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História breve da música ocidental

José Eduardo Martins

“Aos meus alunos, esta síntese máxima, do que disse e deixei de dizer.”
(José Maria Pedrosa Cardoso)

A
publicação de livros especializados na consecução de determinados trabalhos
no Brasil pode criar armadilhas para acadêmicos, eclode no day after, quando,
o visitante desavisado. Se o autor é do mé- a pretexto de nova tese, o que foi pesqui-
tier, tem-se, em princípio, a garantia do sado é abandonado sem pudor. Temáti-
conhecimento da matéria. Quem escreve, cas tendo o Estado a subsidiá-las são pre-
a ter sob controle tema determinado, ge- teridas em favor de outras, que servirão a
ralmente o faz com competência. Impos- novos concursos acadêmicos. E a relação
sível não se captar sua intimidade com o íntima que deveria existir entre estudo e
roteiro traçado. Em senso inverso, todo determinado rumo traçado na vida se es-
aquele que escreve sobre área da qual vai. E novo mal se estabelece.
desconhece fundamentos básicos, o que A construção de uma história de área
o levaria a ser entendido como amador específica necessita do conhecimento in-
ou soi disant, em determinado momento sofismável e acumulado do autor. Ou-
da narrativa evidencia a falha estrutural, trora, compêndios que se debruçavam
mesmo que o discurso possa ter certa sobre segmentos do conhecimento eram
sedução. Infelizmente, a literatura sobre escritos por um responsável. Essa missão
música de concerto, erudita ou clássica, perdurava, por vezes a envolver uma exis-
no Brasil, tem apresentado acentuados tência inteira dedicada ao mister. Hoje,
exemplos dessas incursões não compe- equipes geralmente subvencionadas e sob
tentes, que preenchem estantes das livra- coordenação “precisa” encarregam-se da
rias e que se contrapõem a outras, feliz- extensa coleta e organização de dados.
mente de músicos ou musicólogos. Se os A cada especialidade, o autor designado
primeiros chegam a ter guarida junto a deixa sua assinatura e a obra é edificada
meios de comunicação não protegidos com certa unidade.
pela competência, sob aspecto outro não Abordar a história da música, utilizan-
servem de referência, pois conceitos ou do como fundamento o espírito de sínte-
são “extraídos” de tantas obras consagra- se, é tarefa apenas para poucos. Essa asser-
das, ou derivam de considerações arbitrá- tiva faz entender a publicação da História
rias. E todo o mal está feito. Sob outra breve da música ocidental, de José Maria
égide, nem sempre se deve dar crédito a Pedrosa Cardoso, professor da Universi-
livros da Academia oriundos de disserta- dade de Coimbra, como autêntico livro
ções ou teses. Quantos não são os temas de síntese (Imprensa da Universidade de
escolhidos afoitamente, obedecendo à Coimbra, 2010). Pedrosa Cardoso tem
necessidade da titulação e ao inexorável estudos da maior relevância publicados.
prazo, que, se aprovados, convertem-se Se concentrações são estabelecidas em
em livros? A evidência da ansiedade, tan- trabalhos musicológicos cerceados pelo
to na seleção de temas abordados como espaço da publicação, exemplificados por

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A justificação histórica do compositor Da- dentro da liturgia cristã”. Medaglia igual-
mião de Góis (Braga, Publicações da Fa- mente, no capítulo “Nasce um maestro”,
culdade de Filosofia – Universidade Ca- dá uma verdadeira aula, mercê de acúmu-
tólica Portuguesa, 2003), ou O Réquiem los de rica experiência ao longo das déca-
e a profissão de fé de Lopes-Graça (Coim- das. Afirmação que leva o leitor a confiar
bra, Centro Acadêmico de Democra- na competência de ambos os autores, con-
cia Cristã, Nova Série n.6, 2006), há de ditio sine qua non para a referência nessa
apreender o conhecimento embasado do categoria de exceção, a síntese.
autor de todo um largo período histórico Quanto ao autor da História breve da
da música portuguesa. Ao vir a público música ocidental, está-se diante de um
a monumental obra O canto da Paixão emérito conhecedor da música da cris-
nos séculos XVI e XVII – A singularidade tandade, do gregoriano aos dias atuais.
portuguesa (Imprensa da Universidade de Pesquisador autêntico, distante das su-
Coimbra, 2006, 560p.), Pedrosa Cardoso perficialidades, tendo como acréscimo o
estabelece bases seguras para a compreen- raciocínio criativo, Pedrosa Cardoso con-
são da música sacra em Portugal e pene- duz o leitor, sem nenhuma empáfia, à vi-
tra com acuidade na ourivesaria musical sitação, fazendo-o viajar até a Renascença
por meio da documentação preservada com leveza. Enfatiza a música desse pe-
nos passionários polifônicos de Coimbra ríodo por meio de três fatores básicos: o
e Guimarães. Ao escrever Cerimonial da mecenas, o compositor e os executantes,
Capela Real – Um manual litúrgico de D. e comenta a importância da música sacra
Maria de Portugal (1538-1577) Princesa e da profana no Renascimento. Período
de Parma (Coimbra, INCM – Fundação rico na descoberta instrumental, que se
Calouste Gulbenkian, 2008, 157p.), o expande às várias camadas sociais, e no
ilustre professor aprofunda-se em tema emprego de sistemas de escrita musical
de difícil prospecção e revela parte do ce- que facilitariam a compreensão e divulga-
rimonial religioso da Corte. ção da música. Em poucos termos, enqua-
Em 2009 (18/4) saudara em meu dra todo um período ibérico, foco de suas
blog o excelente livro de Júlio Medaglia obras analítico-musicais antes citadas:
(Música, maestro! Do canto gregoriano ao Quanto a Espanha e Portugal, a mú-
sintetizador, Globo, 2008), em que o au- sica renascentista brilhou nas capelas
tor, com pleno conhecimento da história reais e também em quase todas as ca-
da música, percorre prazerosamente os tedrais, onde se praticava uma música
vários períodos, explicando, a partir da litúrgica de grande qualidade e tam-
experiência pessoal junto a uma infini- bém um gênero misto de popular e
dade de partituras, os muitos meandros erudito, o vilancico, que, de algum
modo, ocupou o espaço da música
que levaram a arte dos sons à contem-
profana espanhola, embora em nível
poraneidade. Em História breve da mú-
mais reduzido que o madrigal. Deve
sica ocidental, Pedrosa Cardoso, latinista referir-se a Capela dos Reis Católicos
impecável, ratifica a premissa da presente (1479-1505), a Capilla Flamenca de
resenha ao se posicionar: “Não se pode Carlos V (1516-1556) e a Capela Real
entender e apreciar correctamente uma Portuguesa, que, já no tempo de D.
peça gregoriana sem conhecer o seu texto Manuel (1495-1521), era “uma das
e reconhecer a funcionalidade da mesma melhores capelas de quantos reis e

