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Curso de
2011
2
permanecem segredos
A nossa Castália não deve ser apenas uma selecção, deve antes de mais ser uma
hierarquia, um edifício no qual cada pedra apenas ao todo deva o seu significado.
Abreviaturas
CC – Código Civil
CJ – Colectânea de Jurisprudência
Nota prévia
2
António Manuel Hespanha, O Caleidoscópio do Direito, 2007, p. 5.
10
INTRODUÇÃO
1.1. Noção
Esta distinção não é, porém, suficiente para enquadrar como meio de resolução
alternativa de litígios a conciliação judicial, tal como prevista no artigo 509.º CPC. A
tentativa de conciliação aí prevista é, evidentemente, conduzida por um juiz no âmbito de
um processo judicial. Não se trata portanto de um meio de resolução de litígios não
judicial, embora se funde ainda no consenso, apartando-se da clássica forma de resolver o
litígio através do tribunal. Ainda sendo em ambiente judicial, faz sentido, no meu
entender, estudar a conciliação judicial ao lado dos outros meios de resolução alternativa
3
A utilização desta denominação não tem sofrido grande contestação, tendo entrado no léxico
jurídico sem reservas. Recentemente, porém, Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009,
p. 34-37, propôs a sua substituição para a de meios extrajudiciais de resolução de controvérsias. A
Autora entende que a utilização da palavra «alternativa» não faz sentido em termos teóricos e
práticos. Parece-me porém preferível manter a designação que já fez escola no nosso sistema.
11
de litígios, primeiro porque se trata de uma resposta alternativa ainda que em ambiente
judicial, segundo porque em mais nenhum lado se estuda e o seu exame é importante em
termos de oferta de Justiça.
A definição de resolução alternativa de litígios deve, assim, ser alargada a todos os meios
de resolução de conflitos que sejam diferentes da decisão por julgamento em tribunal
judicial. É uma definição com uma aparência pouco científica, mas o leitor terá a
paciência de perceber que as definições são meros exercícios de racionalização do caos,
não transformando a sua natureza.
Pode fazer-se uma distinção entre os meios de resolução alternativa de litígios consoante
três diferentes critérios: voluntário ou obrigatório; adjudicatório ou consensual; centrado
nos interesses ou nos direitos.4
Noutros países, que não no nosso, têm sido experimentados sistemas de mediação
obrigatória, não sendo portanto impossível teoricamente a sua existência. Mas esta é
também uma questão controvertida que abordaremos mais à frente.8
4
Robert Niemic, Donna Stienstra e Randall Ravitz, Guide to Judicial Management of Cases in
ADR, 2001, p. 9-10.
5
Capítulo VI.1.
6
Acórdão 11/2007, publicado no Diário da República de 25 de Julho.
7
Se esta disponibilidade é uniltaral (só do autor) ou se de ambas as partes é matéria que
trataremos no capítulo respectivo.
8
Cfr. Infra ponto 3.2..
12
Por fim, os meios de resolução alternativa de litígios podem ter duas perspectivas
completamente diferentes: a dos direitos ou a dos interesses. A perspectiva dos direitos é
claramente a tradicional, a dos tribunais judiciais. É a que surge na arbitragem e em regra
na conciliação. Baseia-se na discussão dos argumentos legais de cada parte (incluindo
evidentemente a prova). A outra óptica de tratamento do problema é verdadeiramente
nova para os juristas – e por isso de difícil percepção. Tem como ponto de vista os
interesses das partes, individualmente consideradas, desconsiderando o que o Direito
determina sobre o seu caso. Tenta conciliar interesses e não direitos, procurando a
pacificação do conflito em detrimento da solução juridicamente correcta. A mediação na
sua vertente facilitadora é claramente um meio de resolução alternativa de litígios
baseado nesta perspectiva.
Há doutrina que utiliza esta distinção, acrescentando ainda outra categoria: a baseada no
poder. Poder é a capacidade de coagir alguém a fazer algo que voluntariamente não faria.9
São exemplos de exercícios de poder a agressão física (desde individual até às guerras) e
a greve. O poder é também forma de resolução de conflito quando existe uma relação de
dependência entre as partes, quer se trate de relações familiares, laborais, comerciais ou
internacionais. O detentor do poder tentará sempre coagir a parte dependente (ou mais
fraca) a tomar determinada decisão que é favorável à primeira. A lógica é: se não fazes o
que quero, não trabalho/negoceio/vivo contigo mais.10
9
Ury, Brett e Goldberg, Resolução de Conflitos, 2009, p. 40.
10
Stephen Golberg in Segunda Conferência Meios Alternativos de Resolução de Litígios, 2005, p.
89.
13
Este meio de resolver conflitos não é, obviamente, motivo de estudo neste trabalho,
embora seja necessário por vezes referir a sua possibilidade de aplicação. Não é, claro,
um instrumento legítimo de resolução de conflitos, porque não parte de uma situação de
igualdade, pressupondo antes desigualdade. Mas, por exemplo, na negociação, há
momentos de poder (de «braço-de-ferro») que são utilizados sem que se coloquem
problemas de maior.
Podemos fazer referência a alguns que parecem ser bastante interessantes: o mini-
julgamento (minitrial e o summary jury trial), a avaliação neutral prévia (early neutral
evaluation), a decisão não vinculativa (non binding ex arte adjudication).11
11
Zulema Wilde e Luís Gaibrois, O que é a mediação, 2003, p. 21-24; Fernando Horta Tavares,
Mediação e Conciliação, 2002, p. 42 e seguintes;
12
Robert Niemic, Donna Stienstra e Randall Ravitz, Guide to Judicial Management of Cases in
ADR, 2001, p.9; Stephen Golberg in Segunda Conferência Meios Alternativos de Resolução de
Litígios, 2005, p. 92, relata um mini-trial em que pode não existir terceiros neutrais, mas apenas
os advogados e os directores executivos das empresas em litígio.
14
A avaliação neutral prévia foi desenvolvida nos tribunais federais da Califórnia, como
forma pré-judicial de resolução de litígios. Numa sessão confidencial, as partes e os seus
advogados apresentam o caso perante um terceiro. Esse terceiro, que por regra é um
advogado com experiência na matéria, informa-as, então, dos pontos fortes e fracos das
suas posições, iniciando-se de seguida a negociação do caso. O avaliador neutral pode
ainda assistir às tentativas de negociação. Este procedimento é também utilizado numa
fase inicial da arbitragem, com o fim de organizar o caso para a sua entrada em tribunal.13
Estes são meios híbridos, entre jurisdição e mediação, entre arbitragem e conciliação,
entre formas adjudicatórias e formas consensuais de resolução de litígios. Não são
métodos conhecidos em Portugal e não têm sequer uma construção teórica definitiva.
Mas não deixam de ter bastante interesse e podem até funcionar como inspiração para
ensaios de novos métodos de resolução de conflitos.
13
Robert Niemic, Donna Stienstra e Randall Ravitz, Guide to Judicial Management of Cases in
ADR, 2001, p. 8; Frank Sander e Lukasz Rozdeiczer, Selecting an appropriate Dispute Resolution
Procedure, 2005, p. 394.
14
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 12.
15
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003. Cfr. infra capítulo II.
16
Cruyplants, Gonda e Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p. 7.
15
para além da mediação, enquanto método autónomo de resolução de litígios. Deve ser
encarada como um método de resolução de conflitos extra-judicial que pode ser utilizado
na sua forma simples, sem terceiros, ou em conjunto com outros métodos de resolução de
litígios. A mera constatação do vasto desenvolvimento teórico sobre o tema é já
justificação suficiente para se explicar, ainda que brevemente, os seus pontos essenciais.
17
Assim se faz no Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa
(www.centroarbitragemlisboa.pt) e no Centro de Arbitragem do Sector Automóvel
(www.centroarbitragemsectorauto.pt).
18
Assim se fazia no CIMASA – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros
Automóveis (www.cimasa.pt), mas já não no seu substituto, o CIMPAS – Centro de Informação,
Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (www.cimpas.pt).
16
Uma terceira nota diz respeito à arbitragem. A arbitragem diferencia-se dos restantes
meios de resolução alternativa de litígios por ser adjudicatória e ter uma tradição já
bastante antiga. A característica da voluntariedade só se verifica no princípio (na
convenção arbitral). A produção dogmática é abundante, inserindo-se no discurso jurídico
tradicional. A história, o fim, o ambiente da arbitragem colocam-na muito mais perto da
tradição judicial do que dos meios de resolução alternativa de litígios. Poderia, pois,
optar-se por não a incluir nestes mecanismos. No entanto, enquadra-se na definição
ampla adoptada de meios de resolução alternativa de litígios, na medida em que não é
judicial. Este aspecto é suficiente para se integrar nesta disciplina, uma vez que não se
procura aqui a homogeneidade de métodos de resolução de conflitos, mas antes e
precisamente a variedade.
Por último, a inserção dos Julgados de Paz no âmbito dos meios de resolução alternativa
de litígios pode ser questionada, essencialmente porque se trata de um instância de
resolução de conflitos, não propriamente de um meio alternativo e diferente dos outros de
resolver os casos. Os Julgados de Paz, na sua versão actual, terão tido inspiração nos
tribunais multi-portas, instituição de justiça imaginada por Frank Sander nos anos 70, na
qual existiriam várias opções para resolver os litígios, oferecidas em função da natureza
concreta dos mesmos.19 Assim, um processo num Julgado de Paz pode ser resolvido por
mediação, por conciliação ou por julgamento.
Não são, portanto, meios de resolução de litígios diferentes destes, antes uma forma de
organização numa única instituição destes meios. O seu estudo autónomo – enquanto
instituição - numa disciplina como esta justifica-se porque se inserem em termos de
linguagem e teleologia com os meios de resolução alternativa de litígios. São verdadeiros
centros de resolução alternativa de litígios pelo que este é o local certo do seu estudo.20
1.2. Antecedentes
19
Carrie Menkel-Meadow, Roots and Inspirations, 2005, p. 19.
20
Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, p. 15, defende a não integração dos
Julgados de Paz numa disciplina de Resolução Alternativa de Litígios por se tratar de instâncias
de decisão que aplicam o Direito, semelhantes, portanto, aos tribunais judiciais. Entende, assim,
que a matéria deve ser leccionada na disciplina de Direito Processual Civil.
17
Os meios de resolução alternativa de litígios são geralmente apontados como uma das
suas possíveis respostas à crise da justiça portuguesa.21 Fala-se em retirar processos dos
tribunais como objectivo, fim e indicador de sucesso. Não partilho esta ideia: a crise da
justiça é também (ou sobretudo) uma crise de qualidade da justiça – e não de quantidade
ou de morosidade - e os meios de resolução alternativa de litígios pretendem ser uma
resposta no âmbito da qualidade e não da quantidade. Isto é, os meios de resolução
alternativa de litígios postulam uma abordagem diferente do conflito, procurando a
solução mais adequada ao litígio. O que pode passar pela não aplicação da lei.
O sistema de justiça oficial que hoje temos em Portugal surge após a revolução liberal,
como parte do seu programa político. Até às revoluções liberais, o sistema vigente
assentava no poder absoluto do monarca. Era este que ditava a lei, geralmente justificado
por uma legitimidade divina. Era este que dizia o direito e aplicava a justiça. Detinha,
como se sabe, o poder absoluto. Ao seu lado, porém, conviviam diversos poderes,
assentes numa sociedade socialmente muito estruturada e localizada. O poder do rei
fazia-se sentir, mas o poder dos senhores locais era uma realidade tão ou mais presente. O
ordenamento jurídico pré-oitocentista era, então, essencialmente pluralista, correndo a
maior parte da vida à margem do direito escrito.22
Esta decisão não correspondeu, porém, à realidade dos factos, não só porque o sistema
político não era uma verdadeira democracia, mas ainda porque as fontes locais e
costumeiras de poder não se extinguem por decreto.
do Direito, esta sua conquista pelo poder central e civilizado, implicou a criação de um
corpo de tribunais que aplicasse pelo país fora esta concepção do Direito. O poder
central, monopolizador, criador da nova ordem de igualdade, necessitava de um braço
amplíssimo que o fizesse chegar ao mais recôndito canto de Portugal.
Este novo poder judicial seria reduzido à função da boca que pronuncia as palavras da
lei, na célebre expressão de Montesquieu, o teórico da separação de poderes. Os juízes
não teriam autonomia interpretativa ou de aplicação do Direito, limitando-se, quais
máquinas de soluções jurídicas, a proferir a decisão.
O legalismo (a identificação do Direito com a lei) foi desde a primeira hora posto em
crise, pelo simples facto de o seu fundamento legitimador – a democracia – não
corresponder à realidade. Os cidadãos com acesso ao voto eram em número muito
inferior à população, estando reduzido aos homens com determinadas características
sociais e financeiras. Era, como se sabe, um regime muito elitista, com fraco índice de
participação. Acresce que havia um grande alheamento das populações em relação à vida
política e ao Estado, permanecendo ligadas a práticas sociais geralmente aceites como
certas e válidas localmente.
O legalismo foi, assim, rapidamente substituído por outras formas de criação de Direito,
desde o reconhecimento das tais práticas sociais dominantes (o costume), até à criação de
um Direito tecnicamente perfeito a cargo de um corpo de juristas de elite. Expoente desta
última concepção é a construção jurídica de Savigny, autor da divisão actual do Direito
Civil.
se hoje, com uma democracia verdadeiramente representativa, em que cada cidadão tem a
possibilidade de votar livremente, não estarão reunidas as condições para que a lei,
elaborada pelas assembleias representativas, seja a expressão directa da vontade popular.
Se assim fosse, o legalismo seria o melhor modelo para o nosso mundo actual e o tribunal
judicial adstritos à lei o mais adequado método de solução de qualquer conflito.
O certo é, porém, que nos dias que correm se verifica continuamente um afastamento do
cidadão perante o Estado e, em consequência, em relação à lei. Se perguntarmos a
qualquer pessoa se entende que é a si que lhe compete a feitura da lei e que delega esse
poder através do voto, a reacção será, no mínimo de estranheza. A distância entre Estado
e cidadão tem vindo a aumentar, para o que há diferentes e variadas justificações. A isto
acresce ainda a circunstância de o Direito ser uma realidade muito técnica, característica
notada por qualquer teorizador e pecha sempre presente de uma concepção democrática
do Direito.24
Em síntese, e citando António Hespanha, “No direito, tem-se evoluído da ideia da certeza
dos princípios e das soluções jurídicas (modernismo) para a de uma mera solução
24
António Hespanha, O Caleidoscópio do Direito, 2007, p. 154.
25
António Hespanha, Ideias sobre Interpretação, 2009, p. 39.
20
A resolução alternativa de litígios está ligada aos Critical Legal Studies, um movimento
crítico da lei que surgiu nos Estados Unidos da América no fim dos anos 60. O
movimento tem uma origem essencialmente política, querendo com isto dizer que surgiu
da constatação de que o Direito não era um saber neutral (como a Física ou a
Matemática), mas carregado de ideologia e programa. Era a expressão de uma vontade –
todas as opções jurídicas constituíam escolhas políticas.27
Afirmar isto era afirmar que valores que estavam no centro da ideologia dos juristas
desde o séc. XVIII – como a racionalidade dos seus procedimentos – não tinham
fundamento, constituindo apenas uma máscara de argumentos favoráveis à defesa de
certas posições dominantes na vida social ou na vida académica.28
26
António Hespanha, O Caleidoscópio do Direito, 2007, p. 213.
27
António Hespanha, O Caleidoscópio do Direito, 2007, p. 229 e seguintes.
28
António Hespanha, O Caleidoscópio do Direito, 2007, p. 231.
21
O movimento não parou de ganhar adeptos nos Estados Unidos da América e na Europa.
Em Portugal chega também, embora em tempos já mais recentes.30
Mas há ainda outras razões, para além da evolução do pensamento jurídico e da crise da
justiça, que contribuem para o aparecimento e desenvolvimento recente dos meios de
resolução alternativa de litígios.
29
Carrie Menkel-Meadow, Roots and Inspirations, 2005, p. 19.
30
João Pedroso, Catarina Trincão e João Paulo Dias, Por caminhos da(s) reforma(s) da Justiça,
2003, p. 32.
31
Erigido aliás em pressuposto processual geral.
22
mesmo nos casos em que o patrocínio judiciário não é obrigatório, verifica-se cada vez
mais a representação por advogado.
Repare-se que as partes, em processo civil, não podem sequer falar. A única possibilidade
de dirigirem a palavra ao tribunal é através do depoimento de parte, cuja exclusiva
finalidade é a obtenção de confissão. Ou seja, em processo civil apenas tem valor aquilo
que as partes dizem contra si próprias (os factos que lhes são desfavoráveis).32
Ora, estes novos modelos sociais recebem resposta através de alguns meios de resolução
alternativa de litígios, em especial da mediação, onde as partes são colocadas no domínio
do litígio. Não apenas quanto ao seu desfecho (a obtenção do acordo), mas também e
sobretudo quanto ao processo que a ele conduz.
A adesão das pessoas a sistemas de mediação ou similares tem precisamente a ver com
esta possibilidade de dominar o conflito. Uma das características essenciais da mediação
– a atribuição de plenos poderes às partes (empowerment) – é justamente produto disto.
Tendo isto como assente é importante referir que não se pretende com estas palavras
defender a substituição do sistema tradicional de justiça pela resolução alternativa de
litígios. Acredito que a oferta pública de justiça, o serviço público de justiça deve ser
complementar, ou seja, deve conter diversas ofertas de justiça. A sociedade é hoje
complexa, diversificada. Dá origem a conflitos completamente diferentes que exigem
32
Artigos 552.º e seguintes CPC e 352.º CC.
23
1.3. Em Portugal
Há que fazer, ao nível dos meios de resolução alternativa de litígios, uma distinção
importante em termos históricos. A arbitragem comercial, designadamente a arbitragem
internacional, tem uma história diferente dos restantes meios que tratamos neste estudo. A
história da arbitragem está intrinsecamente ligada à história do comércio. A arbitragem
surge no período medieval como forma de resolução de conflitos entre comerciantes nas
feiras europeias. A arbitragem tinha uma dupla vantagem: era rápida (como as feiras) e
permitia o julgamento através de regras comerciais diferentes das estatais. Estas duas
características fomentavam intensamente o comércio.33
34
Francisco Cortez, A Arbitragem voluntária em Portugal, 1992, p. 372; Armindo Ribeiro
Mendes, Balanço de 20 anos de vigência da LAV, 2008, p. 14; José Duarte Nogueira, A
Arbitragem na História do Direito Português, 1996, p. 15.
24
Estima-se hoje que cerca de noventa por cento dos contratos internacionais contêm
convenções de arbitragem.35
Esta é, portanto, uma crónica à parte daquela que enquadra os restantes meios de
resolução alternativa de litígios. Nesta outra história também entra a arbitragem. Aliás,
terá começado por aí este movimento novo de desenvolvimento público desta área. Mas a
arbitragem de iniciativa pública tem sido dirigida aos pequenos conflitos, com especial
35
Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, p. 24.
25
incidência nos litígios de consumo. Não deixa de ser interessante que um mesmo meio de
resolução alternativa de litígios – a arbitragem - tenha a virtualidade de, em simultâneo,
se adequar a litígios com características tão diferentes.
Podemos dizer, embora sem comprovação científica, que o desenvolvimento dos meios
de resolução alternativa de litígios em Portugal se iniciou na área do consumo, através da
criação de centros de arbitragem de conflitos de consumo e de centros de informação
autárquica ao consumidor. Os centros de arbitragem de consumo são, em 2010, dez, oito
de âmbito geral e dois de âmbito sectorial, prestando serviços de informação e de
mediação. Os Centros de Informação Autárquica ao Consumidor (CIAC), criados por
iniciativa das autarquias, no âmbito das suas competências específicas, com o apoio do
então Instituto do Consumidor36, realizam a nível local a informação sobre as temáticas
da defesa do consumidor e promovem a mediação de conflitos de consumo surgidos na
sua área territorial de actuação.37
Um dos primeiros centros foi o de Lisboa, que iniciou a sua actividade em 1989, e está
hoje implantado como um organismo de sucesso na resolução de conflitos de consumo.
Em 2009, foi criado o Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de
Consumo (CNIACC) que é gerido pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa, funcionando nas suas instalações. Com a entrada em funcionamento deste Centro,
está disponível em termos nacionais a arbitragem de consumo às empresas e
consumidores que a ela queiram aderir.
36
Actualmente, Direcção-Geral do Consumidor.
37
Mais informação em www.consumidor.pt, ver em Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
26
O forte impulso à mediação surgiu com a criação dos Julgados de Paz. Nas diversas
actividades que precederam a sua criação, tornou-se clara a importância da mediação
enquanto meio de resolução alternativa de litígios.38 E é nessa altura, em 2000/2001, que
começa a entrar no ordenamento jurídico português a mediação enquanto meio técnico,
científico, até, de resolução de conflitos. Surgem os primeiros cursos de mediadores e
exige-se a sua frequência e a certificação pelo Ministério da Justiça para que os
mediadores possam exercer a sua acção nos Julgados de Paz.
Tendo em conta que os primeiros Julgados de Paz iniciaram a sua actividade em 2001, é a
partir desta data que o mundo da mediação se desenvolve, através de mediadores
devidamente formados e credenciados. É provável que a profissão, mantendo-se o seu
sucesso e a aposta pública nela, se venha a organizar através de uma associação de
interesse público. Para já, existe uma associação de mediadores 39, mas a inscrição não é
obrigatória para que a profissão possa ser exercida. Importa destacar que fora dos
Julgados de Paz e dos sistemas públicos de mediação não é obrigatória a frequência de
curso certificado pelo Ministério da Justiça para realizar mediações.
38
Lúcia Vargas, Julgados de Paz e Mediação, 2006, p. 91 e seguintes.
39
Associação de Mediadores de Conflitos, mais informação em www.mediadoresdeconflitos.pt
40
A lista actualizada dos existentes pode ser consultada no sítio do Gabinete de Resolução
Alternativa de Litígios do Ministério da Justiça (www.gral.mj.pt) ou no sítio do Conselho de
Acompanhamento dos Julgados de Paz (www.conselhodosjulgadosdepaz.com.pt).
41
Estudo do ISCTE intitulado “Alargamento da Rede dos Julgados de Paz em Portugal”,
disponível em www.conselhodosjulgadosdepaz.com.pt.
27
pelo Ministério da Justiça. No essencial, sugere a criação de 2 Julgados de Paz por ano
até à criação de uma rede nacional de Julgados de Paz, em número que ronde os 100.42
Por último, e mais recentemente, têm sido criados sistemas de mediação em áreas
específicas, com características próprias. Falo da mediação laboral, da mediação penal e
da mediação familiar. A primeira é fruto de um protocolo com sindicatos e associações
patronais, a segunda objecto de legislação específica 43 e em regime experimental desde
Janeiro de 2008 e a terceira constitui um desenvolvimento do anterior Gabinete de
Mediação Familiar. A Mediação Penal está ainda em fase experimental e em âmbito
territorial limitado44, prevendo-se o seu alargamento paulatino a todo o território
nacional.45
Assim foram inseridas no Código de Processo Civil duas importantes alterações: uma
delas na regra das custas e outra através da inserção de preceitos específicos sobe
mediação no Código.
Em matéria de custas, o n.º 4 do artigo 447.º-D estabelece que o autor que pudesse
recorrer a estruturas de resolução alternativa de litígios e tenha optado peva via judicial,
suporta as suas custas de parte, independentemente do sucesso da acção judicial. De
acordo com o n.º 5, as estruturas de resolução alternativa de litígios serão definidas por
portaria. À data em que se escreve, Janeiro de 2011, ainda não foi publicada essa portaria.
De acordo com o preceito, o autor poderá afastar a aplicação da norma se demonstrar que
a parte contrária inviabilizou a utilização dessas estruturas. Tal prova poderá ser feita
através, por exemplo, do envio de cartas à parte contrária propondo a utilização da
mediação ou da arbitragem, seguidas de recusa ou de não obtenção de resposta.
42
Para uma cronologia da instalação, cfr. Cardona Ferreira, Justiça de Paz – Julgados de Paz,
2005, p. 52.
43
Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho.
44
Conferir localização dos serviços em funcionamento em www.gral.mj.pt
45
Cfr. infra 3.7. as especificidades de cada um dos sistemas de mediação.
28
Em Maio de 2008 foi aprovada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho a Directiva
2008/52/CE relativa a certos aspectos da mediação em matéria civil e comercial. A
Directiva foi já transposta para o nosso ordenamento jurídico, através do Decreto-Lei
29/2009, de 29 de Junho, que introduziu no Código de Processo Civil quatro novos
artigos: o artigo 249.º-A cuja epígrafe é mediação pré-judicial e suspensão de prazos; o
artigo 249.º-B, que trata da homologação de acordo obtido em mediação pré-judicial; o
artigo 249.º-C sobre confidencialidade e o artigo 279.º-A relativo à suspensão da
instância.
Sem prejuízo da sua análise posterior no capítulo da mediação, interessa desde já focar a
inserção de normas sobre mediação no Código de Processo Civil, uma vez que se trata de
mais um passo importante na construção de um sistema de justiça plural. Ainda que a
inclusão no Código seja criticável do ponto de vista sistemático – é mais um golpe na sua
coerência interna – o certo é que dá relevância à mediação, muito maior do que se
estivesse regulada em lei extravagante.
Por outro lado, já anteriormente a Lei do Divórcio46, havia alterado o Código Civil,
introduzindo no artigo 1774.º uma norma sobre mediação, nos seguintes termos: “Antes
do início do processo de divórcio, a conservatória do registo civil ou o tribunal devem
informar os cônjuges sobre a existência e os objectivos dos serviços de mediação
familiar.”
É fácil de ver como o crescimento recente dos meios de resolução alternativa de litígios
tem sido enorme. Este desenvolvimento tem sido feito essencialmente pelo poder
46
Lei 61/2008, de 31 de Outubro.
47
É este o teor da norma: “Sem prejuízo do acesso, pelos utilizadores de serviços de pagamento,
aos meios judiciais competentes, os prestadores de serviços de pagamento devem oferecer aos
respectivos utilizadores de serviços de pagamentos o acesso a meios extrajudiciais eficazes e
adequados de reclamação e de reparação de litígios de valor igual ou inferior à alçada dos
tribunais de 1.ª instância, respeitantes aos direitos e obrigações estabelecidos no título III do
presente regime jurídico.”
29
II
NEGOCIAÇÃO
2.1. Noção
De acordo com esta definição, todos somos negociadores: sempre que queremos alguma
coisa que está sob controlo de outro, negociamos ou tentamos negociar. Quando um casal
escolhe um restaurante para jantar ou decide com os filhos a hora de deitar; quando um
trabalhador discute um aumento com o chefe ou o preço de uma casa com um vendedor,
está a negociar. Quando dois advogados tentam chegar a um acordo sobre o valor de uma
indemnização ou um grupo de empresas planeia um exploração conjunta de uma reserva
de petróleo; quando o ministro da educação procura um entendimentos com o sindicato
dos professores sobre o novo estatuto dos professores ou o presidente dos Estados Unidos
da América conversa com o presidente da Rússia sobre segurança, tudo isto é negociação,
todos são negociadores.49
48
Pedro Cunha, Conflito e Negociação, 2001, p. 49.
49
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 15.
31
A negociação, como dizem Fisher, Ury e Patton, é uma indústria em crescimento, porque
cada vez há maior interesse dos cidadãos em participar nas decisões que lhes dizem
respeito.
Há quem defenda, por esta razão, que a negociação não passa de uma mera, embora
essencial, componente destes outros meios de resolução de litígios. E que, por isso, não
deveria ser autonomizada como um meio autónomo de resolução de conflitos.54 Mas,
mesmo alguns autores que assim pensam entendem que o conhecimento de técnicas e
estilos de negociação é essencial a qualquer profissional.55
Parece-me, assim, importante dar a conhecer, ainda que de forma muito introdutória,
alguns conceitos básicos de negociação, porque podem ser utilizados autonomamente ou
no âmbito de outro mecanismo de resolução do litígio. A razão de ser desta necessidade
50
Cruyplants, Gonda e Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p 6.
51
www.pon.harvard.edu
52
Bruce Patton, Negotiation, 2005, p. 279.
53
Cruyplants, Gonda e Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p 7; Jorge Correia
Jesuíno, A Negociação, 2003, p. 16; Silvia Barona Vilar, Solución extrajurisdiccional de
conflictos, 1999, p. 74.
54
Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, não inclui a matéria da negociação na sua
proposta de programa para uma disciplina nesta área.
55
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 104.
32
prende-se, ainda, com uma ideia pessoal de que os juristas, em especial os advogados,
participam frequentemente em negociações a diversos níveis e que é da maior utilidade
conhecerem perspectivas, modelos e técnicas de negociação.
O método dos princípios centra-se em quatro grupos de ideias: pessoas, interesses, opções
e critérios.
Quanto às pessoas, o método defende a separação destas do problema, isto é, que se tome
consciência de que o problema em discussão é diferente da pessoa que discute, de que os
aspectos estritamente pessoais não devem ser mais importantes que o assunto sobre o
qual se negoceia.59 Mas, para conseguir esta separação deve, primeiro, perceber-se o
ponto de vista do outro. A capacidade de olhar a situação sob o ponto de vista alheio,
56
Pedro Cunha, Conflito e Negociação, 2001, p. 85 e seguintes.
57
Jorge Correia Jesuíno, A Negociação, 2003, p. 15; Silvia Barona Vilar, Solución
extrajurisdiccional de conflictos, 1999, p. 71.
58
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 16.
59
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 35-40; Jorge Correia Jesuíno,
A Negociação, 2003, p. 60; José Vasconcelos-Sousa, O que é negociação, 1996, p. 131.
33
por mais difícil que seja, é uma das mais importantes competências que um negociador
pode ter.60 O essencial é perceber-se que a «verdade» não é suficiente para resolver o
problema, na medida em que cada uma das partes escolhe da verdade aquilo que lhe
interessa. As partes podem concordar que um perdeu o relógio e que o outro o encontrou,
mas divergirem quanto a quem deve ficar com o relógio. A percepção do outro, o que se
consegue através da comunicação e da descentralização da sua posição, é essencial neste
separar as pessoas do problema. Sem comunicação, não há negociação. Ouvir, tentar
fazer-se perceber, não interpretar o que os outros dizem, tentar ser objectivo e não
preconceituoso quanto aos outros, falar com um objectivo são aspectos que facilitam a
comunicação e devem ser utilizados em abundância no modelo de negociação defendido
por Ury, Fisher e Patton.61
60
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 42.
61
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 51-56; Cruyplants, Gonda e
Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p 170.
62
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 59-63; Silvia Barona Vilar,
Solución extrajurisdiccional de conflictos, 1999, p. 72; Cruyplants, Gonda e Wagemans, Droit et
pratique de la médiation, 2008, p 175.
63
Também conhecido como exemplo da laranja: Zulema Wilde e Luís Gaibrois, O que é a
mediação, 2003, p. 58.
64
Jorge Correia Jesuíno, A Negociação, 2003, p. 61.
34
A tarefa de procurar os interesses por detrás das posições pode, porém, ser difícil. Implica
perguntar porquê; falar sobre os interesses, levando cada uma das partes a perceber os
seus e os da outra parte. E, estabelecidos os interesses objectivamente, os autores
defendem uma sua defesa intransigente, enérgica.65 Os negociadores devem ter uma ideia
clara e firme sobre os interesses e ser flexíveis quanto às posições.66
Por último, Fisher, Ury e Patton aconselham que se insista na utilização de critérios
objectivos. Ou seja, ultrapassar as questões da vontade, necessariamente subjectivas,
procurando padrões técnicos ou critérios objectivos que mais facilmente conduzam ao
acordo.70 Quando uma das partes persistir numa ideia, revelando-se intransigente, deve
insistir-se que o acordo obedeça a critérios objectivos de forma a ser justo para ambas as
65
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 63-75.
66
Jorge Correia Jesuíno, A Negociação, 2003, p. 61.
67
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 77; Cruyplants, Gonda e
Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p 178.
68
Silvia Barona Vilar, Solución extrajurisdiccional de conflictos, 1999, p. 73.
69
José Vasconcelos-Sousa, O que é negociação, 1996, p. 132; Jorge Correia Jesuíno, A
Negociação, 2003, p. 61.
70
Fisher, Ury e Patton, Como Conduzir uma Negociação?, 2003, p. 103 e seguintes.
35
A negociação de princípios foi criticada por ser ingénua, face a negociadores difíceis ou
de má fé.73 Perante negociadores intransigentes ou não adeptos desta abordagem, a sua
utilização pode conduzir a maus resultados. Mas esta metodologia é útil em situações em
que as partes têm uma relação continuada ou em que o resultado da negociação é muito
importante para as partes.74
O modelo competitivo, baseado numa posição de negociação forte, gera situações hostis,
focando-se na manipulação e no ganho, em vez da procura de soluções aceitáveis para
ambas as partes. Pretende-se que o adversário ceda às pressões da parte contrária. 75 O
modelo tem vindo a ser abandonado, sendo mais frequentes as tentativas de encontrar
estratégias para o ultrapassar.76
71
Jorge Correia Jesuíno, A Negociação, 2003, p. 61; José Vasconcelos-Sousa, O que é
negociação, 1996, p. 132.
72
Cruyplants, Gonda e Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p 182.
73
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 106; Bruce Patton, Negotiation, 2005,
p. 295 e seguintes.
74
José Vasconcelos-Sousa, O que é negociação, 1996, p. 132; Silvia Barona Vilar, Solución
extrajurisdiccional de conflictos, 1999, p. 71.
71.
75
Silvia Barona Vilar, Solución extrajurisdiccional de conflictos, 1999, p. 71.
76
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 109.
77
Pedro Cunha, Conflito e Negociação, 2001, p. 85.
78
Motivo de interesse tem também o modelo de observação proposto por José Vasconcelos-Sousa
em Para maior eficácia como mediador: conhecer a negociação!, 2006, p. 197 e seguintes. Com
claras influências do modelo cooperativo, o autor propõe a preparação, análise e execução do
processo negocial com base em três elementos ou pontos de vista: conteúdo, pessoas e processo.
36
III
MEDIAÇÃO
3.1. Noção
A Lei dos Julgados de Paz define mediação nos seguintes termos: “A mediação é uma
modalidade extrajudicial de resolução de litígios, de carácter privado, informal,
confidencial, voluntário e natureza não contenciosa, em que as partes, com a sua
participação activa e directa, são auxiliadas por um mediador a encontrar, por si
próprias, uma solução negociada e amigável para o conflito que as opõe.” 79
Há outras definições e com sede similar. Uma delas consta da Directiva 2008/52/CE do
Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certos aspectos da mediação em matéria
civil e comercial. Embora aplicável apenas aos conflitos transfronteiriços como são
definidos no seu artigo 2.º, tal não impede, porém, conforme dito no Considerando 8 da
Directiva, que os Estados-Membros adoptem os seus princípios e disposições a processos
de mediação domésticos. Foi precisamente esta a opção tomada pelo Estado português ao
transpor a Directiva para o Código de Processo Civil80, através do aditamento dos artigos
249.º-A, B e C e do artigo 279.º-A. Com esta inserção, as normas aplicam-se a todos os
79
Artigo 35.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho.
80
Através da Lei 29/2009, de 29 de Junho.
37
Mais diz ainda a Directiva que a mediação conduzida por um juiz que não seja
responsável por qualquer processo judicial relativo ao litígio em questão se insere ainda
no conceito. E que ficam excluídas as tentativas do tribunal ou do juiz no processo com
vista à solução do litígio por acordo.
O ponto da definição mediação não resulta, porém, de uma primeira leitura destas
definições. O essencial na mediação é o pleno domínio do processo pelas partes
(empowerment), princípio que é, em simultâneo o seu fundamento e, naturalmente, uma
sua característica permanente. A mediação assenta na ideia de que é nas partes que reside
a solução do problema, que é através delas – as donas do litígio – que se encontrará a
solução adequada e justa.
Este princípio fundador da mediação consta das noções legais de mediação se se atentar
bem nas suas letras: no artigo 35.º LJP, quando é referida a participação activa e directa
81
Artigo 3.º da Directiva.
38
das partes que econtram por si próprias uma solução; na Directiva, quando se refere a
voluntariedade na procura do acordo. Repare-se que em ambas as definições as partes –
não o mediador – são o sujeito da frase, são elas que chegam ao acordo.
A distinção entre estes dois modelos tem representado uma divisão substancial na teoria.
Alguns mediadores têm colocado estas duas posturas em ângulos tão diversos que parece
quase uma questão de fé.82 Há quem refira que a grande vantagem da mediação é a
flexibilidade de procedimento e técnicas, característica que impede uma definição muito
precisa83, e que o essencial é que a prática se insira nos princípios essenciais da
mediação.84
82
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 137; Roberts e Palmer, Dispute
Processes, 2005, p. 173.
83
Kimberlee Kovach, Mediation, 2005, p. 306.
84
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 149.
39
os juristas se referem a mediação, estão a falar de mediação facilitadora. Por esta razão –
porque o sistema adquiriu ou tem vindo a adquirir o conceito assim – parece-me melhor
restringir a mediação à mediação facilitadora, deixando de fora outros modelos mais
interventivos.85
A mediação praticada nos Julgados de Paz e nos sistemas públicos de mediação (familiar,
laboral e penal) obedece a este modelo, assim como a formação obrigatória a que os
mediadores estão sujeitos para poderem realizar mediações nestes sistemas.
Mediação será assim apenas o método de resolução de litígios em que o mediador auxilia
as partes a comunicarem, conduzindo-as ao caminho do acordo que entendam possível ou
adequado. O mediador é essencialmente um facilitador, alguém que coloca as partes no
trilho seguro e não as deixa descarrilar.
Repare-se que esta restrição não é uma crítica aos modelos mais interventivos de
mediação. Pelo contrário, parece-me que conforme as situações concretas em disputa
poderá fazer sentido que o mediador assuma uma postura de maior ingerência. Estes
outros modelos de mediação não deixam de ser bons, apenas constato que o nosso
sistema jurídico assumiu que não são mediação.
pessoas que melhor colocadas estão para resolver o seu litígio. Há uma ideia de
responsabilidade pessoal que se traduz na atribuição às partes do domínio do problema e
do processo. Enquanto em tribunal tudo lhes é afastado, em mediação tudo lhes é
entregue, dependendo delas o início, o decurso e o fim da mediação.
As pessoas têm, assim, o domínio do processo na medida em que podem sair quando
quiserem, nada as obrigando, evidentemente, a chegar a um acordo. Mas têm, sobretudo,
o domínio do conteúdo, não sendo possível qualquer solução do litígio que não derive
delas. É precisamente da aplicação inexorável do princípio do domínio das partes que se
retira a impossibilidade de o mediador fazer sugestões sobre o conteúdo do litígio. O
mediador não deve de todo intervir quanto ao mérito, limitando-se a conduzir as partes no
caminho do diálogo e da mútua compreensão, com o fim de que estas reúnam as
condições para encontrarem, por si, o acordo. Este aspecto pode parecer estranho à
primeira vista, mas é muito importante na dinâmica da mediação.
b. O segundo pilar da mediação relaciona-se com o seu fim. Ao contrário dos meios
clássicos de resolução de conflitos, que são construídos para a resolução da disputa
apresentada pelas partes, a mediação dá preferência à pacificação social, isto é, tem como
objectivo sanar o problema, restabelecendo a paz social entre os litigantes. Este fim
sobrepõe-se inteiramente à questão do direito. Não importa saber quem tem razão, mas
antes procurar resolver os problemas subjacentes ao aparecimento do litígio.
Trata-se, portanto, de um método de resolução de litígios assente nos interesses e não nos
direitos. Assim, como se viu acontecer na negociação cooperativa, é necessário averiguar
os interesses, afastando, se necessário, as posições. É usual utilizar-se a imagem do
iceberg como metáfora do litígio: as posições estão na ponta visível deste e os interesses
88
No processo civil, o depoimento de parte só é admissível quando requerido pela parte contrária
ou pelo juiz oficiosamente – artigo 553.º n.º3 CPC.
89
Zulema Wilde e Luís Gaibrois, O que é a mediação, 2003, p. 27.
41
Para que a mediação possa basear-se nos interesses, não deve haver intermediários,
embora as partes possam estar assistidas. Isto levanta uma das importantes questões da
mediação e a que, porventura, tem dificultado a sua inserção na nossa prática social.
Refiro-me à função do advogado na mediação.91
A este propósito há três questões a abordar: primeiro, a presença dos advogados nas
sessões de mediação; segundo, o seu papel nessas sessões e, terceiro, a possibilidade de
representação das partes por advogado (a sua substituição).
Em geral é referido que os advogados devem ter acesso à mediação, assistindo o seu
cliente.92 O tipo de intervenção deve, porém, ser encarado de forma diferente do
tradicional – o advogado não representa a parte e deve actuar de acordo com o espírito de
colaboração e procura do consenso adequado ao caso. O papel do advogado numa sessão
de mediação é muito diferente daquele que desempenha em tribunal judicial ou arbitral.
Desde logo, na mediação não é necessário convencer ninguém quanto aos factos ou ao
direito: são as partes que têm o papel principal, não o advogado.93
90
Lúcia Vargas, Julgados de Paz e Mediação, 2006, p. 56.
91
Tenreiro Biscaia, O Sistema Tradicional de Justiça e a Mediação Vítima-Agressor: o Papel dos
Advogados, 2005, p.89.
92
Vezzulla, Mediação – Teoria e Prática, 2001, p. 105; Zulema Wilde e Luís Gaibrois, O que é a
mediação, 2003, p. 30.
93
Srdan Simac, Attorneys and mediation, 2009, p. 43.
42
Não tem sido porém este o entendimento do legislador: a Lei 20/2007, de 12 de Junho,
relativa à mediação penal, obriga à comparência do arguido e do ofendido, podendo haver
assistência (não representação) por advogado (artigo 8.º); a mesma regra consta do artigo
38.º LJP, nos termos do qual as partes têm de comparecer pessoalmente nos Julgados de
Paz, permitindo o artigo 53.º da mesma lei, no seu n.º 4, a representação apenas das
pessoas colectivas e no n.º 5 a assistência por advogados ou outras pessoas nomeadas.96
94
Vezzulla, Mediação – Teoria e Prática, 2001, p. 105; Brown e Marriott, ADR Principles and
Practice, 1999, p. 131.
95
Srdan Simac, Attorneys and mediation, 2009, p. 38.
96
Relembre-se que os litígios submetidos aos Julgados de Paz têm como valor máximo a alçada
do tribunal de 1ª Instância (5.000€), pelo que não há patrocínio judiciário obrigatório (artigo 8.º e
38.º LJP)
43
97
Organizada pela então Direcção-Geral da Administração Extrajudicial, hoje Gabinete para a
Resolução Alternativa de Litígios.
98
O mesmo ponto de vista foi defendido, também em Portugal, em 2008 por Srdan Simac,
Attorneys and mediation, 2009, p. 47.
99
Stephen Golberg in Segunda Conferência Meios Alternativos de Resolução de Litígios, 2005, p.
93.
100
Srdan Simac, Attorneys and mediation, 2009, p. 49.
44
Por último, a presença do advogado pode ser importante para controlar a actividade do
mediador, do ponto de vista da competência e da deontologia. Não sendo a mediação
pública, a presença do advogado é muitas vezes a única forma de efectivo controlo
externo (por terceiro) da actividade do mediador. Um advogado aberto à mediação é para
o mediador um aliado e uma segurança.103
Insisto um pouco neste ponto porque, como já disse, tenho a intuição de que a mediação
necessita da advocacia para se integrar plenamente no sistema de Justiça. É natural que
haja resistência à mudança, nada de mais humano. Nada se faz abruptamente, pelo que a
mudança será necessariamente lenta. Um aspecto importante é a formação nas escolas de
Direito, uma responsabilidade que a Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa assumiu plenamente.
101
Srdan Simac, Attorneys and mediation, 2009, p. 61 e seguintes.
102
Srdan Simac, Attorneys and mediation, 2009, p. 39.
103
Martine Bourry d’Antin, Gérard Pluyette e Stephen Bensimon, Art et techniques de la
médiaton, 2004, p. 84.
45
O advogado pode, ainda, ser ter formação como mediador e exercer em simultâneo estas
duas profissões. Isto verifica-se, aliás, em muitos casos. O advogado não poderá, porém,
ser mediador de casos em que tenha intervindo como advogado ou nos quais haja um
conflito de interesses. É preciso algum cuidado nos casos em que o advogado é também
mediador – trata-se no essencial do mesmo problema que se verifica quanto aos
advogados que exercem simultaneamente as funções de árbitro.
3.4. O mediador
O mediador não negoceia com as partes, antes conduz a negociação que elas fazem entre
si.106 O mediador não aconselha nenhuma das partes, nem sequer as duas em conjunto,
antes promove uma exploração construtiva dos problemas.
104
Luis Melo Campos, Mediação de conflitos: enquadramento institucional, 2009, p. 185.
105
Luis Melo Campos, Mediação de conflitos: enquadramento institucional, 2009, p. 184.
106
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 130.
46
Esta diversidade de formações de base traz um problema para a mediação que tem de ser
encarado na formação e na fiscalização. É que há um padrão de abordagem da mediação
que se relaciona com essa profissão de base: os advogados têm dificuldade em confiar na
capacidade de os mediados construírem sozinhos uma solução; os juízes esperam
obediência, pelo que quando dizem algo subentendem que é o que está certo; os
psicólogos têm naturalmente tendência para a terapia, procurando por vezes apenas as
raízes do conflito; os sociólogos posicionam-se muitas vezes como “missionários”,
pensando que mudam a sociedade com a implementação da mediação; os cientistas
naturais procuram muito esquematizar a relação causa-efeito, esquecendo que entre as
pessoas as questões não são tão lineares.111
107
Luis Melo Campos, Mediação de conflitos: enquadramento institucional, 2009, p. 181.
108
Retomarei ainda alguns aspectos específicos da figura do mediador no ponto 3.5..
109
Os cursos estão actualmente regulados pela Portaria n.º 237/2010, de 29 de Abril.
110
Para uma discussão sobre o conteúdo da formação, cfr. Angela Lopez, Reflexão sobre a
formação de mediadores, 2009, p. 105 e seguintes.
111
Reflexões com a colaboração de Úrsula Caser.
47
Julgo que serão poucos os mediadores que exercem a profissão em exclusividade. Dado o
ainda pequeno mercado de mediação, não há trabalho suficiente para que a maior parte
dos mediadores possam prescindir do seu trabalho de origem. Esta concorrência de
profissões pode dificultar a necessária contextualização do mediador quando faz
mediação. Falando em especial dos advogados que são mediadores, é evidente que ser de
manhã advogado e à tarde mediador coloca problemas concretos de posicionamento, que
devem ser conhecidos e objecto de reflexão pessoal.
A Lei dos Julgados de Paz estabelece, aliás, que o mediador está impedido de exercer a
advocacia no julgado de paz onde presta serviço (artigo 30.º n.º3), reconhecendo,
portanto, a importância da separação dos papéis.
O mediador deve ser independente e imparcial, no sentido corrente de que não pode ter
qualquer interesse pessoal no conflito mediado ou qualquer ligação com as partes. 113 Esta
independência coloca, na prática, problemas de difícil resolução. Esta é uma questão que
O Código Europeu de Conduta para Mediadores refere, no seu princípio 1.2., os seguintes
índices de falta de independência: uma relação pessoal ou profissional com uma das
partes; um interesse financeiro, directo ou indirecto, no resultado da mediação; o
mediador ou um elemento da sua organização ter prestado serviços que não de mediação
a uma das partes. Estes não são porém, na leitura do Código, impedimentos absolutos
para que o mediador aceite o encargo de mediar. Nestes casos, o mediador deve ponderar
se está em condições para conduzir a mediação com total independência e neutralidade.
Estas são as regras do Código que constituem uma mera proposta de adesão. Parece-me
neste aspecto algo criticável porque as situações elencadas põem seguramente em causa a
independência do mediador, dificultando sobremaneira o seu trabalho. Não é de todo
recomendável que nestes casos aceitem ou prossigam com a mediação. Mas a verdade é
que na maior parte dos casos a independência não se afere em abstracto, apenas em
concreto.115
114
Cfr. infra 5.5., onde também se defende a não possibilidade e necessidade de distinguir entre
independência e imparcialidade.
115
Guillaume-Hofnung, La Médiation, 2007, p. 72.
49
A Lei dos Julgados de Paz refere ainda que o mediador deve ser neutral, abstraindo-se das
suas convicções pessoais no momento de executar as suas tarefas. A neutralidade é muito
mais difícil de controlar do que a imparcialidade ou a independência. Há quem entenda
até que tal é impossível, na medida em que o afastamento dos nossos preconceitos e
profundos pensares nunca se faz até ao nível do subconsciente.
Esta é uma questão especialmente sensível na mediação penal. O artigo 10.º da Lei
20/2007, de 12 de Julho, refere-se à questão da isenção do mediador, permitindo-lhe que
recuse ou interrompa a mediação quando perceba que não consegue suplantar os seus
pré-conceitos. É algo – a interrupção – que não está previsto na generalidade das
mediações, mas que deve ser encarado como sempre possível. Mais uma vez cabe ao
mediador analisar, permanentemente, a sua actuação. Exige-se-lhe uma permanente
lucidez.116
116
Guillaume-Hofnung, La Médiation, 2007, p. 74.
50
São diversas as questões a discutir a propósito do modo como a mediação pode ou deve
ser integrado num sistema de justiça que foi criado como monopolizador. Há questões
estritamente jurídicas, como a da conformidade com a Constituição da mediação
obrigatória, e há questões de oportunidade, como a da melhor forma de instituir a
mediação.
No sistema de mediação familiar, a voluntariedade vem prevista logo no artigo 2.º SMF,
regra em que estão descritos os princípios do sistema: voluntariedade, celeridade,
proximidade, flexibilidade e confidencialidade. Nos termos do artigo 6.º SMF, a
intervenção do sistema tanto pode ser extra-judicial, quando pedida pelas partes, como
pode ocorrer durante a suspensão do processo, mediante autorização da autoridade
judiciária competente, mas aqui também apenas se for obtido o consentimento das partes.
Bettina Knöltz e Evelyn Zach, Taking the best from Mediation Regulations, 2007, p. 668; Jean
117
Mirimanoff, Feasibility of mediation systems in Switzerland, 2009, p. 465; Dário Moura Vicente,
A directiva sobre mediação em material civil e commercial, 2009, p. 135.
51
Em sinal contrário, o n.º 4 artigo 447.º-D CPC estabelece que suporta as suas custas de
partes, o autor que, podendo recorrer a estruturas de resolução alternativa de litígios, opte
pela via judicial. De acordo com o preceito seguinte (n.º5), as estruturas de resolução
alternativa de litígios elegíveis para este efeito serão definidas por portaria.118
Repare-se que o legislador apenas se refere a custas de parte e não às custas do processo
que continuam, se este ganhar a acção, a ser da responsabilidade do réu (artigo 446.º
CPC). É, portanto e ainda, um passo ténue no sentido da imposição de sanções pela não
utilização de estruturas de resolução alternativa de litígios, mas pode ser já uma indicação
do que o futuro trará.
Por último, o novo artigo 279.º-A CPC estatui a possibilidade de o juiz determinar a
remessa do processo para mediação, aparentemente sem colher previamente o
consentimento das partes.119 No entanto, ainda de acordo com esta norma a oposição
expressa de qualquer uma das partes impede a remessa. Do ponto de vista jurídico,
estritamente legal, fica garantida a voluntariedade, porque qualquer uma das partes pode
recusar participar na mediação, ainda antes do seu início. No entanto, pode também dizer-
se que a parte pode não se sentir completamente livre para recusar liminarmente a
remessa do processo, na medida em que tal atitude contraria a vontade do juiz, podendo a
parte recear que tal lhe traga dissabores na resolução do seu caso.
Num mundo perfeito (inteiramente racional) estes receios não seriam sequer objecto de
ponderação. Mas sabemos que no mundo real, feito de emoções, tais medos podem ser
legítimos.
Parece-me evidente que o cuidado do magistrado terá de ser enorme, na sua ponderação e
na forma de colocar a opção às partes. O juiz faz aqui o papel do mediador na pré-
mediação, explicando o procedimento, as suas vantagens e desvantagens, o modo como
funciona. Não deve utilizar a sua influência ou a sua pressão de forma abusiva, nem deve
118
À data em que se escreve, Janeiro de 2011, ainda não foi publicada essa portaria.
119
Ao contrário, por exemplo, da regra constante do Code de procédure civile francês (artigo 131-
1). Cfr. Gérard Pluyette, Príncipes et applications recentes dês décrets dês 22 juillet et 13
décembre 1996 sur la conciliation et la médiation judiciaire, 1997, p. 507.
52
utilizar a mediação como meio de se libertar dos processos. Deve esclarecer as partes e
assegurar-se que há condições, ainda que mínimas, para a realização da mediação.
Parece evidente que há uma tendência para inserir a mediação nas opções das partes, não
propriamente à força, mas com elevado grau de persuasão. Caminha-se, pois, num
sentido que poderá levar à instituição da mediação obrigatória, sendo útil reflectir um
pouco sobre os problemas que esta obrigatoriedade pode colocar.
A instituição da mediação obrigatória tem sido objecto de discussão por duas razões
diferentes. Em primeiro lugar, importa saber se faz sentido ou é producente a existência
de mediação obrigatória. Em segundo lugar, há que ponderar se se adequa às exigências
constitucionais de acesso à justiça. São problemas diversos, de distinta natureza mas de
idêntica importância.
Na Alemanha, a lei de introdução à ZPO, no seu §15 (inserido em 1999) veio permitir
que os diversos estados adoptassem sistemas de mediação obrigatória, prévios portanto
ao processo judicial. Alguns Estados adoptaram assim regras que impõem às partes a
mediação prévia ao acesso aos tribunais.
O recurso à mediação é considerado, nos Estados alemães que adoptaram tal regra, um
pressuposto processual, uma condição de admissibilidade da acção.121 A sanação deste
vício processual seria, porém, possível através da suspensão da instância e consequente
reencaminhamento das partes para a mediação. Apesar de serem muitos os argumentos
que permitiriam a defesa desta posição, gerou-se alguma controvérsia sobre a sua
adequação à lei da mediação obrigatória e aos seus fins.
120
Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, p. 43 e seguintes.
121
Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, p. 51.
53
Tal discussão culminou com uma decisão do Supremo Tribunal Alemão (BGH) de uma
decisão em que indefere um pedido da parte para que a instância fosse suspensa, dando-
se início ao processo de mediação. Em Novembro de 2004, o BGH 122 decide que não é
possível a sanação da excepção dilatória, na medida em que o que a lei exige é que tenha
havido mediação antes da propositura da acção. Isto porque, evidentemente, o que se
pretende é que as partes recorram à mediação antes de o processo dar entrada em tribunal.
Permitir a sanação da excepção frustraria os objectivos da lei.123
São vários os pontos de interesse desta discussão. Neste momento interessa-nos porém e
apenas a circunstância de o BGH não ter tratado a questão da eventual
inconstitucionalidade da imposição legal de mediação, não discutido a eventual violação
do direito fundamental do acesso à justiça por a lei impedir os cidadãos de proporem
acção em tribunal sem antes utilizarem a mediação.
Nos Estados Unidos da América a questão também foi colocada, tendo vários tribunais
decidido que o direito de acesso à justiça não é negado com a obrigatoriedade da
mediação, desde que este sistema não crie obstáculo desrazoáveis ao acesso ao tribunal,
como por exemplo custos ou demora excessivos ou ainda a obrigação de o mediador
revelar posteriormente o conteúdo da sessão em tribunal. Para alguns autores, para que a
mediação obrigatória se insira nos requisitos do processo equitativo (due process), tem de
reunir os seguintes requisitos: assegurar a confidencialidade, informação plena às partes
sobre as características da mediação e as alternativas disponíveis e a possibilidade de as
partes rejeitarem o acordo e acederem livremente aos tribunais.124
No sistema inglês, tornou-se marca nesta matéria o Caso Halsey125, decidido pelo
Supreme Court of Judicature em 2004. Esta decisão não surgiu a propósito de um sistema
de mediação obrigatória – inexistente no ordenamento jurídico inglês –, mas pelo facto de
a parte vencedora ter sido condenada nas custas do processo com fundamento na não
aceitação do convite da contraparte para entrar em mediação. Para resolver esta questão,
122
BGHZ, 161, 145-151.
123
Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, p. 57.
124
Roselle Wissler, The Effects of mandatory mediation: empirical research on the experience of
small claims and common pleas courts, 1997, p. 573
125
[2004] EWCA (Civ) 576.
54
Esta decisão é, sem dúvida, algo conservadora, contribuindo pouco para a credibilidade e
fomento dos meios de resolução alternativo de litígios. A sua posição é precisamente
oposta à jurisprudência alemã anteriormente referida. É certo que houve posteriormente
algumas decisões que vieram amenizar esta tendência, mas a decisão de alguma forma
marcou a comunidade jurídica inglesa em relação à possibilidade ou ao risco de criar
sistemas obrigatórios de resolução alternativa de litígios. Provavelmente por esta razão
não tem o sistema inglês optado por este caminho no desenvolvimento dos meios de
resolução alternativa de litígios.
Por último, uma breve referência ao direito austríaco. O Supremo Tribunal entendeu em
decisão de 15 de Julho de 1997, que a mediação não podia ser iniciada contra a vontade
das partes, tomando posição no sentido de que a mediação obrigatória não seria um
sistema adequado.129
126
Deweer v Belgium (1980) Series A, No 35; 2 EHRR 439.
127
“The fundamental principle is that such departure is not justified unless it is shown (the burden
being on the unsuccessful party) that the successful party acted unreasonably in refusing to agree
to ADR.”
128
Stuart Sime, Civil Procedure,2006, p. 469.
129
Bettina Knöltz e Evelyn Zach, Taking the best from Mediation Regulations, 2007, p. 671.
55
Ainda de acordo com a mesma Autora, para saber se a mediação pré-judicial obrigatória
obedece aos padrões constitucionais é necessário analisar se há justificação razoável para
a sua imposição. Para Paula Costa e Silva, obrigar a mediar pode ter duas justificações.
Primeiro, uma afectação mais racional dos recursos da Justiça; segundo, uma nova
abordagem ao conflito e à forma da sua resolução. Se em relação ao primeiro fim, não há
que distinguir nenhum tipo de litígio; em relação ao segundo, a Autora entende que nem
sempre o litígio se adequa à mediação.131
Num sistema ideal, os meios de resolução de litígios seriam alternativos em relação entre
si. Em função do tipo de conflito, as partes deveriam ser reencaminhadas para o meio que
melhor o resolvesse. Todos os meios seriam alternativos entre si e obrigatórios em
conjunto. Este seria um sistema ideal, na lógica dos tribunais multi-portas de que falámos
inicialmente132.
Este também será, porém, um sistema utópico ou, no mínimo, de realização difícil a curto
ou médio prazo. A posição a tomar tem assim de o ser face aos dados actuais do
problema.
Uma análise atenta do direito de acesso à justiça facilmente nos leva à conclusão que o
que se pretende é proibir o Estado de impedir o exercício dos direitos pelos cidadãos. Ou
seja, se o Estado impedir que uma pessoa exerça em tribunal o seu direito, estará a
esvaziá-lo de conteúdo útil. Só deve, assim, falar-se de restrições inconstitucionais ao
direito de acesso à justiça quando essa restrição impeça efectivamente o exercício do
direito.
130
Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, p. 71.
131
Paula Costa e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, p. 71-2.
132
Cfr. supra p. 21.
56
Ora, não é de todo isto que está em causa quando se institui a obrigatoriedade da
mediação. Pelo contrário, a intenção não é dificultar o exercício dos direitos, mas a
oposta, a de aproximar a Justiça do cidadão.
É claro que esses sistemas, como se ponderou já no sistema jurídico norte-americano, têm
de cumprir alguns requisitos ao nível das garantias dos particulares, como um prazo
máximo relativamente curto, custos razoáveis, imparcialidade e independência do
mediador e protecção do conteúdo das sessões através de confidencialidade. São
garantias amplas de um processo de mediação justo, pressuposto de que um
procedimento deste género imposto ao utente da justiça se integra precisamente no direito
de acesso à justiça.
Este argumento é, porém, de prova difícil. Faltam ainda experiências, dados e o seu
tratamento em países de tradição próxima da nossa.
Os estudos conhecidos, efectuados nos Estados Unidos da América, diferem nos seus
resultados. Em alguns, concluiu-se que a taxa de sucesso na mediação voluntária e na
133
José Alves Pereira, Mediação Voluntária, sugerida ou obrigatória?, 2006, p. 151; Paula Costa
e Silva, A Nova Face da Justiça, 2009, p. 45; Roselle Wissler, The Effects of mandatory
mediation: empirical research on the experience of small claims and common pleas courts, 1997,
p. 572.
134
Bettina Knöltz e Evelyn Zach, Taking the best from Mediation Regulations, 2007, p. 664.
57
Uma questão diferente, embora paralela a esta, é a dos efeitos jurídicos de uma
estipulação pelas partes de uma convenção de mediação. Esta questão será tratada no
ponto referente ao Direito da Mediação.138
135
Brett, Barsness e Goldberg, A eficácia da mediação, 2006, p. 157 e 164.
136
Roselle Wissler, The Effects of mandatory mediation: empirical research on the experience of
small claims and common pleas courts, 1997, p. 581.
137
Como se verifica no Direito Francês – artigo 131-1 NCPC – Gérard Pluyette, Príncipes et
applications recentes dês décrets dês 22 juillet et 13 décembre 1996 sur la conciliation et la
médiation judiciaire, 1997, p. 507.
138
Cfr. infra p. 64.
58
Esta metodologia não será boa em todos os casos e não deve ser assumida como um
dogma. Em casos complexos, designadamente em situações em que haja mais do que
duas partes, a preparação da mediação é essencial ao seu sucesso.
No modelo de Brown e Marriot as fases prévias à sessão são apenas três: introdução das
partes na mediação; compromisso e acordo sobre as regras da mediação; comunicação
preliminar e preparação da sessão.142
Como é fácil de perceber, estes momentos são preparatórios, visando iniciar a mediação
com conhecimento de todos os intervenientes, do assunto em discussão e das regras e
139
Moore, The Mediation Process, 2003, p. 67.
140
Vezzulla, Mediação – Teoria e Prática, 2001, p. 56.
141
Moore, The Mediation Process, 2003, p. 68.
142
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 154.
59
Nos modelos em que não há preparação prévia da mediação, alguns destes momentos
estão inseridos já na sessão de mediação. Assim, Vezzula identifica seis fases na
mediação: apresentação do mediador e das regras; exposição do problema pelos
mediados; resumo e ordenação inicial do problema; descoberta dos interesses ainda
ocultos; criação de ideias; acordo.143
c. Ao longo destas fases, há técnicas específicas que os mediadores devem utilizar. Por
exemplo, quando se trata de identificar interesses, é importante desde logo estar bem
ciente da sua importância para o sucesso da mediação. Depois, o mediador deve saber
ouvir e tomar atenção às declarações, às generalizações e às sínteses para perceber quais
as necessidades das partes. Moore refere dois métodos para descobrir interesses: o teste e
o modelo hipotético. O teste consiste em repetir o que ao mediador parece ser o interesse,
indo aproximando-se dele através dos reparos da parte. O modelo hipotético consiste em
propor uma série de opções de acordo, não com a intenção de as ver aprovadas pelas
partes, mas de perceber as suas verdadeiras necessidades e interesses.144
a possibilidade de quebra de confiança das partes. Não ouvindo tudo o que se desenrola
perante o mediador, as partes podem questionar a sua imparcialidade. No entanto, desde
que se conheçam riscos e se faça uma avaliação casuística, parece não fazer sentido
exclui-lo em absoluto.145 A lei dos Julgados de Paz permite a realização de reuniões
separadas – artigo 53.º n.º3 – desde que autorizadas pelas partes.
A mediação familiar é aquela que mais tradição tem no nosso ordenamento jurídico,
embora até agora tenha tido uma implantação muito restrita. O primeiro (e único até
2008) Gabinete de Mediação Familiar foi criado em 1997, com competência para
situações de conflito relativas à regulação do poder paternal na área da comarca de
Lisboa. O Gabinete recebia processos enviados pelos tribunais da comarca de Lisboa nas
situações em que o juiz, avaliando a acção, concluía que a mediação era o método mais
adequado para resolver o problema. O acordo era depois sujeito a homologação pelo
tribunal, que verificava o interesse do menor.146
É fácil de ver que quer o âmbito material, quer o âmbito territorial do Gabinete de
Mediação Familiar eram muitíssimo insuficientes. A aposta nos meios de resolução
alternativa de litígios tinha necessariamente de passar por aqui, por se tratar de uma área
que foi sempre de aplicação privilegiada da mediação.
146
Lúcia Vargas, Julgados de Paz e Mediação, 2006, p. 62; Albertina Pereira, A mediação e a
(nova) conciliação, 2006, p. 190.
61
No entanto, a actual formulação do artigo 279.º-A CPC, que melhor tratarei no próximo
capítulo, passou a exigir a homologação judicial, seguindo os termos da transacção. Não
está isento de dúvidas a aplicação deste preceito aos acordos obtidos na pendência de um
processo judicial, ao abrigo do sistema de mediação familiar.
147
Mais informações em www.gral.mj.pt
148
Despacho n.º 18 778/2007, de 22 de Agosto, disponível em www.gral.mj.pt.
149
Disponível em www.gral.mj.pt
62
De acordo com o protocolo, os litígios que podem ser objecto deste sistema público de
mediação são aqueles em que não estejam em causa direitos indisponíveis e que não
resultem de acidente de trabalho.150
Por último, a mediação penal foi aprovada pela Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho, sendo
aplicável apenas a alguns crimes particulares ou semi-públicos, cuja pena não seja
superior a 5 anos. Quando se tratar de crimes semi-públicos, há uma limitação aos crimes
contra as pessoas e contra o património. Também não é possível a mediação penal em
crimes contra a liberdade ou autodeterminação sexual, peculato, corrupção ou tráfico de
influência.151
Este diploma veio dar execução a uma Decisão Quadro do Conselho de 2001 152, que
pretendeu introduzir nos Estados Membros uma diferente resposta ao ilícito penal. A
mediação vítima-agressor insere-se na linha da justiça restaurativa, procurando uma
reparação efectiva da vítima e uma reabilitação do agressor, para além ou em vez do seu
castigo.153 Levanta inúmeras questões específicas e tem sido bastante discutida nos seus
150
Artigo 1º do Protocolo.
151
Artigo 2.º da Lei 21/2007, de 12 de Junho.
152
Decisão Quadro n.º 2001/220/JAI, do Conselho, de 15 de Março.
153
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 295; Moyano Marques e João
Lázaro, A Mediação Vítima-Agressor e os Direitos e Interesses da Vítima, 2005, p. 27.
63
Uma questão importante e muitíssimo actual é a dos efeitos da celebração pelas partes de
uma convenção de mediação. É certo que as partes, na sua autonomia privada, podem
acordar, no âmbito de um litígio ou previamente à sua existência (no contrato), o recurso
à mediação. Esta convenção tanto pode estar sozinha, como acompanhar uma convenção
de arbitragem. Neste caso, é conhecida como multi-step clause, querendo com esta
expressão indicar-se que os contraentes acordam na resolução do seu eventual litígio em
várias fases ou degraus. Assim, numa cláusula deste tipo, de acordo com a vontade das
partes, o litígio deve ser resolvido em primeiro lugar por mediação e, se esta não for bem-
sucedida, por arbitragem.
A validade de uma cláusula deste género é inquestionável, porque, como disse, se funda
na autonomia privada das partes. Ponto já objecto de dúvidas é o dos seus efeitos,
designadamente quando há incumprimento. Numa situação em que uma das partes não
inicia a resolução do litígio pela mediação, partindo logo para a arbitragem ou para o
tribunal judicial, coloca-se a questão de saber como deve este tribunal decidir caso a parte
contrária levante a questão.
154
Cfr. AA. VV., A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no Ordenamento Jurídico
Português, 2005.
64
A questão não foi ainda discutida no nosso ordenamento jurídico – nem pela doutrina,
nem pela jurisprudência. A Directiva 2008/52/CE nenhuma norma contém sobre o
problema.155 No entanto, existem já ordenamentos jurídicos estrangeiros que iniciaram
esta discussão, alguns com norma jurídica expressa, a maioria sem.156
O direito belga estabelece, no artigo 1725 do Code Judiciaire 157, que a invocação de uma
cláusula de mediação implica a suspensão da instância pelo juiz ou árbitro, que analisa a
validade da cláusula antes de decidir.158 A estipulação de mediação impede, assim, o
tribunal de apreciar o litígio, obrigando as pessoas a recorrer à mediação.
No direito francês, não existe regra que resolva o problema, mas a questão á foi colocada
por diversas vezes na Cour de Cassation. A jurisprudência não é, porém, unívoca,
podendo encontrar-se três teses: uma primeira de acordo com a qual a cláusula tem
efeitos meramente obrigacionais, uma segunda que defende que a existência da cláusula
impede a admissibilidade do processo em tribunal e uma última, que entende dever
suspender-se a instância.159
155
Bettina Knöltz e Evelyn Zach, Taking the best from Mediation Regulations, 2007, p. 668.
156
A Lei austríaca de mediação (Zivilrechts-Mediationsgesetz de 2004, disponível em
www.ris.bka.gv.at) não contém norma sobre a questão. Bettina Knöltz e Evelyn Zach, Taking the
best from Mediation Regulations, 2007, p. 671.
157
Disponível em http://www.droitbelge.be/codes.asp#jud.
158
Cruyplants, Gonda e Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p. 52 e 99 ; Luc
Demeyere, The Belgian Law on mediation: an early overview, 2006, p. 91.
159
Charles Jarrosson, La sanction du non-respect d’une clause instituant un préliminaire
obligatoire de conciliation ou de mediation, 2001, p. 752.
160
Xavier Lagarde, L’efficacité des clauses de conciliation ou de médiation, 2000, p. 384 e
seguintes.
161
Charles Jarrosson, La sanction du non-respect d’une clause instituant un préliminaire
obligatoire de conciliation ou de mediation, 2001, p. 753.
65
rara. Por outro lado, uma eventual indemnização por danos depende, obviamente, da
verificação desses danos, o que se mostra difícil na medida em que é impossível provar
que haveria acordo na mediação. Fácil será, aliás, provar precisamente o contrário. Não
será difícil demonstrar, em pleno processo litigioso, que mesmo que as partes tivessem
iniciado a mediação, não teriam conseguido chegar a acordo.
Logo, ainda que o não recurso à mediação prévio ao processo jurisdicional (arbitral ou
judicial) pudesse ter sido menos dispendioso do que fazer actuar a cláusula de mediação,
não haverá forma de o provar e, logo, o dano não poderá ser indemnizado.
Esta jurisprudência é criticada por pôr em causa a utilidade das cláusulas de mediação –
não havendo qualquer sanção para o seu incumprimento, a parte não interessada no
recurso à mediação não terá qualquer razão para a iniciar.162
Xavier Lagarde defende mais ainda: para além de ordenar a suspensão do processo, o juiz
deve ele próprio dar início ao processo de mediação, disponibilizando os meios
necessários para tal fim.164 É uma posição ainda mais exigente que tem como pressuposto
uma eficácia plena, pleníssima das convenções de mediação.
162
Charles Jarrosson, La sanction du non-respect d’une clause instituant un préliminaire
obligatoire de conciliation ou de mediation, 2001, p. 755.
163
Charles Jarrosson, La sanction du non-respect d’une clause instituant un préliminaire
obligatoire de conciliation ou de mediation, 2001, p. 758.
164
Xavier Lagarde, L’efficacité des clauses de conciliation ou de médiation, 2000, p. 395.
66
Por último, uma terceira posição jurisprudencial defende ser mais adequada a suspensão
da instância, com encaminhamento das partes para a mediação. 165 De acordo com Vincent
e Guinchard é esta a qualificação mais adequada.166
Repare-se como são radicalmente opostas as consequências das várias posições. E todas
elas podem acontecer actualmente num tribunal francês. A questão está em aberto, sendo
de difícil resolução sem norma legal expressa.
Este requisito, como é fácil de ver, é uma faca de dois gumes. Se por um lado a
executoriedade destas cláusulas é aceite em termos gerais, por outro lado só em face de
cada caso é possível decidir se esta intenção inequívoca, expressa através do desenho de
procedimentos de mediação, existe ou não. A acrescer a este casuísmo na apreciação e,
logo, incerteza quanto ao resultado, está o problema de esta eventual invalidade da
cláusula de mediação poder arrastar consigo, de acordo com a jurisprudência norte-
americano, a própria validade da convenção de arbitragem.168
Este pequeno percurso por alguns direitos estrangeiros deixou claro que as consequências
de uma convenção de mediação são muito variadas, assumindo diversas naturezas e
graus.
165
Charles Jarrosson, La sanction du non-respect d’une clause instituant un préliminaire
obligatoire de conciliation ou de mediation, 2001, p. 759.
166
Jean Vincent e Serge Guinchard, Procédure Civile, 1999, p. 183.
167
Jason File, United States: multi-step dispute resolution clauses, 2007, p. 33.
168
Jason File, United States: multi-step dispute resolution clauses, 2007, p. 34.
67
Esta argumentação não colide com o que anteriormente se disse sobre a não
inconstitucionalidade da mediação obrigatória.172 Aí se defendeu que a consagração de
sistemas de mediação obrigatória (que não existem no nosso país, mas existem noutros)
não implica restrição do direito de acesso à justiça. O que se diz agora é que é necessário
que a lei preveja que a vontade das partes possa excluir (de forma imediata) o acesso aos
tribunais. Sem que a lei o reconheça, não se pode admitir a restrição.
A sanção parece de pouca monta, até porque, como se disse, será difícil provar o nexo de
causalidade entre o incumprimento da convenção de mediação e os eventuais danos – é
169
Este é o efeito negativo do princípio da competência da competência, que será desenvolvido
mais à frente. Cfr. infra Capítulo 5.4..
170
Xavier Lagarde, L’efficacité des clauses de conciliation ou de médiation, 2000, p. 383.
171
Artigo 494.º j).
172
Cfr. supra ponto 3.5..
68
impossível demonstrar que o conflito se teria resolvido na mediação. Contudo, face aos
actuais dados legislativos, não me parece que haja outra solução defensável.
Mas, na verdade, não é a mais adequada. Seria recomendável que o legislador previsse a
eficácia potestativa destes acordos à semelhança da convenção de arbitragem, resolvendo
assim o problema.
3.8.2. A mediabilidade
Uma questão diferente da desta é a do âmbito dos litígios mediáveis. A Directiva, no seu
artigo 1.º n.º2, restringe os litígios mediáveis àqueles que respeitem a direitos disponíveis.
A legislação portuguesa que a transpôs para o Código de Processo Civil não inclui
qualquer restrição: o artigo 249.º-A n.º1 CPC admite a mediação de qualquer litígio. 173 A
mediação é, aliás, aplicável em domínios de clara indisponibilidade como o Direito Penal
ou o Direito da Família.
Na arbitragem voluntária há restrição aos direitos disponíveis, de acordo com o artigo 1.º
n.º1 LAV: só podem ser objecto de convenção de arbitragem os litígios que não respeitem
a direitos indisponíveis. O conteúdo exacto desta restrição – o conceito de
indisponibilidade – tem sido objecto de alguma polémica, referida infra.174
Repare-se que este requisito só existe para a arbitragem voluntária, não para a necessária,
como é natural. Parece claro que a mediação em litígios respeitantes a direito
indisponíveis quando directamente prevista pela lei não levanta quaisquer problemas – aí
há expressa autorização legislativa para a mediação. Estes casos aproximam-se da
arbitragem necessária, embora haja sempre uma diferença essencial: na mediação o litígio
é resolvido por acordo, através de cedências mútuas entre as partes. Não através da
aplicação de um regime legal, mesmo que imperativo.
Parece-me, pois, que o problema da disponibilidade dos direitos não se coloca em relação
às áreas em que a mediação está directamente prevista – como acontece no Direito Penal
e no Direito da Família.
173
Dário Moura Vicente, A directiva sobre mediação em material civil e comercial, 2009, p. 144.
174
Cfr. infra ponto 5.3.1..
69
Ora, de acordo com o artigo 299.º CPC não é permitida a transacção que importe a
afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis. Esta norma pode
ter leituras diferentes.
Numa primeira impressão, significaria que não pode haver mediação sobre direitos
indisponíveis, na medida em que o acordo aí obtido não poderá ser judicialmente
homologado. No entanto, Dário Moura Vicente defende que a mediação é sempre
possível, apenas não o sendo a homologação.177
Embora esta posição seja muito atractiva, não me parece defensável: se tem de se aplicar
a regra da transacção e esta diz expressamente que não há transacção sobre direitos
indisponíveis, não se pode dizer que se admite acordo em relação a direitos indisponíveis.
A norma – artigo 299.º CPC – é clara neste campo. Por outro lado, este regime é coerente
com igual exigência que a lei estabelece para a arbitragem.
Esta conclusão pode parecer algo estranha e seguramente bastante restritiva. O critério da
disponibilidade na arbitragem – com o qual este é coerente – tem vindo a ser criticado
175
Cfr. ponto 3.8.3..
176
Dário Moura Vicente, A directiva sobre mediação em material civil e comercial, 2009, p. 144.
177
Dário Moura Vicente, A directiva sobre mediação em material civil e comercial, 2009, p. 144.
70
pela doutrina e está hoje num ponto de viragem. Se ele for repensado e quando for
repensado - deve sê-lo em conjunto para a mediação, conciliação e arbitragem.
O problema não é assim tão dramático porque o conceito de indisponibilidade tem vindo
a ser muitíssimo restringido pela doutrina. Assim, embora a mediação só possa tratar
litígios disponíveis, o que se considera fazer parte deste conceito abrange quase todos os
litígios de Direito Privado. A circunstância de um regime legal ser composto por normas
imperativas não implica, de todo, que o direito em causa seja considerado indisponível.
Como se discutirá longamente a propósito de conceito idêntico no âmbito da convenção
de arbitragem, apenas é indisponível aquele direito em que o seu titular, não actuando, o
vê exercido por outra pessoa, designadamente de direito público.
Repare-se, porém, que este raciocínio se adequa apenas aos litígios em que se aplique ou
aplicaria – caso haja ou não acção proposta – o Código de Processo Civil. A inserção
sistemática das normas de transposição da Directiva leva necessariamente a esta
conclusão.180
Com isto não se pretende dizer que o não cumprimento de uma norma imperativa pelo
acordo obtido em mediação implica o seu não reconhecimento e executoriedade. Quer-se
apenas dizer que a análise é posterior. Já o padrão dessa análise é uma questão diferente,
que tratarei autonomamente já de seguida.
178
Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 1997, p. 201-2.
179
Dário Moura Vicente, A directiva sobre mediação em material civil e comercial, 2009, p. 134.
É esta a opção da lei suíça - Jean Mirimanoff, Feasibility of mediation systems in Switzerland,
2009, p. 472.
180
É assim também na lei austríaca de mediação – Bettina Knöltz e Evelyn Zach, Taking the best
from Mediation Regulations, 2007, p. 670.
71
O preceito visa transpor o artigo 6.º da Directiva cuja epígrafe é «Executoriedade dos
acordos obtidos por via de mediação». Nos termos desse preceito, os Estados têm de
garantir que o conteúdo de um acordo reduzido a escrito seja declarado executório.
Um acordo obtido em mediação que preencha estes requisitos – o que será o normal – é
automaticamente título executivo.182 A questão da executoriedade do acordo não se
coloca, assim, como em outros países.183
181
José Lebre de Freitas, A Acção executiva, 2009, p. 57, em especial nota 44.
182
Dário Moura Vicente, A directiva sobre mediação em material civil e comercial, 2009, p. 138.
183
Apenas do ponto de vista da executoriedade internacional se poderá tornar necessária
homologação judicial do acordo. Estaria aqui em causa, agora, a aplicação do artigo 58.º do
Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000. Dário Moura Vicente, A
directiva sobre mediação em material civil e comercial, 2009, p. 138-9; Bettina Knöltz e Evelyn
Zach, Taking the best from Mediation Regulations, 2007, p. 673. Cfr., ainda, António Neves
Ribeiro, Processo Civil da União Europeia, 2002, p. 134.
72
Como justificar então esta possibilidade?184 Poderá a homologação ser uma espécie de
acção de anulação do acordo ao dispor de uma das partes?
De acordo com o artigo 6.º n.º1 da Directiva, a declaração de executoriedade tem de ser
pedida pelos dois interessados ou por um com o consentimento do outro. Na norma
transposta para o nosso Código de Processo Civil, o texto do artigo 249.º-B n.º1 não é
inteiramente claro na necessidade de uma acção conjunta das partes. Refere que “as
partes podem requerer a sua homologação por um juiz”. Uma interpretação literal deste
preceito – com desconhecimento do texto da Directiva - levaria a considerar que qualquer
uma das partes – mesmo com oposição da outra – poderia requerer a homologação. Não
parece, porém, ser esta a melhor leitura do preceito, na medida em que a sua fonte de
inspiração é a regra oposta. E ainda porque se atentarmos no n.º 5 deste artigo 249.º-B, é
notória a pressuposição que as partes actuam em conjunto. Isto é, havendo recusa da
homologação, o legislador permite que as partes reformulem o acordo e o voltem a
submeter para homologação. Aqui não é possível interpretar a regra como referindo-se a
apenas uma das partes.
Há, portanto, uma vantagem, ainda que indirecta, nesta homologação. Talvez faça sentido
pedi-la em situações em que os mediados (ou um deles) tenha algum receio quanto o seu
cumprimento futuro do acordo.
Dário Moura Vicente, A directiva sobre mediação em material civil e comercial, 2009, p. 147,
184
No nosso Direito, a Lei dos Julgados de Paz obriga à homologação do acordo obtido em
mediação – artigo 56.º n.º1 LJP. De acordo com o artigo 279.º-A n.º5, o acordo é enviado
para o tribunal, seguindo-se o termos definidos para a transacção. Ora, os termos
definidos para a transacção são a homologação, como o estabelece o artigo 300.º n.º3
CPC. O que significa, portanto, que o acordo obtido em mediação em processo pendente
é obrigatoriamente sujeito a homologação judicial.
185
À mediação extra-judicial deve ser equiparada a mediação extra competência dos Julgados de
Paz, prevista no artigo 16.º n.º3 LJP, na medida em que se trata também de uma mediação que
decorre sem que haja qualquer processo litigioso pendente.
186
Assim é no Direito Francês - Gérard Pluyette, Príncipes et applications recentes dês décrets
dês 22 juillet et 13 décembre 1996 sur la conciliation et la médiation judiciaire, 1997, p. 518. No
direito belga a homologação também é facultativa - Demeyere, The Belgian Law on mediation:
an early overview, 2006, p. 91.
187
Contra, defendendo que deve haver sempre homologação judicial do acordo obtido em
mediação, Albertina Pereira, A mediação e a (nova) conciliação, 2006, p.194.
74
Estando consagrada esta regra, é essencial, então, perceber qual o padrão de análise do
juiz na homologação.
A Lei dos Julgados de Paz nada diz sobre esta homologação. Já as novas disposições do
Código de Processo Civil contém regras cuja leitura poderia levar a resultados diferentes.
Em relação à mediação pré-judicial, o artigo 249.º-B n.º 3 estabelece que a homologação
judicial visa a verificação da conformidade do acordo com a legislação em vigor. Por
outro lado, como acabámos de ver, o artigo 279.º-A n.º 5 CPC, relativo à mediação em
processo pendente (judicialmente sugerida ou voluntariamente querida), remete para as
regras da transacção. Ora, o artigo 300.º CPC estabelece que o juiz examina a validade do
acordo em função do seu objecto e da qualidade dos intervenientes.
Por razões de coerência do nosso ordenamento jurídico, parece-me melhor entender que
os padrões de análise para a homologação são idênticos, seja qual for a circunstância do
acordo. Assim, quer a mediação seja pré-judicial, quer contemporânea do processo ou
ainda que se trate de um acordo obtido em conciliação, os requisitos de análise da
homologação devem ser os mesmos – os constantes do artigo 300.º CPC. Se pensarmos
bem, aliás, estes não são muito diferentes em termos substanciais – do que se trata no
artigo 300.º CPC é de saber se o acordo cumpre os requisitos legais daquele negócio
jurídico e, logo, se está conforme ao Direito.
188
Jean Cruyplants, Michel Gonda e Marc Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p.
67 e 72 ; Luc Demeyere, The Belgian Law on mediation: an early overview, 2006, p. 91.
189
Jean Mirimanoff, Feasibility of mediation systems in Switzerland, 2009, p. 473.
75
É certo que o artigo 249.º-B n.º 3 se refere à legislação em vigor, mas é evidente que esta
expressão tem de ser interpretada como o sistema jurídico, na sua complexidade e
pluralidade, o que não se reconduz obviamente à lei.
Deixamos de lado a questão da qualidade das partes – é necessário que estas tenham
capacidade e legitimidade para concluir o acordo, o que se analisa nos termos gerais.190
Interessa aqui apenas analisar o padrão de análise jurídica que o juiz tem de aplicar na
homologação. Sobre esta questão se tem pronunciado, sem grandes divergências, a
doutrina nacional a propósito do artigo 300.º CPC. Este preceito, no seu n.º3, mantém-se,
aliás, sem qualquer alteração desde 1939.191
É que o artigo 509.º n.º 3 CPC relativo à conciliação manda o juiz ter em vista a solução
de equidade mais adequada aos termos do litígio. Independentemente da noção de
190
Cfr., por todos, Joana Paixão Campos, A Conciliação judicial, 2009, p. 63.
191
Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado – Volume 1.º,
2008, p. 576.
192
Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado – Volume 1.º,
2008, p. 577; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 201.
193
Cfr. supra ponto 3.8.2.
Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado – Volume 1.º,
194
2008, p. 577; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 198.
76
equidade que se adopte195, é seguro que a solução a que se chega através da equidade não
é idêntica à extraída do direito positivo (em sentido estrito).
É preciso ainda tomar em atenção, porém, que o juiz não pode saber se houve ou não
afastamento em concreto de regras imperativas, na medida em que não há prova sobre os
factos alegados por qualquer das partes. Imagine-se uma situação em que o consumidor
aceita reduzir a metade uma indemnização de que não poderia prescindir. O juiz não sabe
– porque nada se provou – se esta desistência parcial implica ou não desistência real do
direito. O direito até pode não existir de todo.
Por estas razões, o padrão de análise nunca poderá ir muito mais além da ordem pública.
O juiz não pode saber se não estão a ser aplicadas normas imperativas porque não é
possível aplicá-las não havendo uma versão factual determinada.
Este nível de análise é, ainda, coerente com o fundamento de anulação das sentenças
arbitrais. Como se verá infra, a sentença arbitral pode ser anulada com base em violação
da ordem pública. Este é o único motivo de anulação relativo ao mérito. 196 E repare-se
que neste caso há produção de prova, há já uma versão factual definitiva. Se perante este
caso o sistema jurídico admite a não aplicação de normas imperativas (em litígios
respeitantes a direitos disponíveis), por maioria de razão deve admiti-lo quando, não se
conhecendo os factos, a solução encontrada para o litígio resulte de acordo entre as
partes.
3.8.4. Confidencialidade
195
A noção de equidade é tratada infra a propósito da decisão arbitral. Cfr. ponto
196
E, ainda assim, polémico. Cfr. infra ponto 5.10.1.2..
197
Voltaremos ao tema da ordem pública a propósito da sentença arbitral. Ver também Assunção
Cristas e Mariana França Gouveia, A violação de ordem pública como fundamento de anulação
de sentenças arbitrais, 2010, p. 55.
77
Há aqui que distinguir a situação das partes da do mediador. A obrigação das partes – se
não houver normal legal – é apenas contratual. A do mediador decorre do exercício da sua
profissão – trata-se de sigilo profissional.201
No nosso ordenamento jurídico, porém, há algumas regras legais que impõem essa
confidencialidade. A Lei dos Julgados de Paz, no seu artigo 52.º, impõe a
confidencialidade como regra, obrigando as partes a subscrever um acordo de
confidencialidade. A Lei da Mediação Penal impõe também a regra da confidencialidade
– artigo 4.º n.º5 da Lei 21/2007, de 21 de Junho. Aqui a questão da prova assume especial
relevância: se o arguido confessar na mediação, mas não se conseguir o acordo e o
processo seguir, não pode utilizar-se essa confissão como meio de prova. Nem sequer se
pode, aliás, saber que ela existiu.
Uma diferente abordagem é feita pela Directiva 2008/52/CE. Nos termos do artigo 7.º, a
mediação deve respeitar a confidencialidade, não podendo os mediadores, nem as pessoas
envolvidas na administração do processo de mediação ser obrigadas a produzir provas em
processos posteriores. As excepções consagradas são três: em primeiro lugar, se as partes
decidirem em contrário; em segundo lugar, por razões imperiosas de ordem pública, em
especial para assegurar o interesse da criança ou para evitar que seja lesada a integridade
física ou psíquica de uma pessoa; por fim, em situações em que a divulgação do conteúdo
198
Jean Cruyplants, Michel Gonda e Marc Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p.
75 ; Zulema Wilde e Luís Gaibrois, O que é a mediação, 2003, p. 64.
199
Cardona Ferreira, Julgados de Paz – Organização, Competência e Funcionamento, 2001, p.
70.
200
Jean Cruyplants, Michel Gonda e Marc Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p.
75 ; Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 131.
201
Cruyplants, Gonda e Wagemans, Droit et pratique de la médiation, 2008, p. 75.
78
do acordo obtido por via de mediação seja necessária para efeitos de aplicação ou
execução desse acordo202.
Parece-me, sem dúvida, que se deve adoptar a regra da confidencialidade como princípio.
A confidencialidade é essencial à plena confiança no processo de mediação. Se as partes
souberem que o mediador pode posteriormente revelar o que ali foi dito, terão uma
postura completamente diferente da mediação, colocando em risco a sua utilização como
meio de resolução de litígios.
202
Como consta da Lei Modelo da UNCITRAL sobre a conciliação no comércio internacional
(art. 9.º).
203
Veja-se, a título de exemplo, Alan Kirtley, The mediation privilege’s transition from theory to
implementation, 1995, p. 1-53; Annalisa Peterson, When mediation confidentiality and
substantive law clash, 2007, p. 199-219.
204
Disponível em www.mediate.com
79
Perante o actual estádio do nosso ordenamento jurídico, parece-me claro que o legislador
quis impedir o afastamento da confidencialidade pelas partes (como lhe era permitido
pela Directiva), devendo entender-se que o mediador não pode, em regra, ser testemunha
em processo decorrente do conflito mediado, assim como não podem as partes, em
qualquer caso, revelar o que se passou na mediação.
205
Section 6 do Uniform Mediation Act.
206
Bettina Knöltz e Evelyn Zach, Taking the best from Mediation Regulations, 2007, p. 681-2.
207
Luc Demeyere, The Belgian Law on mediation: an early overview, 2006, p. 89.
80
IV
CONCILIAÇÃO
208
É uma tradição com fortes raízes no direito alemão - Gabrielle Kaufmann-Kohler, When
arbitrators facilitate settlement: towards a transnational standard, 1995, p. 189.
209
Gabrielle Kaufmann-Kohler, When arbitrators facilitate settlement: towards a transnational
standard, 1995, p. 187-206.
82
IBA Guidelines on Conflicts of Interest tratam-na porém com algum pormenor e cautela,
admitindo que o árbitro possa conciliar mas colocando restrições e estabelecendo
consequências para essa actuação.210
Embora haja diferenças, em qualquer dos casos, falamos de conciliação realizada por
quem tem o poder de decidir: o juiz ou o árbitro do caso. Trata-se, pois, de uma
conciliação jurisdicional.
A prática da mediação pelos juízes ganhou adeptos, que apresentam números relevantes
sobre o seu sucesso.212
exclusão estará relacionada, no essencial, mas não apenas, com a não aplicação da regra
da confidencialidade a estas mediações.215
É interessante, mais uma vez, notar que os argumentos a favor e contra a mediação
judicial são idênticos aos argumentos a favor e contra a conciliação judicial e que
retomarei à frente. Esta confusão resulta, parece-me, da impossibilidade prática em
distinguir modelos diferentes quando é o juiz ou árbitro que conduzem a tentativa de
resolver o litígio por via de acordo. A pressão consciente ou inconscientemente exercida
sobre as partes, a impossibilidade de observar a confidencialidade (porque esta protege
precisamente do julgador) e a eventual diminuição da imparcialidade do juiz são
características de qualquer tentativa de obtenção de acordo, seja ela mais próxima das
especificidades da mediação ou não.217
Tendo em conta esta realidade, não me parece fazer sentido distinguir dois tipos de
práticas quando o juiz procura obter acordos nos casos que lhe estão atribuídos para
julgamento. Seja como for que ele conduza essas tentativas, estará sempre a fazer
conciliação. Repare-se que não estou a dizer que conciliação e mediação não sejam
técnicas diferentes de resolução de litígios, mas que o que os juízes ou árbitros fazem
quando tentam resolver o litígio por acordo não se pode distinguir e, por isso, é sempre
conciliação.
215
Peter Robinson, Adding judicial mediation to the debate about judges attempting to settle
cases assigned to them for trial, 2006, p. 378.
216
James Alfini, Risk of coercion too great: judges should not mediate cases assigned to them for
trial, 1999, p. 13; Frank Sander, A Frendly Amendment, 1999, p. 24.
217
Edward Brunet, Judicial mediation and signaling, 2003, p. 234, chama à mediação judicial
mediação musculada.
84
Há quem entenda que só pode chamar-se conciliação à jurisdicional 220, há quem defenda
uma distinção entre mediação e conciliação, sendo esta avaliadora e a mediação
facilitador221 e, por último, autores há que discordam da distinção entre as duas figuras,
considerando que são apenas níveis diferentes de mediação.222
Certo é, porém, que a conciliação jurisdicional comporta em si uma característica que faz
toda a diferença: as partes estão perante quem decide. Esta posição das partes modifica a
218
Vezzulla, Mediação – Teoria e Prática, 2001, p. 83; Lúcia Vargas, Julgados de Paz e
Mediação, 2006, p. 53.
219
Está prevista na Lei n.º 95-125 de 8 de Fevereiro de 1995, artigos 21.º a 26.º. Emmanuel
Gaillard e Jenny Edelstein, Mediation in France, 2001, p. 75; Charles Jarronson, Les dispositions
sur la conciliation et la mediation judiciaries de la loi de 8 février1995, 1995, p. 219. Nos EUA é
feita por outros juízes a quem se vulgarizou chamar «buddy judges» - James Alfini, Risk of
coercion too great: judges should not mediate cases assigned to them to triak, 1999, p. 13.
220
Zulema Wilde e Luís Gaibrois, O que é a mediação, 2003, p. 35. Joana Campos, A
Conciliação Judicial, 2009, p. 14.
221
Vezzulla, Mediação – Teoria e Prática, 2001, p. 83; Lúcia Vargas, Julgados de Paz e
Mediação, 2006, p. 54.
222
Brown e Marriott, ADR Principles and Practice, 1999, p. 138.
85
sua postura – é muito diferente o comportamento das pessoas quando estão perante
alguém que pode decidir ou alguém que não tem sobre o litígio qualquer poder. 223 Esta
diferença implica uma não aplicação de um dos princípios fundamentais da mediação, o
princípio do pleno domínio do processo pelas partes.
Por outro lado, o juiz tem um interesse directo na obtenção do acordo, na medida em que
liberta a sua agenda de um processo. Ao contrário do mediador, que não tem qualquer
interesse directo na resolução do litígio, o juiz, por regra, quer que as partes
transaccionem, porque isso o liberta de um processo e do trabalho a ele inerente. As
partes, sentindo este interesse, podem sentir-se pressionadas, ainda que subtilmente, a
chegar a acordo.224 Mas o problema está no próprio juiz, que pode exercer, ainda que
inconscientemente, pressão para a obtenção do acordo. Ele é parte interessado nesse
acordo, não no seu conteúdo, mas na sua existência.
Justifica-se, ainda, o tratamento autónomo desta temática para abordar questões como as
vantagens e desvantagens da conciliação, as suas técnicas e discutir questões como a
eventual imparcialidade de um juiz demasiado activo na conciliação. Parece-me que
223
Frank Sander, A Frendly Amendment, 1999, p. 23.
224
James Alfini, Risk of coercion too great: judges should not mediate cases assigned to them to
triak, 1999, p. 13.
86
estamos ainda numa fase embrionária da discussão. Ainda há muito para discutir, ainda
há ideias sobre as quais é necessária a reflexão.
Estes riscos não têm sido objecto de grande problema na maioria dos sistemas de civil
law, que prevêem não só a possibilidade como a obrigação de o juiz procurar obter o
acordo. Assim se passa na ZPO alemã, no CPC francês e no nosso CPC, como se
começou por dizer.225 No direito norte-americano federal e no direito inglês, a tradição
não favorecia a conciliação, mas as reformas dos anos 90 vieram reforçar o papel do juiz
enquanto conciliador.226 Esta importante alteração, relacionada também com um novo
papel atribuído ao juiz na gestão do processo, justifica-se, no entender de Marc Galanter,
por uma procura de soluções diferentes para os litígios.227
É interessante referir que nos Princípios do Processo Civil Transnacional 228 esta matéria é
tratada no princípio 24, com algum detalhe. Estabelece-se que o tribunal, respeitando o
225
Emmanuel Gaillard e Jenny Edelstein, Mediation in France, 2001, p. 75; Gabrielle Kaufmann-
Kohler, When arbitrators facilitate settlement: towards a transnational standard, 1995, p. 189.
226
Daisy Floyd, Can the judge do that? The need for a clearer judicial role in settlement, 1994, p.
50 e seguintes; Gabrielle Kaufmann-Kohler, When arbitrators facilitate settlement: towards a
transnational standard, 1995, p. 191; Carrie Menkel-Meadow, For and against settlement: uses
and abuses of the mandatory settlement conference, 1985, p. 493.
227
Marc Galanter, A Settlement judge, not a trial judge: judicial mediation in the United States,
1985, p. 14.
228
Aprovados pelo American Law Institute e pelo Unidroit – Principles of Transnational Civil
Procedure, publicado pela Cambridge University Press, em 2004; na Uniform Law Review, 2004
(4), p. 750 e seguintes; também disponível em
http://www.unidroit.org/English/principles/civilprocedure/main.htm.
87
Já no que diz respeito à arbitragem, de acordo com o parágrafo 4(d) das IBA Guideline
on Conflicts of Interest in International Arbitration, um árbitro pode conduzir tentativas
de conciliação, mas exige-se que as partes dêem o seu consentimento, renunciando,
assim, a objectar a continuação do árbitro após o eventual insucesso dessa conciliação.
No entanto, a norma estipula que o árbitro deve renunciar se, em consequência da
tentativa de conciliação, tiver dúvidas sobre a sua capacidade de se manter imparcial.
As IBA Rules of Ethics for International Arbitrators regulam também esta matéria. No
sua regra 8 determinam que os árbitros podem promover a conciliação apenas se as partes
assim o pedirem. A regra trata ainda da questão difícil da possibilidade de, em virtude da
conciliação, o tribunal arbitral promover reuniões separadas com cada uma das partes.
árbitro a obrigação de renúncia caso sinta que o que aconteceu na conciliação o pode
influenciar na decisão do litígio.
Estas regras condensam aquilo que tem vindo a ser discutido pela doutrina e que, no
essencial, têm feito alguns autores duvidar sobre a bondade de os juízes participarem em
sessões de conciliação.
O problema essencial está na eventual perca de independência do juiz por conduzir uma
conciliação. São diversos os autores que afirmam que aquilo que os juízes ouvem nas
sessões de conciliação pode influenciar a sua percepção sobre o litígio. Mas mais ainda: é
comum os juízes fazerem avaliações dos casos nestas fases, como forma de forçar as
partes a alcançar o acordo. Essas avaliações prévias, anteriores a qualquer produção de
prova, sendo prematuras, influenciam com enorme probabilidade aquilo que o juiz, caso a
conciliação falhe, irá decidir.229
Há ainda outras críticas à conciliação judicial. Porque o juiz ou o árbitro não são
indiferentes quanto ao resultado da conciliação – têm interesse em libertar-se de mais um
processo – há uma enorme probabilidade de pressão sobre as partes para a obtenção do
acordo. São diversos os testemunhos de actuações de juízes que, no exercício activo do
poder de conciliar, quase forçam as partes a transaccionar.230
Por último, a falta de regulamentação das diligências de conciliação leva a que possa
haver injustiça processual, por exemplo desigualdade entre as partes ou violação do
contraditório.
Por estas razões, há doutrina que tem defendido que o juiz que preside à conciliação deve
ser diferente daquele que julga. Um juiz ou árbitro que desenvolva a conciliação e que
não consiga que as partes cheguem a acordo não poderá, nesta perspectiva, decidir o
229
Daisy Floyd, Can the judge do that? The need for a clearer judicial role in settlement, 1994, p.
67; Gabrielle Kaufmann-Kohler, When arbitrators facilitate settlement: towards a transnational
standard, 1995, p. 196; Carrie Menkel-Meadow, For and against settlement: uses and abuses of
the mandatory settlement conference, 1985, p. 511; Peter Schuck, The role of judges in settling
complex cases: the agent orange example, 1986, p. 361.
230
James Alfini, Risk of coercion too great: judges should not mediate cases assigned to them to
triak, 1999, p. 12-13; Carrie Menkel-Meadow, For and against settlement: uses and abuses of
the mandatory settlement conference, 1985, p. 508.
89
processo.231 Percebe-se a regra, a cautela que lhe está subjacente. No entanto, não
podemos dizer que seja a posição dominante.
Como vimos, no direito alemão, que terá provavelmente neste aspecto influenciado o
nosso, há uma obrigação de o juiz conciliar. No nosso artigo 509.º, o poder de conciliar é
exercido discricionariamente pelo juiz na audiência preliminar, mas não na final, onde é
obrigado a conciliar. O mesmo se passa nos Julgados de Paz. O artigo 26.º LJP estabelece
que o juiz de paz tem um dever de conciliação.
231
John Crastley, Judicial ethics and judicial settlement practices: time for two strangers to meet,
2006, p. 596; Carrie Menkel-Meadow, For and against settlement: uses and abuses of the
mandatory settlement conference, 1985, p.511.
232
Gabrielle Kaufmann-Kohler, When arbitrators facilitate settlement: towards a transnational
standard, 1995, p. 196
233
Marc Galanter, A Settlement judge, not a trial judge: judicial mediation in the United States,
1985, p. 9; Carrie Menkel-Meadow, For and against settlement: uses and abuses of the
mandatory settlement conference, 1985, p. 497.
234
Carrie Menkel-Meadow, For and against settlement: uses and abuses of the mandatory
settlement conference, 1985, p. 497.
235
Frederick Lacey, The judge’s role in the settlement of civil suits, 1977, p. 1-26; Hubert Will,
Robert Merhige Jr e Alvin Rubina, The role of the judge in the settlement process, 1977, p. 203-
236.
90
Há, pois, uma clara diferença de culturas e de preocupações sobre a posição do juiz,
naturalmente radicada nas diferentes funções que estes desempenharam no processo civil
de civil law e de common law.
Não deixa, porém, de ser interessante que em Portugal, os juízes assumam, por regra,
uma posição cautelosa e pouco activa na conciliação. Há, porém, algumas áreas onde há
diferenças, com especial incidência nos Julgados de Paz, mas em geral parece-me que a
postura dos juízes nas tentativas de conciliação é essencialmente passiva.236
Não há, pois, lugar, no nosso ordenamento jurídico para discutir se o juiz pode ou não
conciliar. Os dados legais são claríssimos em relação a esse poder. O mesmo não se
verifica, porém, em relação à arbitragem, pelo que poderá haver aqui dúvidas sobre a
possibilidade de o árbitro conciliar. A LAV/APA contém um artigo sobre transacção (o
artigo 41.º), mas não há qualquer referência aos poderes conciliatórios do árbitro. Este
preceito poderá ter como intenção apenas aplicar-se aos acordos obtidos pelas partes por
si, fora da arbitragem, sem qualquer intervenção do tribunal arbitral (em negociação,
mediação ou outro meio).
Em qualquer caso, o juiz ou árbitro terá de ter o cuidado de não se deixar influenciar pelo
que se passou nas tentativas de conciliação. A independência e imparcialidade tem de
estar presente em todo o processo, pelo que o juiz ou o árbitro devem renunciar ou pedir
escusa caso o desenrolar da conciliação o ponha em causa.
prévios é muito grande. O juiz e o árbitro devem ter esta consciência quando decidem ou
aceitam exercer os seus poderes de conciliação.
É ainda importante que o conciliador tenha a noção das técnicas que pode utilizar, quais
as que são abusivas ou deontologicamente censuráveis. Há métodos cuja utilização, só
por si, faz as partes duvidarem da imparcialidade do julgador. É sobre essas técnicas que
falarei de seguida.
4.3. Técnicas
Isto não significa, claro, que não haja procedimentos, alguns até pouco hortodoxos, que
sejam reportadas por juízes e utilizadas por eles. Outras vezes, a doutrina tem debatido se
algumas técnicas da mediação podem ser utilizadas na conciliação. No essencial, o
problema centra-se em determinar se determinadas práticas são eticamente aceitáveis ou
não.
Frederick Lacey defende que a melhor técnica para se obter o acordo é uma firme gestão
do calendário processual, em especial a firmeza na marcação do dia do julgamento. O
essencial é marcar uma data de julgamento relativamente próxima de forma a impedir
que as partes e os seus advogados deixem aquele caso para segundo plano. A iminência
do julgamento obriga os advogados a trabalharem no caso e a colocarem a hipótese de
acordo. Ainda segundo este juiz, de acordo com a sua experiência a maioria dos
advogados é bastante objectivo no momento de avaliar o seu caso, precisando apenas que
John Crastley, Judicial ethics and judicial settlement pratices: time for two strangers to meet,
237
2006, p. 574.
92
o juiz lhe dê uma indicação sobre o valor que considera, dentro de um intervalo maior ou
menor, justo. Em casos mais difíceis, Lacey defende uma discussão separada com cada
um dos advogados das partes, para discutir com eles os pontos fracos e fortes do seu caso.
“Assim que a bolha de optimismo infundado dos advogados explode com as perguntas
informadas e intensivas do juiz, a conciliação é bem-sucedida.”238 É claro, acrescenta o
autor, que apenas o juiz que estudou o processo poderá fazer as perguntas certeiras.
Uma outra técnica referida por diversos autores é a conhecida como a do seguro no
Lloyds Bank. De acordo com a descrição do juiz Hubert Will, ao tentar a conciliação
coloca às partes o seguinte problema: imaginem que o réu pretende subscrever um seguro
no Lloyds Bank em Londres contra uma possível condenação no processo em análise.
Através de diversas perguntas sobre a probabilidade de ganhar e perder e dos valores em
disputa e tendo em conta, mais uma vez, a capacidade de os advogados serem objectivos
em relação aos seus casos, as partes acabam por chegar a um acordo.239
Outras técnicas relatadas são, por exemplo, reuniões separadas com cada um dos lados, o
chamado caucus, apenas com os advogados, com advogados e partes ou apenas com as
partes; garantia de confidencialidade quanto à informação revelada nestas reuniões;
avaliação das pretensões, incluindo admissibilidade de prova e provável veredicto final;
exploração de alternativas não financeiras para o acordo, como pedidos de desculpa ou
outras soluções ligadas ao comportamento das partes; sugestões repetidas de propostas de
acordo, procurando diminuir a distância entre as posições das partes.240
Algumas destas técnicas são vista como eticamente condenáveis. Em estudos feitos
juntos de advogados, estes apontaram algumas diligências dos juízes que não lhes
parecem justas. São exemplos: aconselhar o advogado da parte mais fraca ou fornecer-lhe
informação; falar directamente com a parte para a persuadir a aceitar o acordo; coagir os
advogados a transaccionar; aliar-se à parte mais forte para forçar o acordo, penalizar a
238
“Once the bubble of counsel’s unfounded optimism is exploded by a judge’s knowledgeable and
penetrating questions, a settlement results.” Frederick Lacey, The judge’s role in the settlement of
civil suits, 1977, p. 15.
239
Hubert Will, Robert Merhige Jr e Alvin Rubina, The role of the judge in the settlement process,
1977, p. 206.
240
John Crastley, Judicial ethics and judicial settlement pratices: time for two strangers to meet,
2006, p. 573-4.
93
parte pelos actos do seu advogado, favorecer, nas decisões interlocutórias, a parte com a
posição mais fraca; forçar a parte a explicar ao juiz por que não aceita a proposta de
acordo; retransmitir informação de e para a parte; ameaçar o advogado por não aceitar o
acordo, etc.241
Parece-me evidente que qualquer procedimento que coloque pressão sobre as partes para
a obtenção de um acordo não é admissível. O difícil está, claro, em saber quando existe e
quando não existe essa pressão.
Tem sido à volta do caucus que mais discussão tem surgido sobre as diligências de
conciliação. Muito usada na mediação, foi importada por alguns juízes na sua prática de
conciliação. Porém, os riscos para a credibilidade do processo e do juiz são óbvios. Numa
destas reuniões separadas, a parte pode revelar factos que a outra não tem oportunidade
de refutar. Poderia ocorrer, por isso, uma violação do contraditório, um dos princípios
essenciais do processo justo.
É neste último sentido que vão as IBA Rules of Ethics for International Arbitrators: de
acordo com a regra 8, o tribunal arbitral pode fazer proposta de acordo, mas sempre em
simultâneo às duas partes, aconselhando-se ainda aos árbitros que expliquem às partes
que não é desejável a discussão dos termos do acordo sem a presença da outra parte.
241
Daisy Floyd, Can the judge do that? The need for a clearer judicial role in settlement, 1994, p.
55-56; Carrie Menkel-Meadow, For and against settlement: uses and abuses of the mandatory
settlement conference, 1985, p. 509.
242
Gabrielle Kaufmann-Kohler, When arbitrators facilitate settlement: towards a transnational
standard, 1995, p. 197-8.
94
Os riscos de coacção na conciliação são muito grandes e os juízes ou árbitros têm de ter
essa consciência. Quando aceitam conciliar têm de ter bem presente como a actividade
que vão desenrolar pode pôr em causa a sua função no desenrolar do processo.
Não se quer porém com isto dizer que a conciliação não deve ser utilizada. Pelo
contrário: parece-me muito útil oferecer às partes esta outra forma de resolver o seu
litígio. Julgo, aliás, que os juízes portugueses poderiam ter um papel mais activo nesta
conciliação, procurando desta forma diferentes modos de aplicação da justiça. O seu fim
não deve ser libertar-se de processos – esse será um efeito positivo colateral – mas
potenciar o seu trabalho enquanto administradores da justiça.
Como disse inicialmente, este tópico está ainda em maturação. Não foi ainda
verdadeiramente objecto de discussão e reflexão por parte da doutrina e da magistratura
portuguesa. Mas é necessário que o seja para que se possa construir um conjunto de
princípios gerais, práticas habituais, desejadas e indesejadas, que sirvam de guia prático
nesta matéria. A construção de um sistema de apoio à função de conciliação do juiz e
árbitro é essencial para o seu desenvolvimento seguro e justo. A experiência dos Julgados
243
Edward Brunet, Judicial mediation and signaling, 2003, p. 236.
95
de Paz tem sido aqui extraordinariamente rica e vale a pena aproveitá-la, estudá-la,
criticá-la para se aproveitar e melhorar estas práticas.
96
ARBITRAGEM
Recentemente foi defendida uma quarta, autonomista, que coloca a arbitragem fora do âmbito
244
contratual ou jurisdicional, situando-se num outro nível, processual. Ver Manuel Barrocas,
Manual de Arbitragem, 2010, p. 45.
97
decisão arbitral é um contrato celebrado pelos árbitros como mandatários das partes. Para
esta tese, só a homologação judicial permite que a decisão arbitral seja uma verdadeira
sentença. Já a tese jurisdicional entende que as decisões arbitrais são actos jurisdicionais,
sendo os árbitros juízes e não mandatários das partes. Por último, a concepção mista
defende que a arbitragem voluntária está a meio caminho entre o julgamento da
autoridade judicial e o contrato livremente consentido pelas partes – o árbitro julga, mas
não exerce as funções públicas de um juiz.245
A doutrina actual tem adoptado esta última tese, na medida em que falamos de algo que
tem, sem qualquer dúvida, um fundamento contratual (a convenção de arbitragem), mas
constitui uma actividade jurisdicional e conduz a uma decisão com eficácia
jurisdicional.246
Prova deste carácter misto é, como se disse, a eficácia executiva da decisão judicial
(elemento público), por um lado, e a limitação da competência do tribunal arbitral, por
outro, à convenção de arbitragem (elemento privado). Marca, ainda, desta qualidade
jurisdicional são as garantias que a Lei da Arbitragem Voluntária estabelece para o
processo arbitral – um processo arbitral só será reconhecido com todos os seus efeitos ou
validado se cumprir as regras mínimas do processo justo.
Como se vem tornando habitual dizer, a arbitragem voluntária é contratual na sua origem,
privada na sua natureza e jurisdicional na sua função. A qualidade contratual advém da
fonte dos poderes jurisdicionais, o carácter jurisdicional resulta do conteúdo dos poderes
atribuídos pelo contrato.247
A arbitragem voluntária é regida pela Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, diploma que sofreu
uma única alteração - em 2003-, através do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março. As
alterações introduzidas por este diploma foram cirúrgicas, apenas abarcando os artigos
11º e 12º. Embora tenham sido mudanças importantes em prol da autonomia da
arbitragem face aos tribunais judiciais, foram ainda insuficientes.
A Lei da Arbitragem Voluntária tem mais de 20 anos, praticamente sem alterações. Viu já
serem aprovadas leis novas numa série de países próximos, como a Espanha, o Reino
Unido, a Alemanha, o Brasil, a Itália ou a Suiça. 248 É, por outro lado, rebelde à
globalização decorrente da crescente adopção pela maioria dos países da Lei Modelo da
UNCITRAL.249
Uma alteração da legislação nacional neste âmbito – dada por todos como necessária –
pode seguir dois caminhos: uma mera alteração da actual Lei ou a aprovação de uma
nova. Parece-me que a melhor solução seria a elaboração de uma nova lei de arbitragem,
inspirada na Lei Modelo e com a preocupação de consagrar soluções modernas e até
audazes. A actual confiança na arbitragem como meio sério e credível de resolução
alternativa de litígios permite dar este passo em frente.
248
Quanto aos diplomas em concreto, cfr. Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, p. 68.
249
Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, p. 67.
250
Disponível em
www.uncitral.org/uncitral/en/uncitral_texts/arbitration/1985Model_arbitration.html.
99
251
Disponível em http://arbitragem.pt/projectos/index.php. Todas as referências são ao projecto
de 2010.
252
IBA Guidelines on Conflicts of interest in international commercial arbitration e IBA Rules on
taking of evidence in international commercial arbitration, versão de 2010, ambos disponíveis em
http://www.ibanet.org/Publications/publications_IBA_guides_and_free_materials.aspx.
253
Disponível em http://www.port-chambers.com. Ver em geral, Alexandre Soveral Martins,
Notas sobre o Procedimento de Arbitragem Segundo o Regulamento de Arbitragem da Câmara
de Comércio Internacional de Paris (CCI), 2010, p. 567 e seguintes.
254
Regulamento disponível em http://www.iccwbo.org/court/arbitration/id4199/index.html
255
Regulamento disponível em http://www.lcia-arbitration.com/.
256
Regulamentos disponíveis em http://www.adr.org/sp.asp?id=28780
100
5.2. Espécies
257
Para uma análise detalhada destes problemas, cfr., por todos, Lima Pinheiro, Arbitragem
Transnacional, 2005 e, na doutrina internacional, Alan Redfern e Martin Hunter, Law and
Practice of International Commercial Arbitration, 2004.
101
Para além destes, há ainda outros mais ligados à arbitragem comercial, sendo de destacar
o Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa. Sem
quaisquer restrições quanto ao objecto do litígio, pode destacar-se o Centro de
Arbitragem da Ordem dos Advogados.
Este aspecto será por diversas vezes referido, até porque levanta alguns problemas de
difícil resolução. Mas é importante que fique, desde já, bem esclarecido. Porque é
contratual a fonte dos poderes do tribunal arbitral, este só tem poderes se houver contrato.
Assim, para que o tribunal arbitral seja competente, é necessário que o litígio em causa
esteja contemplado na convenção arbitral.
258
Ferreira de Almeida, Convenção de Arbitragem, 2008, p. 2-3; Lima Pinheiro, Arbitragem
Transnacional, 2005, p. 188; Raul Ventura, Convenção de Arbitragem, 1986, p. 303.
103
A convenção arbitral pode ser celebrada na pendência de acção judicial, implicando, nos
termos do artigo 290.º CPC, extinção da acção. Neste caso será um compromisso arbitral
e o juiz terá de verificar se o compromisso é válido em atenção ao seu objecto e à
qualidade das pessoas.
O mais frequente, no entanto, é a inserção deste tipo de cláusulas em contratos. Podem ter
as mais diversas formulações, prever quase nada ou quase tudo, remeter para arbitragem
institucionalizada ou fixar critérios de constituição do tribunal arbitral. Dentro das regras
imperativas de direito privado (que nesta área não são muitas), as partes poderão
livremente convencionar o que entenderem.
Uma declaração negocial próxima desta é a declaração unilateral de adesão prévia. Tal
declaração existe no nosso ordenamento jurídico em alguns centros de arbitragem de
consumo e significa uma adesão das empresas ao centro para a resolução de litígios
futuros com consumidores. Não se trata de cláusula compromissória porque não há
contra-parte: a vinculação da empresa faz-se perante todos, é uma declaração dirigida a
um público não identificado. No entender de Dário Moura Vicente, serão quanto muito
meras promessas de celebração de convenção arbitral.259
Esta é, por diversas razões, a melhor qualificação. Em primeiro lugar, esta promessa,
sendo unilateral, necessitaria sempre da aceitação da parte contrária, pelo que nunca
poderia ter o efeito potestativo normal da convenção de arbitragem. Em segundo lugar e
259
Moura Vicente, A Manifestação do Consentimento na Convenção de Arbitragem, 2002, p. 998.
104
Ora, tal excepção não pode ter lugar quando exista meramente adesão unilateral prévia,
na medida em que esta não é uma das modalidades que a lei reconhece como produzindo
esse efeito.262
b. Quanto ao acordo das partes, o único problema a analisar relaciona-se com duas
normas do regime das cláusulas contratuais gerais. No diploma legislativo que as regula –
Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro - encontram-se duas proibições cuja interpretação
não está isenta de dúvidas.
Em primeiro lugar, o artigo 21.º h) LCCG estatui que: “São em absoluto proibidas as
cláusulas contratuais gerais que (...) prevejam modalidades de arbitragem que não
assegurem as garantias de procedimento estabelecidas na lei.”
A doutrina hesita um pouco na interpretação a fazer desta norma. Será que a remissão
para a lei é para a LAV? É que se assim fosse, nada de novo estaria aí previsto - não pode
haver arbitragens em Portugal que não respeitem os requisitos da LAV, pois as
respectivas decisões seriam anuláveis.
De acordo com Dário Moura Vicente, o legislador não pretendeu proibir a celebração de
convenções arbitrais nas relações com consumidores finais, mas tão só garantir que não
haja uma exclusão da jurisdição estadual, ou seja, o que a lei pretende, no entender do
autor, é criar uma competência concorrente com a dos tribunais judiciais.263
Posição contrária assumiu, porém, o Supremo Tribunal de Justiça no Caso PT. 264
Entendeu o Tribunal que a convenção, ao respeitar a nossa Lei de Arbitragem Voluntária,
preenchia os requisitos necessários da lei, sendo portanto válida.
Parece claro que esta interpretação pressupõe alguma desconfiança face à arbitragem
enquanto processo extra-judicial de resolução de conflitos. Terá sido, essa, realmente a
263
Moura Vicente, A Manifestação do Consentimento na Convenção de Arbitragem, 2002, p. 998.
No mesmo sentido Maria José Capelo, A Lei de Arbitragem Voluntária e os centros de
arbitragem de conflitos de consumo, 1999, p. 115.
264
Acórdão de 4 de Outubro de 2005, Processo n.º 05A2222.
106
ideia do legislador. Mas não serão suficientes as garantias que a LAV oferece quanto a
igualdade e contraditório? Se a questão é de erro do consumidor, de falta de informação
ou de incompreensão em relação ao que é a arbitragem o problema é de consentimento,
de vontade. Em relação a esses eventuais vícios são aplicáveis as regras gerais da
formação do contrato.265 O problema que nos ocupa – de interpretação do artigo 21.º h)
LCCG - é outro: o dos limites da utilização da arbitragem em conflitos com
consumidores.
A outra norma do diploma das cláusulas contratuais gerais cuja aplicação à arbitragem é
discutível é o artigo 19.º g) LCCG, que tem o seguinte texto: “São proibidas, consoante o
quadro negocial padronizado, designadamente as clausulas contratuais gerais que (…)
estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das
partes, sem que os interesses da outra o justifiquem.”
c. Nos termos do artigo 2.º n.º1 LAV a convenção de arbitragem tem de ter forma escrita.
Na expressão da lei, deve ser reduzida a escrito. Considera-se reduzida a escrito não só a
convenção constante de documento assinada pelas partes, mas também a resultante de
troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova
escrita.
É ainda suficiente que estes documentos contenham apenas uma remissão para algum
documento em que uma convenção esteja contida.267 Trata-se da acepção ampla de forma
escrita, comum a instrumentos normativos internacionais (como a Convenção de Nova
Iorque ou a Lei Modelo da UNCITRAL).268
265
Manuel Barrocas, Manual de Arbitragem, 2010, p. 224.
266
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 92; Raul Ventura, Convenção de
Arbitragem, 1986, p. 44.
267
Ver a este propósito o Caso Royalties - Acórdão STJ 23 de Outubro de 2003, Processo n.º
03B3145.
107
A acepção ampla de forma escrita resolve alguns problemas, mas cria outros. No
essencial os problemas tratados pela doutrina dizem respeito, primeiro, à interpretação
desta remissão e, segundo, à possibilidade de a convenção arbitral constar de documentos
electrónicos, designadamente de correio electrónico.
A LAV/APA resolve, no seu artigo 2.º n.º3, esta questão ao considerar que “a exigência
de forma escrita da convenção de arbitragem está satisfeita quando esta conste de
suporte electrónico, magnético, óptico, ou de outro tipo, que ofereça as mesmas
garantias de fidedignidade, inteligibilidade e conservação.”
Ainda não estando, porém, esta legislação em vigor é necessário ponderar a validade de
uma convenção de arbitragem celebrada em ambiente electrónico.
Para responder a qualquer uma das questões de forma é essencial perceber por que razão
se exige forma escrita. Repare-se que a convenção arbitral tem necessariamente forma
escrita, mesmo que o contrato a que diga respeito não esteja a ela sujeito e tenha,
inclusive, sido celebrado oralmente.
Julgo que as razões de forma são várias, todas elas tendo importância e sendo suficientes
para justificar a regra especial. Em primeiro lugar e evidentemente, a gravidade dos
efeitos da celebração de uma convenção de arbitragem. O direito potestativo de
constituição do tribunal arbitral implica a renúncia ao direito de acção judicial – trata-se
do efeito negativo do princípio da competência da competência. A constituição imediata
de um direito potestativo justifica a maior exigência de forma face à anterior
regulamentação da arbitragem.269 Por outro lado, alguma doutrina entende que as razões
determinantes da forma residem na delimitação precisa do conteúdo da convenção
arbitral, em especial do seu objecto, de forma a conferir aos árbitros e às partes certeza
quanto às questões submetidas à jurisdição arbitral. 270 É importante reter este
entendimento, na medida em que, como se disse, a convenção arbitral é o foco que
ilumina a área da competência do tribunal arbitral. Quaisquer dúvidas que existam nessa
268
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p.95; Moura Vicente, A Manifestação do
Consentimento na Convenção de Arbitragem, 2002, p. 999.
269
Moura Vicente, A Manifestação do Consentimento na Convenção de Arbitragem, 2002, p. 991.
270
Ferreira de Almeida, Convenção de Arbitragem, 2008, p. 11.
108
Parece-me, pois, que a exigência de forma se explica pela necessidade de clareza quanto
à existência, objecto e conteúdo da convenção. Embora a renúncia a parte do direito de
acção – que na sua totalidade é indubitavelmente indisponível – seja importante, julgo
que a questão da segurança na existência e execução da convenção é mais relevante para
a exigência da forma escrita.
Assim, o que interessa é que haja possibilidade de determinação quanto a estes aspectos,
ainda que não seja inteiramente claro como se alcançou essa clareza ou se houve
realmente adesão de ambas as partes à convenção.271
A precisão que a LAV/APA incorpora no seu artigo 2.º n.º3 vai, segundo julgo,
precisamente nesta direcção. O que é necessário é que o modo como a convenção existe
garanta a sua fidedignidade, inteligibilidade e conservação. Pretende assegurar-se a
certeza quando à celebração e objecto da convenção de arbitragem.
Tendo em conta esta conclusão torna-se mais fácil analisar as duas questões supra
referidas: em primeiro lugar, qual a melhor interpretação para a convenção por remissão;
em segundo lugar, como tratar as convenções celebradas por meio de documentos
electrónicos.
271
Os vícios da vontade relativos à celebração da convenção são, evidentemente, invocáveis nos
termos gerais.
109
A LAV/APA entra em maior exigência, para além de a remissão ter ser para contrato
celebrado em forma escrita, acrescenta-se que a remissão tem de ser feita de modo a fazer
dessa cláusula parte integrante do mesmo contrato. Este último requisito tem como fonte
o artigo 7.º n.º6 da Lei Modelo Uncitral. 272 Da sua leitura conjunta percebe-se que o que
se pretende é que a referência feita pelas partes à convenção de arbitragem seja de molde
a inclui-la no contrato.
Quanto aos documentos electrónicos o problema está apenas naqueles que não estão
assinados electronicamente, porque os que estão são equiparados a documentos
particulares, nos termos do Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de Agosto. Os restantes devem
ser equiparados aos documentos não assinados, isto é, aos telex, telegramas ou outros
meios de comunicação de que fique forma escrita, tal como está referido no artigo 2.º n.º2
LAV.
A propósito dos documentos electrónicos, Dário Moura Vicente faz uma distinção entre
forma escrita e força probatória plena. 275 Os documentos assinados, porque só estes são
documentos particulares nos termos do artigo 373.º CC, têm força probatória plena
quanto às declarações atribuídas ao seu autor (artigo 376.º n.º1 CC). Os documentos não
assinados podem satisfazer o requisito da forma escrita, mas o seu valor probatório difere
em função das suas características. Esta está prevista, designadamente, nos artigos 368.º
CC (reproduções mecânicas), 379.º CC (telegramas) e 3.º n.º5 do Decreto-Lei n.º 290-
272
Cujo texto é: “The reference in a contract to any document containing an arbitration clause
constitutes an arbitration agreement in writing, provided that the reference is such as to make
that clause part of the contract.”
273
STJ 23/10/2003, Proc. 03B3145.
274
RL 30/09/2010, Proc. n.º 5961/09.1TVLSB.L1-8.
275
Moura Vicente, A Manifestação do Consentimento na Convenção de Arbitragem, 2002, p.
1002.
110
D/99, de 2 de Agosto (documento electrónico ao qual não seja aposto uma assinatura
electrónica).
Assim, os documentos electrónicos não assinados são suficientes para cumprir o requisito
de forma exigido pela LAV.
A falta de forma escrita da convenção arbitral gera a sua nulidade, nos termos do artigo
3.º LAV. Esta nulidade implica a incompetência do tribunal arbitral para dirimir o litígio,
pelo que é fundamento de anulação da sentença arbitral – artigo 27.º n.º1 b) LAV. Esta
nulidade pode, porém, ser sanada pela sua não invocação. Nos termos do artigo 21.º n.º3
LAV a nulidade tem de ser invocada até à apresentação da defesa, ficando depois
precludido o fundamento de anulação (artigo 27.º n.º2 LAV).
Este regime de preclusão conduz à sanação da invalidade se esta não for invocada em
momento oportuno. Este efeito é reconhecido na maioria das legislações estrangeiras,
assim como na Lei Modelo da UNCITRAL. 276 A LAV/APA consagra-o expressamente no
artigo 2.º n.º5, fazendo equivaler a forma escrita à troca de alegações (petição e
contestação) sem que seja invocada a invalidade da convenção.
Embora estabeleça este requisito, a nossa Lei da Arbitragem Voluntária não estatui
qualquer sanção para a sua inobservância – o artigo 3.º impõe a nulidade apenas para
276
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 160.
277
Lebre de Freitas, Alcance da determinação pelo tribunal judicial do objecto do litígio a
submeter a arbitragem, 2002, p. 67.
278
A LAV/APA elimina, em coerência com esta posição, a exigência da precisão do objecto do
litígio (artigo 2.º n.º6).
111
violações dos artigos 1.º n.ºs 1 e 4 e 2.º n.º1 e 2. Ora, os requisitos de conteúdo estão
previstos no artigo 2º n.º3. Pode, simplesmente, dizer-se que se verifica aqui uma lacuna
e defender o seu preenchimento através da aplicação desta mesma norma. Parece ser a
solução mais adequada na medida em que esta situação equivale a inexistência de forma
escrita – o problema é de segurança quanto à jurisdição do tribunal arbitral. 279
Já, por exemplo, o London Court of International Arbitration sugere maior pormenor:
“Any dispute arising out of or in connection with this contract, including any question
regarding its existence, validity or termination, shall be referred to and finally resolved
by arbitration under the LCIA Rules, which Rules are deemed to be incorporated by
reference into this clause. The number of arbitrators shall be [one/three]. The seat, or
legal place, of arbitration shall be [City and/or Country]. The language to be used in the
arbitral proceedings shall be [ ]. The governing law of the contract shall be the
substantive law of [ ].281
279
A LAV/APA resolve a questão nestes termos, incluindo a inobservância de todo o artigo 2.º
como fonte de invalidade da convenção de arbitragem (artigo 3.º).
280
Disponível em www.iccwbo.org/court/english/arbitration/word_documents
281
Disponível em www.lcia.org
112
Esta questão tem muita importância porque impede a invocação da nulidade do contrato
como expediente de desaforamento do tribunal arbitral. Se bastasse à parte não
interessada na jurisdição do tribunal arbitral, a invocação da nulidade do contrato onde a
convenção arbitral estivesse inserida, seria muito fácil impedir julgamentos por tribunais
arbitrais. Isto não significa que essa invalidade não possa ser alegada, assim como a
invalidade específica da convenção de arbitragem. Mas, nestes casos o próprio tribunal
arbitral tem competência para decidir sobre a sua competência – artigo 21.º LAV. É um
aspecto importantíssimo da regulamentação da arbitragem que retomarei em ponto
autónomo.
5.3.4. Arbitrabilidade282
282
A maior parte deste ponto (a relativa à arbitrabilidade objectiva) foi retirada do artigo que
escrevi com Cláudia Trabuco, A arbitrabilidade das questões de concorrência no direito
português: the meeting of two black arts, 2010.
283
Dois exemplos de arbitragem necessária: em matéria de direitos de autor, artigo 221.º n.º 4 do
Código de Direitos de Autor; em matéria de patentes, no artigo 59.º n.º 6 do Código da
Propriedade Industrial.
113
No artigo 187.º CPTA está ainda prevista a criação de centros de arbitragem destinados à
composição de litígios no âmbito das seguintes matérias: contratos, responsabilidade civil
da administração, funcionalismo público, sistemas públicos de protecção social e
urbanismo.287
b. Nos termos do artigo 1.º n.º 1 da LAV, não são arbitráveis os litígios respeitantes a
direitos indisponíveis. Embora a expressão seja conhecida do léxico jurídico, a verdade é
que não tem sido fácil determinar em concreto o seu conteúdo.
Em geral, define-se direitos indisponíveis como aqueles que as partes não podem
constituir ou extinguir por acto da vontade ou que não são renunciáveis. Lima Pinheiro
exemplifica com os direitos familiares pessoais, os direitos de personalidade e o direito a
alimentos.289
Carlos Ferreira de Almeida defendeu, porém, que a qualificação de certo direito como
disponível ou indisponível não deve ser feita instituto a instituto, mas questão a questão.
Também assim entendeu Paula Costa e Silva, de acordo com a qual o critério de
arbitrabilidade há-de ser concretizado de forma casuística, através do confronto do litígio
com o regime jurídico do direito em causa. 290 Por exemplo, alguns litígios relativos aos
direitos de personalidade são ou podem ser disponíveis 291, como aliás, foi decidido pelo
Supremo Tribunal de Justiça, no Caso Apresentadora de Televisão292. O Acórdão tratou
de uma acção de indemnização decorrente de violação do direito à imagem, tendo o
tribunal entendido que o direito de indemnização não era indisponível, pelo que era
arbitrável.
288
Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2004, p. 393.
289
Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, p. 105.
290
Paula Costa e Silva, Anulação e Recursos da Decisão Arbitral, 1992, p. 922.
291
Ferreira de Almeida, Convenção de arbitragem: conteúdo, 2008, p. 86.
292
Ac. STJ de 3 de Maio de 2007, Proc. N.º 06B3359.
115
arbitrabilidade e a vontade das partes: “(…) duvido que o julgamento por um tribunal
arbitral de litígio sobre direito indisponível afecte a indisponibilidade do direito.”293
As críticas foram recentemente reavivadas por António Sampaio Caramelo, que afirma
que a disponibilidade é um critério de aplicação difícil, retomando para esse efeito os
conceitos de indisponibilidade absoluta e relativa desenvolvidos por João de Castro
Mendes. 294
Para Sampaio Caramelo, nenhuma das indisponibilidades parece ser a prevista na Lei de
Arbitragem Voluntária, porque qualquer uma delas representa um limite injustificado para
o desenho do critério. Assim, se a arbitrabilidade correspondesse à indisponibilidade
absoluta, “Isso implicaria restringir excessivamente o âmbito das matérias arbitráveis,
pois que há direitos que, embora não sejam extinguíveis por vontade do seu titular, em
todas e quaisquer circunstâncias, apesar disso, tendo esse direitos carácter patrimonial,
não se vê razão ponderosa (à luz da hierarquia ou grau de relevância dos valores ou
interesses tutelados pelo ordenamento jurídico) para vedar a submissão a arbitragem de
litígios a eles respeitantes.”297. Admitir, porém, que a disponibilidade prevista na LAV é a
relativa, implicaria alargar a campos inaceitáveis a jurisdição arbitral.298
293
Raul Ventura, Convenção de Arbitragem, 1986, p. 321.
294
Sampaio Caramelo, A disponibilidade do direito como critério de arbitrabilidade do litígio,
2006, ponto 7.
295
Castro Mendes, Direito Processual Civil – 1º Vol., 1994, p. 211.
296
Castro Mendes, Direito Processual Civil – 1º Vol., 1994, p. 228. Também neste sentido, Paula
Costa e Silva, Anulação e Recursos da Decisão Arbitral, 1992, p. 922, nota 77. Cfr., porém, as
relexões sobre o tema no recente A Nova Face da Justiça, 2009, p. 87.
297
Sampaio Caramelo, A disponibilidade do direito como critério de arbitrabilidade do litígio,
2006, ponto 7.
298
Sampaio Caramelo, A disponibilidade do direito como critério de arbitrabilidade do litígio,
2006, ponto 7.
116
Parece claro que a solução não encontra através da simples leitura da lei, uma vez que
ultrapassa largamente a letra do artigo 1.º n.º1 LAV. Tem sido notório na doutrina, que
segue aliás a tendência internacional, um alargamento do que se entende ser arbitrável.
Não há dúvida que a arbitragem, aliás como os restantes meios de resolução alternativa
de litígios, tem conhecido um grande desenvolvimento nas últimas duas décadas. Este
desenvolvimento trouxe credibilidade e visibilidade à arbitragem, acabando por arrastar
consigo uma maior abertura às contendas que podem ser dirimidos através dela.
É útil referir alguns dos Acórdãos tratados para se perceber melhor esta evolução
jurisprudencial.
299
Ferreira de Almeida, Convenção de arbitragem, 2008, p. 86; Luis de Lima Pinheiro,
Arbitragem Transnacional, 2005, p. 105.
300
Joana Galvão Teles, A Arbitrabilidade dos litígios em sede de invocação de excepção de
preterição de tribunal arbitral voluntário, 2011.
117
Esta tendência no sentido da arbitrabilidade não tem sido, porém, seguida numa das áreas
típicas da arbitragem internacional: a dos litígios decorrentes de contratos de distribuição
comercial. Sampaio Caramelo comentou já o Caso Indemnização de Clientela308,
chamando a atenção para a dificuldade que o Tribunal teve em lidar com a arbitrabilidade
da indemnização de clientela, direito indisponível nos termos do artigo 38.º da Lei do
301
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Junho de 2009, Proc. N.º
984/08.0TBRMR.L1-8.
302
Joana Galvão Teles, A Arbitrabilidade dos litígios em sede de invocação de excepção de
preterição de tribunal arbitral voluntário, 2011, p. 16.
303
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Novembro de 1997.
304
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de Outubro de 1998.
305
Criticando expressamente as decisões jurisprudenciais citadas, Lima Pinheiro, Arbitragem
Transnacional, 2005, p. 109. O Autor entende que a convenção de arbitragem só é válida se
celebrada após a cessação do contrato de trabalho, momento em que os direitos são já
disponíveis.
306
Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Outubro de 1994, processo n.º 0086041 e acórdão da
Relação de Lisboa de 5 de Junho de 2007, processo n.º 1380/2007-1 (Caso trespasse).
307
Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Outubro de 2003, processo n.º 3317/2003-6.
308
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de Fevereiro de 2005, Proc. n.º 197/05-1.
118
De acordo com a lei francesa (artigo 2060.º do Código Civil Francês), não são arbitráveis
litígios em matéria de ordem pública. A construção doutrinária e jurisprudencial deste
conceito tem sido muito restritiva, considerando poucas áreas como inarbitráveis. 314 A
309
Sampaio Caramelo, A disponibilidade do direito como critério de arbitrabilidade do litígio,
2006, ponto 8.
310
O Acórdão não é inteiramente claro no seu raciocínio, mas parece-nos ser esta a conclusão a
retirar das suas palavras.
311
No mesmo tipo de vícios incorreram os Casos Nova Delhi (STJ de 11 de Outubro de 2005,
proc. n.º 05A2507) e Sementes de Milho (Relação do Porto de 11 de Janeiro de 2007, proc. n.º
0636141). Cfr. Joana Galvão Teles, A Arbitrabilidade dos litígios em sede de invocação de
excepção de preterição de tribunal arbitral voluntário, 2011, p. 22 e seguintes.
312
Sampaio Caramelo, A disponibilidade do direito como critério de arbitrabilidade do litígio,
2006, ponto 2.
313
Patrick M. Baron e Stefan Liniger, A Second look to arbitrability, 2003, p. 29.
314
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 164
119
ordem pública é vista como um limite ao poder decisório dos árbitros e não como um
critério de arbitrabilidade dos litígios.315
Na primeira, conhecida como Caso Mitsubishi, a Chrysler, uma empresa suíça e uma
empresa japonesa acordaram na criação de uma outra empresa, a Mitsubishi Motors
Corp., com o intuito de vender automóveis da marca Mitsubishi através dos agentes da
Chrysler fora dos Estados Unidos da América. Esta empresa fez, então, um contrato de
distribuição com um agente da Chrysler em Porto Rico, a Soler, acordo que continha uma
convenção de arbitragem. O acordo corria bem, até que a Soler começou a diminuir o
nível das suas vendas e a Mitsubishi decidiu suspender o envio de automóveis. A
Mitsubishi propôs uma acção judicial no Federal District Court, pedindo que a Soler
fosse obrigada, de acordo com a Lei Federal de Arbitragem e a Convenção de Nova
Iorque, a tratar o litígio por via arbitral. A Soler defendeu-se alegando, entre outros
fundamentos, a violação das leis americanas da concorrência (Sherman Act).319
315
Sampaio Caramelo, A disponibilidade do direito como critério de arbitrabilidade do litígio,
2006, ponto 5.
316
Patrick M. Baron e Stefan Liniger, A Second look to arbitrability, 2003,, p. 46.
317
Patrick M. Baron e Stefan Liniger, A Second look to arbitrability, 2003, p. 34.
318
Patrick M. Baron e Stefan Liniger, A Second look to arbitrability, 2003, p. 46.
319
O resumo foi retirado de James Bridgeman, The Arbitrability of Competition Law Disputes,
2008, p. 155. O caso está publicado em Mitsubushi Motors Corporation v Soler Chrysler-
120
Instituiu, aqui, a famosa doutrina do segundo olhar (second look doctrine), de acordo com
a qual o controlo do tribunal judicial pode fazer-se apenas depois da arbitragem. Isto é,
admite-se um conceito amplo de arbitrabilidade, mas o Estado reserva-se o direito de
validar posteriormente a decisão dos árbitros no que diz respeito à aplicação do direito
material do Estado do reconhecimento. O problema desloca-se, assim, da arbitrabilidade
do litígio para o controlo estadual da aplicação das regras de ordem pública do direito do
Estado onde é pedido o reconhecimento. 322 Reconhece-se, portanto, que os litígios são
arbitráveis, mas não se prescinde do exame posterior da decisão quanto à aplicação das
normas de ordem pública.
A questão tem levantado amplíssima polémica, porque se por um lado tem a vantagem de
alargar o conceito de arbitrabilidade, afastando-o de vez da existência de regras
imperativas no regime jurídico do direito litigioso, por outro tem a desvantagem de
estabelecer para os tribunais judiciais a possibilidade permanente de averiguarem o
mérito da decisão arbitral. Uma possibilidade de intervenção que os cultores da
arbitragem pretenderam bem longe e difusa. Por outro lado, ainda, coloca difíceis
Plymouth, 473 U.S. 614, L. Ed. Ed 444 (1985).
320
Posteriormente a jurisprudência alargou a arbitrabilidade das questões de concorrência à
arbitragem doméstica. Cfr. Renato Nazzini, A Principled Approach to Arbitration of Competition
Law Disputes: Competition Authorities as Amici Curiae and the Status of Their Decisions in
Arbitral Proceedings, 2008, p. 95.
321
Renato Nazzini, A Principled Approach to Arbitration of Competition Law Disputes:
Competition Authorities as Amici Curiae and the Status of Their Decisions in Arbitral
Proceedings, 2008, p. 95.
322
Patrick M. Baron e Stefan Liniger, A Second look to arbitrability, 2003, p. 54; Renato Nazzini,
A Principled Approach to Arbitration of Competition Law Disputes: Competition Authorities as
Amici Curiae and the Status of Their Decisions in Arbitral Proceedings, 2008, p. 97.
121
problemas aos árbitros quanto à sua postura e à aplicação do direito nacional das partes
intervenientes ou dos eventuais países de reconhecimento.323
Este aspecto do controlo estadual através da ordem pública será visto posteriormente,
embora se deva adiantar que entendemos não ser possível defender o alargamento do
conceito de arbitrabilidade sem que se admita a violação de ordem pública como
fundamento de anulação de decisões arbitrais.324
A outra ocasião onde a questão se colocou foi o Caso Eco Swiss contra Benetton 325,
decidido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, em Junho de 1999. Em
Julho de 1986, a Benetton, a Eco Swiss e a Bulova celebraram um contrato de licença de
marca por um período de 8 anos. Nos termos do contrato, mediante autorização da
Benetton e da Bulova, a Eco Swiss fabricava e distribuía relógios de luxo, identificados
através da marca BbB (Benetton by Bulova). A Bulova controlava ainda a qualidade da
produção. O contrato continha uma cláusula compromissória que remetia a resolução dos
litígios dele resultantes para o Instituto Holandês de Arbitragem.326
323
Patrick M. Baron e Stefan Liniger, A Second look to arbitrability, 2003, p. 49 e seguintes;
Renato Nazzini, A Principled Approach to Arbitration of Competition Law Disputes: Competition
Authorities as Amici Curiae and the Status of Their Decisions in Arbitral Proceedings, 2008, p.
103 e seguintes.
324
A esse propósito já se tomou posição em Assunção Cristas e Mariana França Gouveia, A
violação de ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais, 2010, p. 41-56.
No mesmo sentido), Sampaio Caramelo, A disponibilidade do direito como critério de
arbitrabilidade do litígio, 2006, ponto 9, também em A Reforma da Lei da Arbitragem
Voluntária, 2009, p. 48.
325
Acórdão do TJCE de 1 de Junho de 1999, Eco Swiss China Ltd contra Benetton International
NV, Proc. C-126/97, CJ 1999, p. I-03055.
326
O resumo é retirado de T. Diederik de Groot, The Impact of the Benetton Decision on
International Commercial Arbitration, 2003, p. 367.
122
1995 o tribunal decide que o valor da indemnização a pagar pela Benetton era de 29
milhões de dólares.327
327
T. Diederik de Groot, The Impact of the Benetton Decision on International Commercial
Arbitration, 2003, p. 368.
328
T. Diederik de Groot, The Impact of the Benetton Decision on International Commercial
Arbitration, 2003, p. 371.
329
O TJCE decidiu também e porém que a circunstância de as normas do Tratado sobre
concorrência serem de ordem pública não obrigava a afastar a aplicação da regra de caso julgado,
conforme vigorava no direito holandês, pelo que nenhuma consequência prática se retirava desta
decisão para a eficácia da decisão arbitral no caso Benetton. Terá sido tomado em consideração o
facto de nenhuma das partes ter levantado a questão da violação destas regras durante o processo
arbitral. T. Diederik de Groot, The Impact of the Benetton Decision on International Commercial
Arbitration,2003, p. 369.
330
Posteriormente, em 2005, uma decisão do English High Court, no Caso Eurotunnel (ET Plus
SA v Welters), veio confirmar também a arbitrabilidade de litígios em que estivesse em causa dos
artigos 81.º e 82.º do Tratado. James Bridgeman, The Arbitrability of Competition Law Disputes,
2008, p. 158.
331
Luca G. Radicati Di Brozolo, Antitrust: a Paradigm of the Relations Between Mandatory
Rules and Arbitration – A Fresh Look at the “Second Look, 2004, p. 23.
123
Em Portugal, estamos sem dúvida num momento favorável à arbitragem, aceite pela
comunidade em geral e pelo Estado em particular.333 Esta grande abertura tem conduzido,
na prática, ao esvaziamento do conceito legal de arbitrabilidade. Como se pode concluir
da jurisprudência portuguesa supra-citada, o critério da disponibilidade apenas tem
obstado à arbitrabilidade dos litígios relativos a direitos absolutamente indisponíveis, isto
é, apenas se consideram inarbitráveis os litígios em que se impede em todos os casos e
circunstâncias a constituição ou disposição do direito por vontade das partes. Nas
situações em que as partes, após a constituição efectiva do direito na sua esfera jurídica,
podem dele livremente dispor, já é admissível a arbitragem. O que significa, então, que
são arbitráveis os litígios em que estejam em causa direitos relativamente disponíveis.
Indisponível será, assim, apenas o direito que não pode nunca deixar de ser exercido,
independentemente da vontade do seu titular. O que significa que, se determinado direito
é irrenunciável, para que seja relativamente indisponível basta que o particular não seja
obrigado a exercê-lo, isto é, que esteja na sua disponibilidade propor ou não acção
destinada ao seu exercício.
Esta definição é amplíssima, como já referiu Sampaio Caramelo. Terá como limite apenas
os casos em que o exercício do direito for também admissível por via pública. Falamos,
332
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 164.
333
Nos últimos anos têm-se multiplicado a criação, com incentivo público, de centros de
arbitragem, em diversas áreas, desde a propriedade industrial até à acção executiva.
124
por exemplo, das situações em que estejam em causa crimes públicos 334, direitos
colectivos ou difusos, como o património público ou alguns direitos relativos a menores
(máxime, a averiguação oficiosa de maternidade e paternidade335). Poderá, então, dizer-se
que no direito positivo português apenas se impede a arbitragem de litígios em que
iniciativa de exercício do direito é também pública, querendo com isto dizer-se que o
Estado tem o dever, de acordo com o princípio da legalidade, de substituir-se ao privado
no exercício do seu direito. Só estes direitos são absolutamente indisponíveis e só estes
não são arbitráveis.
Cada uma das partes adquire reciprocamente um direito potestativo e uma sujeição: não
só tem direito a que o litígio seja resolvido por arbitragem, como assim fica obrigada se a
parte contrária o quiser.336-337
334
Repare-se que os crimes particulares e semi-públicos admitem mediação – Lei 21/2007, de 12
de Junho. Mas há limites quanto às penas aplicáveis – a questão aqui não é já de disponibilidade
do direito, mas da natureza pública da sanção (em especial da privativa da liberdade) que não
pode, evidentemente, ser aplicada por privados. O mesmo raciocínio se aplica às contra-
ordenações.
335
Artigos 1808.º e 1864.º CC.
336
Ferreira de Almeida, Convenção de arbitragem, 2008, p. 93; Manuel Barrocas, Manual de
Arbitragem, 2010, p. 165; Lopes dos Reis, A excepção da preterição do tribunal arbitral
(voluntário), 1998, p. 1119; Raul Ventura, Convenção de arbitragem, 1986, p. 301.
337
Este efeito não se verificará nas convenções celebradas por consumidores através de cláusulas
contratuais gerais, caso se entenda, por interpretação do artigo 21.º h) LCCG, que o consumidor
125
Tem sido colocada a dúvida sobre a aplicação da excepção de litispendência quando são
propostas, em simultâneo, acções no tribunal arbitral e no judicial, sobre litígios em que
existe convenção de arbitragem.339
Esta conclusão é, do ponto de vista teórico, correcta, mas pode causar dificuldades
práticas em casos de actuação contraditória das partes. Imagine-se que, na pendência de
uma acção arbitral, é instaurada uma acção judicial e o réu não invoca a excepção de
preterição de tribunal arbitral. De acordo com a melhor teoria há revogação da convenção
de arbitragem, cessando de imediato os poderes do tribunal arbitral. Ele não tem já
pode livremente optar entre os tribunais arbitrais ou judiciais. Cfr. supra ponto 5.3.3..
338
Ferreira de Almeida, Convenção de arbitragem, 2008, p. 93; Barrocas, Manual de Arbitragem,
2010, p. 168; Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p.88; Raul Ventura, Convenção de
arbitragem, 1986, p. 380.
339
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 90.
340
Embora haja alguma jurisprudência que, contra a letra da lei, a conhece oficiosamente – cfr.
decisões citadas por Patrícia Guerra, O Princípio da autonomia do tribunal arbitral quanto à
apreciação da sua jurisdição, 2010, p. 51.
126
jurisdição sobre o conflito, se prosseguir o processo as suas decisões serão inválidas por
terem sido proferidas por tribunal incompetente. 341 O problema é que, ainda de acordo
com a plena autonomia da vontade na celebração e na revogação da convenção de
arbitragem, a incompetência tem de ser invocada (oportunamente) no processo arbitral
para que possa, posteriormente em acção de anulação, ser seu fundamento (artigo 27.º b)
e n.º2). A não alegação do vício de incompetência, gerada por inexistência ou invalidade
da convenção de arbitragem, implica, como se referiu acima, a celebração de uma
convenção tácita.
Não se conhece nenhum caso em que uma situação deste género tenha ocorrido. Ela
resultaria, realmente, de uma actuação esquizofrénica de ambas as partes. A sua solução
não me parece óbvia – o problema continua a ser de jurisdição, não de litispendência.
Mas talvez faça sentido, por questões práticas, privilegiar a jurisdição do tribunal
(judicial ou arbitral) onde a acção foi primeiramente proposta. Não, repito, porque se trate
de litispendência, mas porque, na falência de uma solução decorrente da posição teórica
correcta, este critério permite resolver o problema.
Quando o Código de Processo Civil refere, no seu artigo 494.º j) CPC, a excepção
dilatória de preterição do tribunal arbitral, é sua intenção que o juiz analise
exaustivamente a existência e validade da convenção invocada? Ou pretende apenas uma
aplicação automática da absolvição da instância, assim que a excepção é alegada pelo
réu?
2005, p. 90.
127
Não é, porém, esta a regra na arbitragem. Pelo contrário, é desde há muito reconhecida ao
tribunal arbitral a competência para se pronunciar sobre a sua própria competência, o que
vem sendo referido, em termos sintéticos, como o princípio da competência da
competência, na sua vertente positiva.342 Este reconhecimento é, aliás, essencial para que
a parte interessada em prolongar a resolução do litígio consiga, com esta invocação
mesmo que sem fundamento, desaforar o tribunal arbitral.
A regra está consagrada no artigo 21º n.º1 LAV, numa formulação isenta de dúvidas.
O n.º2 deste preceito consagra, ainda, a autonomia da convenção arbitral face ao contrato
em que está inserida. Esta regra significa que a invalidade do contrato onde a cláusula
está inserida não acarreta automaticamente a invalidade da convenção arbitral. Não
significa, repare-se, que ela seja sempre válida, apenas que o tribunal arbitral pode
considerar o contrato inválido, mas a cláusula válida e, com isso, fazer prosseguir a acção
arbitral.343
Aspecto particular desta norma é a sua parte final, quando ressalva que a convenção é
nula quando se mostre que o contrato não teria sido celebrado sem a referida convenção.
Esta norma coloca algumas dificuldades de interpretação, não tendo, aliás, paralelo em
legislações estrangeiras.344
Analisar as hipóteses que podem verificar-se na aplicação desta norma pode permitir a
sua melhor compreensão. Só estão em causa situações em que o contrato é inválido. Se
este for válido e a convenção inválida, o tribunal arbitral não tem competência. Quando o
contrato é inválido e a cláusula é inválida, o problema não se coloca e o tribunal arbitral
não tem igualmente jurisdição sobre o conflito. O problema existe apenas quando o
342
Barrocas, Manual de Arbitragem, 2010, p. 167; Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional,
2005, p. 133.
343
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 121.
344
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 122.
128
A LAV/APA, como é natural, elimina esta regra, consagrando com clareza o princípio da
autonomia da cláusula arbitral face ao contrato onde esteja inserida (artigo 18.º n.ºs 2 e
3).
Na sua formulação positiva – o tribunal arbitral tem competência para apreciar a sua
própria competência – o princípio da competência da competência não traz dificuldades
de interpretação e de aplicação. Estas surgem, porém, quando se pretende aplicar o efeito
reflexo aos tribunais judiciais. Esclarecendo, a questão em que agora se entra é a de saber
se esta competência dos tribunais arbitrais de apreciação da sua competência é exclusiva,
impedindo, portanto, os tribunais judiciais de apreciarem a competência destes.
Se optar por propor acção arbitral, o tribunal arbitral decidirá se é ou não competente. Se
decidir que é competente, o processo segue até ao fim, só podendo a parte contrária pôr
em causa esta decisão no recurso ou acção de anulação da sentença arbitral (artigo 21.º
n.º4 LAV) ou em oposição à execução da decisão arbitral (artigo 815.º CPC e artigo 31.º
LAV). Se decidir que é incompetente, a instância arbitral extingue-se que o autor terá de
129
propor a acção em tribunal judicial, sendo que este fica vinculado à decisão de
incompetência do tribunal arbitral.345
Nesta situação não parece haver grandes dúvidas na solução positivada. É eventualmente
criticável por postergar para o fim do processo a verificação da regularidade da decisão
sobre a competência, dando azo, portanto, a um enorme dispêndio de tempo e dinheiro
num processo arbitral eventualmente condenado à anulação.346
Há regimes, aliás, que permitem uma imediata impugnação da decisão do tribunal arbitral
sobre a sua competência para os tribunais judiciais.347 Proferida a decisão (interlocutória)
de que o tribunal arbitral é competente, a parte que alegou o vício pode de imediato
recorrer aos tribunais judiciais. Esta regra foi adoptada pela LAV/APA, no seu artigo 18.º
n.º 9: “A decisão interlocutória pela qual o tribunal arbitral declare que tem
competência pode, no prazo de trinta dias após a sua notificação às partes, ser
impugnada por qualquer destas perante o tribunal estadual competente.”
