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interesses”(5).
Delas, uma existe (o jogo do bicho) que se não pode hoje arguir
de prática ilícita sem que juntamente se esteja a sacrificar na ara da
arqueologia jurídica.
Tal contravenção, deveras, muito há perdeu seu cunho de
lesividade e sua carga de reprovabilidade ético-social.
Para o que decisivamente contribuíram o desuso e esse a que
Hobbes chamou leviatã (ou monstro): o Estado.
Bem que, falando pela via ordinária, não seja admitido o desuso
(ou costume “contra legem”) como forma revogadora de normas penais,
casos existem em que assim opera. É que nada se subtrai à jurisdição e
às injúrias do tempo. “Também a lei penal nasce, vive e morre”(6).
Mas, quer se atribua à força do costume, quer se considere
“exercício regular de um direito, que pode também ter base consuetudinária”(7), o
que não entra em dúvida é que normas incriminadoras tornam-se
muita vez inaplicáveis. O mesmo tempo e as mutações sociais (que a
vida é movimento) são os que lhes decretam a caducidade. Uma vez
abatido o estrépito social que timbra de ilícito o fato, já não tem lugar
a punição do agente.
Disto é exemplo, sobre todos notável, o prosaico jogo do bicho,
que, na expressão de venerando acórdão do Tribunal de Alçada
Criminal de São Paulo, “tornou-se pequena, popular e folclórica contravenção
impunível”(8).
Sua indisputável inidoneidade para pôr em risco o organismo
social, expungiu-o de toda a ilicitude.
Ainda (e aqui o ponto): insulta a inteligência dos doutos e
semidoutos isso de o Estado punir contravenção que ele mesmo
pratica debaixo das denominações de Loteria Federal, Loteria
Esportiva, Loteria de Números (Loto e Sena), com uma diferença, que
nos jogos oficializados as combinações de números e a quantidade
dos que se exigem para o prêmio submetem os apostadores a uma
situação nitidamente mais desvantajosa que o jogo do pobre (bicho).
Antes que uma pedra de escândalo, a atuação arrojada e sincera
daquele membro do Ministério Público refletia o sentimento comum
dos homens de nossa idade e não tem menos fiador que vigoroso
aresto do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, relatado pelo juiz
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Notas
(7) José Frederico Marques, Curso de Direito Penal, 1954, vol. I, p. 173.
(8) Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, vol. 82,
p. 240.
(9) Idem, vol. 85, p. 326.
Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp