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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA
CONTEMPORANEA

Uma colecção que se pretende aberta


a todas as correntes do pensamento filosófico actual,
congregando os autores mais significativos
e abarcando os grandes pólos da filosofia actual:
filosofia da linguagem, hermenêutica, epistemologia e outros
BIBLIOTECA DE FILOSOFIA
_._._._---~

CONTEMPORANEA

1. MENTE, CÉREBRO E CIÊNCIA, Iohn Searle


2. TEORIA DA INTERPRETAÇÃO, Paul Ricoeur
3. TÉCNICA E CIÊNCIA COMO «IDEOLOGIA», Iürgen Habermas
4. ANOTAÇÕES SOBRE AS CORES, Ludwig Wittgenstein
5. TOTALIDADE E INFINITO, Emmanuel Levinas
6. AS AVENTURAS DA DIFERENÇA, Gianni Vattimo
7. ÉTICA E INFINITO, Emmanuel Levinas
8. ° DISCURSO DE ACÇÃO, Paul Ricoeur
9. A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO, Martin Heidegger
10. A TENSÃO ESSENCIAL, Thomas S. Kuhn
11. FICHAS (ZETTEL), Ludwig Wittgenstein A SOCIEDADE
12. A ORIGEM DA OBRA DE ARTE, Martin Heidegger
13. DA CERTEZA, Ludwig Wittgenstein TRANSPARENTE
14. °
A MÃO E ESPÍRITO, Iean Brun
15. ADEUS À RAZÃO, Paul Feyerabend
16. TRANSCENDÊNCIA E INTELIGIBILIDADE, Emmanuel Levinas
17. A SOCIEDADE TRANSPARENTE, Gianni Vattimo
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Gianni Vattimo
Título original: LA SOCIETÀ TRASPARENTE

© Garzanti Editore, s.p.a., 1989

Tradução de Carlos Aboim de Brito

Revisão de tradução deArtur Morão

Revisão tipográfica de Artur Lopes Cardoso

Capa de Edições 70

A SOCIEDADE
Dep('lsito Legal 11." -IX 7<J<)j<J!

ISBN -972-44-0787 -X

Direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70, Lda.

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será passível de procedimento judicial

edições 70
~--~

PÓS-MODERNO:
UMA SOCIEDADE TRANSPARENTE?

Actualmente, fala-se muito de pós-modernidade. Fala-


-se tanto que já se tomou quase obrigatório guardar as dis-
tâncias em relação a este conceito, considerá-Io uma moda
passageira, declará-Io mais uma vez um conceito «su-
perado» ... Pois bem, na minha opinião, o termo pós-mo-
derno tem um sentido. E este sentido liga-se ao facto de a
sociedade em que vivemos ser uma sociedade de comuni-
cação generalizada, a sociedade dos mass media.
Antes de mais, falamos de pós-moderno porque consi-
deramos que, em qualquer dos seus aspectos essenciais, a
modernidade acabou. O sentido em que se pode afirmar
que a modernidade acabou relaciona-se com o que se en-
tende por modernidade. Entre as muitas definições, julgo
que existe urna com a qual podemos estar de acordo: a
modernidade é a época em que o facto de ser moderno se
toma um valor determinante. Em italiano, mas creio tam-
bém que em muitas outras línguas, é ainda uma ofensa di-
zer a alguém que é «reaccionário», isto é, agarrado aos
valores do passado, à tradição, a formas de pensamento
«ultrapassadas». Em maior ou menor grau, esta considera-

9
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ção «eulógica», elogiante, do ser moderno é aquilo que, na tas representações. Walter Benjamin, por exemplo, num
minha opinião, caracteriza toda a cultura moderna. Tal ati- breve escrito de 1938 (Teses sobre a Filosofia da História)
tude não é tão evidente desde finais de Quatrocentos defendeu que a história corno discurso unitário é urna re-
(quando «oficialmente» se dá início à idade moderna), presentação do passado construída por grupos e classes
ainda que, desde então, por exemplo na nova maneira de sociais dominantes. O que se recebe, afinal, do passado?
encarar o artista corno génio criador, se desenvolva cada Não tudo o que aconteceu, mas apenas aquilo que parece
vez mais o culto do novo, do original, que não existia nas ser relevante. Por exemplo, na escola, estudámos muitas
épocas precedentes (épocas em que a imitação de modelos datas de batalhas, tratados de paz, até revoluções; mas
era um elemento de extrema importância). Com o passar nada nos disseram das transformações operadas no modo
dos séculos, tornar-se-á cada vez mais claro que o culto do de nos alimentarmos, no modo de viver a sexualidade, ou
novo e do original na arte se relaciona com urna perspec- coisas semelhantes. Assim, aquilo de que fala a história
tiva mais geral, a qual, corno acontece na idade do Ilumi- são os factos da gente que conta, dos nobres, dos sobera-
nismo, considera a história humana corno um processo de nos, ou da burguesia quando se torna classe de poder; mas
emancipação progressivo, corno urna cada vez mais per- os pobres, ou mesmo os aspectos da vida que são consi-
feita relativização do homem ideal (o texto de Lessing derados «baixos», não «fazem história».
sobre A educação do género humano, 1780, é uma expres- Se se desenvolverem observações corno esta (segundo
são típica desta perspectiva). Se a história tem este sentido urna via iniciada, antes de Benjamin, por Marx e Nietzs-
progressivo é evidente que terá mais valor aquilo que está che), conclui-se que a ideia de história corno curso unitário
mais «avançado» em termos de conclusão, aquilo que está acaba por se dissolver. Não existe urna história única, exis-
mais próximo do termo do processo. No entanto, a condi- tem sim imagens do passado propostas por pontos de vista
ção para conceber a história corno realização progressiva diversos, e é ilusório pensar que existe um ponto de vista
da humanidade autêntica é que esta possa ser vista corno supremo, globalizante, capaz de unificar todos os outros
um processo unitário. Só quando existe história se pode (corno seria «a história» que engloba a história da arte, da
falar de progresso.
literatura, das guerras, da sexualidade, etc.).
Pois bem, a modernidade, na hipótese que proponho, A crise da ideia de história traz consigo a crise da ideia
acaba quando - por múltiplas razões - já não é possível de progresso: se não existe um curso unitário dos factos
falar da história corno algo de unitário. Efectivamente, humanos, nem sequer se poderá sustentar que eles cami-
semelhante visão da história implicava a existência de um nham para um fim, que realizam um plano racional de
centro em torno do qual se recolhem e se ordenam os acon- melhoramento, educação, emancipação. De resto, o fim
tecimentos. Pensamos a história como algo ordenado em que a modernidade considerava poder dirigir o curso dos
torno do ano zero do nascimento de Cristo; mais especifi- acontecimentos era, também ele, representado do ponto de
camente, corno urna cadeia de vicissitudes dos povos da vista de um certo ideal do homem. Iluministas, Rege!,
zona «central», o Ocidente, que representa o lugar da civi- Marx, positivistas, historicistas de todos os tipos, pensa-
lização, à margem do qual se situam os «primitivos», os vam todos, mais ou menos da mesma maneira, que o sen-
povos «em vias de desenvolvimento». A filosofia entre os tido da história fosse a realização da civilização, isto é, da
séculos XIX e XX criticou radicalmente a ideia de história forma" do homem europeu moderno. Tal corno a história só
unitária, revelando precisamente o carácter ideológico des- se pensa unitariamente de um ponto de vista determinado

10 11
que se coloca ao centro (seja ele a vinda de Cristo ou o
Em primeiro lugar, a impossibilidade de pensar a histó-
Sacro Império Romano), também o progresso só se con- ria como um curso unitário, impossibilidade que, segundo
cebe assumindo como critério um certo ideal do homem; o a tese aqui defendida, dá lugar ao fim da modernidade, não
qual, na modernidade, foi sempre o ideal do homem mo-
surge apenas da crise do colonialismo e do imperialismo
derno europeu - como quem diz: nós, europeus, somos a europeu; é também, e talvez mais, o resultado do apareci-
melhor forma de humanidade, todo o curso da história se mento dos meios de comunicação de massa. Estes meios
ordena conforme este ideal se realize mais ou menos com-
pletamente. - jornais, rádio, televisão, em geral tudo aquilo a que hoje
se chama telemática - foram determinantes para o proces-
Se considerarmos tudo isto, percebemos também que a so de dissolução dos pontos de vista centrais, daqueles que
crise actual da concepção unitária da história, a crise con- um filósofo francês, Jean François Lyotard, denomina as
sequente da ideia de progresso e o fim da modernidade, grandes narrativas. Este efeito dos mass media parece ser
não são apenas acontecimentos determinados por transfor- exactamente contrário à imagem que um filósofo como
mações teóricas - pelas críticas que o historicismo do sé- Theodor Adorno ainda tinha. Na base da sua experiência
culo XIX (idealista, positivista, marxista, etc.) sofreu no de vida nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra
plano das ideias. Muito mais e diverso aconteceu: os povos Mundial, Adorno, em obras como A Dialéctica do /lumi-
ditos «primitivos» colonizados pelos Europeus em nome nismo (escrita em colaboração com Max Horkheimer) e
do bom direito da civilização «superior» e mais evoluída, Minima Moralia, previa que a rádio (só mais tarde a te-
revoltaram-se e tornaram problemática a ideia de história levisão) tivesse o efeito de produzir uma homologação
unitária centralizada. O ideal europeu de humanidade foi
geral da sociedade, permitindo, ou melhor, favorecendo,
revelado como um ideal entre outros, não necessariamente
por uma espécie de tendência demoníaca interna, a for-
pior, mas que não pode, sem violência, pretender ter o va-
mação de ditaduras e governos totalitários capazes, como o
lor de verdadeira essência do homem, de todos os homens. «Grande Irmão» de 1984, de George Orwell, de exercer
Paralelamente ao fim do colonialismo e do imperialis- um controlo estreito sobre os cidadãos, através da dis-
mo, um outro grande factor foi determinante para a disso- tribuição de slogans, propaganda (tanto comercial como
lução da ideia de história e para o fim da modernidade e
política), visões estereotipadas do mundo. O que de facto
que é o advento da sociedade da comunicação. Chego aconteceu, não obstante todos os esforços dos monpólios e
assim ao segundo ponto, aquele que diz respeito à «socie- das grandes centrais capitalistas, foi que a rádio, a tele-
dade transparente». Como já se observou, a expressão visão e os jornais se tomaram elementos de uma explosão
«sociedade transparente» é aqui introduzida de uma forma
e multiplicação generalizada de Weltanschauungen, de
interrogativa. O que pretendo defender é o seguinte: a) no visões do mundo.
nascimento de uma sociedade pós-moderna, os mass media Nas últimas décadas, tomaram a palavra nos Estados
exercem um papel determinante; b) eles caracterizaram Unidos minorias de todos os tipos, surgiram na ribalta da
esta sociedade não como uma sociedade mais «transparen- opinião pública culturas e subculturas de todo o género.
te», mais consciente de si, mais «iluminada», mas como Podemos, certamente, objectar que a esta tomada de pala-
uma sociedade mais complexa, ou mesmo caótica; e, por vras não correspondeu uma verdadeira emancipação políti-
fim, c) é precisamente nestes «caos» relativo que residem ca - o poder económico está ainda nas mãos do grande
as nossas esperanças de emancipação.
capital. E fiquemos por aqui - não quero alargar dema-
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13
siado a discussão neste domínio; o facto é que a própria mação, ou mesmo apenas a existência de mais canais de
lógica do «mercado» da informação requer uma contínua rádio e de televisão, num mundo cuja norma fosse a repro-
dilatação deste mercado e exige consequentemente que dução exacta da realidade, a perfeita objectividade, a total
«tudo» se tome, de certo modo, objecto de comunicação. identificação do mapa com o território? De facto, a intensi-
Esta multiplicação vertiginosa da comunicação, esta «to- ficação das possibilidades de informações sobre a reali-
mada de palavra» por parte de um número crescente de dade nos seus mais variados aspectos toma cada vez menos
subculturas, é o efeito mais evidente dos mass media e é concebível a própria ideia de uma realidade. Talvez se
também o facto que - interligado com o fim ou, pelo verifique uma «profecia» de Nietzsche no mundo dos mass
menos, com a transformação radical do imperialismo eu- media: o mundo real toma-se, afinal, uma fábula. Se temos
ropeu - determina a passagem da nossa sociedade para a uma ideia da realidade, esta, na nossa condição de exis-
pós-modernidade. Não só nos confrontos com outras cultu- tência tardo-moderna, não pode ser entendida como um
ras universais (por exemplo, o «Terceiro Mundo»), mas dado objectivo que se situe a um nível inferior, para lá das
também no seu próprio seio, o Ocidente vive uma situação imagens que nos dão os media. Como e onde poderemos
explosiva, uma pluralização que parece ser irresistível e atingir uma tal realidade em si? Realidade, para nós, é o
que toma impossível a çoncepção do mundo e da história resultado do encadeado de relações da «contaminação» (no
segundo pontos de vista unitários. sentido latino) das múltiplas imagens, interpretações, re-
A sociedade dos mass media, precisamente por estas construções que, em concorrência entre si, ou de algum
razões, é o oposto de uma sociedade mais esc1arecida, mais modo sem qualquer coordenação «central» os media dis-
«educada» (no sentido de Lessing ou de Hegel, ou mesmo tribuem. A tese que pretendo propor é que, na sociedade
de Comte ou de Marx); os mass media, que teoricamente dos media, em vez de um ideal emancipativo modelado na
tomaram possível uma informação «em tempo real» sobre autoconsciência completamente definida, no perfeito co-
tudo o que acontece no mundo, poderiam, efectivamente, nhecimento de quem sabe como estão as coisas (quer seja
parecer uma espécie de realização concreta do Espírito o Espírito Absoluto de Hegel, quer seja o homem já não
Absoluto de Hegel, ou seja, de uma perfeita autoconsciên- escravo da ideologia, como pensa Marx), está a surgir um
cia de toda a humanidade, de uma coincidência entre o que ideal de emancipação que, na sua própria base, reflecte
ocorre, a história e o conhecimento do homem. Vendo oscilação, pluralidade, e finalmente, a erosão do próprio
bem, críticos de inspiração hegeliana e marxista como «princípio de realidade». Hoje, o homem pode finalmente
Adorno raciocinam precisamente pensando neste modelo, tomar-se consciente de que a perfeita liberdade não é a de
e baseiam o seu pessimismo no facto de que ele (no fundo, Espinosa, não é - como sempre sonhou a metafísica -
por culpa do mercado) não se realiza como seria possível, conhecer a estrutura necessária do real e adequar-se a ela.
ou então realiza-se de modo perverso e caricatural (como A importância dos ensinamentos filosóficos de autores
no mundo homólogo, e talvez mesmo «feliz» através da como Nietzsche e Heidegger reside no facto de que estes
manipulação dos desejos, dominado pelo «Grande Ir- nos oferecem os instrumentos para compreender o sentido
mão»). Mas a libertação das múltiplas culturas e das emancipador do fim da modernidade e da sua ideia de his-
múltiplas Weltanschauungen, tomada possível pelos mass tória. Nietzsche mostrou, de facto, que a imagem de uma
media, desmentiu, no entanto, o próprio ideal de uma so- realidade racionalmente ordenada na base de um funda-
ciedade transparente: que sentido teria a liberdade de infor- mento (a imagem do mundo que a metafísica sempre con-