É importante realçar que esta impugnação não terá efeitos suspensivos sobre o processo
arbitral, nos termos do artigo 18.º n.º10 LAV/APA. Se assim não fosse, estaria aberta a
porta para manobras dilatórias de uma das partes.
Não é este, porém, o regime actualmente em vigor no nosso ordenamento jurídico. Face à
letra clara do artigo 21.º n.º4 LAV, a decisão pela qual o tribunal arbitral se declara
competente apenas pode ser impugnada em recurso ou acção de anulação de sentença
arbitral.
345
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 136; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o
novo processo civil, 1997, p. 135.
346
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 140.
347
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 136 e seguintes.
130
Há aqui três níveis possíveis de apreciação. Em primeiro lugar, pode defender-se que os
tribunais judiciais não devem analisar qualquer questão que possa implicar a
incompetência do tribunal arbitral, suspendendo a instância judicial e remetendo o
processo para o tribunal arbitral que tomará a sua decisão. Nesta posição, não só os
tribunais arbitrais têm competência para apreciar a sua competência, como a têm
prioritariamente em relação aos tribunais judiciais. Estes não têm competência para aferir
da jurisdição dos tribunais arbitrais antes de proferida a decisão pelo tribunal arbitral.
Na posição exactamente oposta a esta, invoca-se o artigo 290.º CPC que impõe ao
tribunal judicial que analise, em toda a sua amplitude, a validade do compromisso arbitral
celebrado na pendência da acção. Se esta é a regra para o compromisso arbitral celebrado
na pendência da acção, deverá também ser para qualquer convenção de arbitragem. Nesta
hipótese, o tribunal judicial averigua com a máxima extensão os requisitos de existência e
validade da convenção arbitral.348
Por fim, pode defender-se que o tribunal judicial apenas pode decidir-se pela
incompetência do tribunal arbitral nos casos de manifesta nulidade da convenção arbitral.
Esta posição utiliza como argumento a aplicação analógica do artigo 12.º n.º4 LAV,
preceito é aplicável aos casos em que falta a nomeação de um árbitro, normalmente
porque a parte demandada o não indicou. Nestes casos, é pedido ao presidente do tribunal
da relação da sede da arbitragem para que indique esse árbitro em falta. Ora, se a
convenção de arbitragem for manifestamente nula, deve o presidente do tribunal da
relação declarar não haver lugar à designação de árbitros. Utilizando este critério,
defendem Lopes dos Reis e Lima Pinheiro que o padrão de análise da procedência ou
improcedência da excepção deve ser o mesmo – a manifesta nulidade (aqui entendida
como invalidade ou ineficácia em termos amplos).349
348
Parece ser esta a posição de Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 1997, p.
134-5.
349
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 136; Lopes dos Reis, A excepção da
preterição do tribunal arbitral (voluntário), 1998, p. 1129. Também neste sentido, Patrícia
Guerra, O princípio da autonomia do tribunal arbitral quando à apreciação da sua jurisdição,
2010, p. 63.
131
Do ponto de vista da economia processual, a posição que não permite aos tribunais
judiciais a análise da competência do tribunal arbitral é geradora de atrasos injustificáveis
quando seja notório que a convenção de arbitragem é inexistente ou inválida. É uma
perda de tempo obrigar à constituição do tribunal arbitral para declarar algo que é
notório. Em termos dogmáticos, esbarra com a consideração de que os tribunais judiciais
são também eles competentes para apreciar a sua própria competência. Aliás, a teoria da
kompetenz-kompetenz não surgiu para os tribunais arbitrais, sendo aplicável também aos
tribunais judiciais.352 Repare-se nesta asserção tão evidente: se os tribunais arbitrais não
têm jurisdição, então os judiciais têm. E estes têm, naturalmente, a competência para
declarar se eles próprios são competentes. A tese mais radical não me parece, assim, ter
sustento teórico, mas sobretudo tem, do ponto de vista prático, desvantagens
consideráveis no que à economia processual diz respeito.
A tese oposta a esta – a que entende poder o tribunal judicial apreciar exaustivamente a
jurisdição do tribunal arbitral – tem, na verdade e apenas, desvantagens em ambientes
350
Patrícia Guerra, O princípio da autonomia do tribunal arbitral quando à apreciação da sua
jurisdição, 2010, p. 57 e seguintes.
351
Em 5 de Junho, Processo n.º 1380/2007-1. Este Acórdão foi depois seguido de muito perto no
Caso Acordo-Quadro, também da Relação de Lisboa.
352
Miguel Galvão Teles, A competência da competência do tribunal constitucional, 1995, p. 105 e
111.
132
A última tese, que é, afinal, um compromisso entre as duas anteriores, parece ser a que
melhor se adapta à natureza da arbitragem voluntária. Por um lado, respeita o princípio da
autonomia privada, a desjudicialização pretendida pelas partes aquando da celebração da
convenção; por outro, não o leva ao exagero de não permitir ao tribunal judicial apreciar
uma manifesta inexistência ou invalidade da convenção; por último, compagina-se bem
com o padrão de análise constante do artigo 12.º n.º4 na situação paralela da designação
de árbitros pelo presidente do tribunal da relação.
Esta é também a posição proposta na LAV/APA, no artigo 5.º n.º1, assim se adoptando
em definitivo o efeito negativo do princípio da competência da competência, que não faz
mais do que atribuir à celebração da convenção de arbitragem um efeito de exclusão da
jurisdição dos tribunais judiciais em relação aos litígios abrangidos por essa convenção.
De acordo com um dos autores do projecto, António Sampaio Caramelo, pretendeu-se
133
que os árbitros sejam os primeiros juízes da sua competência, estabelecendo-se uma regra
de prioridade cronológica quanto à tomada de decisão sobre a competência.353
Lopes dos Reis entende que o tribunal judicial tem apenas de verificar a existência,
meramente factual ou material, de uma convenção susceptível de aplicação ao litígio
trazido perante si.354
Estamos, então, num processo especial, em que o pedido é muito limitado e, logo, os
poderes de cognição não são vastos. Neste ponto de vista, julgo que fará sentido
interpretar esta «manifesta nulidade» como abrangendo os casos em que não tem de ser
produzida mais prova. Este requisito afasta à partida qualquer alegação de vícios da
vontade na celebração do contrato, deixando ao tribunal judicial apenas a consideração
dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade.
Mas ainda assim parece-me que se deve restringir o nível de análise. Quando existirem
dúvidas sobre a validade da convenção, o tribunal judicial deve optar pela procedência da
excepção de preterição de tribunal arbitral voluntário.
353
Sampaio Caramelo, A reforma da lei da arbitragem voluntária, 2009, p. 14-5.
354
Lopes dos Reis, A excepção da preterição do tribunal arbitral, 1998, p. 1124.
134
Uma última questão, que só pode ser respondida depois da tomada de posição sobre este
problema, é a da eficácia das decisões sobre a jurisdição de um tribunal (arbitral ou
judicial) em relação ao outro. Em coerência com a posição defendida, quando o tribunal
judicial decide julgar procedente a excepção de preterição de tribunal arbitral, limita-se a
declarar que a convenção de arbitragem não é manifestamente nula, o que é diferente de
declarar que a convenção é válida. Logo, o tribunal arbitral pode, posteriormente, na
apreciação da sua competência vir a decidir que é incompetente por a cláusula arbitral ser
inválida. Esta é a única posição que se pode aceitar quando se defenda a posição
intermédia.355
355
No mesmo sentido, Lopes dos Reis, A excepção de preterição do tribunal arbitral (voluntário),
1998, p. 1129.
356
Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 1997, p. 135.
357
Patrícia Guerra, O princípio da autonomia do tribunal arbitral quanto à apreciação da sua
jurisdição, 2010, p. 60; Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 141; Raúl Ventura,
Convenção de arbitragem, 1986, p. 374.
358
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 141.
135
Parece-me que, face à regra em vigor – a da recorribilidade das decisões arbitrais que
ponham fim à instância – deve admitir-se o recurso desta decisão. 359 Alterando-se a regra,
como acontece na LAV/APA, não deve admitir-se o recurso.
A LAV/APA não contém qualquer norma idêntica a esta, à semelhança aliás do acontece
na Lei Modelo UNCITRAL. A única regra relativa ao início do processo arbitral
encontra-se no artigo 33.º da LAV/APA, idêntico ao artigo 21.º n.º 1 da Lei-Modelo, nos
termos do qual o processo arbitral tem início na data em que o pedido de submissão desse
Contra Patrícia Guerra, O princípio da autonomia do tribunal arbitral quanto à apreciação da
359
litígio a arbitragem for recebido pelo demandado, salvo convenção das partes em
contrário.
O tribunal arbitral pode ser constituído por um único árbitro ou por vários, em número
ímpar. O número de árbitros pode ser fixado na convenção de arbitragem ou em escrito
posterior assinado pelas partes. Se não houver estipulação contratual, o tribunal é
composto por três árbitros, um designado por cada parte e o terceiro por esses dois
(artigos 6.º e 7.º LAV). A maioria dos regulamentos de centros de arbitragem
institucionalizados adopta, porém, supletivamente a regra oposta: no silêncio das partes, o
tribunal é composto apenas por um árbitro. A LAV/APA mantém a regra da actual
legislação: na falta de indicação, o tribunal arbitral é constituído por três árbitros (artigo
8.º n.º2).
A artigo 6.º LAV exige que o número de árbitros seja ímpar. No entanto, pelo menos um
tribunal arbitral institucionalizado, o da Comissão Arbitral Paritária emergente de
contrato colectivo celebrado entre a Liga Portuguesa de Clubes de Futebol Profissional e
o Sindicato Nacional de Jogadores de Futebol Profissional, prevê um tribunal arbitral
com seis árbitros, três nomeados pela Liga e três pelo Sindicato.
A eventual violação do artigo 6.º LAV por este regulamento arbitral foi exaustivamente
analisada no Caso dos Seis Árbitros360, tendo o Tribunal da Relação do Porto concluído
que a Lei da Arbitragem Voluntária apenas se aplicava subsidiariamente à arbitragem no
âmbito do Direito do Trabalho. Outras disposições legais referidas pelo tribunal permitem
360
Acórdão Relação do Porto, 3 de Fevereiro de 2009, Proc. n.º 0825802.
137
chegar à conclusão que há, realmente, derrogação do artigo 6.º LAV no âmbito da
arbitragem laboral.
O respeito por este princípio é mais difícil de se verificar em arbitragens com pluralidade
de partes, na medida em que, havendo número de partes diferentes em cada um dos lados
da acção, a nomeação de um árbitro por cada uma torna-se impossível. A este propósito
pode ver-se o Caso Teleweb 362, em que se discutiu um caso em que havia duas rés e uma
delas entendia que tinha direito a nomear um árbitro ou, em alternativa, a separar os
processos arbitrais. Fundamentava-se no princípio da igualdade. O Tribunal não lhe deu,
porém, razão. Este tema enquadra-se já no problema das arbitragens complexas e será aí
tratado.363
361
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 125.
362
Acórdão Relação de Lisboa, 18 de Maio de 2004, Proc. n.º 3094/2004-7.
363
Cfr. infra 5.8..
364
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 125.
138
A legitimidade para requerer esta nomeação cabe às partes e não aos árbitros. Trata-se de
legitimidade processual, aferida em função do interesse em pedir (artigo 26.º CPC), e só
as partes têm interesse no prosseguimento da acção arbitral.365
O artigo 12.º n.º4 LAV estatui que se a convenção arbitral for manifestamente nula, o
presidente da relação decide que não há lugar à designação de árbitros, isto é, impede a
constituição do tribunal arbitral, remetendo as partes para o processo judicial. A ratio
desta norma é claramente de economia processual: não faz sentido constituir um tribunal
arbitral cujas decisões serão anuladas por incompetência decorrente de manifesta
invalidade da convenção arbitral.
A LAV é parquíssima nas regras que regulamentam esta matéria. Não foge, porém, à
regra da maioria das legislações estrangeiras sobre arbitragem, onde a matéria dos
direitos e deveres dos árbitros tem sido relegada para instrumentos de ética profissional,
como códigos deontológicos e outros meios de regulação privada.368
365
Lopes dos Reis, Questões de Arbitragem ad hoc, 1998, p. 495. Em comentário a Acórdão da
Relação de Lisboa de 10 de Fevereiro de 1994 que decidiu em sentido contrário.
366
Cfr. supra ponto 5.4..
367
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 557.
368
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 557.
139
Os árbitros devem ser pessoas singulares e plenamente capazes (artigo 8º LAV). Não há
quaisquer restrições quanto à área de formação ou quanto às habilitações literárias. O
mais frequente, porém, quer em arbitragens domésticas, quer em internacionais, é ser
nomeado árbitro um jurista. Na convenção de arbitragem podem as partes definir critérios
para a eventual designação dos árbitros, podendo até indicar desde logo quem pretendem
que seja o ou os árbitros. Contudo, não é aconselhável entrar em demasiado pormenor,
porque o momento em que o litígio aparece é incerto e pode ser difícil, nessa ocasião,
respeitar as indicações das partes na convenção. São conhecidas situações de árbitros
indicados na convenção que já faleceram no momento em que ocorre o litígio ou em que
são exigidas qualidades técnicas muito específicas, que limitam a um número muito
reduzido de pessoas os possíveis árbitros.
A lei portuguesa, ao contrário de outras, é explícita no sentido de não ser admissível que
pessoas colectivas sejam árbitras.369 A LAV/APA mantém esta regra, no artigo 9.º n.º1. A
restrição pode justificar-se pela necessidade de imparcialidade do árbitro, qualidade que a
lei portuguesa afere através dos impedimentos e suspeições dos juízes, tornando
impossível ou difícil a sua verificação caso se trate de pessoa colectiva.370
369
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p.128.
370
Romano Martinez, Análise do vínculo jurídico do árbitro em arbitragem voluntária ad hoc,
2005, p. 831.
371
Manuel Barrocas, Manual de Arbitragem, 2010, p. 321 e seguintes.
372
Romano Martinez, Análise do vínculo jurídico do árbitro em arbitragem voluntária ad hoc,
2005, p. 839.
140
justificam por um vínculo contratual e poderes dos árbitros que apenas existem por existir
previsão legal.
Uma resposta segura a esta questão podia ser importante para definir o regime da
responsabilidade civil dos árbitros. Os artigos 9.º n.º 3 e 19.º n.º 5 LAV estabelecem a
obrigação de indemnizar em casos específicos, mas nada dizem sobre o regime de
responsabilidade aplicável, se contratual, se extracontratual. Ora, se a relação jurídica
entre as partes e os árbitros é contratual, então a responsabilidade seria contratual; já se
tem por fonte a lei, a responsabilidade será extracontratual.
No entanto, a doutrina tem assumido a este propósito posições idênticas, ainda que
baseadas em pressupostos teóricos diversos. O entendimento comum é que a
responsabilidade relativa a actos jurisdicionais (maxime a prolação de sentença) segue o
regime da responsabilidade dos magistrados, sendo necessária a verificação de dolo ou
culpa grave; já a responsabilidade por actos não jurisidicionais (por exemplo, a não
decisão no prazo legal ou contratual) segue o regime da responsabilidade contratual,
presumindo-se a culpa.373 É este o regime da LAV/APA: no seu artigo 9.º n.º4 equipara os
árbitros aos juízes no que diz respeito aos danos decorrentes das decisões arbitrais; nos
artigos 12.º n.º 3 e 43.º n.º4 estabelece-se a responsabilidade geral dos árbitros por
injustificadamente se escusarem ao exercício das suas funções ou obstarem a que a
decisão seja proferida no prazo.
É comum chamar-se aos árbitros designados por cada uma das partes árbitros de parte.
Um tema ainda polémico o nosso ordenamento jurídico é o do estatuto do árbitro de
parte. A questão a que interessa responder é a de saber se, no quadro de direito positivo,
existe um estatuto diferenciado: no essencial se o árbitro de parte está ou não obrigado a
dever de imparcialidade e independência idêntico ao árbitro-presidente ou não designado.
A LAV é parquíssima nas regras sobre estatuto do árbitro, limitando-se a remeter para o
regime de impedimentos e escusas dos magistrados judiciais – artigo 10.º n.º1. Esta
remissão não é, porém, aplicável a todos os árbitros, mas apenas àqueles que não [foram]
373
Bernardo Reis, O Estatuto dos árbitros, 2009, p. 50-2; Manuel Barrocas, Manual de
Arbitragem, 2010, p. 317; Romano Martinez, Análise do vínculo jurídico do árbitro em
arbitragem voluntária ad hoc, 2005, p. 841.
141
nomeados por acordo das partes. Esta expressão não é clara, podendo ser interpretada no
sentido de excluir ou de integrar os árbitros de parte. Parece, porém, que uma sua leitura
cuidada impõe a conclusão de que pretende apenas excluir os árbitros que foram
nomeados com o acordo de ambas as partes.374
A LAV remete o árbitro de parte para o regime dos impedimentos e escusas dos
magistrados judiciais previsto nos artigos 122º e seguintes do Código de Processo Civil,
em especial nos artigos 122.º e 127.º. O interesse maior desta remissão não é tanto a
utilização das específicas facti-species de cada uma das alíneas aí previstas, mas antes a
aplicação do princípio ou cláusula geral que lhes está subjacente – a de que o juiz tem de
ser imparcial.
Falta realmente na LAV uma cláusula geral de imparcialidade, mas esta omissão encontra
imediata solução através das garantias de imparcialidade dos magistrados judiciais. Na
minha opinião, a omissão nem chega a ser lacuna (em termos técnicos).
374
Lopes Cardoso, Da Deontologia do Árbitro, 1996, p. 35 e seguintes.
142
O regime legal é, pois, idêntico para o árbitro de parte e para o árbitro não designado por
uma das partes: todos estão obrigados a agir com imparcialidade.375
Esta conclusão é, ainda, sufragada por outras fontes do direito, nacionais e internacionais.
Antes de mais cumpre fazer referência ao ambiente jurídico internacional, com especial
incidência na tradição jurídica ocidental. Aqui a regra é claramente a da imparcialidade
de todos os árbitros. Desde a lei-modelo da UNCITRAL à lei sueca ou brasileira,
passando pela lei inglesa ou espanhola, a regra é a da imparcialidade dos árbitros,
independentemente do modo da sua designação.376 Assim o impõe também as Rules of
Ethics da IBA.
As fontes parecem, então, indicar o mesmo caminho: o de que não há motivo para não
exigir ao árbitro de parte a mesma imparcialidade que é exigida ao árbitro presidente.
375
Mário Raposo, Temas de Arbitragem Internacional, 2006, ponto 9.
376
Mário Raposo, Temas de Arbitragem Internacional, 2006, ponto 2.
377
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 237.
378
Agostinho Pereira de Miranda, Arbitragem voluntária e Deontologia, 2009, p. 120.
143
Embora haja clareza nas fontes quanto ao idêntico estatuto de todos os árbitros, há
diversas referências de que a prática não segue a teoria. É bem elucidativa a frase de
Mário Raposo: “Um dos mistérios da arbitragem estará precisamente em que um árbitro
unilateralmente designado passa a ser árbitro das duas partes.”379
Se bem percebo o que se passa na prática, estaremos num ponto intermédio entre estes
dois extremos – existe realmente a percepção de que o árbitro de parte não é um
mandatário de quem o nomeou, devendo agir com independência e imparcialidade. Essa
independência não está, porém, ao mesmo nível que a do árbitro-presidente. Se
quisermos, há uma ideia de que há graus de independência, que não é uma questão de
tudo ou nada. O árbitro de parte não é um mandatário da parte, não faz lobby junto do
árbitro presidente, mas está obrigado a garantir que a posição da parte que o nomeou é
devidamente conhecida e tomada em consideração.
Julgo que não – e a resposta negativa não tem a ver com qualquer hipocrisia que possa
subsistir. A imparcialidade e independência dos árbitros – de todos os árbitros – é
consequência directa das suas funções jurisdicionais. Mais: só o desempenho dessas
funções com independência e imparcialidade, que é como quem diz com integridade e
seriedade, permite que o Estado valide estes exercícios privados de jurisdição. O
desenvolvimento da arbitragem depende da sua credibilidade perante os cidadãos e
perante o Estado.
379
Mário Raposo, O Estatuto dos Árbitros, 2007, ponto 1.
144
sentença arbitral exige o respeito pelas regras do processo justo. E a primeira de todas
elas é, evidentemente, a imparcialidade do tribunal que decide o litígio.
380
A confidencialidade não é obrigatória na arbitragem, mas é a regra pelo menos na arbitragem
comercial internacional.
381
Bernardo Reis, O Estatuto dos árbitros – alguns aspectos, 2009, p. 19, refere ainda o
cumprimento da missão em prazo, a decisão válida e a não renúncia injustificada.
382
Lopes Cardoso, Da Deontologia do árbitro, 1996, p. 34, nota 6.
383
Por exemplo, as IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration, as Rules
of Ethics for International Arbitrators também da IBA. Disponível em www.ibanet.org.
145
Na ausência de regras para resolver a questão, qual deve ser o procedimento adoptado
caso uma das partes queira impugnar a designação de um dos árbitros?
Parece-me que o melhor é aplicar o regime da LAV/APA. É certo que esta não é uma lei
com a sua especial força de fonte de Direito, mas é sem dúvida um instrumento de
consensualização de regras proveniente da comunidade arbitral. É quase uma auto-
regulação. Em matérias sensíveis como esta, que estão no limiar do Direito e da
Deontologia, esta solução é ainda mais aconselhável.
384
Bernardo Reis, O Estatuto dos árbitros – alguns aspectos, 2009, p. 30.
146
durante todo o processo. Se durante o decurso do processo arbitral, ocorrer algum facto
que possa pôr em causa a independência do árbitro, este está obrigado a comunicá-lo às
partes e aos demais árbitros (artigo 13.º n.º2 LAV/APA).
Perante a revelação ou perante o conhecimento de factos não revelados, a parte que não
nomeou esse árbitro poderá recusar a sua designação, assim como o poderá requerer a
parte que o designou se os factos objecto de revelação não eram do seu conhecimento.
Esses factos terão, porém, de suscitar fundadas dúvidas sobre a independência do árbitro
(artigo 13.º n.º3 LAV/APA).
O projecto da APA, como aliás a Lei Modelo e os regulamentos arbitrais das instituições
mais conhecidas, não explicita que tipo de factos podem gerar as fundadas dúvidas. É,
como se disse já diversas vezes, uma área sensível, entre o Direito e a Deontologia, onde
a definição de regras muito concretas é impossível. A análise da independência terá
sempre de ser casuística. Ainda assim, alguns organismos tentaram a regulamentação
mais específica do que pode consistir estas fundadas dúvidas e estes documentos têm
servido de inspiração para decidir alguns casos.
385
Disponível em http://www.int-bar.org/images/downloads/guidelines%20text.pdf
147
membro de um tribunal arbitral anterior em conjunto com o advogado de uma das partes.
Por fim, a lista laranja contém situações que podem levantar dúvidas e, portanto, exigem
uma análise concreta. Por exemplo, o árbitro foi consultor nos últimos três anos de uma
das partes ou dois dos árbitros são sócios da mesma sociedade de advogados.
O Código Deontológico do Árbitro aprovado pela APA exige ao árbitro, no seu artigo 4.º
n.º2, que revele qualquer relação pessoal ou profissional com as partes e seus
representantes legais, qualquer interesse económico, directo ou indirecto, no objecto da
disputa; qualquer conhecimento prévio que possa ter tido da matéria em disputa.
Se, com fundamento no facto revelado ou em outro de que a parte tenha conhecimento,
for pedida a recusa do árbitro, o procedimento adoptado pela LAV/APA está regulado no
artigo 14.º. De acordo com o preceito, o pedido de recusa é decidido pelo tribunal
arbitral, com a participação do árbitro visado. A decisão do tribunal arbitral pode, depois,
ser objecto de impugnação junto do tribunal judicial.
Face ao actual direito positivo, não é possível aproveitar esta última parte da LAV/APA.
O sistema instituído pela nossa LAV é a da impugnação de todas as decisões apenas a
final. É isto que se encontra estabelecido no artigo 21.º n.º4 LAV para a decisão sobre
competência e é um afloramento da regra geral: a de que as decisões interlocutórias do
tribunal arbitral apenas são impugnáveis depois de proferida a sentença arbitral. O regime
da LAV/APA é o oposto, como se viu a propósito precisamente da questão da
competência. Aí permite-se a impugnação imediata da decisão que reconheça
competência ao tribunal arbitral (art. 18.º n.º9), é natural que igual regime valha para a
improcedência do pedido de recusa de árbitro.
À luz, porém, do nosso direito positivo, tal decisão, legitimamente tomada pelo tribunal
arbitral com todos os seus membros, só poderá ser impugnada a final. 386 O fundamento
será, naturalmente, a constituição irregular do tribunal arbitral.
386
Em sentido contrário, por aplicação do regime de tramitação do incidente do Código de
Processo Civil, Bernardo Reis, O Estatuto dos árbitros – alguns aspectos, 2009, p. 36.
148
A quase ausência de regras justifica-se na medida em que são escolhidas pelas partes ou
pelos árbitros, tendo como único limite os princípios fundamentais do processo justo. A
única baliza ao poder de conformação processual das partes são os princípios processuais
constantes do artigo 16.º LAV.
Antes, porém, de analisar as regras processuais, é necessário fazer uma breve referência
ao seu modo da escolha. O artigo 15.º LAV determina que as partes podem escolher a
tramitação processual desde que o façam até à aceitação do primeiro árbitro. As regras
devem constar de um escrito que pode ser a própria convenção arbitral ou ser posterior. O
acordo pode consistir na criação de um processo específico ou a simples remissão para
regulamentos de arbitragens de centros de arbitragem institucionalizados ou legislações
nacionais ou quaisquer outros instrumentos normativos (por exemplo, as Arbitration
Rules da Uncitral).
Na falta desta elaboração pelas partes, as regras são determinadas pelos árbitros que têm
as mesmas opções: criação de regras próprias, remissão para regras pré-estabelecidas.
Estas regras são mantidas no projecto de LAV da APA (artigo 30.º n.ºs 2 e 3).
A lei não estabelece em que momento devem os árbitros criar essas regras, nem o modo
de o fazer. Tal omissão só nos pode levar a concluir que a competência processual do
149
tribunal arbitral é permanente, isto é, que permanece durante toda a arbitragem. Claro que
é aconselhável a elaboração destas regras num momento inicial, na primeira reunião dos
árbitros ou dos árbitros com as partes. Dificilmente, aliás, se poderá prosseguir com o
processo arbitral sem a existência dessas regras. A sua falta pode gerar instabilidade grave
no processo arbitral, constituindo violação das regras processuais mínimas. E, logo, do
princípio do processo equitativo.
A doutrina tem sugerido a marcação de uma reunião preliminar entre árbitros e partes
precisamente para a escolha e elaboração das regras de tramitação processual. O
agendamento desta reunião é especialmente importante em casos em que as partes e os
árbitros provêm de ambientes culturais diferentes.387 Mas mesmo em arbitragem
doméstica, esta reunião pode fazer sentido, designadamente para evitar o recurso às
regras do processo civil.
Todavia, a realidade tem demonstrado que nem sempre são escolhidas regras para o caso.
Por um lado, na maioria dos casos as partes não seleccionam as regras antes de o litígio
ocorrer e, depois, quando ele surge, já não há disponibilidade para negociar. Por outro, os
árbitros têm muitas vezes a tentação de escolher regras processuais pré-definidas,
387
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p.330.
388
William Park, Arbitration’s protean nature, 2004, p. 1.
150
Faz sentido, pois, encontrar o melhor conjunto de regras processuais possíveis para o que
se antecipa venha a ser aquele conflito. Não só faz sentido, como parece ser um
imperativo ético dos árbitros.389
Esta criação de regras não significa, obviamente, uma incerteza quanto ao processo ou às
suas regras essenciais. Pelo contrário: a fixação inicial de regras claras e simples é uma
garantia de segurança e eficiência do processo arbitral.390
O projecto da APA estabelece no artigo 30.º n.º3 que os árbitros devem indicar a lei
processual subsidiariamente aplicável, visando com este normativo afastar em definitivo
a aplicação subsidiária automática do nosso Código de Processo Civil. De acordo com o
comentário constante do projecto391, com esta regra apenas será aplicável
subsidiariamente o Código de Processo Civil se o tribunal arbitral expressamente o disser.
389
Manuel Barrocas, Manual de Arbitragem, 2010, p. 384.
390
William Park, Arbitration’s protean nature, 2004, p. 3, chama a atenção para a insegurança que
uma excessiva discricionariedade dos árbitros pode gerar.
391
Nota 94.
151
que indique serem os árbitros os competentes para decidir dúvidas e lacunas desse
regulamento do que remeter para o nosso ou outro Código de Processo Civil. Esta
solução é seguramente mais conforme à arbitragem do que a sua alternativa.
É tempo, pois, de deixar o CPC e ponderar diversas soluções ao dispor das partes e do
tribunal em matéria de processo arbitral. A escolha até pode ser parecida com a
tramitação processual civil portuguesa, mas se assim for deve sê-lo por ser o processo
adequado e não por ignorância de outras possibilidades.
Este conhecimento de regras processuais começa pelo nosso próprio processo civil (que
tem também algo de positivo), mas tem de ir mais além. Ainda ao nível dos processos
judiciais, é útil conhecer o regime processual experimental (Decreto-Lei 108/2006, de 8
de Junho) e o regime do processo nos Julgados de Paz.
A nota mais marcante deste Regime é o dever de gestão processual estabelecido no seu
artigo 2.º. De acordo com essa regra, o juiz enquanto director do processo tem o dever de
adoptar a tramitação processual adequada à causa, adaptar o conteúdo e a forma dos actos
392
O regime foi alargado aos tribunais de Barreiro, Matosinhos e às Varas Cíveis do Porto pela
Portaria n.º 1244/99, de 13 de Outubro, que deveria ter entrado em vigor em 4 de Janeiro de 2010.
Esta Portaria foi, porém, revogada em 31 de Dezembro de 2009 (pela Portaria n.º 1460-B/2009,
de 31 de Dezembro), não se tendo, em consequência, concretizado esse alargamento. O RPE
mantém-se em vigor apenas nos tribunais de Almada, Seixal, Juízos Cíveis e Pequena Instância
Cível do Porto.
393
Mariana França Gouveia, Regime Processual Experimental, 2006, p. 25.
152
processuais ao fim que visam atingir, garantir que não são praticados actos inúteis e
adoptar os mecanismos de agilização processual previstos na lei.
Este dever de gestão processual reúne, num único normativo, poder de direcção e
princípio da adequação formal, previstos respectivamente nos artigos 265.º e 265.º-A
CPC. Mas acrescenta algo, estabelece um poder-dever que consiste na obrigação de o juiz
fazer uma aplicação criteriosa das regras processuais. O juiz fica obrigado a uma reflexão
crítica sobre toda a tramitação e todo o acto, tendo de os analisar em função do que é
mais adequado a atingir com rapidez e justiça a solução para aquele caso.394
O dever de gestão processual implica, assim, que as regras processuais podem ser
afastadas. Por essa razão, a tramitação processual constante deste diploma é reduzida e
simplificada. É interessante notar ainda o artigo 10.º RPE relativo à fase da condensação,
que permite ao juiz a escolha de uma entre várias alternativas: proferimento imediato de
despacho saneador, que pode assumir já a forma de sentença; convocar audiência
preliminar ou designar de imediato dia para audiência final. Em vez de uma regra única,
o preceito oferece uma lista de possibilidades que o juiz, face ao caso concreto,
escolherá.395
No Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial 398, por seu turno, não se prevê
qualquer poder deste género. Antes pelo contrário: a regra é o respeito pela tramitação
394
Mariana França Gouveia, Regime Processual Experimental, 2006, p. 31 e seguintes; Luís
Lameiras, Comentário ao Regime Processual Experimental, 2007, p. 29 e seguintes.
395
Mariana França Gouveia, Regime Processual Experimental, 2006, p. 104 e seguintes; Luís
Lameiras, Comentário ao Regime Processual Experimental, 2007, p. 98 e seguintes.
396
Versão de 2010, que entra em vigor em Janeiro de 2011. Disponível em www.uncitral.org.
397
Regulamento disponível em www.lcia.org.
398
Disponível em
http://www.acl.org.pt/Files/Documents/Regulamento%20de%20Arbitragem%20(2008).pdf
153
São estes os pontos do Regime Processual Experimental que poderão servir de inspiração
para a feitura de regras processuais arbitrais. A inovação deste Regime ainda vai até
outros pontos, como a agregação de acções (artigo 6.º RPE) ou a possibilidade de no
procedimento cautelar resolver em definitivo o caso (artigo 16.º RPE), mas estas são
regras que se não referem à matéria estritamente de tramitação processual e que, portanto,
não tem interesse analisar aqui.403
Quanto ao processo nos Julgados de Paz, encontra uma descrição detalhada do regime no
capítulo 6.4. infra. Esta tramitação processual muito simples pode ser interessante para os
processos menos complexos. Em geral, o processo nos Julgados de Paz comporta três
fases: apresentação da pretensão e defesa, mediação 404 e julgamento. Se por um lado, não
há fase de saneamento, por outro a fase das alegações iniciais decorre em simultâneo com
a fase da mediação. Esta inicia-se ao mesmo tempo que corre o prazo de contestação.
Toda a instrução é feita numa audiência final que termina com o julgamento simultâneo
402
Mariana França Gouveia, Regime Processual Experimental, 2006, p. 142 e seguintes; Luís
Lameiras, Comentário ao Regime Processual Experimental, 2007, p. 130 e seguintes.
403
Mariana França Gouveia, Regime Processual Experimental, 2006, p. 58 e 151 respectivamente
e seguintes; Luís Lameiras, Comentário ao Regime Processual Experimental, 2007, p. 44 e 21
respectivamente.
404
As partes podem previamente prescindir da fase da mediação – artigo 49.º LJP.
155
de facto e de direito (artigos 59.º e 60.º LJP). A prova pericial, que fugiria na tramitação
do Código de Processo Civil a este formalismo tão célere, não é admissível – artigo 59.º
n.º3 LJP. Se uma das partes a requerer, o processo é remetido para os tribunais judiciais.
O mesmo se verifica com outro tipo de incidentes, como as intervenções de terceiro ou as
modificações objectivas subsequentes (artigos 39.º, 41.º e 44.º LJP). A ideia é evidente:
ou o processo é simples ou não há lugar para ele nos Julgados de Paz.
Para além destes processos especiais que fogem (ou tentam fugir) à tradicional tramitação
e lógica processual civil, faz sentido analisar alguns regulamentos de centros de
arbitragem institucionalizada em Portugal, como os de arbitragem de consumo, quando
os casos sejam simples e as do Centro de Arbitragem Comercial 405 ou do Centro de
Arbitragem de Litígios Civis, Comerciais e Administrativos da Ordem dos Advogados. 406
Ao nível de instrumentos internacionais é importante conhecer os regulamentos da
Câmara de Comércio Internacional407 e do London Court of International Arbitration 408 e
as regras arbitrais da UNCITRAL (UNCITRAL Arbitration rules) 409. Em matéria de
prova, é ainda da maior utilidade consultar as regras da International Bar Association
sobre prova.410
411
Disponível em
http://www.uncitral.org/uncitral/en/uncitral_texts/arbitration/1996Notes_proceedings.html
412
Principles of Transnational Civil Procedure, publicado pela Cambridge University Press, em
2004; na Uniform Law Review, 2004 (4), p. 750 e seguintes; também disponível em
http://www.unidroit.org/English/principles/civilprocedure/main.htm
157
O artigo 9.º desses princípios refere que um processo será, por regra, organizado em três
fases: preliminar ou dos pedidos; intermédia; final. Na fase preliminar as partes
apresentam as suas pretensões e defesas e identificam a prova mais importante. Na fase
intermédia, o tribunal organiza o processo, estabelecendo um calendário para o mesmo,
aprecia as questões prévias, prepara a produção da prova; na fase final, a prova ainda não
produzida é-o numa audiência, que termina com a decisão do caso.
Não há pois, em termos genéricos, grande mistério na forma de tramitação dos processos.
É necessário que as partes digam o que querem, que o tribunal veja o que mais é
necessário fazer para proferir decisão e ordene ou organize essas outras diligências, que
essas diligências probatórias tenham lugar e que o tribunal decida. É essencialmente isto,
embora haja centenas de pequenas maneiras de o fazer.
Tendo em conta aquilo que interessa em especial a este capítulo, é preferível arrumar
estas pequenas opções em quatro áreas, correspondentes às comuns fases do processo:
alegações das partes, fase intermédia, produção de prova e julgamento, decisão. Separo
aqui produção de prova (e audiência de julgamento) de decisão porque, em arbitragem, é
normal a sua separação. Mas tal separação pode não se justificar sempre.
Em primeiro lugar, interessa ver que tipo de peças devem as partes apresentar, se
articulados típicos e complexos, se, sendo o caso mais simples, meros relatos resumidos
das pretensões. Deve ainda ver-se se faz sentido admitir respostas e em que termos. Pode,
pois, fixar-se o número de peças processuais, a admissibilidade de reconvenção e de
resposta à contestação. Pode ainda fixar-se os prazos de apresentação de cada uma destas
peças.413
São, desde logo, retratos de dois modelos processuais diferentes, o continental e o anglo-
saxónico. Qualquer um deles tem vantagens e desvantagens. O modelo da alteração em
qualquer momento tem o óbice da imprevisibilidade416, mas a vantagem de atingir maior
justiça e uma solução definitiva para o caso, evitando novo processo posterior.
É interessante notar que a LAV/APA adopta a norma contrária à da nossa tradição, por
directa influência do artigo 23.º da Lei Modelo. De acordo com o artigo 33.º n.º3 do
Projecto, “Salvo convenção das partes em contrário, qualquer das partes pode modificar
ou completar a sua petição ou a sua contestação no decurso do processo arbitral, a
menos que o tribunal entenda não dever admitir tal alteração em razão do atraso com
que é formulada, sem que para este haja justificação bastante.”
414
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 669.
415
E 20.º das Arbitration Rules.
416
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 659.
159
Esta fase pode ser oral ou escrita. No nosso Código de Processo Civil é oral, através da
audiência preliminar, mas sabe-se que na prática há muitos juízes a dispensar a sua
realização. Na maioria dos regulamentos arbitrais está prevista uma audiência oral nesta
fase. Mais do que uma audiência é uma reunião entre árbitros e partes para resolver o que
pode ser resolvido e para preparar o que se segue.418
Assim nos artigos 28.º e 29.º do Regulamento do CAC está prevista a audiência
preliminar que é conciliatória e de preparação de prova.