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da música, das caudalosas às mais con-
centradas, percorrem os períodos, muitas
delas a evidenciar o conhecimento maior
ou menor dos autores, não poucas vezes
tem-se o conteúdo doutoral. Tornam-se
referência, mas dificilmente o leigo pode-
rá compreendê-las.
Se do barroco, passando-se pelo classi-
cismo e pelo período romântico – que na
realidade, conforme posição que defendo
desde os anos 1980, não tem interrup-
ção do início do século XIX a meados do
século XX, mas sim vertentes diferencia-
das, mas românticas sempre, sem prefixos
agregadores, pois –, ao século XX, naqui-
CARDOSO, José Maria Pedrosa. História lo que Pedrosa bem define em subcapítu-
breve da música ocidental. Coimbra: Imprensa lo como “pluralismo cultural”, seria to-
da Universidade de Coimbra, 2010. davia a música do último cento que atrai
um olhar ainda mais pormenorizado do
autor. Dir-se-ia que as múltiplas tendên-
príncipes então viviam” (Damião de cias surgidas após a desagregação da to-
Góis). nalidade fascinam Pedrosa Cardoso, pelo
Portugal e Espanha mostrariam em multidirecionamento a envolver técnicas
seu histórico musical influências mútuas, composicionais, convivência do erudito
tantas oriundas da longa ocupação árabe. com o popular, tecnologia, sintetizador,
Divide-se o livro em quatro capítulos o concerto democratizado a abrigar em
e inúmeros subcapítulos, tendo o som fronteiras distintas todas as correntes e,
como epicentro: “O som místico da épo- paradoxalmente, em situações de congra-
ca medieval”, “O som humano da época çamento, sob um mesmo teto. E como
moderna”, “O som livre da época con- fonte viva e até “independente”, a pre-
temporânea” e, o mais longo, “O som sença da música de raiz, o folclorismo
plural da época atual”. Nesses breves ca- que pulsa e que teria um olhar diferen-
pítulos, Pedrosa Cardoso caminha com o ciado sobre a sua autêntica manifestação,
leitor, ilustrando-o, sem ser enfático. As mais acentuadamente a partir da segunda
159 páginas da História breve da música metade do século XIX.
ocidental têm pois o mérito da síntese. O fato de a música até o século XX
Não se trata de um resumo, mas de se- ter sido extremamente ventilada em in-
mentes fecundas plantadas, pois esses findáveis compêndios propiciaria a Pe-
capítulos fornecem farto material – no drosa Cardoso – mera suposição – um
caso, multum in minimo – destilado de debruçamento maior em personalidades
maneira sequencial, sem quaisquer rup- da criação musical, sobretudo da segunda
turas. Pequenos textos que podem pro- metade do século XX, não se alongando
piciar ao leitor olhares outros, convite ao sobre determinadas figuras basilares dos
aprofundamento. Se as tantas histórias séculos precedentes. Entende, contudo,

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ter sido Debussy “o grande nome da
charneira dos séculos XIX-XX, tal como
Monteverdi foi para os séculos XVI-XVII
e Beethoven para os séculos XVIII-XIX”.
Agregaria, no decurso da história, Schön-
berg.
A facilidade com que os vários temas
são tratados por Pedrosa Cardoso, assim
como a sua capacidade para tornar seg-
mentos complexos ou controvertidos da
história da música palatáveis ao estudante
e ao leigo já bastariam para a recomen-
dação da obra. Uma pequena observação
apenas, que deveria ser entendida como
um desafio. Teria faltado no significativo
livro capítulo reservado à música em Por-
tugal. Aguarda-se sempre a sua inserção
definitiva nos repertórios internacionais.
Nesse cenário global irreversível, em que
a música se coloca como uma das mais
importantes fontes do pensar humano,
urge o esforço coletivo nesse desidera-
to de divulgação mais ampla, interna e
externamente, da música criada em ter-
ras lusíadas. E Pedrosa Cardoso tem-se
mostrado, por meio de obras anteriores,
um grande defensor da música portugue-
sa. Quem sabe não dedique a sua pena
a uma próxima História breve da música
em Portugal?
Instigante a frase final de História
breve da música ocidental: “Não se sabe
como será a música do futuro. Talvez esta
ignorância, humildemente assumida, ex-
plique o mistério do som, que mudará,
ou não, à justa medida do ser humano”.

José Eduardo Martins é pianista e profes-


sor aposentado da Universidade de São
Paulo. @ – martins.je@terra.com.br
www.joseeduardomartins.com

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