14 15
cebeu) não passa de um mito «reconfortante», própria de lizada explode como uma multiplicidade de racionalidades
uma humanidade ainda primitiva e bárbara: a metafísica é «locais» - minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais
um modo ainda violento de reagir a uma situação de perigo ou estéticas - que tomam a palavra, finalmente já não
e de violência; procura, de facto, apropriar-se da realidade tacitamente aceites e retomadas pela ideia de que só existe
num «golpe de mão», recolhendo (ou julgando recolher) o uma única forma de humanidade verdadeira para realizar,
princípio primordial de que tudo depende (e, assim, asse- não obstante todas as peculiaridades, todas as individuali-
gurando ilusoriamente o controlo dos acontecimentos). dades limitadas, efémeras, contingentes. Este processo de
Heidegger, seguindo na linha de Nietzsche, mostrou que libertação das diferenças, diga-se de passagem, não é ne-
pensar o ser como fundamento, e a realidade como sistema cessariamente o abandono de toda e qualquer regra, a
racional de causa e efeitos, é apenas um modo de estender manifestação bruta do imediato: até os dialectos têm uma
a todo o ser o modelo de objectividade «científica», da gramática e uma sintaxe, logo, só quando adquirem dig-
mentalidade que, para poder dominar e organizar rigorosa- nidade e visibilidade descobrem a sua própria gramática.
mente todas as coisas, as deve reduzir ao nível de meras A libertação das diversidades é um acto através do qual
presenças mesuráveis, manipuláveis, substituíveis _ redu- elas «tomam a palavra», se apresentam, isto é, se «põem na
zindo a este nível, afinal, o próprio homem, a sua interiori- forma», de modo a poderem ser reconhecidas; algo bem
dade, a sua historicidade. diferente de uma manifestação bruta do imediato.
Se com a multiplicação das imagens do mundo perde- O efeito emancipador da libertação das racionalidades
mos o «sentido da realidade», como se diz, talvez não seja, locais não é, no entanto, apenas o de garantir a cada um um
afinal, grande perda. Pela sua perversa lógica interna, o mais completo reconhecimento e «autenticidade»; como se
mundo dos objectos mesuráveis e manipuláveis da ciência- a emancipação consistisse em manifestar por fim aquilo
-técnica (o mundo do real, segundo a metafísica), tomou- que cada um é «verdadeiramente» (em termos ainda meta-
-se um mundo de mercadorias, de imagens, o fantas- físicos, espinosianos): negro, mulher, homossexual, pro-
magórico mundo dos mass media. Deveremos contrapor a testante, etc. O sentido emancipador da libertação das di-
este mundo a nostalgia de uma realidade sólida, unitária, ferenças e dos «dialectos» consiste mais no complexo efei-
estável e «com legitimidade»? Tal nostalgia corre o risco to de desenraízamento que acompanha o primeiro efeito de
de se transformar continuamente num comportamento identificação. Se falo o meu dialecto, afinal num mundo de
neurótico, num esforço de reconstrução do mundo da dialectos, também estou consciente de que ele não é a úni-
nossa infância, no qual as autoridades familiares eram, ao ca «língua», mas precisamente um dialecto entre outros. Se
mesmo tempo, ameaçadoras e reconfortantes. professo o meu sistema de valores - religiosos, estéticos,
Mas em que consiste mais especificamente a possível políticos, étnicos - neste mundo de culturas plurais, terei
amplitude de emancipação, de libertação, da perda do sen- também uma consciência aguda da historicidade, contin-
tido da realidade, no mundo dos mass media? Neste caso, a gência e limitação de todos estes sistemas, a começar pelo
emancipação consiste mais no desenraizamento que é tam- meu.
bém, e simultaneamente, libertação das diferenças, dos ele- É aquilo a que Nietzsche, numa página da Gaia Ciên-
mentos locais, de tudo aquilo a que podemos chamar, no cia, chama «continuar a sonhar, sabendo que se está a
seu conjunto, o dialecto. Caída a ideia de uma racionali- sonhar». Será possível uma coisa deste tipo? A essência do
dade central da história, o mundo da comunicação genera- que Nietzsche chamou o «super-homem» (ou ultra-ho-