Nesta fase intermédia é importante fazer referência aos terms of reference previstos no
artigo 18.º do Regulamento de Arbitragem da CCI. Este artigo 18.º do Regulamento da
CCI tem como epígrafe para além dos «termos de referência», «calendarização
processual» (procedural timetable). De acordo com a norma, os termos de referência
consistem num documento assinado pelas partes e pelo tribunal que contém, para além da
identificação das partes, dos árbitros e do local da arbitragem, um sumário das suas
pretensões, uma lista de questões a tratar e as regras processuais aplicáveis. Este
documento tem como anexo uma calendarização, feita pelo tribunal arbitral, do processo
arbitral. Aqui se determina qual a duração prevista para cada fase seguinte e se fixam, por
exemplo, as datas das sessões do julgamento.419
A utilidade dos termos de referência não é inteiramente pacífica. Repare-se que num
sistema típico de common law em que não há cristalização do objecto do processo se não
a final, este levantamento das questões a tratar é, nesta fase prematuro. 420 A doutrina tem,
418
Filipe Alfaiate, A prova em arbitragem: perspectiva de direito comparado, 2009, p. 158
419
Filipe Alfaiate, A prova em arbitragem: perspective de direito comparado, 2009, p. 159.
420
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 667.
161
porém, chamado a atenção para algumas vantagens deste acto processual: permite a
clarificação das pretensões das partes, envolvendo-as e ajudando o tribunal a perceber o
que está em disputa; estabelece regras e prazos processuais logo à partida, criando
estabilidade no processo; gera diálogo entre as partes, o que só por si contribui para a
eficácia do processo.421 Interessa perceber a razão de ser dos diversos actos processuais,
as suas vantagens e desvantagens e, em função desse conhecimento, decidir.
Um aspecto comum aos vários textos sobre arbitragem é o da importância da fixação das
questões a decidir. Nas UNCITRAL Notes essa fixação é sugerida no ponto 11., embora
também seja assinalado que pode trazer rigidez ao processo arbitral. É importante, pois,
considerar-se a possibilidade da sua alteração.
Para além destes pontos a decidir (points of issue), não há tradição na arbitragem de
qualquer instrumento que se assemelhe à nossa base instrutória e factos assentes. A
separação entre factos provados e factos a provar e a elaboração de quesitos é de pensar
bem na arbitragem. Mais uma vez, na perspectiva de porquê e para quê face ao processo
em concreto. A vantagem deste instrumento é uma certa organização da audiência final.
As suas desvantagens são a extraordinária rigidez e a por vezes absurda obsessão em
separar matéria de facto de matéria de direito. Repare-se que nos instrumentos
internacionais o que se tenta fazer ao nível da organização é a fixação de questões a
decidir. Não a separação entre matéria de direito e matéria de facto e, posteriormente,
matéria provada e a provar.
A separação entre direito e facto é uma ficção, pois os factos que chegam ao processo
vêm já revestidos de intenção jurídica. Foram seleccionados por profissionais com o fim
de servirem à medida numa norma legal. Esta impossibilidade lógica – a da separação
absoluta entre facto e direito – é já uma aquisição da dogmática e da metodologia
jurídica.422 Seria importante retirar daí as suas consequências e avançar para um novo
método.
421
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 671.
422
Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, p. 65 e seguintes.
162
Em alternativa à base instrutória, o tribunal pode, por exemplo, elaborar uma lista de
questões que pretende que as testemunhas esclareçam.423
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
424
2004, p. 336.
163
quais eram os problemas que o tribunal entendia seriam decisivos. A prova e as alegações
foram, assim, repartidas por sete diferentes temas, ganhando-se enorme eficácia num
julgamento de grande complexidade.425
É claro que a separação das questões a decidir implica várias decisões de mérito, várias
sentenças parciais. A nossa LAV nada diz sobre esta questão, colocando dúvidas sobre a
sua admissibilidade. Já a LAV/APA prevê expressamente a possibilidade de decisões de
mérito parciais (artigo 42.º n.º 2).426
5.7.4. Prova
Entramos agora na matéria da prova, área de especial dificuldade quando jogam tradições
processuais muito diversas. Os sistemas continentais e anglo-saxónicos têm aqui práticas
diferentes, essencialmente relacionadas com a posição dos juízes e das partes na
produção da prova. O sistema de civil law admitiu tradicionalmente uma maior
intervenção do juiz e o anglo-saxónico uma completa adversaridade e entrega às partes da
produção de prova. Certo é, porém, que os sistemas nacionais são muito diferentes e que
esta generalização acaba por ser pouco correcta.427 Seja como for, é importante tomar em
consideração as muito variadas práticas e regras que existem em matéria de prova.
restringir aos meios de prova reconhecidos pela nossa legislação processual, sendo
portanto admissíveis meios de prova estranhos ao nosso processo civil.428
Não me parece, porém, que este raciocínio esteja correcto, na medida em que a inclusão
de regras sobre prova no direito material não é um dado adquirido. Isto é, a qualificação
destas regras como direito material não resulta automaticamente da sua inclusão no
Código Civil. A sua consagração em legislação civil deu-se, aliás, apenas com o Código
Civil de 1966.429 Repare-se, aliás, que o artigo 18.º LAV se refere a legislação processual
civil e não a legislação civil. É uma questão difícil, que implica a análise caso a caso de
cada norma. Por exemplo, as normas de ónus da prova são mais correctamente
qualificadas como normas de direito material, mas o mesmo não pode já dizer-se das
normas sobre admissibilidade em geral dos meios de prova ou sobre os valores tarifados
de certas provas.430
A LAV/APA no seu artigo 30.º n.º 4 é muito clara nesta matéria, estipulando que “os
poderes conferidos ao tribunal arbitral compreendem o de determinar a admissibilidade,
pertinência e valor de qualquer prova produzida ou a produzir.”
Esta parece-me, aliás, ser a melhor regra e, na dúvida sobre o sentido da actual LAV, deve
ser a regra adoptada. O artigo 18.º LAV deve, assim ser lido como permitindo ao tribunal
arbitral utilizar os meios de prova admitidos na legislação portuguesa, mas não deve ser
428
Filipe Alfaiate, A prova em arbitragem: perspective de direito comparado, 2009, p. 147;
Susana Larisma, A Prova por testemunhas na arbitragem internacional, 2009, p. 116; Lima
Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 147.
429
Mariana França Gouveia, A Prova, 2008, p. 333.
430
Mariana França Gouveia, A Prova, 2008, p. 333-4; Pedro Ferreira Múrias, Por uma
distribuição fundamentada do ónus da prova, 2000, p. 8.
165
lido como limitando os meios de prova admissíveis àqueles que a legislação portuguesa
admite.
Esta questão tem, porém, uma outra vertente problemática. Se o regulamento arbitral não
previr a prova não prevista no CPC poderá ainda tal prova ser utilizada pelo tribunal
arbitral? Quem entenda que o Código de Processo Civil é o regime aplicável
subsidiariamente ao processo arbitra, terá que dar resposta negativa a esta questão. 431
Parece-me, porém, que nem esse sentido tem o artigo 18.º LAV e, por isso, numa situação
de lacuna do regulamento arbitral caberá aos árbitros a solução do problema.
431
Susana Larisma, A Prova por testemunhas na arbitragem internacional, 2009, p. 117.
432
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 699; Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial
Arbitration, 2004, p. 352 e 364.
433
Susana Larisma, A Prova por testemunhas na arbitragem internacional, 2009, p. 114 e
seguintes.
166
O outro problema que interessa referir é o das limitações à prova pericial. O regime
processual civil português é extraordinariamente complexo e rígido no que diz respeito à
prova pericial. Não se admite, por exemplo, como prova pericial a apresentada pelas
partes sozinha ou isoladamente. Algo que é normal em arbitragem. Por outro lado, não é
também previsto no nosso sistema a existência de testemunhas-peritos, o que obriga a
uma produção rígida e complexa da prova pericial.
De acordo com o artigo 27.º das UNCITRAL Arbitration Rules, cada parte tem o ónus da
prova dos factos que fundamentam o seu pedido ou defesa. Cabe perguntar se os factos
notórios podem ser objecto de conhecimento pelo tribunal, se nada estiver previsto. De
acordo com a tradição arbitral, tal é possível, mas levantam-se dúvidas sobre o que é
facto notório.434
434
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 353.
435
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 356.
167
tribunal em milhares de documentos irrelevantes. Daí que este técnica seja por vezes
referida com a fishing expedition.
Há diversas práticas que têm sido utilizadas em arbitragem internacional para tentar
conciliar os dois métodos. O tribunal pode realizar reuniões com as partes, em separado
ou em conjunto, ou promover ainda que estas se reúnam para que cheguem a acordo
quanto às categorias de documentos a pedir. Outro método de gerir a produção de prova
documental é conhecido como a Tabela de Redfern, onde são colocados em colunas as
categorias de documentos pedidos, as razões para esse pedido, as razões apresentadas
pelo requerido para a recusa do pedido e, numa última coluna, é inscrita a decisão do
tribunal.436
Uma regra que procura um equilíbrio entre as duas tradições, sendo por isso importante
analisar, é o artigo 3.º das IBA Rules of Evidence. De acordo com esta regra, após a
junção voluntária de documentos pelas partes, cada uma delas pode submeter ao tribunal
um requerimento de produção (request to produce) de mais prova documental, indicando
quais os documentos que pretendem ver revelados e as razões desse pedido. À parte
contrária é conferido prazo para entregar os documentos ou apresentar oposição aos
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
436
2004, p. 358.
168
requeridos. O tribunal tem, ainda, o poder de requerer a qualquer uma das partes
documentos que entenda serem relevantes para a causa.
Filipe Alfaiate sugere, ainda, algumas soluções práticas e inovadoras, como por exemplo
a preparação conjunta de dossiers pelas partes.437
Depois da apresentação desses depoimentos, a parte contrária pode requerer qual ou quais
das testemunhas pretende que seja inquirida em audiência.
De acordo com o regime das IBA Rules (artigo 4.º n.º 4) o tribunal pode ele próprio
ordenar que os depoimentos sejam apresentados por escrito. De acordo com estas regras,
se for requerida a presença da testemunha na audiência, a sua falta injustificada implica a
não consideração do seu depoimento escrito (artigo 4.º n.º 8). 439 Há porém regras menos
apertadas, como a aplicável no London Court of International Arbitration. De acordo com
o artigo 20.4 das suas Rules, a não comparência da testemunha pode implicar a
diminuição do peso probatório do seu depoimento.440
Repare-se, porém, que o eventual acordo das partes sobre a não necessidade de
comparência das testemunhas em audiência não deve ser interpretado como aceitação da
veracidade dos factos descritos pela testemunha no depoimento escrito.441
437
Filipe Alfaiate, A prova em arbitragem: perspectiva de direito comparado, 2009, p. 168.
438
Susana Larisma, A Prova por testemunhas na arbitragem internacional, 2009, p. 130.
439
Filipe Alfaiate, A prova em arbitragem: perspectiva de direito comparado, 2009, p. 169;
Susana Larisma, A Prova por testemunhas na arbitragem internacional, 2009, p. 134.
440
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 363-4.
441
Artigo 4.º n.º2 IBA Rules. Filipe Alfaiate, A prova em arbitragem: perspectiva de direito
comparado, 2009, p. 170; Susana Larisma, A Prova por testemunhas na arbitragem
internacional, 2009, p. 134.
169
A LAV/APA, no seu artigo 37.º, admite a nomeação de perito pelo tribunal, regra
importante pois sendo a arbitragem um processo privado poderiam colocar-se dúvidas
sobre a possibilidade de tal iniciativa oficiosa. Mas este preceito não exclui, obviamente,
outras formas de produção da prova pericial.
O tribunal pode criar um sistema misto, permitindo às partes que tentem chegar a acordo
sobre um perito, apenas o nomeando se estas não conseguirem concordar num. O tribunal
pode também pedir a colaboração das partes na preparação da produção de prova pelos
peritos, designadamente através da elaboração de questões a considerar.
Mais uma vez, os artigos 5º e 6.º das IBA Rules podem ajudar na procura de sistemas
adequados. Neste regime, são distintos os peritos nomeados pelas partes (regulados pelas
regras do artigo 5º) e os peritos nomeados pelo tribunal (regulados pelo artigo 6º). Quanto
aos primeiros, após apresentarem relatórios escritos, o tribunal pode ordenar que se
reúnam para tentar alcançarem acordo sobre pontos em que assumiram posições diversas.
Quanto ao perito nomeado pelo tribunal, após a sua nomeação, passa a falar directamente
com as partes, pedindo-lhes os documentos ou os elementos que entender necessários. O
perito elabora depois um relatório que envia ao tribunal. As partes podem responder ao
relatório com relatórios de peritos por si nomeados. O perito do tribunal pode, se
requerido ou oficiosamente determinado, prestar declarações em audiência. O mesmo se
verifica com os peritos das partes.
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
442
2004, p. 369.
170
A prestação de depoimento em audiência pelo ou pelos peritos pode ser feita de diversos
modos. Pode ouvir-se os peritos depois de toda a produção de prova. Pode ouvir-se os
peritos em simultâneo, sendo perguntados sobre as mesmas questões. Uma outra técnica
utilizada é a inquirição e contra-inquirição dos peritos pelas partes e, depois, a elaboração
de uma lista de temas controvertidos que serão discutidos entre peritos e tribunal,
finalizando-se com uma nova rodada de perguntas pelos advogados das partes. Este
método é conhecido como conferência.443
Por último, pode ser necessário lidar com uma inspecção judicial, ou mais
adequadamente designada, arbitral. A maioria dos instrumentos de arbitragem mais
conhecidos não contém regras sobre inspecção pelos árbitros. Será, aliás, uma diligência
probatória pouco frequente dado o seu elevado custo. 444 O mais frequente e previsto é ser
o perito a realizar essas inspecções, encontrando-se regras sobre o seu livre acesso aos
bens necessários. Assim o refere o artigo 21.1.(b) LCIA, o artigo 26 da Lei-Modelo
UNCITRAL, etc..
Para que as partes possam deduzir este pedido junto dos tribunais judiciais têm de
requerer autorização prévia ao tribunal arbitral. A razão de ser da necessidade de
443
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 371.
444
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 373.
171
O problema inverso é o da reacção da parte em caso de recusa desta autorização por parte
do tribunal arbitral. É seguramente objecto de recurso, mas já é duvidoso que possa ser
causa de anulação da sentença arbitral. João Raposo entende que não é causa de anulação
por não estar consagrado no artigo 27.º LAV. 446 Parece-me, porém, que terá de ser
entendido como causa de anulação se a recusa implicar uma violação ao princípio do
processo equitativo na sua modalidade de direito à prova. Nestes casos, passando o vicio
o crivo do artigo 27.º n.º1 c), a influência decisiva no processo, haverá causa de anulação.
A prova é produzida junto do tribunal judicial através de acção proposta com esse único
fim. Concluída a diligência, os resultados probatórios são enviados ao tribunal arbitral
que os apreciará em conjunto com os restantes.
Falta apenas tratar alguns aspectos específicos relativos à audiência final. Antes de mais é
necessário pensar se esta é necessária – se toda a prova for documental ou se a questão
em litígio for exclusivamente jurídica, não é necessária uma audiência. Não há nenhum
princípio do processo equitativo que o obrigue.
A organização administrativa das audiências pode não ser tarefa fácil. É necessário um
local adequado, com espaço para todos, designadamente salas de reuniões mais pequenas
445
João Raposo, A Intervenção do Tribunal Judicial na Arbitragem: Nomeação de Árbitros e
Produção de Prova, in I Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria
Portuguesa, 2008, p. 123.
446
João Raposo, A Intervenção do Tribunal Judicial na Arbitragem: Nomeação de Árbitros e
Produção de Prova, in I Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria
Portuguesa, 2008, p. 124.
172
Para além destas questões interessa determinar se a audiência decorrerá em dias seguidos
ou não, se haverá tempos limite para inquirir testemunhas e para alegações finais.
Por último, no que diz respeito à decisão arbitral, há que decidir se há separação entre
decisão de matéria de facto e de direito, se é dita oralmente ou enviada às partes
posteriormente. Sendo obrigatória na lei portuguesa a fundamentação da decisão, pode
ser ainda importante pensar que tipo de fundamentação será exigida.
Estes são apenas exemplos, algumas notas e sugestões que pecam em simultâneo por
excesso e por defeito daquilo que pode ser objecto de ponderação no momento de
elaborar as regras processuais na arbitragem ad hoc, quer o seja pelas partes, quer pelos
árbitros. É evidente que quanto maior for o conhecimento e, sobretudo, a experiência
melhor serão elaboradas estas regras. Poderá, ainda, depender do estilo dos árbitros e da
sua compreensão do litígio e da melhor forma de o abordar.
447
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 934.
448
No nosso ordenamento jurídico, para que possa não ser anulada.
449
Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 2006, p. 107.
174
450
Publicado na Uniform Law Review, 2004 (4), p. 750 e seguintes, também disponível em
http://www.unidroit.org/English/principles/civilprocedure/main.htm
451
Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 2006, p. 109 e seguintes.
452
Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 2006, p. 118-9.
453
Teixeira de Sousa unifica contraditório e igualdade de armas no mesmo princípio da igualdade
das partes – Teixeira de Sousa, Introdução ao processo civil, 2000, p. 29.
454
Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 2006, p. 92.
175
Estas são, porém, regras ainda não em vigor em Portugal. Face ao actual silêncio da LAV
sobre esta questão, é necessário ponderar a melhor solução.
Julgo que se deve distinguir duas situações. Uma primeira em que há aplicação das regras
do Código de Processo Civil ou outros diplomas processuais (por exemplo o Código de
Processo de Trabalho) e situações em que tal remissão não existe. Nos casos em que a
remissão não existe, vigorando as regras escolhidas pelas partes ou pelos árbitros, não se
pode aplicar o efeito cominatório semi-pleno. Não havendo base legal que o permita e
tratando-se de um meio de prova de âmbito processual, violaria o princípio do processo
justo considerá-lo. Nas outras situações, se as partes escolhem essa regra, ainda que
indirectamente (através de remissão), julgo que é possível aplicar esse efeito
cominatório.456
455
Gaillard e Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration,
1999, p. 663.
456
É esta a regra da Lei Modelo da UNCITRAL – artigo 25.ºb).
176
Por último, o artigo 16.º LAV estabelece o princípio da prévia audição das partes antes da
decisão final. Não é fácil encontrar um sentido autónomo para este normativo. De acordo,
aliás, com Lebre de Freitas ele integra ainda o direito de defesa, já referido na alínea b)
deste preceito.458 Se assim for, a prévia audição a que o preceito se refere não significa
imediatamente anterior à decisão, mas simplesmente anterior à decisão final. Esta prévia
audição não pode ser confundida com o direito a tomar conhecimento e ser ouvido sobre
os actos do processo que possam influenciar a decisão final. Aqui do que se trata é de
contraditório, e esse princípio está autonomamente consagrado no artigo 16.º c). A alínea
d) do artigo 16.º parece, pois, não ter qualquer utilidade. E, em coerência e bem, é
eliminada pela LAV/APA (artigo 30.º n.º1).
5. 8. Arbitragens complexas
457
Processo n.º 04B2190, Caso Comissão Paritária.
458
Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2004, p. 181, nota 28.
177
Por essa razão – a fonte contratual da jurisdição arbitral – enquadram-se neste capítulo
das arbitragens complexas situações em que se discute a vinculação da convenção de
arbitragem a não signatários. Esta extensão pode implicar a substituição da pessoa
inicialmente vinculada (e então não há pluralidade subjectiva) ou alargar a outras pessoas,
mantendo-se a vinculação subjectiva inicial (e há, então, pluralidade). A primeira
situação, se ocorrer no decurso do processo, implicará uma intervenção de terceiros ou
uma habilitação.
2006, p. 111.
178
O problema da extensão da convenção arbitral a terceiros não será tratado neste capítulo a
não ser quando necessário para a resolução dos problemas aqui abordados. Cuidarei então
apenas de pluralidades subjectivas, em especial de duas questões: constituição do tribunal
arbitral e intervenção de terceiros. Antes destas, porém, é necessário tratar da própria
admissibilidade das pluralidades subjectivas na arbitragem face ao direito positivo
português.
Recorde-se que a arbitragem foi construída pensando em relações jurídicas com duas
partes. Com este pano de fundo se estipulam as regras da constituição do tribunal arbitral
– o artigo 7.º n.º2 LAV tem como pressuposto que há apenas uma parte de cada lado. A
regra que estabelece é inaplicável a uma situação de coligação ou de pluralidade
subjectiva subsidiária (artigo 31.º-B CPC).
Já a LAV/APA que reserva dois artigos para os problemas decorrentes das pluralidades
subjectivas. Trata, no artigo 11.º, do regime da designação de árbitros e, no artigo 36.º, da
intervenção de terceiros. Os preceitos não estabelecem expressamente a admissibilidade
das figuras da pluralidade subjectiva, mas pressupõem, obviamente, a sua aceitação.
461
Carla Gonçalves Borges, Pluralidade de partes e intervenção de terceiros na arbitragem,
2006, p. 122 e seguintes.
462
Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations, 2005, p. 7-99; Manuel Barrocas, Manual de
Arbitragem, 2010, p. 176 e seguintes.
179
Na verdade, não é de todo evidente a sua admissibilidade. 464 E não é evidente mesmo nos
casos em que exista convenção de arbitragem entre todas as possíveis partes. Nestes
casos poderá haver sempre pluralidade, seja ela litisconsórcio, coligação ou pluralidade
subjectiva subsidiária?
Botelho da Silva defende outro, mais próximo da raiz contratual da arbitragem. Como é
usual dizer-se, as partes têm o direito a arbitrar com quem querem e como querem. A ser
assim, teria de retirar-se da interpretação da convenção de arbitragem que foi vontade das
partes querer um único processo com todos ou vários.466
Parece-me que o ideal é conjugar este dois critérios. Os árbitros terão de analisar se, à luz
da convenção arbitral, as partes quiserem ou não afastar467 o julgamento único de todas as
questões e, ainda, se tal julgamento é útil para a eficiência daquele processo. 468 Claro que
a análise de qualquer um dos requisitos fica na dependência da alegação das partes, na
medida em que está dentro do seu campo de disponibilidade.
O que dissemos até agora não resolve, porém, todos os problemas. Podemos dizer que
são admissíveis as pluralidades subjectivas e encontrar um critério para a sua
admissibilidade, mas o certo é que a LAV não regula um único aspecto do seu regime. E é
necessário encontrar um regime aplicável a estes problemas. Há aqui, novamente, três
opções: ou aplicar o regime do CPC; ou aplicar o regime da LAV/APA; ou estabelecer
um regime diferente destes.
A primeira solução, defendida por Lebre de Freitas469, não me parece ser a mais
adequada, dada essencialmente a natureza voluntária da jurisdição arbitral. 470 As
dificuldade inerentes ao âmbito subjectivo da convenção, que determinam naturalmente a
competência do tribunal, somadas às dificuldades inerentes, nas pluralidades subjectivas,
em assegurar a igualdade das partes na constituição do tribunal e ainda na própria
466
Manuel Botelho da Silva, Pluralidade de Partes em Arbitragens Voluntárias, 2002, p. 515.
467
Não concordo com a posição de Manuel Botelho da Silva, Pluralidade de Partes em
Arbitragens Voluntárias, 2002, p. 516, quando exige “que da interpretação das duas convenções
resulte expressa e literalmente a vontade de dirimir conjuntamente, num único processo arbitral
multipartido, a matéria emergente das duas relações contratuais…”. José Lebre de Freitas
Intervenção de terceiros em processo arbitral, 2010, p. 187, afirma que não pode presumir-se que
a celebração da convenção em contratos distintos interligados entre si implica vontade de
tratamento jurisdicional separado dos casos.
468
Manuel Barrocas, Manual de Arbitragem, 2010, p. 212.
469
José Lebre de Freitas, Intervenção de terceiros em processo arbitral, 2010, p. 184.
470
Manuel Barrocas, Manual de Arbitragem, 2010, p. 183. Cfr., ainda, nota 114 da LAV/APA.
181
Parece-me realmente que o regime aplicável não é o do Código de Processo Civil, mas
outro que se construa de acordo com os princípios próprios da arbitragem. Neste
pressuposto, e face à lacuna da LAV actual, parece-me útil testar se as regras contidas na
LAV/APA podem ser já entendidas como direito positivo entre nós. Faremos esta análise
a partir de cada um dos temas colocados pelas arbitragens complexas.
O caso Dutco fez mudar a doutrina e até alguns regulamentos de instituições arbitrais
como a CCI, a American Arbitration Association e o London Court of International
Arbitration. Em 1998 entra em vigor o novo Regulamento CCI e é incluída uma norma
sobre pluralidade de partes na constituição do tribunal.473
471
Revue de l’Arbitrage, 1992 (N.º3), p. 470-2.
472
Sampaio Caramelo, Anotação ao Acórdão d Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Maio de
2004, 2004, p. 341 e seguintes; Miguel Pinto Cardoso e Carla Borges, Constituição do tribunal
arbitral em arbitragens multipartes, 2010, p. 141-3.
473
Sampaio Caramelo, Anotação ao Acórdão d Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Maio de
2004, 2004, p. 345; Manuel Botelho da Silva, Pluralidade de Partes em Arbitragens Voluntárias,
2002, p. 504.
182
Neste mesmo sentido vai ainda o novo Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial,
ao estipular no artigo 8.º. Estipula como regra que o presidente efectua a designação do
árbitro que deveria ter sido indicado pela parte plural. Neste caso, porém, o presidente
tem sempre a possibilidade de indicar todos os membros do tribunal arbitral, substituindo
até uma nomeação já feita.475
A Autora pediu então ao tribunal da Relação que indicasse o árbitro que as rés deveriam
designar, o que este fez. O tribunal arbitral, assim constituído, iniciou a acção arbitral.
Uma das rés recusou participar no procedimento e propôs esta acção em que pede a
declaração de ilegalidade do tribunal.
474
Sampaio Caramelo, Anotação ao Acórdão d Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Maio de
2004, 2004, p. 346; Miguel Pinto Cardoso e Carla Borges, Constituição do tribunal arbitral em
arbitragens multipartes, 2010, p. 144.
475
; Miguel Pinto Cardoso e Carla Borges, Constituição do tribunal arbitral em arbitragens
multipartes, 2010, p. 145.
476
RL, 18 de Maio de 2004, Proc. n.º 3094/2004-7
183
Embora este último argumento – que ditou a solução do Acórdão – seja correcto, o
primeiro não corresponde aquilo que tem vindo a ser nacional e internacionalmente
aceite.477
Como se disse já, a LAV não contém qualquer regra sobre a questão em análise. Em
arbitragem institucionalizada o problema pode estar resolvido, se previsto no respectivo
regulamento. Em arbitragem ad hoc é necessário encontrar uma solução.
O que se pretende exactamente com esta expressão não é inteiramente claro. Parece-me
que útil importar a posição de António Sampaio Caramelo a este propósito, tendo em
conta que é um dos (o principal) autores materiais da proposta. O autor refere-se aos
interesses conflituantes na Anotação ao Acórdão Teleweb, configurando aí a situação da
coligação como a típica em que existem ou podem existir esses conflitos de interesses. 478
Mais especificamente, já em comentário a este artigo 11.º LAV/APA, Sampaio Caramelo
explica que só em situações que justifiquem a designação de todos os árbitros pelo
tribunal judicial tal deve acontecer. Porque a permitir-se a nomeação dos três árbitros por
tribunal, está a negar-se o direito à parte (plural ou singular) que o nomeou, o que não
pode ser decidido pela sua contra-parte. 479 Não parece aqui fazer já a distinção entre
coligação e litisconsórcio.
Esta restrição do tribunal judicial só poder nomear a totalidade dos árbitros quando no
interior da parte plural haja interesses conflituantes não consta do Regulamento da CCI,
nem do CAC. Em comentário à norma do Regulamento CCI, Derains e Schwartz
477
Sampaio Caramelo, Anotação ao Acórdão d Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Maio de
2004, 2004, p. 350-1.
478
Sampaio Caramelo, Anotação ao Acórdão d Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Maio de
2004, 2004, p. 350.
479
António Sampaio Caramelo, A Reforma da lei de arbitragem voluntária, 2009, p. 23.
184
A opção da discricionariedade do juiz é uma boa opção, mas não é a seguida pela
LAV/APA. Nos termos desta, como se disse, o tribunal só nomeará todos os árbitros
quando se demonstre que a parte plural que falhou a nomeação tem entre si interesses
conflituantes.
O interesse que esta opção mais restrita visa defender – o do direito à nomeação de
árbitro – não encontra justificação nas características essenciais do processo arbitral. Isto
é, a possibilidade de as partes designarem árbitros não deriva de qualquer princípio
irrevogável do Direito. Pelo contrário, o que é irrevogável é a independência e
imparcialidade dos árbitros, algo que é de difícil compatibilização sobretudo prática, com
esta nomeação.482
O que é essencial é que o tribunal arbitral seja independente e imparcial e não que as
partes possam influir na sua constituição. É evidente que uma característica pode ser a
consequência directa da forma da designação, mas o modo normal de designação não é o
único que assegura essa natureza jurisdicional ao painel de juízes-árbitros. Ora, se o
modo tradicional de designação se traduz, no caso concreto, numa dificuldade de garantir
480
Yves Derains e Eric A. Schwartz, A Guide to the ICC Rules of Arbitration, 2005, p. 182. Cfr.
ainda Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations, 2005, p. 202 e 206-7, onde o Autor defende que
um consórcio é uma parte só, não tendo por isso direito a indicar o seu árbitro.
481
Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations, 2005, p. 39-47.
482
Manuel Botelho da Silva, Pluralidade de Partes em Arbitragens Voluntárias, 2002, p. 509.
185
Assim, face à lacuna da LAV quanto a estas situações julgo preferível adoptar a regra
internacionalmente aceite da nomeação integral do tribunal arbitral caso a parte plural
falhe a nomeação conjunta do seu árbitro.483
483
Parece também seguir esta posição, embora com referência directa ao artigo 12.º n.º4, Manuel
Barrocas, Manual de Arbitragem, 2010, p. 207.
484
Sampaio Caramelo, A reforma da lei da arbitragem voluntária, 2009, p. 29.
186
Antes de mais, como já diversas vezes se deixou dito, para que sejam admissíveis as
pluralidades é necessária a existência de convenção de arbitragem entre todos os
intervenientes. As razões desta exigência são conhecidas, não valendo agora repeti-las. A
LAV/APA no seu artigo 36.º n.º1, estabelece a necessidade de convenção, permitindo,
porém que essa existência derive de uma adesão posterior. Neste caso, porém, é
necessário o consentimento de todas as partes primitivas da convenção de arbitragem.
Tenho algumas dúvidas sobre a utilidade destas menções, até porque podem restringir –
sem o pretender – a possibilidade de, por via das regras contratuais, se alargar a certas
pessoas a vinculação decorrente de uma convenção de arbitragem. Estes são problemas
contratuais, a que se deve aplicar as regras correspectivas. Nem há necessidade de criar
regras especiais para a arbitragem porque as preocupações são as mesmas: garantir a
autonomia privada, respeitar a vontade das partes.
O artigo 36.º LAV/APA, agora no seu artigo 2.º, estabelece que a intervenção só é
admitida se o terceiro aceitar a constituição do tribunal arbitral. Essa aceitação é
presumida caso se trate de intervenção espontânea.
É, mais uma vez, uma questão duvidosa na doutrina que tem tratado estas questões.
Manuel Botelho da Silva admite, começando por referir que este é um dos problemas da
pluralidade subjectiva sucessiva, que é sempre possível recompor o tribunal de acordo
com os princípios do processo equitativo, em especial a imparcialidade dos árbitros.
Há aqui duas questões diferentes, uma primeira do momento até quando é admissível a
intervenção, uma segunda relativa às consequências dessa intervenção caso seja admitida.
Esta regra justificar-se-á., provavelmente, por uma influência da jurisprudência da CCI – ver
485
Esta norma parece ser algo contraditória com a anterior. Aqui obriga-se que se assegure a
igualdade das partes na constituição do tribunal arbitral, ali obriga-se a manter a
composição do tribunal arbitral como se encontrava no momento da intervenção.
A intervenção sucessiva coloca ainda outra questão, talvez mais importante: a de saber
quando são as intervenções admissíveis. Mais uma vez, a LAV nada regula nesta matéria.
486
Este preceito não estava no primeiro projecto da LAV/APA e a sua compreensão não é
inteiramente fácil. Repare-se: se há regulamento institucional arbitral é este que deve regular a
intervenção de terceiros aceitando-a quando entender. Por outro lado, estabelecer a restrição de
intervenções de terceiros anteriores à constituição do tribunal arbitral em arbitragem ad hoc (que
a norma implica) não é necessário, nem me parece útil. É certo que em arbitragens ad hoc o
processo arbitral se inicia com a constituição do tribunal, pelo que nem se vislumbra como
poderia haver intervenções antes dessa constituição. Mas, como estamos no âmbito da autonomia
privada, onde a imaginação frutifica, não vejo por que proibir.
188
A proposta da APA estabelece dois requisitos para que sejam admissíveis as intervenções:
não perturbação do andamento do processo e razões de relevo que justifiquem
intervenção.
Em conclusão quanto a esta questão e procurando uma solução face ao actual Direito
positivo, julgo ser mais prudente exigir o consentimento de todas as partes envolvidas
para a intervenção de terceiros. Caso a LAV/APA seja adoptada pelo Governo com o
texto actualmente conhecido, então a regra será a da possibilidade de intervenção mesmo
com oposição de alguma ou de ambas as partes.
A Proposta identifica três situações em que entende estarem reunidos estes pressupostos:
litisconsórcio (voluntário e necessário, activo ou passivo); oposição; intervenção
acessória provocada.
487
Manuel Botelho da Silva, Pluralidade de Partes em Arbitragens Voluntárias, 2002, p. 532.
488
José Lebre de Freitas, Intervenção de terceiros em processo arbitral, 2010, p. 188.
489
Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations, 2005, p. 167.
490
Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations, 2005, p. 171-177.
491
Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations, 2005, p. 177, nota 431, relativamente a Inglaterra.
492
Carla Gonçalves Borges, Pluralidade de partes e intervenção de terceiros na arbitragem,
2006, p. 121.
189
493
Em arbitragens complexas também é fruto de discussão o âmbito objectivo do caso julgado –
cfr. Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations, 2005, p. 246 e seguintes.
494
José Lebre de Freitas, Intervenção de terceiros em processo arbitral, 2010, p. 184.
190
O requisito que Lebre de Freitas exige – que a citação seja feita pela parte que requereu a
intervenção – resulta de analogia com o meio de citação na arbitragem. Esta resulta,
afinal, de duas notificações – a que dá início à arbitragem nos termos do artigo 11.º LAV
(ou 33.º n.º1 LAV/APA) e a da petição inicial (artigo 16.º b) LAV e 33.º n.º2 LAV/APA).
Não me parece absolutamente necessário que seja a parte requerente a fazer essa citação,
embora me pareça mais confortável para os árbitros que assim seja.
Seja como for, havendo entre todos convenção de arbitragem é de admitir a extensão,
mesmo sem nenhuma norma que o refira expressamente (o que se verifica quer na actual
LAV, quer na LAV/APA). Repare-se que se está aqui a aplicar exactamente o mesmo
princípio de vinculação do primitivo demandado à arbitragem. Tendo a convenção de
arbitragem efeitos potestativos, qualquer dos seus subscritores pode dar início ao
processo arbitral sem que a parte contrária se possa opor. Ora tal efeito produz-se
evidentemente contra qualquer parte, seja ela parte primitiva ou não na arbitragem.
Assim, deve estender-se o efeito de caso julgado aos terceiros cuja intervenção tenha sido
provocada, independentemente de terem ou não tido efectiva intervenção no processo.
Desde que a estes terceiros seja dada a oportunidade de se defenderem, em igualdade
com as restantes partes da arbitragem, não há preclusão de nenhuma garantia que, em
termos de processo justo, impeça esta extensão.
e. Uma última nota para o litisconsórcio necessário. Como refere Lebre de Freitas, a não
submissão do terceiro em litisconsórcio necessário à arbitragem levará à ineficácia da
convenção arbitral e à sujeição de todas as partes à jurisdição estadual. 495 Esta será a
consequência apenas no caso em que a convenção arbitral não seja celebrada por todos os
litisconsortes. Caso o seja, o problema coloca-se de forma diversa. A acção terá de ser
proposta contra todos os litisconsortes inicial ou sucessivamente. Caso estes não
intervenham no processo arbitral, nada impede a eficácia plena da sentença arbitral.
Apenas no caso de os litisconsortes não terem sido chamados e, ainda assim, ter sido
proferida sentença arbitral, será possível uma nova acção entre todos (sem que haja caso
julgado) cuja sentença produzirá efeitos entre todos, retirando utilidade à primeira.
495
José Lebre de Freitas, Intervenção de terceiros em processo arbitral, 2010, p. 184.
191
O prazo para decisão é fixado livremente pelas partes, sendo de 6 meses na falta de
estipulação. Conta-se a partir da data de designação do último árbitro, podendo ser
prorrogado até ao dobro da sua duração inicial por acordo escrito das partes. Todas estas
regras constam do artigo 19.º LAV. É uma solução equilibrada para um problema mais
complicado do que à primeira vista poderia parecer.
Já a LAV/APA alarga este prazo supletivo para 12 meses – artigo 43.º n.º1 –, podendo
haver livre prorrogação por acordo das partes ou por decisão do tribunal arbitral. Neste
caso as partes poderão sempre, por acordo, pôr fim às prorrogações.
496
Raul Ventura, Convenção de Arbitragem, 1986, p. 407.
192
Este n.º 2 refere que os fundamentos de incompetência do tribunal arbitral, onde se inclui
todos os vícios ou factos de que possa resultar a ineficácia da convenção arbitral, têm de
ser alegados oportunamente. Quer dizer, portanto, que tem de ser alegado ainda no
decurso do processo arbitral e, pelo menos, dentro de um período razoável após o decurso
do prazo. Assim o tem entendido a jurisprudência. 497 Também foi já decidido que a
invocação da caducidade constitui abuso de direito em situações em que a atitude
processual das partes nada faria indicar a invocação dessa caducidade. 498 A circunstância
de tal norma não estar prevista na lei não implica que não se possa aplicar, na medida em
que estamos no âmbito da paralisação de direito consagrado positivamente precisamente
por o seu exercício violar a boa fé. A questão deve ser colocada no âmbito da ratio da
necessidade de existência de um prazo.
Trata-se, portanto, de uma regra de protecção das partes perante o tribunal. Esta razão de
ser impede a sua utilização abusiva por qualquer das partes. É típico a assunção de
manobras dilatórias pelo demandado com vista precisamente ao decurso do prazo.
497
Acórdão Relação do Porto de 8 de Maio de 1995, in Colectânea de Jurisprudência 1995, III,
206.
498
Acórdão STJ de 17 de Junho de 1998, Processo n.º 98B217, só disponível em sumário.
193
a constituição do tribunal arbitral, como na nossa lei, ou desde outros momentos, como
por exemplo, a audiência ou os terms of reference (artigo 18º Regulamento da CCI).499
Seguindo, porém, a tendência de que o prazo não deve ser um elemento de manipulação
pelas partes, os tribunais têm exigido alguns requisitos para além do seu simples decurso
para a anulação da sentença arbitral. Redfern e Hunter dão como exemplo uma decisão de
um tribunal de Nova Iorque que entendeu que a anulação por decurso do prazo dependia
de se demonstrar a existência de dano.500 Em Portugal, como se referiu, a jurisprudência
tem impedido a anulação quando entende que há abuso de direito.
b. Nos termos do artigo 22.º LAV as partes podem autorizar os árbitros a julgar segunda a
equidade.
