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Da Exclusão da Ilicitude do Jogo do Bicho

I– Da arca preciosa onde os romanos guardaram para a


posteridade as noções fundamentais do Direito desentranha-se
amiúde o aforismo “de minimis non curat praetor”, o que, posto em
linguagem, quer dizer: o pretor não se ocupa com questões
insignificantes. Não só o pretor, nome por que na Roma antiga se
conheciam os magistrados, também os membros do Ministério
Público e os advogados caem sob a jurisdição do sobredito preceito: é
de péssimo exemplo fazer caso e cabedal de ninharia; não há dar peso
à fumaça!
Daqui por que promotores de justiça, firmes naquele brocardo,
têm levantado mão da ação penal nos casos de pequenas infrações. De
todos os dias são, com efeito, os casos de arquivamento de inquéritos
policiais por não constituir o fato neles apurado violação grave da
ordem jurídica. Além de que, na aplicação da lei, deverá o juiz atender
aos fins sociais a que ela se dirige (art. 5º da Lei de Introdução ao Código
Civil). Não estranha, pois, que certas ações humanas, suposto
antijurídicas, fiquem ao abrigo da sanção penal.
São mais que muitos os casos em que, embora denunciado por
crime, o agente logra afinal absolvição, sob a cor de que seu ato
careceu de relevância jurídico-penal. Contam-se nesse número os de
furto de coisas sem valor econômico. Dois jovens, embriagados,
subtraíram cinco patos. Absolveu-os o tribunal: ou porque destituídas
de valor econômico as aves, ou porque obraram os mancebos “jocandi
animo”, por mero brinco ou facécia(1). Outro tanto em relação ao
indivíduo que furtara um talonário de cheques. Foi absolvido à conta
da ausência de dano patrimonial(2). Pelo mesmo teor e com idêntica
motivação, prudentes delegados de polícia tratam, além dos cancelos
de seus próprios distritos policiais, a prática do “pendura”, com que
galhofeiros acadêmicos de direito, fiéis à tradição e ao espírito das
Arcadas, comemoram anualmente, no dia 11 de agosto, com expansões
de jovialidade, a criação dos cursos jurídicos no Brasil.
Também nas desinteligências ou brigas de casal têm os juízes
temperado com a equidade o rigor da lei. Sujeitos pelo comum de raro
aviso, sempre lhes pareceu que menor gravame acarretará a
2

impunidade das partes desavindas do que sua condenação, esta sim


fator certíssimo de perpétua discórdia e porventura de quebra
definitiva dos laços conjugais. Muito ao propósito escreveu Moura
Bittencourt: “A letra da lei torce o nariz a semelhantes facilidades; mas seu
espírito não omite um olhar de aplauso aos que, bem intencionados, procuram a
harmonia comum, que principia pela paz nas famílias”(3).

II – Nos meios jurídico suscitou fervorosas e aturadas controvérsias


a atitude de ilustre promotor de justiça do Fórum Regional de
Pinheiros, que, sistematicamente, requeria o arquivamento de
inquéritos policiais relacionados com o jogo do bicho (art. 58 da Lei das
Contravenções Penais).
A razão de seu proceder foi Sua Excelência mesmo quem no-la
deu: não lhe parecia bem trazer à barra da Justiça rústicos e
inexpressivos contraventores, quando o próprio Estado fomentava a
prática dos jogos de azar. Por outro lado, passava por cruel paradoxo
meter entre ferros a míseros vendedores ou intermediários do jogo do
bicho, ao passo que tantos arquidelinquentes se conservam livres e
impunes, como os que sangram a bolsa popular e malversam com
descomunal desfaçatez o erário público!
À derradeira, ainda que corresponda a um tipo legal, não
constitui crime o fato incapaz de quebrantar a ordem jurídica.
Examinada de sobremão e com ânimo estreme de exacerbado e
intolerável dogmatismo jurídico, não se pode recusar à argumentação
do promotor Pedro Falabella Tavares de Lima — que é este o nome do
intrépido paladino da “abolitio delicti” em relação ao jogo do bicho —
grande lucidez e força persuasiva.