16 17
: ~
I

mem), o Uebermensch, está toda aqui; e é a tarefa que ele


simultaneamente reconfortantes, continua a estar radicada
atribui à humanidade do futuro, precisamente no mundo da
comunicação intensificada. em nós, como indivíduos e como sociedade. Filósofos nii-
,
listas como Nietzsche e Heidegger (mas também pragma-
Um exemplo do que pode significar o feito emancipa-
dor da «confusão» dos dialectos pode encontrar-se na des- tistas como Dewey e Wittgenstein), ao mostrar-nos que o
III

ser não coincide necessariamente com o que é estável,


crição da experiência estética que Wilhelm Dilthey dá
II fixo, permanente, mas tem a ver com o acontecimento, o
(uma descrição que continua a ser decisiva também para
Heidegger, na minha opinião). Ele pensa que o encontro consenso, o diálogo, a interpretação, esforçam-se por nos
III
com a obra de arte (como de resto o próprio conhecimento tomarem capazes de captar esta experiência de oscilação
do mundo pós-moderno como chance de um novo modo
da história) é uma maneira de experimentar, na imagina-
1I
de sermos (talvez finalmente) humanos.
II ção, outras formas de existência, outros modos de vida di-
ferentes daquele a que de facto estamos limitados no nosso
quotidiano concreto. Cada um de nós, ao amadurecer, res-
tringe os seus próprios horizontes de vida, especializa-se,
fecha-se no interior de uma determinada esfera de afectos,
interesses, conhecimentos. A experiência estética permite-
-lhe viver outros mundos possíveis, mostrando-lhe também
a contingência, a relatividade, o carácter não definitivo do
mundo «real» dentro do qual está encerrado.
Na sociedade da comunicação generalizada e de plurali-
dade de culturas, o encontro com outros mundos e forma
de vida talvez seja menos imaginário do que era para Dil-
they: as possibilidades «outras» de existência realizam-se
sob os nossos olhos, sendo representadas pelos múltiplos
«dialectos», ou mesmo pelos universos culturais que a an-
tropologia e a etnologia nos tomam acessíveis. Viver neste
mundo multifacetado significa fazer experiência da liber-
dade como oscilação contínua entre pertença e desenraíza-
mento.

É uma liberdade problemática, não só porque este efeito


dos media não é garantido, é apenas uma possibilidade re-
conhecer e cultivar (os media podem igualmente ser sem-
pre a voz do «Grande Irmão»; ou da banalidade esterioti-
pada, do vazio de significado ...) - mas também porque
nós próprios não sabemos ainda muito bem qual é a sua
fisionomia. É difícil conceber esta oscilação como liber-
dade: a nostalgia dos horizontes fechados, ameaçadores e

18
19

.
,11111
CIÊNCIAS HUMANAS
E SOCIEDADE DA COMUNICAÇÃO

A relação entre ciências humanas e sociedade de comu-


nicação - a nossa sociedade caracterizada pela intensifi-
cação do intercâmbio de informações e pela identificação
tendencial (televisão) entre acontecimento e notícia - é
mais estreito e orgânico do que geralmente se crê. Se, na
generalidade, é de facto verdade que as ciências, na sua
forma moderna de ciências experimentais e «técnicas»
(manipuladoras dos dados naturais), constituem mais o seu
objecto do que exploram um «real» já constituído e orde-
nado, isto é válido de maneira muito especial para as ciên-
I
cias humanas. Estas não são unicamente urna nova maneira
de enfrentar um fenómeno «exterior», o homem e as suas
instituições, determinado deste sempre; mas tomaram-se
possíveis, nos seus métodos e no seu ideal cognoscitivo,
pela modificação da vida individual e associada, pela cons-
tituição de um modo de existência social que, por sua vez,
é directamente moldado pelas formas da comunicação
moderna. Não seria concebível urna sociologia corno ciên-
cia, e, mesmo tendencialmente, corno previsão, de grandes
comportamentos colectivos, ou até unicamente corno ac-

21
~ão tipológica das diferenças destes comportamentos, não Uma primeira abordagem do nosso tema pode ser, pois,
só se não subsistisse a possibilidade de recolher as infor- a constatação - naturalmente corroborada por mais am-
mações necessárias (que, portanto, supõem um certo modo plos aprofundamentos e factos relevantes -- de que as di-
de comunicação), mas, sobretudo, sem que algo como um tas «ciências humanas» (um termo que, no nosso discurso,
I
comportamento colectivo se pudesse determinar como fac- como na cultura actual, continua não totalmente determi-
to. Esta possibilidade só se toma efectiva num mundo em nado quanto aos seus limites e ao seu âmbito de conheci-
I

que a comunicação social superou certos níveis. Até e mento), da sociologia à antropologia e até à psicologia -
I

sobretudo um saber como o da antropologia não seria pos- que surgem, de facto, já na modernidade - estão condi-
I
sível sem o facto elementar do encontro com civilizações e cionadas, além do mais numa relação de recíproca deter-
grupos humanos diversos - encontro que só se verificou minação, pela constituição da sociedade moderna como
de modo determinante com as viagens e as descobertas sociedade da comunicação. As ciências humanas são, no
modernas. Ou ainda, voltando à sociologia: uma descrição seu conjunto, efeito e meio de ulterior desenvolvimento da
da sociedade que não se identifique com a descrição, cata- sociedade da comunicação generalizada. Embora não se
logação e comparação de regimes políticos (como a Políti- possa pretender dar uma definição exaustiva nem das ciên-
ca de Aristóteles), nem sequer se pode conceber "_ mais cias humanas nem da sociedade da comunicação -- dois
uma vez no quadro do devir social moderno - antes de se termos cuja indeterminação deriva precisamente do seu
ter constituído algo como a «sociedade», o que Hegel de- preliminar carácter óbvio no discurso da nossa cultura -
nominava sociedade civil, distinta do Estado e das formas pode concordar-se genericamente, que denominamos ciên-
de organização política do poder. Observar-se-á que o apa- cias humanas todos os saberes que se inscrevem (ou ten-
recimento e o desenvolvimento de uma sociedade civil dis- dem a inscrever-se como, por exemplo, a psicologia) no
tinta do Estado não são, de imediato, um fenómeno em que âmbito do que Kant denominou antropologia pragmática
se possa ver a conexão directa Com os fenómenos da co- - isto é, que dão uma descrição «positiva», não filosófi-
municação e com os novos meios de informação postos à co-transcendental, do homem, não a partir do que ele é por
disposição pela técnica moderna. No entanto, é possível natureza, mas do que fez de si, ou seja, a partir das insti-
mostrar - por exemplo, retomando os estudos de Haber- tuições, das formas simbólicas, da cultura. Esta definição
mas sobre a opinião públicae) - que, mesmo no devir da das ciências humanas deixa certamente em aberto muitos
sociedade moderna, como âmbito diferenciado em relação problemas, sobretudo o que diz respeito à antropologia de
ao Estado, a opinião pública desempenha um papel funda- Arnold Gehlen. Mas o que nos interessa agora não é uma
mental, como ideia geral de uma esfera pública que está, definição epistemologicamente exaustiva das ciências
decerto, ligada aos mecanismos da informação e da comu- humanas, mas a relação destas formas de saber (quais os
nicação social.
limites exactos do seu domínio) com a sociedade da comu-
nicação generalizada. Se avançamos a hipótese, muito ge-
nérica, de que as ciências humanas são as que descrevem
«positivamente» o que o homem faz de si na cultura e na
ct) Ver J. Habennas, Storia e critica deI!' opinione pubblica sociedade, então também podemos pressupor que a própria
(1962), tradução italiana de A. Illuminati, F. Masini, W. Perret-
ta, Bari, 1974. ideia de descrição está essencialmente condicionada pelo
desenvolvimento, de modo visível e acessível a análises
22
23
I