499
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 456.
500
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 456.
194
haver, contudo, casos a respeito dos quais não é possível enunciar de modo correcto um
princípio universal.”501
Esta função rectificadora não se torna necessária por falha do legislador, mas pela própria
natureza da lei: “O erro não reside na lei nem no legislador, mas na natureza da coisa:
isso é simplesmente a matéria do que está exposto às acções humanas. Quando a lei
enuncia um princípio universal, e se verifiquem resultarem casos que vão contra essa
universalidade, nessa altura está certo que se rectifique o defeito, isto é, que se rectifique
o que o legislador deixou escapar e a respeito do que, por se pronunciar de modo
absoluto, terá errado. É isso o que o próprio legislador determinaria, se presenciasse o
caso ou viesse a tomar conhecimento da situação, rectificando, assim, a lei, a partir das
situações concretas que de cada vez se constituem. (...) A natureza da equidade é, então,
ser rectificadora do defeito da lei, defeito que resulta da sua característica universal.”502
As palavras claras do filósofo antigo têm, como não podia deixar de ser, sido objecto de
interpretação e alguma polémica. Uma leitura seca dos textos remete-nos para lá do
direito positivo, para uma conformação casuística do direito para além ou até contra o
direito legislado.503 Há, porém, quem sustente que falamos ainda de direito legislado, na
medida em que a equidade actua dentro do espírito do legislador – a ultrapassagem do
enunciado da regra é feita em nome do respeito mais profundo pela regra.504
A equidade passou para o direito romano, embora de forma mais complexa e sem uma
exacta correspondência. O aspecto a salientar são os mecanismos, de cariz mais ou menos
jurídicos, postos à disposição do pretor para a conformação do direito ao caso concreto
(Bona fides e bonum et aequuumi, por exemplo) que se traduziam num poder próximo do
legislativo na resolução do caso concreto. Mas tal perdeu-se também com o avançar do
império e consequente concentração de poderes no imperador.505
501
Aristóteles, Ética a Nicómaco, 2006, p. 129.
502
Aristóteles, Ética a Nicómaco, 2006, p. 130.
503
Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 1997, p. 122.
504
Machado Fontes, Súmula de uma Leitura do Conceito de Justiça no Livro V da Ética
Nicomaqueia de Aristóteles, 1998, p. 173.
505
Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, 1997, p. 113 e seguintes.
195
Esta flexibilidade na aplicação do direito seria posta em causa pelo advento das teorias
científicas que conduziram ao positivismo e que ainda hoje dominam a prática jurídica. 507
Adoptando as palavras de António Hespanha, “A evolução das ciências naturais e a sua
elevação a modelo epistemológico lançaram a convicção de que todo o saber válido se
devia basear na observação das coisas, da realidade empírica («posta», «positiva»). De
que a observação e a experiência deviam substituir a autoridade e a especulação
filosofante como fontes de saber. Este espírito atingiu o saber jurídico a partir das
primeiras décadas do século XIX.”508 O Direito foi erigido a ciência (a ciência jurídica),
dele devendo ser expurgados todos e quaisquer elementos não científicos ou não
comprováveis cientificamente. As várias formas de positivismo caracterizam-se pelo seu
empenho em banir toda a «metafísica» do mundo da ciência. 509 Assim, todas as
considerações valorativas, desde a moral à política, não poderiam ter qualquer
intervenção metodológica. É evidente que este espírito implicou também a expurgação da
equidade do discurso e da prática jurídica.
506
António Hespanha, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, 1998, p. 86.
507
Jonh Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, 1995, p. 417.
508
António Hespanha, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, 1998, p. 174.
509
Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 45.
510
António Manuel Hespanha, O Caleidoscópio do Direito, 2007, p. 51 e seguintes.
196
São defendidas duas noções de equidade: uma noção forte e uma noção fraca.
A noção fraca, mais propriamente referida como integrativa, caracteriza-se pela correcção
de injustiças da lei aquando da sua aplicação ao caso concreto, isto é, a equidade funciona
como elemento de conformação do direito estrito na sua concretização. É, ao fim e ao
cabo, a noção milenar de Aristóteles, de acordo com quem a própria natureza universal e
abstracta das regras legais implica a existência de um mecanismo corrector para se
encontrar a solução justa. A equidade funciona, assim e ainda, intra legem,
movimentando-se nos seus conceitos e valores, desistindo da sua aplicação apenas
quando a solução encontrada não se ajusta, em concreto, precisamente a esses conceitos e
valores.
511
Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 1997, p. 113 e seguintes e 493. Sobre a escola
de Coimbra cfr., por todos, Alexandre Dias Pereira, Da Equidade (Fragmentos), 2004, p. 365.
512
Tomamos como base essencialmente o pensamento de António Hespanha, aqui muito
influenciado pela teoria do sistema auto-poiético de Niklas Luhman. António Manuel Hespanha,
O Caleidoscópio do Direito, 2007, p. 69 e seguinte e 172 e seguintes.
197
É difícil saber qual a noção de equidade que o Direito Português adoptou. Sabe-se que o
tempo do Código Civil foi marcado por uma visão positivista do Direito. Ainda assim há
diversas referências à equidade em diversos preceitos legais, em número, aliás, bastante
razoável.
Podemos dividir essas referências em dois grupos. Um primeiro em que a equidade surge
como um critério de decisão no âmbito de um concreto problema substantivo, inserido,
portanto, na aplicação do direito estrito. Um segundo, em que a equidade surge como
critério único de decisão.
Da análise dos preceitos que inserimos no primeiro grupo, podemos, porém, distinguir
ainda utilizações diversas da equidade.
Fazem esta utilização os seguintes artigos: 283.º (negócio usurário), 400.º (determinação
da prestação), 437.º (modificação do contrato por alteração das circunstâncias), 462.º
(cooperação de várias pessoas na promessa unilateral), 494.º (medida da indemnização
513
Freitas do Amaral, Fausto de Quadros e Vieira de Andrade, Aspectos Jurídicos da Empreitada
de Obras Públicas, 2002, p. 33-35; Menezes Cordeiro, A Decisão segundo a Equidade, 1990, p.
267; Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, p. 159.
514
Freitas do Amaral, Fausto de Quadros e Vieira de Andrade, Aspectos Jurídicos da Empreitada
de Obras Públicas, 2002, p. 35; Menezes Cordeiro, A Decisão segundo a Equidade, 1990, p. 271;
José Luís Esquível, Os Contratos Administrativos e a Arbitragem, 2004, p. 277 e 286. Defendem,
porém, a acepção forte: Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, p. 162 e Lebre de
Freitas, Algumas Implicações da Natureza da Convenção de Arbitragem, 2002, p. 636.
198
em caso de mera culpa), 496.º (medida da indemnização por danos não patrimoniais),
566.º (valor da indemnização), 883.º (determinação do preço na compra e venda), 992.º
(determinação do quinhão do sócio de indústria), 1158.º (remuneração do mandatário) e
1215.º (indemnização do empreiteiro).
São situações em que o legislador reconhece que quaisquer critérios abstractos são
insuficientes para uma determinação justa dos montantes a condenar. Daí a remissão para
a justiça do caso concreto como forma de solucionar, da forma mais razoável possível, o
problema.
Igual utilização se encontra nas regras estabelecidas nos artigos 72.º (providências a
tomar em situações de nome idêntico) e 1407.º (administração da coisa comum), em
ambos os casos já, porém, com um âmbito maior. Agora não falamos apenas da
determinação de montantes, remunerações ou indemnizações, mas da administração da
coisa em compropriedade e de providências (no que isso tem de genérico) a adoptar
quando haja nome idêntico.515
Para lá destes preceitos, mas ainda no primeiro grupo, em que a equidade surge da
decisão no âmbito de um concreto problema substantivo, há a salientar utilizações da
equidade na própria previsão da norma, sendo, portanto, elemento constitutivo da posição
jurídica. Estas situações são muito raras no nosso direito legislado, encontrando-se no
Código Civil apenas duas: nos artigos 339.º e 812.º, em que a equidade participa já na
atribuição da compensação por danos provocados em estado de necessidade e na redução
da cláusula penal.
Por último, é importante referir o artigo 2016.º n.º2 CC, norma que permite a concessão
de alimentos ao cônjuge, que a eles não teria direito, por motivos de equidade. A
equidade faz aqui parte da previsão da norma, mas mais, permite alcançar um efeito
contrário ao obtido pela regra de direito estrito. É, sem dúvida, a situação em que o
Código Civil mais longe leva a função conformadora da equidade, mas é também – note-
se – o único.
515
Filipe Vaz Pinto, A Equidade, 2007, p. 16.
199
Parece evidente que neste primeiro grupo de situações, a equidade aparece sempre na sua
função conformadora ou integrativa. É critério de ajuste do direito estrito ao caso
concreto, em situações em que este se demite de encontrar critérios universais e
abstractos. Ou porque os não conhece ou porque entende mais adequado procurarem-se
no caso concreto.
José Luís Esquível estudou a noção de equidade acolhida pelo Regime Jurídico da
Empreitada das Obras Públicas. A diferença para preceitos idênticos, designadamente o
artigo 4.º do Código Civil, é que se trata de Direito Administrativo, ramo de Direito em
que é determinante o princípio da legalidade. Por isso, o Autor defende uma combinação
entre as funções que a equidade pode desempenhar e as exigências decorrentes da
legalidade administrativa. Posição que impõe, desde logo, a adopção de um conceito
integrativo de equidade. Assim, a equidade permite uma focalização mais intensa do caso
concreto, estando essencialmente relacionada com questões de natureza técnica ou de
apuramento de quantias monetárias devidas entre as partes. 517 Mas – atenção - não
prescinde da análise e aplicação do direito estrito. Só após a sua análise se pode operar a
conformação com o caso concreto.
Este aspecto - saber se o artigo 258.º n.º2 RJEOP permite a adopção da noção substitutiva
da equidade - é relevante, mesmo após a sua revogação. Porque a norma ainda se aplica
aos contratos celebrado antes da sua entrada em vigor e para se saber quais os limites da
remissão para a decisão segundo a equidade já no âmbito do novo Código de Contratação
516
Esta norma deixou de vigorar com a entrada em vigor em 30 de Julho de 2008 do novo Código
de Contratação Pública (Decreto-Lei 18/2008, de 29 de Janeiro), que não contém nenhuma regra
idêntica.
517
José Luís Esquível, Os Contratos Administrativos e a Arbitragem, 2004, p. 282 e seguintes.
200
Já nos artigos 4.º CC, 509.º CPC e 22.º LAV estes argumentos não colhem. É defensável
ver aí a consagração da acepção forte de equidade. É certo que a equidade enquanto fonte
geral de decisão – conforme referimos ser a tese da Escola de Coimbra – cria uma
insegurança e uma imprevisibilidade do Direito, que me parecem contraditórias com a
sua natureza. No entanto, nestes casos, são as próprias partes que a erigem enquanto
critério de decisão, pelo que faz sentido entender esta remissão na sua amplitude máxima
- para uma noção substitutiva. É deste modo que deve ser lida a referência à equidade no
artigo 22.º LAV.
c. Nos termos do artigo 20ª LAV, a decisão é tomada por maioria em deliberação em que
todos os árbitros têm de participar. Entende-se que o necessário não é a presença efectiva
de todos os árbitros, mas a sua regular convocação.518
518
Mário Raposo, A sentença arbitral, 2005, p. 2.
519
Colectânea de Jurisprudência, 2002, V, p. 69-71.
201
A lei manda que os árbitros assinem, embora admita que nem todos o façam. Se tal
acontecer e de acordo com a alínea g) do n.º1 do artigo 23.º LAV deve constar da
sentença a indicação dos árbitros que não puderam ou não quiseram assinar. Desde que o
número de assinaturas seja pelo menos igual ao da maioria dos árbitros (n.º 2 do artigo
23.º LAV) está garantida a regularidade da sentença.
O problema coloca-se quando falte a assinatura de um dos árbitros e não haja qualquer
menção da sentença à razão dessa falta. Tal questão foi tratada no Caso Comissão Arbitral
Paritária521 em que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu a acção de anulação de uma
sentença arbitral dessa Comissão em que faltava a assinatura de um dos seis árbitros.
Entendeu o Supremo Tribunal que não havia fundamento de anulação na medida em que
constavam as assinaturas da maioria dos árbitros.522
A decisão parece ser sensata, na medida em que é realmente excessivo 523 operar a
anulação da sentença e de todo o processo arbitral quando a maioria está assegurada. 524
Por outro lado, o que é importante, estando a maioria assegurada, é a identificação dos
árbitros, isto é, a exigência de assinatura relaciona-se com a identificação dos árbitros e
não com a sua adesão à sentença. Ora, tal identificação pode obter-se por diferente meio,
designadamente através de outros elementos do processo arbitral. Fora estes casos, os
problemas que podem surgir são já de irregularidade de constituição do tribunal arbitral
(como o Acórdão referido indica) ou de genuinidade da sentença.525
520
Mário Raposo, A sentença arbitral, 2005, p. 3; Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da
decisão arbitral, 1992, p. 937.
521
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 2004, Proc. n.º 04B2190.
522
É interessante que não tenha também reparado no número par de árbitros, em violação do
artigo 6.º LAV.
523
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 937
524
Lima Pinheiro, Arbitragem transnacional, 2005, p. 152.
525
Seja como for é necessário fazer aqui um reparo sobre a seriedade da arbitragem. O Estado não
pode validar exercícios jurisdicionais pouco ou nada transparentes e de legalidade muito
duvidosa. Este caso Comissão Paritária já foi tratado por causa do efeito cominatório; tem o
problema do número par de árbitros e para piorar um deles não assina a decisão, nem há qualquer
explicação sobre essa falta. É necessário ter muita cautela com este tipo de arbitragens, porque
202
d. A lei manda que a decisão seja depositada na secretaria do tribunal judicial do lugar da
arbitragem. Este depósito é notificado às partes e implica a extinção do poder
jurisdicional dos árbitros. Pode o depósito ser dispensado através de convenção das partes
ou em regulamento de arbitragem institucionalizada. As regras estão previstas nos artigos
24.º e 25.º LAV.
A caracterização jurídica do depósito depende das consequências que lhe estão associadas
em caso de não cumprimento da norma. O artigo 26.º LAV faz depender a força de caso
julgado desse depósito, pelo que ele tem sido considerado como condição de eficácia da
sentença arbitral.526 Tal foi o entendimento do Acórdão da Relação do Porto de 8 de Maio
de 1995527, que apreciou o mérito da acção por entender que, não estando a decisão
arbitral depositada, não se verificava caso julgado. Esta decisão é seguramente discutível,
na medida em que, se não havia caso julgado, haveria, então uma convenção arbitral
eficaz que implicaria a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral. É certo que
tal excepção parece não ter sido directamente alegada na acção (até porque já tinha
decorrido todo o processo arbitral), mas foi seguramente tacitamente invocada. É um caso
interessante, sem dúvida, e que permite no mínimo questionar a utilidade deste depósito.
sentença arbitral por um prazo mínimo de 5 anos (artigo 44.º n.º 4). Desaparece, portanto,
do projecto a referência a qualquer depósito.
Só é admissível a impugnação das decisões finais. Com isto quer-se abarcar não só a
sentença final como as decisões que impliquem a extinção da instância com fundamento
de forma e ainda as decisões de mérito parciais. Adoptando a terminologia de Lima
Pinheiro, são impugnáveis as decisões definitivas.530-531
A impugnação da sentença arbitral pode ser feita por três vias: acção de anulação, recurso
e oposição à execução. A possibilidade de impugnação com fundamento em simultâneo,
no mérito e na forma é algo original no panorama europeu e tem sido objecto de
críticas.532 No essencial a questão está em saber se deveria admitir apenas acção de
anulação, eliminando-se o recurso. Sendo o recurso renunciável, julgo que a crítica não é
relevante. Está na disponibilidade das partes o maior ou menor grau de vinculação à
arbitragem.
se não houver recurso. Isto verifica-se tanto nas situações em que a decisão é irrecorrível,
como nos casos em que não houve interposição de recurso. Assim, a parte pode escolher
entre propor acção de anulação ou interpor recurso. 533 Havendo, porém, acordo das partes
em atribuir a uma instância arbitral a competência para apreciar o recurso, mantém-se a
possibilidade de propositura de acção de anulação nos tribunais judiciais. Isto porque esta
cláusula implica a renúncia ao recurso junto dos tribunais judiciais.534
b. A LAV nada diz sobre a competência para apreciar a acção de anulação, mas essa
determinação não está isenta de dúvidas. É necessário analisar separadamente cada um
dos índices de competência.
533
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 993.
534
Lima Pinheiro, Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral, 2007, p. 5.
535
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 956.
205
áreas territoriais limitadas – as novas comarcas piloto do Alentejo Litoral, Baixo Vouga e
Grande Lisboa-Noroeste. Não se percebe, assim, se esta revogação se aplica apenas a
estas comarcas, se a todo o país. Trata-se de uma regra que não tem relação com a
restante LOFTJ, pelo que se deve entender que o preceito se encontra revogado em todo o
território nacional.
Revogada esta alínea, só haveria competência internacional dos tribunais portugueses nos
casos em que haja aplicação do princípio da coincidência ou da necessidade. Isto é, nas
situações em que a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras da
competência territorial estabelecidas na lei portuguesa e, ainda, quando o direito
invocado não possa tornar-se efectivo senão através da propositura de uma acção em
tribunal português (desde que existam elementos de conexão com a nossa ordem
jurídica).
Tendo em conta que este último índice é de rara aplicação, temos que apenas haveria
competência internacional dos tribunais portugueses para a acção de anulação de
sentença arbitral quando o réu fosse domiciliado em Portugal – artigo 85.º CPC. Haveria,
assim, uma forte redução da competência internacional nesta área e uma redução
arbitrária, na medida em que não se entende o porquê da distinção.
Será, assim, mais correcto manter a posição anterior – a de que os tribunais portugueses
são competentes para a acção de anulação de sentença arbitral proferida em arbitragem
localizada em Portugal. E há argumentos legais e doutrinais que sustentam esta
conclusão, mesmo sem o resguardo do artigo 65.º c) CPC. Em primeiro lugar, o artigo
37.º LAV manda aplicar a lei portuguesa às arbitragens localizadas em Portugal, donde se
retira logicamente que os tribunais portugueses serão os mais aptos a decidir estas acções.
Em segundo lugar, como veremos à frente, a doutrina tem defendido que o tribunal
territorialmente competente para a propositura da acção de anulação é o do local do
proferimento da sentença arbitral, por analogia com o artigo 90.º n.º2. Pelo que havendo
competência territorial, aplicar-se-ia o princípio da coincidência. Por último, é doutrina
206
Quanto às restantes arbitragens, há que separar as comarcas que estão sujeitas à nova
LOFTJ e as outras. Só há, porém, diferenças a assinalar (e afinal de pouca monta) em
relação à competência em razão da matéria.
No que diz respeito à competência territorial, o raciocínio mais simples seria aplicar, sem
qualquer especialidade, o artigo 85.º CPC, concluindo-se pela atribuição de competência
ao tribunal do domicílio do réu. A doutrina, porém, não parece muito satisfeita com esse
índice, defendendo como competente o tribunal do lugar do depósito da sentença arbitral
nos casos em que ela tenha de ser depositada. Paula Costa e Silva refere, ainda, que teria
sido preferível estabelecer para os restantes casos (em que o depósito foi dispensado) o
local do seu proferimento, como se fez para a acção de execução de sentença judicial.538
536
Alan Redfern e Martin Hunter, Law and Practice of International Commercial Arbitration,
2004, p. 507.
537
Mário Aroso de Almeida, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 2004, p.
396.
538
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 957.
207
internacional dos tribunais portugueses. Este resultado é, sem dúvida, o mais coerente
com as regras aplicáveis à arbitragem.
Assim, por exemplo, numa acção arbitral relativa a um contrato de trabalho, o tribunal
competente será o tribunal comum ou o de competência especializada laboral? Se
analisarmos o artigo 85.º da velha LOFTJ ou o artigo 118º da nova, não há qualquer
referência à acção de anulação de decisões arbitrais. Tratando-se de uma acção cível
caberá então na competência das varas (ou grande instância), juízos (ou média instância)
ou pequena instância cível em função do valor – artigos 97.º, 99.º e 101.º da velha LOFTJ
e 128.º a 130.º da nova.
É preciso chamar a atenção para o facto de a nova LOFTJ ter eliminado a competência
específica, tratando agora estes juízos como os juízos de competência especializada cível.
Deixou, portanto, de ser competência em razão da forma do processo, para ser um nível
de especialização dentro da área cível. As regras mantém-se, porém, com uma
formulação idêntica, tendo portanto carácter residual em relação aos restantes juízos de
competência especializada. Logo, o raciocínio mantém-se: não estando a acção de
anulação de sentença arbitral prevista na competência dos juízos de competência
especializada, deverá ser atribuída aos juízos de competência especializada civil.
Para além dos argumentos formais, faz sentido que a atribuição da competência seja para
os tribunais de competência genérica, na medida em que os fundamentos de anulação
540
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 957. Contra: Lima
Pinheiro, Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral, 2007, p. 1. Assim decidiu o
Acórdão STJ de 11/10/2001, Proc. n.º 01B2417.
208
previstos no artigo 27.º LAV são relativos a qualquer acção, tendo pouco que ver com o
mérito da causa.
Daí que a competência para o recurso já tenha de ter o tratamento inverso – mas aí
consegue-se esse resultado através da aplicação do princípio da equiparação previsto no
artigo 29.º n.º1 LAV de que falarei adiante.
c. A LAV/APA altera, mais uma vez, estas regras estipulando como regra a competência
do tribunal da relação do distrito onde se situe o lugar da arbitragem. Em caso de acção
de anulação haverá competência alternativa do tribunal da relação do distrito onde esteja
domiciliada o réu.
5.8.1.2. Fundamentos541
a. Os fundamentos da acção de anulação estão previstos no artigo 27.º LAV, norma que
parece indicar a exclusão de quaisquer outros542, mas alguma doutrina tem vindo a
defender a inclusão de outras causas, ainda que com cautela.543
541
Utilizo neste ponto o texto escrito com Assunção Cristas, intitulado “A violação de ordem
pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais” e publicado nos Cadernos de
Direito Privado em 2010.
542
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, in ROA, 1992 (Ano 52), p. 921.
543
Lima Pinheiro, Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral, in ROA, 2007 (Ano 67),
p. 3, disponível em www.oa.pt.
544
Lima Pinheiro, Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral, 2007, p. 3.
545
Aplicável às decisões arbitrais estrangeiras, nos termos do artigo 1097.º CPC.
209
arbitral nacional.546 Assim, de acordo com a posição deste autor, a violação de ordem
pública é fundamento de anulação de sentenças arbitrais, mas apenas a ordem pública
internacional.
Paula Costa e Silva defende já posição diversa – entende também que a ordem pública
funciona como limite à aplicação do Direito pelos árbitros (assim como pelos tribunais
judiciais). Mas, a ordem pública a que se refere é a interna. Admite, assim, que a violação
de uma regra de ordem pública interna pode implicar a anulação da sentença arbitral.
Perante a não consagração deste fundamento como causa de anulação na LAV, distingue
três situações: se a violação está na convenção arbitral, a invalidade reconduz-se à não
arbitrabilidade do litígio ou à incompetência do tribunal; se a violação está no processo
arbitral, há desrespeito dos princípios fundamentais do processo; se a contrariedade se
encontra na própria sentença arbitral, há que paralisar os efeitos desta última por
recursos aos critérios gerais de direito.547
Repare-se, então, que se trata aqui de ordem pública interna e não internacional, como
defende Lima Pinheiro – estes dois conceitos, como se verá, têm níveis de abrangência
muito diferentes.
A jurisprudência não é, a este propósito, pacífica: no Caso Golf das Amoreiras 548 a
recorrente alegou como fundamento de anulação, entre outros, a violação de ordem
pública. O tribunal entende que é um vício que não pode ser objecto de acção de
anulação, não chegando sequer a analisar a sua ocorrência. 549 Já o Acórdão Cláusula
Penal II550, partiu-se precisamente do pressuposto contrário: a ordem pública é
fundamento de anulação da sentença arbitral, limitando-se depois a decisão a definir se
naquele caso teria havido a dita violação.
Por outro lado, a LAV/APA não lista nos fundamentos de anulação a violação da ordem
pública. O artigo 46.º é dedicado ao pedido de anulação e segue com grande fidelidade o
546
Lima Pinheiro, Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral, 2007, p. 3.
547
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, in ROA, 1992 (Ano 52), p. 945.
548
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 2006, Processo n.º1465/2006-2.
549
No Acórdão STJ de 24 de Outubro de 2006, Processo n.º 06B2366, foi igualmente decidido
que os fundamentos do artigo 27.º são taxativos.
550
Acórdão STJ de 10.7.2008, Proc. N.º 08A1698.
210
Justifica-se esta ausência, em nota de roda pé do Projecto, com três argumentos: a actual
LAV não prevê como fundamento de anulação a violação da ordem pública, pelo que o
Projecto se limita a manter essa norma; há um risco de reexame do mérito, algo que poria
em causa a eficácia da arbitragem; por último, não há regime idêntico para as sentenças
judiciais, caso as partes renunciem ao recurso.
Erigir como fundamento de anulação a violação de ordem pública deve ser interligado
com a questão da arbitrabilidade. Repare-se: se apenas for possível arbitrar litígios
absolutamente disponíveis, isto é, litígios em que todo o regime aplicável é dispositivo, o
problema da violação da ordem pública colocar-se-á em situações raras, na medida em
que os árbitros não têm normas imperativas para aplicar. A violação da ordem pública
consistirá aqui apenas na infracção de princípios também eles imperativos, essenciais do
nosso Direito.
A ordem pública desempenha, portanto, uma dupla função – por um lado, impõe
restrições à arbitrabilidade dos litígios, por outro é fundamento de anulação. Na lei
francesa, por exemplo, a ordem pública é a única restrição à arbitrabilidade dos litígios na
551
Robin de Andrade, Decisão arbitral e ordem pública, 2010, p. 10.
211
arbitragem internacional.552 É certo que os problemas são diversos, mas não é raro que os
Estados relacionem arbitrabilidade e ordem pública para reforçar a aplicação de certas
regras ou o seu controlo sobre certas matérias que julgam essenciais.553
Ao tratar-se deste tema554, admitiu-se que o conceito de arbitrabilidade é hoje muito mais
amplo do que a letra da lei, não subsistindo dúvidas de que são arbitráveis direitos
sujeitos a regimes compostos por normas imperativas. Entendeu-se que o conceito de
litígio arbitrável abrange o relativo aos direito que são relativamente indisponíveis. O que
é o mesmo que dizer que apenas não são arbitráveis os litígios em absoluto indisponíveis,
aqueles que não dependem da vontade das partes para serem exercidos. É um conceito
amplíssimo de arbitrabilidade que, no âmbito do direito privado, deixa muito pouco de
fora.
Este risco é superior ao colocado por uma necessidade de reexame do mérito da acção.
Este é o segundo argumento avançado para excluir a ordem pública como fundamento de
anulação. Não me parece, porém, que se possa sustentar autonomamente. É claro que a
552
Jean-François Poudret e Sébastien Bresson, Droit compare de l’arbitrage international, 2002,
p. 311.
553
Gary Born, International Commercial Arbitration – volume I, 2009, p. 771.
554
Cfr. Infra 5.3.4..
212
sentença arbitral tem um valor jurisdicional e que a acção de anulação não visa reapreciar
a decisão dos árbitros; mas não pode comparar-se sem mais esta sentença à judicial como
se da mesma realidade se tratasse. É este, parece-me, o erro de raciocínio da justificação
da APA na opção do seu projecto.
A sentença arbitral é, por via da LAV, no seu artigo 26.º, equiparada à sentença judicial,
mas não significa isto que seja igual. Pelo contrário, são realidades desiguais, com
distintas fontes de legitimação, como percursos processuais diversos, com características
variadas. Não é admissível, obviamente, uma equiparação absoluta e pretendê-lo é
arbitrário.
A ordem pública interna deve ser distinguida da ordem pública internacional. A ordem
pública internacional está no coração da ordem pública interna, pelo que uma regra que
não pertence à ordem pública interna não pode ser considerada como uma norma da
ordem pública internacional.555-556
A ordem pública interna contém os princípios e regras considerados como essenciais para
determinado Estado, no caso, para o Estado Português. A sua amplitude é
consideravelmente maior que a ordem pública internacional. A definição dos limites de
ordem pública nacional são, assim, matéria de direito interno, justificando-se plenamente
o recurso à doutrina de Teoria Geral de Direito Privado.
As definições são vagas e imprecisas, como não poderia deixar de ser. Refere-se os
princípios injuntivos implícitos na nossa ordem jurídica557, os interesses fundamentais
que o nosso sistema jurídico procura tutelar 558, uma ordem normativa em si extra-jurídica,
mas recebida pelo direito559.
555
Emmanuel Gaillard e John Savage, Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial
Arbitration,1999, p. 954.
556
Sobre ordem pública internacional, ver Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, p. 469
e seguintes.
557
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português – I – Parte Geral – Tomo I, 2000, p.
507-8.
558
Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica – Vol. II, 2003, p. 335; Ferreira de
Almeida, Contratos II, 2007, p. 234, nota 474.
559
Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil – Volume II, 1985, p. 270.
560
Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1996, p. 551.
214
O conceito é impreciso, mas há alguns pontos que podemos dar como assentes. Primeiro,
a ordem pública não incorpora todas as normas imperativas do ordenamento jurídico
português. Segundo, pode conter regras não escritas, os tais princípios gerais implícitos,
mas fundamentais, do nosso sistema jurídico.
Resolvido isto, a dificuldade está em determinar, em cada caso, que princípios são esses.
Julgamos a este propósito que a melhor postura metodológica é a que admite a vigência
desses princípios562, mas numa perspectiva em simultâneo realista e sistemática. Realista
no sentido em que serão princípios vigentes aqueles que a sociedade vislumbra como
essenciais, como estruturantes da sua vida social, económica, familiar, etc.. Sistemática
no sentido em que estes princípios – que serão mais ideias genéricas sobre regras básicas
de convivência social – têm de ser incorporados pelo sistema jurídico, o que significa que
têm de ser formulados de forma coerente e articulada entre si. Este trabalho cabe,
obviamente aos juristas, que aplicarão critérios que lhes permitam reconhecer os
princípios válidos e a sua correcta articulação (norma de reconhecimento).563
Assim, o que faz parte ou não da ordem pública interna variará consoante o momento
histórico em que se viva – quando falamos em negócios, por exemplo, circunstâncias
imprevistas como a crise financeira que se abateu sobre o mundo, podem determinar
diferentes percepções do essencial e do acessório, do justo e do injusto, do equilibrado e
do desequilibrado. Mas só em relação a cada problema em concreto se poderão
determinar em abstracto as regras essenciais. O que se tem de fazer é determinar na
561
J. Batista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 1995, p. 254.
562
Conforme as teorias de Dworkin – cfr. António Manuel Hespanha, O Caleidoscópio do
Direito, 2007, p. 127.
563
Herbert Hart, O conceito de Direito, 2007, p. 111 e seguintes.
215
Os vícios previstos no artigo 27.º LAV, ainda sendo processuais, vão muito além do
estipulado no artigo 668.º CPC. Dizem respeito a questões tão importantes e amplas
como a convenção de arbitragem, a constituição do tribunal, as regras de tramitação
processual, a validade da sentença arbitral e o princípio dispositivo. A equiparação dos
dois preceitos não é, assim, acertada. Como não é acertada a utilização para a arbitragem
da doutrina e jurisprudência que dessa norma tratam.
564
Ver Caso Golf das Amoreiras (Acórdão STJ 2-10-2006 - Proc. n.º 1465/2006-2), com
abundante citação de jurisprudência. Paula Costa e Silva, Anulação e Recursos da Decisão
Arbitral, 1992, p. 938-9.
216
565
Cfr. supra 5.3.4.
566
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 932.
567
Cfr. considerações feitas no ponto relativo à decisão arbitral sobre eventualidade do abuso de
direito se a alegação desta caducidade for contraditória com a postura da alegante no tribunal.
217
A alínea c) do artigo 27.º determina que é anulável a sentença arbitral que tenha sido
proferida em processo que haja violado princípios processuais fundamentais. São esses
princípios o da igualdade das partes, da citação do réu, do contraditório, da audição das
partes.568
A norma impõe um requisito para que haja causa de anulação: além da violação da regra
processual, é necessário que essa violação tenha tido influência na decisão final. A
determinação deste requisito não é fácil, sendo necessário elaborar um juízo de prognose
casuístico. No caso Caso Comissão Paritária569 não houve audição da parte passiva
previamente à tomada de decisão (porque ela era revel). O tribunal entendeu, porém, que
tal violação não teve consequências ao nível da decisão final, pelo que não acarreta
nulidade. O tribunal limita-se a dizer: “Na realidade, os factos provados não revelam a
essencialidade para o desfecho do litígio da omissão pela comissão arbitral da audição
do recorrente previamente à prolação do acórdão arbitral, sendo certo que aquele não
cumpriu o respectivo ónus de alegação e de prova.” Não se vislumbra qual o critério
utilizado – poderá dizer-se que sempre que haja revelia operante é inútil ouvir o
demandado? Não me parece que faça muito sentido. É certo que a influência decisiva na
resolução do litígio será de difícil ocorrência – repare-se que não é apenas de influência
que se trata, mas de influência decisiva. Pelo que se teria de demonstrar que o vício
processual determinou decisão diferente daquela que foi proferida pelo tribunal arbitral.
Esta demonstração será, na maioria dos casos, praticamente impossível. É preciso aqui
utilizar algum bom senso, não adoptando nem perspectivas muito rígidas, nem muito
flexíveis. É preciso analisar, perante o caso concreto, se a falha é ou não importante para
o cumprimento dos princípios do processo justo em bloco, e não olhar isoladamente para
a omissão ou violação.
Perante a violação de uma regra fundamental do processo justo, deve o tribunal judicial –
perante o qual a sentença arbitral foi impugnada – analisar todo o processo arbitral para
aferir se aquela falha põe em causa a justiça processual de toda a acção. Se assim for,
568
Segundo Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2004, p. 181, nota 28, o princípio da audição
prévia das partes integra o direito de defesa.
569
Supremo Tribunal de Justiça em 24 de Junho de 2004.
218
O quinto fundamento de anulação, relativo às assinaturas dos árbitros já foi supra tratado,
pelo que para lá se remete.570
O dever de fundamentação da sentença arbitral está previsto no artigo 23.º n.º3 LAV,
sendo corolário directo do dever de fundamentação das decisões judiciais
constitucionalmente previsto no artigo 205.º CRP.
É interessante, porém, notar que a LAV/APA permite, no seu artigo 42.º n.º3, a dispensa
por acordo das partes da fundamentação, mas caso não haja essa dispensa, mantém como
fundamento de anulação a não fundamentação da decisão - artigo 46.º n.º 3 a) vi).
O exacto âmbito deste dever de fundamentação tem sido matéria discutida pela doutrina.
De acordo com alguma, a decisão considera-se fundamentada quando houver justificação
de facto e de direito, ainda que sumária, sobre cada uma das pretensões deduzidas. 571 Já
outros autores defendem que só haverá violação do dever de fundamentação geradora de
nulidade quando haja falta absoluta de motivação.572
É evidente que a existência ou inexistência de fundamentação impõe uma sua análise, não
bastando a mera constatação de que estão escritas algumas frases. É que se assim fosse
poderia chegar-se a resultados aberrantes, como o de entender-se que há fundamentação
se se escrevesse qualquer coisa, designadamente algo que nada tem a ver com o processo
em discussão. Pelo que o dever de fundamentação só se cumpre quando houver uma
justificação sumária sobre cada uma das pretensões, como defende a primeira das teses
referidas. É necessário apreciar concretamente os fundamentos e as excepções aduzidas
em relação a cada uma das pretensões. Assim como é necessário explicar as razões que
levam a que a decisão seja aquela e não outra.
570
Cfr. supra p. 200.
571
Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, p. 153 e 172.
572
Paula Costa e Silva, Anulação e Recursos da Decisão Arbitral, 1992, p. 939.
219
Não é inútil ressaltar a importância da fundamentação num processo civil justo. Aliás, a
consagração constitucional dessa exigência é prova desta essencialidade. Nas palavras de
Correia de Mendonça e Mouraz Lopes, a obrigação de fundamentar é um dado
civilizacional adquirido.573
A doutrina não tem, porém, assim entendido – pelo contrário, porque a decisão segundo a
equidade não é uma decisão arbitrária, a justificação racional e inteligível é tão ou mais
necessária que a da resolução segundo o direito estrito. De acordo com Paula Costa e
Silva “Só através da fundamentação é possível afastar o arbítrio da solução do caso
573
Correia de Mendonça e José Mouraz-Lopes, Julgar: Contributo para uma análise estrutural
da sentença civil e penal, 2004, p. 205.
574
Mariana França Gouveia, Os poderes do juiz cível na acção declarativa 2007, p. 55.
220
concreto, sendo de afastar qualquer caminho que permita que a arbitragem em equidade
se transforme em arbitragem-arbítrio.”575
A Lei da Arbitragem Voluntária nada diz em situações em que haja contradição entre
fundamentos e decisão. Por ser fundamento não previsto directamente no artigo 27.º LAV
e, com este argumento, foi defendido que não é causa de anulação da sentença. 576 Parece-
me porém que este vício é equiparável à falta de fundamentação. Pelas mesmíssimas
razões que o dever de fundamentação exige uma apreciação material. A questão coloca-se
mo mesmo nível da anterior: inteligibilidade.
De acordo com o artigo 27.º n.º1 e) da Lei da Arbitragem Voluntária, constitui vício da
sentença arbitral “ter o tribunal conhecido de questões de que não podia tomar
conhecimento, ou ter deixado de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.”
Refere-se este preceito aos vícios de excesso e de omissão de pronúncia, vícios que
decorrem de violações do princípio dispositivo. Este é o sétimo e último fundamento de
anulação da decisão arbitral.
575
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 941.
576
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 939. Acórdão STJ de 2
de Outubro de 2006, Processo n.º 1465/2006-2.
577
Mariana França Gouveia, Os poderes do juiz cível na acção declarativa, 2007, p. 52.
221
Como é referido pela doutrina, num processo dominado pela vontade das partes como a
arbitragem a vinculação ao princípio dispositivo é ainda mais relevante.578
Digno de nota a este propósito é o Caso Cláusula Penal I 579, em que o tribunal arbitral
condena não com fundamento nos danos alegados pelo requerente da acção arbitral mas
com base numa cláusula penal que nenhuma das partes havia invocado. Com razão, o
Supremo Tribunal de Justiça mandou anular a decisão.580
No ponto iii) do artigo 46.º n.º2 a) LAV/APA é estabelecido como motivo de anulação a
incompetência do tribunal arbitral por se pronunciar sobre litígios não contidos nela.
Repare-se que não é o mesmo fundamento previsto no ponto v). Aqui do que se trata é de
excesso ou omissão de pronúncia, o fundamento já constante no artigo 27.º n.º1 e) da
actual LAV.
É ainda anulável a sentença que não tenha sido assinada ou não contenha fundamentação,
de acordo com as regras do artigo 42.º para o qual remete o ponto vi) da alínea a) o n.º3
do artigo 46.º LAV/APA.
