeira”, o tom da comemoração, marcado por citações da Eclisiastes, de
Omar Khayyan, de Shakespeare e de Bossuet, é no entanto
indiscutivelmente nostálgico e sombrio: “a meio do caminho da verdadeira vida,
fomos rodeados por uma melancolia escura, expressa por palavras tristes e de
escárnio, no café da juventude perdida”. Desta juventude perdida, Guy recorda
a desordem, os amigos e os amores (“como não recordar os bandidos charmosos
e as prostitutas orgulhosas com quem habitei esses ambientes duvidosos”),
enquanto no ecrã surgem imagens de Gil J. Wolman, de Ghislain de
Marbaix, de Pinot-Gallizio, de Attila Kotanyi e de Donald Nicholson-
Smith. Mas é no fim do filme que o impulso autobiográfico reaparece com mais
força e a visão de Florença quando era livre se entrança com as imagens da vida
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privada de Guy e das mulheres com quem viveu nessa cidade na década de
setenta. Veem-se depois passar rapidamente as casas onde Guy viveu, o
Impasse de Clairvaux, a rue St Jacques, a rue St. Martin, uma igreja em
Chianti, Champot e, mais uma vez, os rostos dos amigos, enquanto se escutam
as palavras da canção de Gilles em Les Visiteurs du soir: “Tristes enfants
perdus, nous errions dan la nuit…”. E, poucas sequências antes do final, os
retratos de Guy aos 19, 25, 27, 31, e 45. O nefasto Graal, do qual os
situacionistas partiram em busca, concerne não apenas a política, mas de certo
modo também a clandestinidade da vida privada, da qual o filme não hesita em
exibir, aparentemente sem pudor, os “documentos ridículos”.

3. A intenção autobiográfica estava, de resto, já presente no palíndromo que dá


nome ao filme. Logo após invocar a sua juventude perdida, Guy acrescenta que
nada expressa melhor o dispêndio do que esta “antiga frase construída letra após
letra como um labirinto sem saída, de modo a recordar perfeitamente a forma e
o conteúdo da perda: in girum imus nocte et consumimur igni ‘Andamos em
circulo pela noite e somos devorados pelo fogo’”.

A frase, definida por vezes como o “verso do diabo”, provém, na verdade,


segundo uma cursiva indicação de Heckscher, da literatura emblemática e
refere-se às traças inexoravelmente atraídas pela chama da vela que as
consumirá. Um emblema é composto por uma impresa – uma frase ou um mote
– e por uma imagem; nos livros que pude consultar, a imagem da traça devorada
pelo fogo surge frequentemente, nunca associada ao livro em questão mas sim a
frases que se referem à paixão amorosa (“assim o prazer vivo conduz à morte”,
“assim de bem amar porto tempestuoso”) ou, em casos mais raros, à
imprudência na política ou na guerra (“non temere est cuiquam temptanda
potentia regis”, “temere ac periculose”). Nos Amorum emblemata de Otto van
Veen (1608), a contemplar as traças que se precipitam em direção à chama da
vela está um amor alado e a impresa diz: brevis et damnosa voluptas.

É provável, então, que Guy, escolhendo o palíndromo enquanto título,


paragonasse a si próprio e aos seus companheiros às traças, que amorosamente
e temerariamente atraídas pela luz estão destinadas a perder-se e a consumir-se
no fogo. Na Ideologia Alemã – uma obra que Guy conhecia perfeitamente –
Marx evoca criticamente a mesma imagem: “e é assim que as borboletas
noturnas, quando o sol do universal se põe, procuram a luz de lâmpada do
particular”. Tanto mais singular é que, apesar desta advertência, Guy tenha
continuado a seguir esta luz, a espiar obstinadamente a chama da existência
singular e privada.
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4. No final dos anos noventa, nas bancas de uma livraria parisiense, o segundo
volume de Panégyrique, contendo a iconografia, estava exposto – por acaso ou
por intenção irónica do livreiro – ao lado da autobiografia de Paul Ricouer.
Nada é mais instrutivo do que comparar o uso das imagens em ambos os casos.
Enquanto as fotografias do livro de Ricoeur retratam o filósofo exclusivamente
no decurso de convénios académicos, como se ele não tivesse tido outra vida fora
deles, as imagens de Panégyrique pretendiam um estatuto de verdade
biográfica que observava a existência do autor em todos os seus aspectos. “A
ilustração autêntica”, adverte a curta promessa, “ilumina o discurso verdadeiro…
saberemos finalmente então qual a minha aparência em diferentes idades; e que
tipo de rostos sempre me rodearam; e que lugares habitei…”. Uma vez mais, não
obstante a evidente insuficiência e banalidade dos seus documentos, a vida – a
vida clandestina – está em primeiro plano.

5. Uma noite, em Paris, Alice, quando lhe disse que muitos jovens em Itália
continuavam interessados nos escritos de Guy e que esperavam dele uma
palavra, repondeu: “Existimos, deveria ser-lhes suficiente”. Que queria dizer
“existimos”? Nesses anos viviam isolados e sem telefone entre Paris e Champot,
de certo modo com os olhos postos no passado, e a sua “existência” estava, por
assim dizer, totalmente achatada na “clandestinidade da vida privada”.