comparativas, de uma tal positividade do fenómeno hu- atrasados se precisa como a diferença no desenvolvimento
mano, o que, na forma mais evidente, se articula precisa- da informática. Consequentemente, quando Heidegger fala
mente com o desenvolvimento da sociedade moderna nos (como em Veredas Interrompidas) de «época das imagens
seus aspectos comunicativos.
do mundo» para definir a modernidade não usa uma ex-
Falar de sociedade da comunicação inclui, todavia, uma pressão metafórica, nem descreve apenas um aspecto entre
outra hipótese, que estende e complica a primeira que pro- outros do moderno complexo de ciência e técnica, como
pusemos sobre a conexão entre ciências humanas e socie- fundamento da mentalidade moderna; mas define precisa-
dade da comunicação, isto é, a hipótese de que a intensifi- mente a modernidade como a época em que o mundo se
cação dos fenómenos comunicativos, a acentuação da cir- reduz - ou melhor, se constitui - a imagens construídas
culação das informações até à contemporaneidade da cró- e verificadas pelas ciências, que se desdobram quer na
nica televisiva directa (e à «aldeia global» de McLuhan) manipulação da experiência, quer na aplicação dos resulta-
não é apenas um aspecto entre outros da modernização dos à técnica e na tecnologia da informação.
mas, de algum modo, o centro e o sentido próprio deste Dizer que a sociedade moderna é essencialmente a so-
processo. Tal hipótese reclama-se obviamente das teses de ciedade da comunicação e das ciências sociais não signifi-
McLuhan, segundo o qual uma sociedade é definida e ca- ca, portanto, pôr entre parêntesis a amplitude das ciências
racterizada pelas tecnologias de que dispõe, não em sen- da natureza e da tecnologia que elas tomaram possível na
tido genérico, mas no sentido específico de tecnologias da determinação da estrutura desta sociedade, mas antes cons-
comunicação. Eis a razão por que falar de uma «galáxia tatar que: a) o «sentido» em que a tecnologia se move não
Gutenberg» ou de um mundo tecnotrónico não equivale a é tanto o domínio mecânico da natureza, mas o desenvol-
sublinhar apenas um aspecto, ainda que essencial da so- vimento específico da informação e da construção do
ciedade contemporânea, mas indica antes o carácter essen- mundo como «imagen»; b) esta sociedade em que a tecno-
cial destes dois tipos de sociedade. Quando falamos de ci- logia tem o seu auge na «informação» é também, essen-
vilização da técnica, no sentido mais amplo e «ontológico» cialmente, a sociedade das ciências humanas -- no duplo
a que a noção heideggeriana de Oestell faz alusão, deve- sentido, objectivo e subjectivo, do genitivo: a que é conhe-
mos compreender que aquilo a que nos referimos não é cida e construída, como seu objecto adequado, pelas ciên-
apenas o conjunto dos utensílios técnicos que mediatizam a cias humanas; a que se exprime nestas ciências como um
relação entre o homem e a natureza, facilitando-lhe a exis- dos seus aspectos determinantes.
tência através de todos os tipos de utilização das forças Todo este conjunto de hipóteses pode ser corroborado,
naturais. Embora esta definição da tecnologia seja válida, se não «provado», mostrando que funciona para com-
em geral, para todas as épocas, revela-se hoje demasiado preender, por exemplo, a centralidade que assumem nas
genérica e superficial: a tecnologia que domina e modela o sociedades tardo-industriais as tecnologias informáticas,
mundo em que vivemos é certamente feita de máquinas, no que são como «o órgão dos órgãos», o lugar em que o sis-
sentido tradicional do termo, que fornecem os meios para tema tecnológico tem o seu «piloto» ou ciberneta, a sua
«dominar» a natureza externa; mas é sobretudo definida, e direcção, mesmo entendida como direcção tendencial de
de maneira essencial, por sistemas de recolha e transmis- desenvolvimento. Um outro terreno em que parece que
são de informações. Isto toma-se cada vez mais evidente à esta descrição unitária do mundo tecnológico como mundo
medida que a diferença entre países avançados e países das ciências sociais e da informática pode servir como hi-

24 25
I

I pótese unificadora é o da definição da «contemporanei- cia de que uma sociedade livre é aquela em que o homem
dade» do mundo contemporâneo: o qual, na perspectiva se pode tomar consciente de si numa «esfera pública», a
que propusemos, não se chama assim na base de critérios esfera da opinião pública, da discussão livre, etc., não
banais de proximidade «cronológica» (contemporâneo é o ofuscada por dogmas, preconceitos e superstições. O «cien-
que nos está temporalmente mais próximo), mas sim en- tismo» positivista, que se concretiza na reivindicação de
quanto mundo em que se delineia e começa a realizar-se uma passagem ao estádio positivo do saber do homem, não
concretamente a tendência para a redução da história no é banalmente redutível a uma sobrevalorização, quanto aos
plano da simultaneidade, através de técnicas como a tele- seus métodos, da ciência da natureza, cuja aplicação, inclu-
crónica directa.
sivamente no âmbito social e moral, deveria garantir uma
Se não quisermos seguir até às suas extremas e vertigi- maior certeza e eficácia mesmo a estes tipos de saber; mas
nosas consequências esta definição da contemporaneidade, compreende-se, pelo menos relativamente a Comte, apenas
que comporta certamente um reajustamente radical da pró- quando o observamos do ponto de vista da sua analogia
pria noção de história, poderemos, no entanto, reconhecer com o programa hegeliano da «realização» do espírito
a racionalidade de um outro aspecto ligado a tal hipótese, absoluto, da plena autotransparência da razão.
ou seja, mostrar que à luz dela os ideais sociais da moder- Este ideal de autotransparência, que atribui à comunica-
nidade se mostram unitariamente descritíveis por serem ção social e às ciências humanas um carácter não só instru-
guiados pela utopia da autotransparência absoluta. Tor- mental, mas de algum modo final e substancial, no pro-
nou-se claro, pelo menos a partir do Iluminismo, que sub- grama de emancipação, encontra-se hoje largamente na
meter as realidades humanas - as instituições sociais, a teoria social.
cultura, a psicologia, a moral - a uma análise científica Deste ponto de vista, é emblemático o pensamento de
não é apenas um programa epistemológico que se propo- autores corno Jürgen Habermas e Karl OUo Apel, ambos
nha atingir interesses cognoscitivos, estendendo o método diferentemente ligados à herança do marxismo crítico, da
científico a novos âmbitos de estudo; mas é uma decisão hermenêutica, da filosofia da linguagem, mas sobretudo
revolucionária que só se compreende em relação a um movidos por uma poderosa inspiração neokantiana, que se
ideal de transformação radical da sociedade. Não no sen- associa a uma certa interpretação da psicanálise. Apele),
tido de considerar o saber sobre o homem e as instituições por exemplo, constrói toda a sua visão da sociedade e da
como um meio para agir mais eficazmente em vista da sua moral em torno do ideal (que faz as funções de imperativo
modificação.
categórico kantiano) da «comunidade ilimitada da comuni-
A Aufklarung não é apenas uma etapa ou um momento cação» - um termo que se reivindica de Peirce e ao qual
preparatório da emancipação, mas a sua própria essência. ele atribuiu a função de uma meta-regra que torna possível
A sociedade das ciências humanas é aquela em que o hu- todos os nossos múltiplos jogos linguísticos. Referindo-se
mano se tomou finalmente objecto de saber vigoroso, váli- ao conhecido aforisma de Wittgenstein, segundo o qual
do, verificável. A importância que revestem, no programa nunca se pode jogar um jogo linguístico sozinho, Apel vê
de emancipação iluminista, aspectos como os da liberdade
de pensamento e da tolerância, não é motivada apenas, ou
principalmente, por uma reivindicação geral de liberdade, e) Ver K. o. Apel, Comunitá e comunicazione (1973), tra-
de cujos momentos fazem parte, mas antes pela consciên- dução italiana de G. Carchia, Rosenberg e Sellier, Turim, 1977.