Qualquer um dos autores não admite, porém, que a sentença baixe ao tribunal arbitral
para eventual correcção de erros.584 Tal consequência parece ser contrária quer à
autonomia do tribunal arbitral perante os tribunais judiciais, quer face à extinção do poder
jurisdicional dos árbitros com a sentença. Este último argumento não tem, porém, força
581
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 961.
582
Lima Pinheiro, Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral, 2007, p. 4.
583
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 964-5.
584
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 1001.
224
decisiva, na medida em que a mesma regra existe para os tribunais judiciais e a baixa do
processo é possível.
Esta não é uma questão fácil de resolver. Se numa interpretação literal parece evidente
que ou há anulação ou não há anulação, este resultado do tudo ou nada é manifestamente
contrário aos princípios de economia processual e de eficiência. Nesta óptica faz sentido
que o tribunal arbitral, que viu a sua sentença anulada por razões formais, possa refazê-la
corrigindo o vício. Não deixa, porém, de ser uma solução algo inconfortável por jogar
mal com a autonomia da arbitragem.
Julgo, assim, que é útil adoptar as regras consagradas na LAV/APA para suprir estas
lacunas.
5.7.2. Recurso
No que diz respeito ao regime dos recursos, o prazo para interposição de recurso é de 30
dias, nos termos dos artigos 685.º e 685.º-A, sendo agora apresentadas com o
requerimento de interposição as alegações de recurso.
586
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 962; no mesmo sentido
referindo-se ao excesso de pronúncia, Maria José Capelo, A Lei de Arbitragem Voluntária e os
centros de arbitragem de conflitos de consumo, 1999, p. 108..
587
Processo n.º 03A2318.
588
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 998.
589
Carvalho Fernandes, Dos recursos em Processo Arbitral, 2003, p. 158.
226
Quando o modo de interposição, a lei não resolve as dúvidas: deve ser apresentado o
recurso perante o tribunal arbitral ou perante o tribunal da relação? A doutrina tem
centrado a discussão no artigo 25.º LAV que estabelece a extinção do poder dos árbitros.
Esta extinção teria como consequência a impossibilidade de os árbitros se pronunciarem
sobre o que quer que fosse após a prolação da sentença arbitral. Certo é, porém, que a
mesma norma existe para os tribunais judiciais (artigo 666.º CPC) e que não há quaisquer
dúvidas de que é sua a competência para receber e apreciar o pedido de interposição de
recurso.
Assim, parece ser mais consentâneo com o sistema positivo de recursos e ainda com o
princípio da equiparação da sentença arbitral à sentença judicial, a solução da
interposição do recurso junto do tribunal arbitral.590
b. A LAV/APA apenas prevê recurso caso as partes o estipulem (artigo 39.º n.º4). Caso
haja recurso, dará entrada no tribunal da relação do distrito do lugar da arbitragem, nos
termos do artigo 59.º n.º1 e). A LAV/APA nada mais regula sobre o recurso, pelo que se
aplicarão as regras do Código de Processo Civil.
De acordo com o artigo 31.º LAV mesmo não tendo sido proposta acção de anulação
dentro do prazo fixado de um mês, podem os fundamentos de anulação ser alegados na
oposição à execução.
590
Carvalho Fernandes, Dos recursos em processo arbitral, 2003, p. 158.
227
591
Paula Costa e Silva, Anulação e recursos da decisão arbitral, 1992, p. 960.
592
Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2004, p. 182.
593
Paula Costa e Silva, Os meios de impugnação, 1996, p. 205.
228
deixou de ser feita numa fase preliminar da acção executiva, mas na acção declarativa,
renovando-se para esse efeito a instância (artigo 378.º n.º2 CPC).
Aplicar esta solução à sentença arbitral que condene em obrigação genérica não parece a
melhor. Implica a renovação de um tribunal arbitral de composição tópica e existência
efémera. É preferível integrar a lacuna através do mecanismo dos títulos extra-judiciais
de obrigações não liquidadas, isto é, a liquidação no próprio processo executivo.594
A inserção – em 2008 – da palavra judicial a seguir a sentença no artigo 805.º n.º3 CPC
confirma esta interpretação.
VI
JULGADOS DE PAZ
6.1. Caracterização
Os Julgados de Paz, criados em 2001, pela Lei 78/2001, de 13 de Julho, iniciaram a sua
actividade no ano de 2002. Nesta altura eram apenas quatro (Lisboa, Seixal, Vila Nova de
Gaia e Oliveira do Bairro) e a título experimental. Hoje, em 2010, são cerca de 20 595,
distribuindo-se irregularmente pelo país. Aliás, uma das críticas apontadas ao sistema é
precisamente não haver uma lógica compreensível na expansão da rede dos Julgados de
Paz.596 Tendo como objectivo o desenvolvimento sustentado da rede, o Governo
encomendou ao ISCTE um estudo597. Através de uma análise cuidada dos fins destes
tribunais e da realidade social portuguesa, a investigação conclui que devem existir 120
julgados de paz em Portugal (incluindo os já existentes). Os Julgados de Paz a criar
devem sê-lo em 12 fases de acordo com a prioridade de instalação, entendendo-se como
ideal a criação de 8 Julgados de Paz por biénio.
595
Para a sua localização, ver www.gral.mj.pt. Para uma cronologia da instalação, cfr. Cardona
Ferreira, Justiça de Paz – Julgados de Paz, 2005, p. 52.
596
Lúcia Vargas, Julgados de Paz e Mediação, 2006 p. 204.
597
Disponível em www.conselhodosjulgadosdepaz.com.pt
230
Os Julgados de Paz são verdadeiros tribunais inseridos na oferta da Justiça pública. São
órgãos de soberania de exercício do poder judicial 598, previstos na Constituição da
República Portuguesa (artigo 209.º n.º2). A sua distinção em relação aos tribunais comuns
decorre de diversos aspectos, devendo realçar-se a sua teleologia, o que tem depois
repercussão na sua forma de actuação e regime. Isto é, os Julgados de Paz praticam uma
justiça alternativa, muito marcada pela proximidade e pela tentativa de alcançar uma
solução por acordo, através das fases de mediação e de conciliação.
Os Julgados de Paz são, então, tribunais não judiciais599 ou mistos600, tendo em conta a
sua natureza obrigatória (e não voluntária como os outros meios de resolução alternativa
de litígios) e os métodos que utilizam na resolução do conflito (procurando sempre o
acordo e afastando a concepção adversarial de litígio).
A questão da competência assume aqui papel importante. Desde a publicação da lei dos
Julgados de Paz que se coloca a dúvida sobre se a competência dos Julgados de Paz é ou
não obrigatória, isto é, se o autor é obrigado a propor acção no Julgado de Paz quando ele
exista no concelho e tenha competência na matéria.601
598
Cardona Ferreira, Justiça de Paz – Julgados de Paz, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 46.
599
Cardona Ferreira, Justiça de Paz – Julgados de Paz, 2005, p. 51.
600
Lúcia Vargas, Julgados de Paz e Mediação, 2006 p. 115.
601
A competência dos Julgados de Paz está prevista nos artigos 8.º, 9.º e 10º LJP.
602
Acórdão 11/2007, publicado no Diário da República de 25 de Julho.
603
Conforme está previsto nos artigos 41.º e 59.º n.º3 LJP.
231
O Acórdão não foi tirado por unanimidade, tendo havido três votos contrários ao seu
sentido. Um deles, da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, deu lugar a voto de
vencido. Nessa declaração a Conselheira rebate os argumentos da posição vencedora,
acrescentando uma ideia importante (e que aliás não foi tocada pelo Acórdão). Trata-se da
circunstância de a alternatividade ser unilateral, isto é, de caber ao autor escolher o
Julgado de Paz ou o tribunal comum, sendo o réu obrigado a segui-lo. Esta
alternatividade unilateral é estranha a qualquer meio de resolução alternativa de litígios,
na medida em que estes procedimentos são por regra voluntários, sendo exigida a adesão
de ambas as partes. A solução consagrada pelo Acórdão de uniformização é difícil de
entender, enquadrando-se mal no princípio da igualdade das partes.
604
Miguel Teixeira de Sousa, A Competência dos Julgados de Paz: a alternativa consensual,
2008, p. 58.
605
Miguel Teixeira de Sousa, A Competência dos Julgados de Paz: a alternativa consensual,
2008, p. 58.
232
Em coerência com o exposto, Miguel Teixeira de Sousa entende que as partes podem
celebrar pacto de competência, atribuindo, nos termos do artigo 100.º CPC, competência
aos Julgados de Paz.606 Parece-me, porém, que esta norma não é automaticamente
aplicável ao caso, na medida em que se dirige à competência e aqui falamos de
jurisdição. A aplicação do artigo 99.º CPC, este dirigido à competência internacional,
também não será adequada, até porque estabelece como regra a alternatividade da
atribuição de competência. Isto é, se se aplicasse esta norma, o pacto atributivo de
jurisdição aos Julgados de Paz permitiria que o autor escolhesse entre propor a acção nos
tribunais judiciais ou na justiça de paz, sem que o réu pudesse opor-se. Tal resultado
recolocaria a questão da igualdade das partes – afinal, a consensualidade exigida seria
frustrada.
A polémica volta a estar, assim, instalada. Nem jurisprudência, nem doutrina conseguem
alcançar um mínimo de consenso sobre esta questão. Há, até agora, três possibilidades de
resolução da questão da competência dos Julgados de Paz: exclusiva; alternativa, à
escolha do demandante; alternativa consensual, ou seja, apenas por escolha de
demandante e demandado.
Os argumentos em disputa são diversos e da mais variada índole. Julgo que os mais
importantes se podem resumir a três: o modo de interpretação das regras legais de
competência, a consequência de a primeira opção da alternatividade resultar numa
606
Miguel Teixeira de Sousa, A Competência dos Julgados de Paz: a alternativa consensual,
2008, p. 58.
607
Processo n.º 6403/200-7.
233
Mais importante que conciliar normas legais é encontrar nelas o reflexo dos princípios
que espelham. Há que estabelecer a filosofia dos Julgados de Paz, o que faz sentido face à
sua natureza e estrutura e depois interpretar as regras nesse sentido, e não fazer
precisamente o contrário.
Até porque, como se pode concluir pela leitura dos dois Acórdãos, é perfeitamente
possível interpretar em sentido contrário as mesmíssimas normas legais. A questão, como
muitas, é de sistema e não de regras.
Já antes tomei posição sobre esta questão. Disse então: “Na minha opinião, os textos
normativos não oferecem grandes dúvidas sobre esta questão – a competência é
exclusiva. Tendo em conta a competência residual dos tribunais comuns (artigo 18.º
LOFTJ) e os artigos 8.º e seguintes da Lei dos Julgados de Paz (Lei 78/2001, de 13 de
Julho) é difícil compreender as posições que sustentam ser a competência destes
meramente facultativa.”608
É necessário, porém, acrescentar mais alguma coisa – ao nível dos argumentos e das
regras – a esta solução.
de mais, parece-me mais adequado aplicar aos Julgados de Paz as regras sobre convenção
de arbitragem – trata-se, na verdade de um problema, se assim colocado, de jurisdição
voluntária alternativa. O mais próximo desta situação é a arbitragem e não a competência
convencional. Seja qual for a norma aplicável, a celebração de uma convenção de justiça
de paz (chamemos-lhe assim) teria necessariamente de excluir a competência dos
tribunais judiciais, como acontece com a convenção arbitral. Teria de ter efeitos
potestativos sob pena de trazer novamente a questão da igualdade das partes.
Adoptar a posição de Miguel Teixeira de Sousa significa, ainda, que inexistindo tal
convenção o demandado poderia sempre arguir a incompetência do Julgado de Paz,
obrigando este a extinguir o processo. Este resultado não é, do ponto de vista da
administração da Justiça, aceitável. E nem se compreende que alguma vez tenha sido esta
a intenção do legislador. Querer deixar ao demandante a opção de propor a acção nos
julgados de paz tribunais comuns, ainda se pode admitir. Mas pensar que o Estado
instituiu uma justiça pública, formal, de fonte inteiramente voluntária é, no mínimo,
bizarro. Basta, aliás, ler os artigos 9.º e seguintes LJP para perceber que a origem da sua
competência é, em primeira linha, legal, não convencional. O atraso processual que
implica esta solução, a negação do princípio da economia e da eficiência processual é
intolerável.
Pensemos ainda no seguinte: que interesse atendível poderá ter o demandado na recusa da
tramitação processual nos Julgados de Paz? Não há seguramente diminuição de garantias
(face ao processo sumaríssimo ou sumário), nem fica prejudicado o seu direito a um
609
Diga-se, ainda e aliás, fazendo um paralelismo com o Processo Civil, que a escolha do autor
quando há diversos tribunais territorialmente ou internacionalmente competentes é aí a
regra.Vejam-se os artigos 87.º CPC e artigo 6.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de
22 de Dezembro de 2000.
235
Entendo, portanto, que a competência dos Julgados de Paz é exclusiva e que tal conclusão
se retira facilmente da letra da lei, da coerência do sistema e da solução mais adequada à
lacuna legal (se se entender que há lacuna).
Por outro lado, porém, numa óptica de sistema diversificado é interessante colocar os
Julgados de Paz como uma opção ao lado dos restantes meios de resolução alternativa de
litígios. Até porque o seu modelo de resolução se adequa a certos tipos de disputas – os
litígios de proximidade -, mas não a outros.
Os Julgados de Paz foram criados com base no modelo dos tribunais multi-portas. A ideia
seria ter um centro de resolução de litígios que teria num único lugar diversas ofertas de
justiça – judicial, justiça de proximidade, arbitragem, mediação, conciliação, negociação,
entre outras – que poderiam ser escolhidas pelos utentes à entrada. Haveria uma espécie
de triagem do processo e aconselhamento, cabendo ao autor a opção de escolher o meio
mais adequado. Neste sistema ideal, a competência seria, entre todos, verdadeiramente
alternativa, como se se tratassem de várias especialidades entre a mesma ciência. Em
função da patologia, as pessoas seriam encaminhadas para a respectiva especialidade.
Este sim seria o melhor modelo para os Julgados de Paz, aliás para a oferta pública de
justiça, uma oferta diversificada e integrada.
Há, porém, uma regra que joga contra esta autonomia – a da recorribilidade das decisões
dos Julgados de Paz para os tribunais judiciais, quando o valor da acção seja superior a
metade da alçada da 1ª instância – artigo 62.º LJP. Acresce que este recurso é para os
tribunais de 1ª instância e não para a relação, o que não permite sequer uma equiparação
dos Julgados de Paz aos tribunais de 1ª instância. Ao invés faz parecer que eles são
qualquer coisa como uma pré ou sub-instância, um minus em relação à jurisdição
comum.611
Terão, provavelmente, sido razões de cautela que levaram o legislador a consagrar esta
solução. Legislando quando ainda não existia qualquer Julgado de Paz, terá pensado ser
mais sensato permitir um recurso das decisões ou, pelo menos, de parte delas. Neste
momento, porém, em que experiência já leva alguns anos é de repensar a solução. Das
duas uma: ou se estabelece a regra de irrecorribilidade (que é o que acontece neste tipo de
acções propostas em tribunal judicial e até joga bem com o entendimento da competência
alternativa) ou se estabelece, como na actual Lei de Arbitragem Voluntária, a regra da
recorribilidade para a Relação, equiparando os Julgados de Paz a tribunais de primeira
instância. É difícil dizer qual a melhor solução: do ponto de vista do sistema, a solução da
irrecorribilidade parece ser a mais coerente; do ponto de vista do controlo da actividade,
faz sentido a existência de recurso. É ainda pensável uma terceira via inspirada, agora, na
arbitragem: eliminar o recurso e consagrar apenas a possibilidade de requerer a anulação
da decisão com fundamentos de forma ou com base na violação da ordem pública.
O outro aspecto da relação entre Julgados de Paz e jurisdição comum é o envio dos
processos quando é deduzido algum incidente ou é requerida a prova pericial. Nos termos
do artigo 41.º e 59.º n.º3 LJP, suscitado algum incidente ou requerida prova pericial, o
juiz de paz remete o processo para o tribunal judicial.
610
No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, A Competência dos Julgados de Paz: a
alternativa consensual, 2008, p. 58.
611
Cardona Ferreira, Julgados de Paz, 2001, p. 81; Miguel Teixeira de Sousa, A Competência dos
Julgados de Paz: a alternativa consensual, 2008, p. 56.
237
Não é inteiramente fácil justificar esta norma – repare-se que ela implica a possibilidade
de desaforamento voluntário pelas partes do Julgado de Paz. São aliás frequentes as
deduções de incidentes com o único intuito de retirar o processo da Justiça de Paz. Basta
ao demandado requerer a realização de uma perícia e, mesmo que tal pedido seja
manifestamente inútil, o juiz de paz vê-se obrigado a enviar o processo para os tribunais
comuns, extinguindo a instância no Julgado de Paz. Como se pode explicar esta regra?
Numa análise global das normas da Lei dos Julgados de Paz, a única explicação que
encontro é a simplicidade querida para a tramitação processual nestes tribunais. De
acordo com o artigo 2.º n.º2 LJP, os procedimentos dos Julgados de Paz estão concebidos
e são orientados, entre outros, pelo princípio da simplicidade.
Sendo o processo concebido para ser simples, é natural que se não admitam
complexidades, como as introduzidas por provas complicadas ou intervenções de
terceiros. O pensamento do legislador foi claramente: ou o processo é simples ou não tem
lugar aqui. Como, porém, não poderia impedir que estes incidentes existissem, porque
isso implicaria violação do due processo of law, optou por retirar o processo do Julgado
de Paz quando tal se verificasse.
O que o legislador não pensou foi, naturalmente, que esta regra seria fonte de abuso por
parte de quem não tem interesse num processo célere.
A explicação destas regras demonstra, porém, que não é esta a sua razão de ser. Que nada
têm que ver com uma pensada relação de sujeição dos julgados de paz aos tribunais
comuns. Nenhum argumento, parece-me, se pode retirar destas regras quanto à
competência alternativa. São apenas soluções encontradas para aspectos específicos do
regime processual dos julgados de paz e à sua natureza experimental inicial. Atente-se
que esta lei nunca foi alterada, vigorando já há quase uma década.
238
A competência dos julgados de paz é, assim, exclusiva, mas supletiva – as partes poderão
optar, expressa ou tacitamente, por outra jurisdição – a judicial ou a arbitral. Esta solução
é coerente com os dados do sistema jurídico e, em simultâneo, com a alternatividade
consensual postulado do direito privado e da resolução alternativa de litígios.
6.2. Princípios
Os princípios que regem os Julgados de Paz estão inscritos no artigo 2.º da Lei 78/2001,
de 13 de Julho. Este artigo é o mais importante deste diploma, devendo ser padrão de
239
612
Cardona Ferreira, Julgados de Paz – Organização, Competência e Funcionamento, 2001, p.
19.
613
Mariana França Gouveia, Os Poderes do Juiz Cível na Acção Declarativa, 2007, p. 63.
614
Mesmo um jurista, recém-licenciado ou não, que não esteja habituado aos tribunais, neles não
se sente plenamente à vontade.
615
Artigos 552.º e 553.º CPC.
616
Para uma comparação pormenorizada, João Chumbinho, Julgados de Paz na Prática
Processual Civil, 2007, p. 54-58.
240
Paz é o primeiro entendimento que predomina, sem prejuízo de o juiz de paz decidir por
sentença, se as partes não conseguirem resolver o litígio.
Nota-se nos Julgados de Paz a forte motivação para o acordo, muito maior, parece-me
(embora não o possa confirmar objectivamente617) que nos tribunais judiciais. Criou-se de
alguma forma uma dinâmica de conciliação, na medida em que se sabe que o juiz vai
mesmo, mas mesmo, esgotar todas as possibilidades de obtenção do acordo. No entanto,
também é necessário ter alguma cautela nessa procura do acordo, de forma a não
incomodar intoleravelmente as partes, nem as comprometer em relação a algo que, afinal,
não querem. É importante que os juízes tenham a sensibilidade para perceber quando é e
quando não é alcançável a transacção e, por outro lado, que não utilizem o seu poder
judicial para forçar esse consenso. Estas questões foram já tratadas no capítulo dedicado à
conciliação, para o qual se remete.618
Ver, a este propósito, as notas de Joana Paixão Campos, A Conciliação judicial, 2009, p. 71 e
617
seguintes.
618
Cfr. supra ponto 4.2..
241
6.3. Competência
Tal matéria está regulada nos artigos 8.º e seguintes da Lei dos Julgados de Paz. Em razão
do valor, os Julgados de Paz têm competência para acções cujo valor não exceda a alçada
do tribunal de 1ª instância (actualmente 5.000€).
O artigo 9.º contém as matérias que são da competência dos Julgados de Paz. As matérias
estão descritas individualmente através da sua caracterização jurídica, pelo que o que não
se encontra aqui especificamente previsto não cabe na competência destes tribunais.
Podemos agrupá-las em dois grandes grupos: matéria civil e matéria criminal. Na matéria
civil estão previstas algumas questões tratadas nos direitos reais (entrega de coisas
619
O princípio da simplicidade está nos artigos 137.º e 138.º; o da adequação no artigo 265.º-A; o
da oralidade está disperso por várias normas, desde as que prevêem a audiência preliminar e o
julgamento (artigos 508.º e 652.º), até às normas que impedem, salvo casos excepcionais, o
depoimento escrito (artigo 621.º e 639.º); o princípio da economia processual está disperso por
diversos mecanismos processuais, que passam pela adequação, pluralidades objectivas e
subjectivas, incidentes com elas relacionados (reconvenção, intervenção de terceiros) e,
novamente, com a simplicidade dos actos, prevista nos artigos 137.º e 138.º. Ver, por todos, Lebre
de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 2006, p. 169 e seguintes.
620
Mariana França Gouveia, Regime Processual Experimental, 2006, p. 33-36.
242
Apesar da clareza da letra da norma, ela tem suscitado viva polémica doutrinal e
jurisprudencial. Cardona Ferreira, pugnando pela alteração do normativo, acaba por
entender que esta exclusão de competência tem como limite as pessoas colectivas sem
fim lucrativo e até as micro-empresas, designadamente de tipo familiar.621
Mais recentemente surgiu na jurisprudência da Justiça de Paz um outra tese, que se pode
resumir a considerar que a excepção só se aplica quando se trate de litigância de massa.
Podemos exemplificar esta orientação com a sentença do Julgado de Paz de Coimbra de
621
Cardona Ferreira, Justiça de Paz – Julgados de Paz, 2005, p. 59, nota 89.
622
Processo n.º 8759/2006-8, disponível em www.dgsi.pt
243
A ratio legis do artigo 9.º é, sem qualquer dúvida, o afastamento da litigância de massa.
Isto porque o essencial da Justiça de Paz é a sua filosofia de proximidade, algo
impossível de realizar se o número de processos for avassalador. Certo é, porém, que a
letra da lei acabou por excluir muito mais acções, na medida em que a sua letra de
estende a toda a litigância comercial, seja ou não de massa. Nos dias que correm, em que
toda a actividade económica, por mais pequena que seja, se constitui através de uma
sociedade comercial, esta opção acabou por significar uma exclusão importante e algo
injustificada.
Assim, a própria Justiça de Paz foi, paulatina, mas firmemente, admitindo a litigância
comercial. Certo é, porém – e é um aspecto que não pode ser omitido – que em muitos
Julgados de Paz tal admissão se justificou por um instinto de sobrevivência. Essa era, ao
fim e ao cabo, o único tipo de litigância existente na sua área territorial de competência.
Será esta leitura admissível? É sem dúvida uma acepção restritiva da lei, tão restritiva que
se aproxima de uma interpretação correctiva, na forma de redução teleológica. E a
interpretação correctiva é, em termos clássicos, inadmissível.
Estes argumentos formais não convencem, porém, já que, como por várias vezes já se
disse, não se tem sobre o Direito uma postura positivista, de acordo com a qual a lei é a
623
Processo n.º 49/2007-JP, disponível em www.dgsi.pt
244
única fonte do Direito. A lei é talvez a mais importante, mas não única. A determinação
da regra, da qual a interpretação da lei é um dos passos necessários, necessita também de
analisar outras fontes e outros argumentos. Uma outra fonte é, evidentemente a
jurisprudência. Ora, temos, aqui, sem dúvida, uma jurisprudência firme (embora apenas
dos Julgados de Paz) e, mais importante, uma aceitação social desta competência. As
empresas, bem servidas pelo Julgado de Paz, a ele retornam, aceitando e até lhe
atribuindo competência. Há aqui uma espécie de voluntariedade que, embora não seja a
fonte da competência (que é a lei), como que valida esta atribuição.
O ponto fraco da tese estará na determinação do que é e do que não é litigância de massa.
Por exemplo, na sentença do Julgado de Paz de Santa Maria da Feira de 22 de Julho de
2008624 entende-se que se trata de litigância de massa por, aparentemente, a empresa
credora ter mais de 10 trabalhadores. Parece aqui querer misturar-se o critério da
litigância de massa com o do número de trabalhadores, o que não faz muito sentido.
Há, pois, cautelas a ter neste domínio. Se, em abstracto, a solução de restringir a exclusão
da competência aos litigantes de massa parece ser boa, os critérios que o determinam
devem privilegiar a clareza e facilidade de aplicação.
Em relação à matéria penal, a competência está prevista no n.º 2 do artigo 9.º LJP,
incluindo apenas os pedidos de indemnização cível pelos crimes aí previstos (ofensas
corporais simples, difamação, injúrias, furto simples, dano simples, alteração de marcos e
burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços). O Julgado de Paz só tem
competência para apreciar o pedido de indemnização cível quando não haja sido
apresentada participação criminal ou após desistência da mesma.
624
Processo n.º 45/2008-JP, disponível em www.dgsi.pt
245
Quanto à competência territorial, a Lei dos Julgados de Paz estabelece no seu artigo 11.º
que as acções referentes direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis e as acções de
divisão de coisa comum devem ser propostas no julgado de paz da situação dos bens.
Por último, o artigo 13.º LJP estabelece como regra geral de competência territorial o
domicílio do réu.
Repare-se que estas regras têm ainda a função, face à situação actual, de delimitar a
jurisdição dos Julgados de Paz. Na medida em que estes não têm cobertura nacional, a
aplicação destas regras determinará se a acção pode ou não ser proposta num julgado de
paz, conforme esteja nesse concelho instalado ou não.
Assim, caso se não consiga citar pessoalmente o demandado, o processo segue à revelia,
sendo prática nos Julgados de Paz pedir-se à Ordem dos Advogados a nomeação de um
representante oficioso do revel.625 A inadmissibilidade da citação edital nos Julgados de
Paz justifica-se aparentemente com a simplicidade processual, isto é, pretendeu-se que o
625
Cardona Ferreira, Julgados de Paz, 2001, p. 64.
246
processo nos Julgados de Paz seja simples e escorreito. É precisamente a mesma razão
que não permite incidentes de intervenção de terceiros ou produção de prova pericial. A
ideia – algo egoísta – é que só são tramitados processos sem complicações.
Face a esta ratio legis, a frustração da citação pessoal poderia ter duas consequências: ou
a extinção do processo nos Julgados de Paz e a sua remessa oficiosa para os tribunais
judiciais (como acontece quando aqueles incidentes surgem); ou, como se fez na prática,
ficcionar que a citação se encontra feita e nomear defensor oficioso para o ausente.
Não pode haver processo sem direito de defesa e não há direito de defesa sem citação.
Um processo judicial, qualquer que ele seja, não pode prosseguir sem citação. Mas
também é certo que a citação edital é, por si só, uma hipocrisia, um simulacro de citação,
um cumprimento formal do direito de defesa. Mas é uma hipocrisia necessária porque o
titular do direito não pode ficar refém da dificuldade em encontrar o sujeito passivo da
relação.
Na citação do demandado marca-se logo a data da pré-mediação (artigo 45.º n.º 2 LJP)
ou, se o demandante tiver prescindido dessa fase, do julgamento. Esta solução simplifica
e acelera o procedimento, sem prejuízo de as datas serem alteradas se a citação se atrasar
ou se as partes não tiverem disponibilidade para os dias marcados.
247
Entramos, então, na fase da mediação que se inicia com a pré-mediação, sessão destinada
a explicar às partes em que consiste a mediação e a verificar a sua predisposição para
resolver o caso através da celebração de um acordo (artigo 49.º LJP). Se as partes
aderirem, passa-se à mediação propriamente dita, que pode ter lugar no mesmo dia. A lei
determina que esta deva ser feita com mediador diferente (artigo 50.º n.º4 LJP), mas a
prática nos Julgados de Paz tem sido de se manter o mesmo mediador, desde que
autorizado pelas partes. É justificada pela inadequação da lei à realidade – não faz
sentido, segundo dizem mediadores e juízes, remarcar a sessão para outro dia e outro
mediador, obrigando as partes a nova deslocação ao Julgado. Esta razão não colhe,
porém, nos casos em que está no Julgado mais do que um mediador em simultâneo, o que
se verifica nos Julgados de Paz com mais movimento. A mudança de mediador garante a
independência do primeiro face ao resultado da sua diligência. Embora não me pareça
dramático, julgo que faz sentido tentar, salvo forte inconveniente, seguir o esquema legal.
Uma das dificuldades do regime processual dos Julgados de Paz é o efeito da revelia. Isto
porque, nos termos do artigo 58.º n.º2, tal efeito (o da confissão dos factos) apenas se
verifica quando o demandado para além de não ter contestado, não tenha comparecido ao
julgamento e não tenha justificado essa falta. Isto é, para que se dêem como provados os
factos não basta a não contestação, é ainda necessário a falta não justificada do
demandado à audiência final. Esta norma tem conduzido ao entendimento de que o
demandado não contestante pode impugnar os factos na audiência final. Aliás pode
626
Cfr. a propósito da homologação, o ponto 3.8.3..
248
apresentar prova, na medida em que os meios probatórios são oferecidos na audiência. 627
A grande dificuldade reside na possibilidade de deduzir, apenas na audiência, excepções
ao pedido.
Presenciei, certo dia, uma situação em que a demandada não contestante compareceu à
audiência transportando consigo os bens cujo pagamento a demandante exigia. Exibiu
esses bens, ficando claro para todos os presentes que eles eram defeituosos. Alegou –
embora o não soubesse - uma excepção de cumprimento defeituoso. Outra vez, numa
acção proposta pela administração do condomínio contra um condómino em que era
exigido o pagamento de quotas de condomínio em atraso, o condómino – que não havia
contestado – afirmou na audiência que tinha acordado com o anterior administrador a
dedução às quotas do valor de umas obras urgentes que tinha feito nas partes comuns do
edifício. Tratava-se, assim, de uma compensação que, sendo de valor inferior ao pedido,
constituía uma excepção peremptória.628
Nestes casos, que fazer? Ignorar aquilo que as partes dizem parece violento e contrário à
filosofia dos Julgados de Paz.
Se uma solução formalista, parece mais defensável, faz alguma impressão postergar por
essa razão a verdade material. E, mais, como estamos num processo de proximidade, em
que as pessoas envolvidas estão ali, em frente ao juiz, é muito complicado fazer-lhes
compreender esta distinção técnica entre impugnação e excepção 629, explicar-lhes que
podem dizer umas coisas, mas não podem dizer outras.
A solução para esta situação tem de passar pela conciliação dos dois valores. Parece-me
que em situações que o justifiquem, se deve permitir que o juiz admita os novos factos e,
em simultâneo, convide o demandante a apresentar prova em audiência posterior,
suspendendo-se aquela sessão. Com esta possibilidade, respeita-se o princípio do
contraditório e a verdade material, sacrificando-se a economia processual e a regra da
concentração da defesa, prevista no artigo 489.º CPC. Regra consequente do princípio da
preclusão, princípio que aliás não está previsto na Lei dos Julgados de Paz.
Na audiência de julgamento, o juiz faz uma nova tentativa de resolução do litígio por
consenso, através da conciliação.630 Não sendo tal possível, produz-se a prova e, por fim,
é proferida a sentença (artigo 60.º). A lei manda que a sentença seja oral – proferida em
audiência de julgamento. Pressupõe a lei, assim, que a sentença seja imediata, o que na
maioria das vezes não é observado. Esta sentença imediata é, porém, importante na lógica
da participação cívica e da justiça de proximidade, valores justificantes da criação dos
Julgados de Paz.631
As sentenças que excedam metade da alçada da primeira instância são recorríveis para os
tribunais judiciais – artigo 62.º LJP. O recurso tem efeito meramente devolutivo e segue o
regime geral da apelação. O preceito refere-se ao recurso de agravo, mas este deixou de
existir com a revogação dos artigos 734.º e seguintes do CPC, operada pelo Decreto-Lei
303/2007, de 24 de Agosto.
629
Distinção que, aliás, nem do ponto de vista técnico é fácil ou isenta de críticas – cfr. Mariana
França Gouveia, A Prova, 2008, p. 334.
630
Cfr. supra Capítulo IV sobre Conciliação.
631
Aplicam-se aqui as mesmas razões de regra idêntica prevista no Regime Processual
Experimental - Mariana França Gouveia, Regime Processual Experimental, 2006, p. 144-146.
250
VII
CRITÉRIOS DE SELECÇÃO
632
Disponível para venda em www.cpradr.org.
633
Disponível gratuitamente em www.fjc.gov.
634
Frank Sander e Lukasz Rozdeiczer, Selecting an appropriate Dispute Resolution Procedure,
2005, p. 387 e seguintes.
251
Em relação às características das partes, são sugeridas algumas perguntas chave que
devem ser colocadas no momento da escolha: quais os benefícios que as partes podem
retirar dos meios de resolução alternativa de litígios (melhor resultado, poupança de
tempo e dinheiro, manutenção da relação); quem são as partes e os seus advogados e se
podem usar efectivamente os meios de resolução alternativa de litígios; se há partes não
representadas; se há partes públicas; se o acordo depende de informação que as partes
querem manter confidencial.
A análise deve começar pelos interesses das partes, que podem ser os mais variados:
celeridade, privacidade, vingança pública, obter uma opinião neutral, reduzir custos,
manter o relacionamento com a contra-parte, criação de um precedente, recuperação
máxima ou mínima do crédito, criação de novas soluções, controlo do processo, mudança
da responsabilidade da decisão para uma terceira pessoa, supervisão do tribunal,
transformação da atitude ou do comportamento da contraparte, etc., etc..
Após a identificação dos objectivos das partes, que podem ser diversos e até
contraditórios, deve fazer-se uma sua hierarquização, ou seja, colocar por ordem quais os
mais importantes e quais os menos importantes.
252
De seguida, Sander e Rozdeiczer atribuem pesos diferentes a cada interesse para cada um
dos meios de resolução alternativa de litígios. Por exemplo, o objectivo celeridade obtém
pontuação 3 na mediação, pontuação 1 na arbitragem e 0 na via judicial. Já ao objectivo
vingança pública é atribuída uma pontuação de 0 na mediação e de 3 na via judicial. É
apresentada uma tabela com 13 objectivos e suas pontuações. Esta tabela pode ser ainda
aumentada com outros interesses das partes e com outros mecanismos de resolução de
litígios.
A tabela proposta pelos autores tem como pressuposto os meios de resolução de litígios
dos Estados Unidos da América. É, porém, perfeitamente possível adequar estes critérios
aos meios conhecidos entre nós. O resultado seria este:
Julgados
Interesse/Meio Negociação Mediação Arbitragem de Paz Tribunal
Celeridade 3 3 1 2 0
Privacidade 3 3 2 0 0
Vingança
pública 0 0 2 3 3
Opinião neutral 0 1 3 3 3
Baixos custos 3 3 0
-3[1] 3 0
Manutenção da
relação 3 3 1 2 0
Criação de
precedente 0 0 2 3 3
0
253
Máxima ou
mínima
recuperação 0 0 2 2 3
Criação de
novas soluções 3 3 1 0 0
Controlo do
processo pelas
partes 3 3 3 2 0
Controlo do
resultado pelas
partes 3 3 1 1 0
Supervisão
judicial 0 0 2 3 3
Alteração dos
comportamentos 1 3 0 2 0
Este critério tem, porém, uma dificuldade, não muito difícil de antecipar: que fazer
quando a contra-parte tem outros interesses ou os hierarquiza de forma diferente?
Para ultrapassar este problema, os autores apresentam dois outros critérios a utilizar em
conjunto com este. Assim, após a análise dos interesses passa-se ao exame das
254
Por último, é objecto de atenção os obstáculos a uma solução consensual do litígio. Por
exemplo, má comunicação, necessidade de expressar emoções, diferentes visões dos
factos ou do direito, múltiplas partes, diferenças entre os interesses dos advogados e dos
seus clientes, etc..
É óbvio, porém, que nem todos os casos poderão ser resolvidos por esta via, há situações
em que as partes apenas aceitam uma decisão de um terceiro – essencialmente porque os
interesses são inconciliáveis, mas também porque as características das partes poderão
não se adequar à mediação. Partes muito agressivas ou, pelo contrário, manipuláveis;
grandes corporações “sem cara” ou consumidores para quem é indiferente comprar nesta
loja ou na do lado, poderão apenas aceitar uma decisão de um terceiro, não pretendendo
255
transigir no seu direito. Se assim for, há ainda que ponderar a possibilidade de uma
conciliação judicial. Um terceiro com uma fonte especial de persuasão, como o juiz ou o
árbitro, poderá obter resultados diferentes da mediação. Por último, entre as opções
adjudicatórias, arbitragem, julgados de paz e tribunal judicial, a escolha dependerá, mais
uma vez, das características do caso.
256
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JURISPRUDÊNCIA
10. Golfe das Amoreiras – RL, 2 de Outubro de 2006, Proc. n.º 1465/2006-2
ÍNDICE
Abreviaturas
Nota sobre jurisprudência
Nota prévia
1. Introdução
1.1. Noção
1.2. Antecedentes
1.3. Em Portugal
2. Negociação
2.1. Noção
2.2. Modelos
3. Mediação
3.1. Noção.
3.2. Pleno domínio das partes e interesses
3.3. A função do advogado na mediação
3.4. O Mediador
3.5. Sistemas de integração
3.6. Fases e técnicas
3.7. Sistemas públicos de mediação
3.8. O Direito da mediação
3.8.1. A convenção de mediação
3.8.2. A mediabilidade
274
4. Conciliação
4.1. Noção
4.2.
4.3.
5. Arbitragem
5.1. Noção e natureza jurídica
5.2. Espécies
5.3. Convenção arbitral
5.3.1. Noção e natureza jurídica
5.3.2. Modalidade, em especial a adesão unilateral prévia
5.3.3. Requisitos
5.3.4. Arbitrabilidade
5.4. Efeitos positivo e negativo da convenção de arbitragem
5.5. Constituição do tribunal
5.6. Estatuto do árbitro
5.7. Processo arbitral
5.7.1. A escolha das regras processuais
5.7.2. Alegações das partes
5.7.3. Fase intermédia
5.7.4. Prova
5.7.5. Limites às regras processuais – os princípios fundamentais do
processo justo
6. Julgados de Paz
6.1. Noção
6.2. Princípios
6.3. Competência
6.4. Tramitação processual
7. Critérios de selecção
Bibliografia
Jurisprudência