No entanto, ainda um pouco antes do seu suicídio em novembro de 1994, o titulo


do seu último filme preparado para o Canal Plus: Guy Debord, son art, son
temps não parece – apesar do esse son art realmente inesperado – de todo
irónico na sua intenção biográfica e, antes de se concentrar com extraordinária
veemência no horror do “seu tempo”, esta espécie de testamento espiritual
reitera com o mesmo candor e as mesmas velhas fotografias a evocação
nostálgica da vida transcorrida.

O que significa então “existimos”? A existência – este conceito fundamental na


primeira filosofia do ocidente – terá talvez constituitivamente a ver com a vida.
“Ser”, escreve Aristóteles, “para os vivos significa viver”. E, alguns séculos
depois, Nietzsche precisa: “ser: não temos outra representação que viver”.
Trazer à luz – fora de qualquer vitalismo – o intimo cruzamente de ser e existir:
esta é certamente hoje a tarefa do pensamento (e da política)

6. A Sociedade do Espectáculo abre com a palavra “vida” (“Toda a vida das


sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia
como uma imensa acumulação de espectáculos) e até ao último momento as
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análises do livro não cessam de pôr em causa a vida. O espectáculo, onde “tudo o
que era directamente vivido se distancia numa representação”, é definido
enquanto uma “inversão concreta da vida”. “Quanto mais a vida do homem se
torna no seu produto, tanto mais ele é separado da sua vida”. A vida nas
condições espectaculares é uma “falsa vida”, uma “sobrevivência” ou um
“pseudo-uso da vida”. Contra esta vida alienada e separada, é postulado algo que
Guy chama “vida histórica”, que surge logo no renascimento como uma
“ruptura alegre com a eternidade”: “na vida exuberante das cidades italianas… a
vida é conhecida enquanto um disfrute da passagem do tempo”. Anos antes, em
Sur le passage de qualques personnes e em Critique de la séparation,
Guy afirma de si e dos seus companheiros que “queriam reinventar tudo todos
os dias, tornar-se patrões e donos da sua própria vida”, e que os seus encontros
eram como “sinais provenientes de uma vida mais intensa, que nunca foi
verdadeiramente encontrada”.

O que fosse esta vida “mais intensa”, o que era arruinado ou falsificado no
espectáculo ou simplesmente o que deve ser entendido por “vida na sociedade”
não é esclarecido em qualquer momento; e no entanto seria demasiado fácil
censurar ao autor incoerência ou imprecisão terminológica. Guy não faz que
repetir uma postura constante na nossa cultura, na qual a vida não é nunca
definida enquanto tal, mas é recorrentemente dividida em Bios e Zoè, vida
politicamente qualificada e vida nua, vida pública e vida privada, vida vegetativa
e vida de relação, num modo em que nenhuma das partições é determinável
senão na sua relação com a outra. E é talvez em última análise exactamente o
indecidível da vida que faz com que ela seja sempre de novo decidida singular e
politicamente. E a indecisão de Guy entre a clandestinidade da sua vida privada
– que, com o passar do tempo, devia parecer-lhe mais fugidia e indocumentável
– e a vida histórica, entre a sua vida individual e a época obscura e irrenunciável
na qual ela esteve inscrita, traduz uma dificuldade que, pelo menos nas
condições presentes, ninguém se pode iludir de ter resolvido de uma vez por
todas. De qualquer modo, o Graal obstinadamente procurado, a vida que
inutilmente se consome na chama, não era reduzível a nenhum dos termos
opostos, nem à idiotez da vida privada nem ao incerto prestígio da vida pública,
revogando assim a questão da própria possibilidade de as distinguir.

Ivan Illich observou que a noção corrente de vida (não “uma vida”, mas “a
vida” em geral) é percecionada enquanto “facto científico”, que não tem já
qualquer relação com a experiência do vivente singular. A vida é algo anónimo e
genérico, que pode designar tanto um espermatozoide, uma pessoa, uma abelha,
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um urso ou um embrião. Deste “facto científico”, tão genérico que a ciência


renunciou a procurar-lhe uma definição, a Igreja fez o último recetáculo do
sagrado, e a bioética o termo chave da sua impotente absurdez.

Assim como nessa vida se insinuou um resíduo sacro, a outra, a clandestina, que
Guy seguia, tornou-se ainda mais indescritível. A tentativa situacionista de
restituir a vida à política esbarra com uma dificuldade posterior, mas não é por
isso menos urgente.

O que significa que a vida privada nos acompanhe enquanto uma vida
clandestina? Acima de tudo, que está separada de nós como está um clandestino,
e do mesmo modo que é de nós inseparável no modo como, enquanto
clandestino, partilha subrepticiamente a vida connosco. Esta cisão e
inseparabilidade definem tenazmente o estatuto da vida na nossa cultura. A vida
é algo que pode ser dividido – e no entanto sempre articulado e reunido numa
máquina médica, filosófico-teológica ou biopolítica. Assim não é apenas a vida
privada que nos acompanha enquanto clandestina na nossa breve ou longa
viagem, mas a própria vida corpórea e tudo o que tradicionalmente se inscreve
na esfera da chamada “intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o
sono, a sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos
o procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a
clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais
amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa
roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar ainda que
lhe dilacere atrozmente a carne.

É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida


clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por
excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente
à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de
Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos
corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da
política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar
a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão
naufragar.

E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa
subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única
dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os
seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem
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agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo
e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.

E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento


político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se
para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for
possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos
corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua
idiotez.

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