26 27
11

implícita nesta utilização da linguagem, e logo de todos os ciais: são, de facto, a condição positiva que toma possível
uma autoconsciência social que supere os limites, quer do
actos de pensamento, uma inevitável assunção de respon-
sabilidades nos confrontos das regras linguísticas; tal res- idealismo, quer do determinismo materialista; a dialéctica
destes dois momentos, no sentido de uma síntese e de uma
ponsabilidade, porém, relaciona os falantes com os part-
ner, reais ou potenciais do diálogo social, face aos quais superação, verifica-se precisamente «no momento em que
cada um é responsável pelo respeito das regras: o que tam- a comunicação, que constitui o sujeito transcendental da
bém é válido quando se estabelecem jogos completamente ciência, se toma ao mesmo tempo objecto da ciência, no
privados, com linguagens que um falante tenha inventado domínio das ciências sociais no sentido mais lato do termo.
para si só; mesmo neste caso, o falante que inventa as re- Assim, toma-se claro que, por um lado, o sujeito do pos-
gras não é idêntico ao falante que, num momento diferen- sível consenso n,a verdade da ciência não é "uma cons-
te, as aplica e que assume a responsabilidade, face a qual- ciência em geral" extramundana, mas a sociedade históri-
quer potencial partner, da sua correcta observância. Isto co-real, e também que, por outro lado, a sociedade históri-
significa que cada acto de pensamento, enquanto acto de co-real pode ser compreendida adequadamente mas só se
linguagem, como defende Apel, se desenvolve sempre no for considerada como sujeito virtual da ciência, incluindo a
I

ciência social, e se a sua realidade histórica for recons-


horizonte de uma comunidade ideal de argumentantes,
para os quais o sujeito - a fim de que a sua forma de jogo truída sempre, de modo simultaneamente empírico e nor-
linguístico tenha sentido - não pode deixar de reconhecer mativo-crítico, em referência ao ideal, por realizar na so-
os mesmos direitos que reconhe a si próprio. Daí, portanto, ciedade, da comunidade ilimitada da comunicação»e).
uma espécie de exigência intrínseca de veracidade da lin- Convém observar que, neste caso, a expressão «socie-
guagem, que exige a eliminação de todo e qualquer obstá- dade da comunicação», a que atribuímos um sentido gene-
culo à transparência da comunicação: sobretudo dos obstá- ricamente descritivo, se toma um ideal normativo, com a
culos levantados voluntariamente pelos sujeitos (que os introdução do termo «comunidade» que, além de retomar
podem levantar certamente, mas não podem deixar de re- Peirce, evoca uma ideia de maior organicidade e imedia-
conhecer que não deveriam fazê-Io assim, como é de resto tismo da própria comunicação, assinalando uma das di-
o caso de cada falta ao respeito dos imperativos morais); e rccçf)cs dc significado em que certamente Apel se move,
ainda de todos aqueles de tipo social, ideológico, psicoló- um idcal dc tipo «compenetrado» romântico, que a maioria
gico, que tomam de facto opaca e imperfeita a comunica- das vc:t,cs é dominante nas teorias contemporâneas da
ção. Temos aqui uma extensão e radicalização do que Peir- comunicação(4). A sociedade da comunicação ilimitada,
ce denominou «socialismo lógico», uma expressão muito aquela em que se realiza a comunidade do socialismo lógi-
significativa para compreender o ideal normativo de fundo co, é uma sociedade transparente, que mesmo na liquida-
em todo este discurso: o ideal da perfeita transparência de ção dos obstáculos e das opacidades, através de um proces-
conhecimento, uma espécie de transformação da sociedade so largamente modelado numa determinada ideia da psi-
num «sujeito» de tipo científico - como o cientista no la-
boratório, sem preconceitos, ou capaz de prescindir deles e) Ibidem, p. 172.
em vista de uma verificação objectiva dos factos. Momen- (4) Ver sobre o assunto G. Vattimo, L' ermeneutica e il mo-
to decisivo, segundo Apel, para a realização de um socia- dello della comunitá no vaI. elaborado por U. Curi, La comuni-
lismo lógico, são precisamente as ciências humanas ou so- cazione umana, Angeli, Milão, 1985.