III – No conceito objetivo de crime distinguem os penalistas, sem


discrepar, “o seu caráter danoso ou, pelo menos, perigoso”(4).
Ora, a contravenção (que se denomina também delito-anão por
amor de sua pequenez em comparação do crime) é em si mesma
inocente, visto não causa dano; reprime-se contudo, não venha a criar
perigo para a sociedade.
Ofensas menores ao preceito legal, são as contravenções
“condutas mais potenciais que reais; mais perigosas que realmente lesivas aos
3

interesses”(5).
Delas, uma existe (o jogo do bicho) que se não pode hoje arguir
de prática ilícita sem que juntamente se esteja a sacrificar na ara da
arqueologia jurídica.
Tal contravenção, deveras, muito há perdeu seu cunho de
lesividade e sua carga de reprovabilidade ético-social.
Para o que decisivamente contribuíram o desuso e esse a que
Hobbes chamou leviatã (ou monstro): o Estado.
Bem que, falando pela via ordinária, não seja admitido o desuso
(ou costume “contra legem”) como forma revogadora de normas penais,
casos existem em que assim opera. É que nada se subtrai à jurisdição e
às injúrias do tempo. “Também a lei penal nasce, vive e morre”(6).
Mas, quer se atribua à força do costume, quer se considere
“exercício regular de um direito, que pode também ter base consuetudinária”(7), o
que não entra em dúvida é que normas incriminadoras tornam-se
muita vez inaplicáveis. O mesmo tempo e as mutações sociais (que a
vida é movimento) são os que lhes decretam a caducidade. Uma vez
abatido o estrépito social que timbra de ilícito o fato, já não tem lugar
a punição do agente.
Disto é exemplo, sobre todos notável, o prosaico jogo do bicho,
que, na expressão de venerando acórdão do Tribunal de Alçada
Criminal de São Paulo, “tornou-se pequena, popular e folclórica contravenção
impunível”(8).
Sua indisputável inidoneidade para pôr em risco o organismo
social, expungiu-o de toda a ilicitude.
Ainda (e aqui o ponto): insulta a inteligência dos doutos e
semidoutos isso de o Estado punir contravenção que ele mesmo
pratica debaixo das denominações de Loteria Federal, Loteria
Esportiva, Loteria de Números (Loto e Sena), com uma diferença, que
nos jogos oficializados as combinações de números e a quantidade
dos que se exigem para o prêmio submetem os apostadores a uma
situação nitidamente mais desvantajosa que o jogo do pobre (bicho).
Antes que uma pedra de escândalo, a atuação arrojada e sincera
daquele membro do Ministério Público refletia o sentimento comum
dos homens de nossa idade e não tem menos fiador que vigoroso
aresto do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, relatado pelo juiz
4

Luiz Pantaleão. Respeito ao jogo do bicho, proferiu a citada Corte de


Justiça e luminária conspícua de jurisprudência pátria estas formais
palavras, merecedoras de se imprimirem em bronze: “Não basta, por
outro lado, que a lei fixe a previsão contravencional. É preciso mais. Necessário
que exista um supedâneo de ordem ética e moral a dar conteúdo jurídico e
coercibilidade à norma penal. Sem tal alicerce, a regra não passa de uma ficção, de
uma incomensurável hipocrisia imposta à sociedade. Não tem fundamento
legítimo. O Estado existe como projeção da vontade nacional; esta representa o
sentimento popular. Se o Estado promove, autoriza e incentiva as mais diversas
modalidades de jogo de azar, pouco se importando com as consequências
deletérias sobre a economia dos cidadãos, acoroçoando o sonho de uma premiação
que venha afastar o espectro da penúria ditada por uma inflação calamitosa e
incontrolada, não pode pleitear a punição de quem age a seu exemplo. Os fins do
Estado não podem justificar os meios que impliquem a derrogação da própria
ordem jurídica, pinçando-se, em meio a uma verdadeira multidão de praticantes
do jogo do bicho, agindo a seu próprio modelo de atuação, este ou aquele homem,
para que se imponha reprimenda. O Poder Judiciário não é discriminatório, nem
estabelece privilégios, nem referenda meras ficções legais”(9).
Argumentos são esses que triunfam pela força da evidência e
instam conosco para que não oneremos a Justiça Criminal,
empenhada já na solução de gravibundos problemas, com uma
bagatela retumbante, de que não deve curar o pretor: o jogo do bicho.

Notas

(1) Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, vol. 60,


p. 298.
(2) Revista dos Tribunais, vol. 523, p. 357.
(3) Vítima, 1a. ed., p. 74.
(4) Basileu Garcia, Instituições de Direito Penal, 1975; vol. I, t. I, p. 193.
(5) Valdir Sznick, Contravenções Penais, 1987, p. 3.
(6) Giuseppe Bettiol, Direito Penal, 1977, vol. I, p. 173; trad. Paulo
José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco.
5

(7) José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1954, vol. I, p. 173.
(8) Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, vol. 82,
p. 240.
(9) Idem, vol. 85, p. 326.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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