28 29
III

canálise,
de chega também a reduzir radicalmente os motivos
conflito. dade parece estar ao alcance da mão: bastaria que os mass
media, que são os modos em que a autoconsciência da so-
As posições de Apel são significativas não só porque ciedade se transmite já a todos os seus membros, não se
atribuem um papel essencial às ciências humanas na reali- deixassem condicionar por ideologias, interesses particula-
zação de uma sociedade da comunicação entendida como res, etc., e se tomassem de algum modo «órgãos» das ciên-
ideal normativo, mas também porque esclarecem sem cias sociais, se submetessem à verificação crítica um saber
equívocos o que está contido neste ideal como seu aspecto rigoroso, difundissem uma imagem «científica» da so-
essencial, isto é, a autotransparência (tendencialmente) ciedade, precisamente aquela que as ciências humanas já
completa da sociedade, sujeito-objecto de um saber refle- são capazes de construir.
xivo que, em certo sentido, realiza o carácter absoluto do Se avaliamos a situação actual com o padrão de seme-
espírito que, em Hegel, era um puro fantasma ideológico, lhante expectativa, isto é, do ideal normativo da autotrans-
um absoluto que, na sua «idealidade», mantinha com o real parência, encontramo-nos face a um conjunto de factos
concreto uma relação de transcendência «platónica», típica paradoxais: os próprios factos, por exemplo, que encon-
das essências metafísicas com todas as suas implicações tram os historiadores do mundo contemporâneo. Como es-
também, em grande sentido, repressivas (na medida em creve Nicola Tranfaglia(6), «paradoxalmente, no momento
que continuam a ser necessariamente transcendentes). Uma em que o enorme desenvolvimento da comunicação e do
verificação da importância deste ideal da autotransparência intercâmbio de informação culturais, além das políticas,
na cultura contemporânea pode encontrar-se na estrutura tomava possível um projecto de história autenticamente
conceptual que rege a grande pesquisa de Saltre sobre a mundial, o declínio da Europa e o nascimento de mil ou-
razão dialéctica, onde o problema é precisamente o de in- tros centros de história anulavam essa possibilidade e le-
dividualizar os meios concretos na base dos quais o saber vavam a historiografia ocidental e europeia a confrontar-se
de si da sociedade se constitui em formas não aIienadas, e com a necessidade de uma mutação profunda na própria
assim enquanto efectivamente participadas por todos os concepção do mundo». Em geral, o desenvolvimento in-
membros de tal sociedade: Sartre pensa naturalmente na tenso das ciências humanas e a intensificação da comuni-
revolução, enquanto Habermas e Apel pensam na ampli- cação social não parecem produzir um acréscimo da auto-
tude emancipadora das ciências sociais; mas o ideal de au- transparência da sociedade, parecem antes funcionar em
totransparência é o mesmo.
sentido oposto. Tratar-se-á simplesmente - como assume
É portanto esta, o ideal da autotransparência, a direcção muitas vezes uma sociologia crítica, talvez muito servil-
para que aponta hoje a conexão entre sociedade da comu- mente herdeira de esquemas da Zivilisations-Kritik dos pri-
nicação e ciências sociais? Isto é, estaremos finalmente em meiros anos deste século - do facto de que o desenvolvi-
condições de realizar um mundo em que, como diz Sartre mento tecnológico tem uma tendência intrínseca para fazer
na Questão de Método, o sentido da história se dissolverá as funções de suporte do poder tal como é, tomando-se fa-
nos que a fazem concretamente?CS) De facto, esta possibili-

(6) Na sua introdução ao voI. x, 2, de II mondo contempora-


e) Ver J. P. Sartre, Critica della regione dialettica (1960),
neo, dirigido por N. Tranfaglia, La Nuova Italia, Florença,
voI. I, pp. italiana
tradução 76-77. de P. Caruso, II Saggiatore, Milão, 1963, 1983.

30 31
talmente escravo da propaganda, da publicidade, da con-
idiográficas (ou em Dilthey, ciências da natureza e ciências
servação e intensificação da ideologia? A impossibilidade
do espírito, com a oposição entre explicação causal e
de fazer verdadeiramente uma história universal, por «compreensão»). Desde as origens, e cada vez mais nas
exemplo, com que os historiadores da contemporaneidade
décadas recentes, tal contraposição parece ser insatisfató-
estão confrontados, não parece estar ligada principalmente
ria: não só porque não se podiam deixar as ciências do es-
a limites deste tipo, mas antes a razões opostas; existe uma
pírito em poder de uma compreensão quase exclusiva-
espécie de entropia ligada à própria multiplicação dos cen-
mente intuitiva e simpatética; mas também e sobretudo
tros de história, isto é, dos lugares de recolha, unificação e porque as próprias ciências da natureza revelaram ser cada
transmissão das informações. A ideia de uma história mun-
vez mais determinadas, na sua constituição, por modelos
dial, nesta perspectiva, revela ser aquilo que de facto sem-
interpretativos de tipo histórico-cultural, entre os quais
pre foi: a redução do curso dos acontecimentos humanos
acaba por se integrar também o tipo pretensamente «neu-
II
sob uma perspectiva unitária que é também sempre função traI» da explicação causal. Qualquer que seja o estado das
de um domínio, quer seja domínio de classe, domínio colo-
coisas nas ciências da natureza, é indubitável que nas ciên-
nial, ou outro. Algo do género, provavelmente, é também
cias humanas se impuseram modelos de racionalidade,
II válido para o ideal de autotransparência da sociedade: fun-
desde o modelo centrado no tipo-ideal weberiano até ao de
ciona exclusivamente do ponto de vista de um sujeito cen-
III Cassirer, que se serve da referência à noção histórico-nor-
tral, mas que se toma cada vez mais impensável à medida
mativa de estilo (retomada de WOlfflin)C), e ao do «mod-
IIII
que, no plano técnico, se tomaria «possível» realizá-Io
elo zero» de Popper(8), nos quais é evidente o carácter por
efectivamente. Talvez seja este o destino do hegelianismo, sua vez intra-histórico dos modelos de interpretação de que
da Aufklarung, ou do que Heidegger chama metafísica, na as ciências humanas se servem. Este carácter intra-históri-
sociedade contemporânea: ao tomar-se efectivamente pos- co exclui que as ciências humanas possam ser pensadas
sível do ponto de vista da disponibilidade estritamente téc-
como totalmente reflexivas, isto é, como capazes de reflec-
nica a autotransparência da sociedade, por um lado, como
tir a realidade humana independentemente de esquemas de
mostra sobretudo a sociologia crítica de Adorno, revela-se
interpretação que, sendo por sua vez factos hitóricos,
como ideal de domínio e não de emancipação; por outro _
representem também uma «novidade» relevante e, por-
o que Adorno, aliás, não via - desenvolvem-se, no pró- tanto, não um puro espelho do que se trataria de conhecer
prio seio do sistema da comunicação, mecanismos (o «SUf-
objectivamente. Mas não só: nesta tomada de consciência,
gimento de novos centros de história») que tomam defini-
que bem se pode chamar hermenêutica, as ciências hu-
tivamente impossível a realização da autotransparência. manas reconheceram o carácter histórico, limitado e, afi-
À luz destas hipóteses, creio, devemos repensar o de-
nal, ideológico, do próprio ideal de autotransparência,
senvolvimento do debate, muito significativo na cultura do
século xx, sobre a «cientificidade», pelo menos das ciên-
cias humanas e da historiografia. É sabido que este debate,
no decurso do qual as ciências humanas definiram pela pri-
o Ver, por exemplo, E. Cassirer, Sulla logica delle scienze
della cultura (1942), tradução italiana de M. Maggi, La Nuova
meira vez a sua fisionomia específica, foi marcado nas
Italia, Florença, 1975.
suas origens pela distinção (formulada por Windelband) (8) Ver K. R. Popper, Miseria dello storicismo (1944-45),
entre ciências naturais nomotéticas e ciências humanas tradução italiana de C. Montaleone, Feltrinelli, Milão, 1975.

32
33
1111:

11111

como do ideal de uma história universal a que nos referi- Neste sentido, embora por vezes possa parecer vazio de
1111

mos acima. O ideal da comunidade ilimitada da comunica- conteúdos, o debate metodológico que ocupa um vasto es-
ção de Apel e Habermas é certamente modelado pelo ideal paço das ciências humanas de hoje constitui nelas um
de comunidade dos investigadores e cientistas a que Peirce
1:[111111111

momento não só instrumental e preliminar, mas também


se referia, ao falar de socialismo lógico. Mas será legítimo central e substancial: contribui pelo menos para as desdog-
111I11

modelar o sujeito humano emancipado, e eventualmente a


matizar, para as tomar «fábulas» conscientes de si como
própria sociedade, pelo ideal do cientista no seu labo-
II1I1

tal. A recente fama que, no debate de historiadores e soció-


ratório, cuja objectividade e desinteresse são dirigidos por logos, adquiriu a noção de narratividade e o inquérito
um interesse tecnológico de fundo, que pensa a natureza sobre os modelos «retóricos» e narratológicos da historio-
como objecto, mas só quando a representa como um lugar grafia, incluiu-se perfeitamente no quadro de um saber das
de domínio possível - implicando, portanto, uma série de
ciências humanas que liquida criticamente o mito da trans-
ideais, de expectativas, de motivações que actualmcnte es-
tão largamente sujeitos à crítica? parência. Não já a favor de um cepticismo totalmente rela-
tivista, mas a favor de uma disponibilidade menos ideoló-
Em vez de se dirigir para a autotransparência, a socie-
gica para a experiência do mundo, o qual, mais do que ob-
dade das ciências humanas e da comunicação generalizada
jecto de saberes tendencialmente (mas sempre só tenden-
dirigiu-se em direcção ao que, pelo menos na generalidade, cialmente) «objectivos», é o lugar da produção de sistemas
se pode denominar «fabulação do mundo». As imagens do simbólicos, que se distinguem dos mitos precisamente por-
mundo que nos são fomecidas pelos media e pelas ciências
que são «históricos» - isto é, narrações que guardam cri-
humanas, mesmo em diferentes planos, constituem a pró- ticamente as distâncias, que se sabem colocadas em sis-
pria objectividade do mundo, não são interpretações dife- temas de coordenadas, que se sabem e se apresentam ex-
rentes de uma «realidade» que de algum modo nos é
plicitamente como «resultantes de um devir», nunca pre-
«dada». «Não existem factos, só interpretações», segundo tendendo ser «natureza».
nos diz Nietzsche, que também escreveu que o «mundo
O problema da criticidade do pensamento, uma vez que
verdadeiro se tomou finalmente fábula»(9).
ele, mesmo apenas no sentido que foi mencionado, tenha
Não tem qualquer sentido negar pura e simplesmente reconhecido o processo de fabulização do mundo, coloca-
uma «realidade unitária» do mundo, numa espécie de reto- se naturalmente de modo urgente; e por enquanto só exis-
mada de formas de idealismo empírico ingénuo. Mas tem
tem poucos pontos de referência claros: em primeiro lugar,
mais sentido reconhecer que o que chamamos a «realidade
que a lógica na base da qual se pode descrever e avaliar
do mundo» é algo que se constitui como «contexto» das criticamente o saber das ciências humanas, e a possível
múltiplas fabulações - e tematizar o mundo nestes termos «verdade» do mundo da comunicação mediatizada, é uma
é precisamente a tarefa e o significado das ciências hu-
manas. lógica «hermenêutica», que procura a verdade como conti-
nuidade, «correspondência», diálogo entre os textos, e não
como conformidade do anunciado com um estado de coi-
(9) É o título de um dos capítulos de Il crepuscolo degli idoli sas mítico. Esta lógica é tanto mais rigorosa quando me-
(O Crepúsculo dos Ídolos); veja-se a tradução italiana de nos se deixa impor como definitivo um determinado siste-
M. Masini,
Milão, 1970.em Opere, org. Colli-Montinari, voI. VI, 3, Adelphi,
ma de símbolos, uma determinada «narração». Aqui, o ter-
mo «hermenêutica» conserva também a sua referência à
34
35
«escola do suspeito» (segundo uma outra expressão de
Nietzsche): se não podemos (mais?) ter a ilusão de desven-
dar as mentiras das ideologias atingindo um fundamento
último e estável, podemos, porém, explicitar o carácter
plural das «narrações», fazê-Io actuar como elemento de
libertação da rigidez das narrações monológicas, dos sis-
temas dogmáticos do mito.
A autotransparência a que o conjunto dos media e das
ciências humanas nos conduz, parece ser, por agora, ape-
nas uma, a saber, o aparecimento da pluralidade, dos me-
canismos e armações internas da construção da nossa cul-
tura. O sistema media-ciências humanas funciona, quando
funciona da melhor maneira, como emancipação, mas ape-
nas enquanto nos coloca num mundo menos unitário, o MITO REENCONTRADO
menos certo, portanto, também muito menos securizante
do que o mundo do mito. É o mundo para o qual Nietzsche
tinha imaginado, como novo sujeito capaz de o viver sem Um dos problemas mais urgentes que se coloca à cons-
neuroses, a figura do Uebermensch, do ultra-homem, e ao ciência contemporânea, uma vez que ela se tomou cons-
qual a filosofia «corresponde» com o que, por direito, po- ciente da «fabulização» do mundo operada pelo sistema
demos já chamar a viragem hermenêutica. media-ciências sociais, é o de redefinir a sua posição nas
confrontações com o mito, sobretudo para não se chegar a
concluir (como muitos fazem) que um reencontro com o
mito pode representar a resposta adequada ao problema
«que significa pensar» na condição de existência tardo-
-moderna.
Não existe na rilosofia contemporânea uma teoria satis-
falÚria do milo~- da sua essência e das suas relações com
outras formas de ligação com o mundo. Por outro lado, é
verdade que o termo e a noção de mito, embora não defini-
dos com precisão, circulam amplamente na cultura cor-
rente: a partir dos Mitos de Hoje, de Roland Barthes, nas-
ceu, ou consolidou-se, uma tendência geral para analisar
em termos de mitologia a cultura de massa e os seus pro-
dutos; enquanto na base, remota mas nem por isso menos
eficaz, das Reflexões sobre a Violência, de Sorel, se conti-
nua a pensar na presença, e na necessidade, do mito em
política, como único agente capaz de mover as massas; e

36
37
até Claude Lévi-Strauss, que aborda os mitos muito tecni- tuir-se como consideração teorética e explicação do mun-
camente, como antropólogo escreve numa página da An- do, acha-se em oposição não tanto à realidade fenoménica
tropologia Estrutural que «nada se assemelha mais ao pen- imediata, quanto à transfiguração mítica desta realidade.
samento mítico do que a ideologia política. Na sociedade Muito antes de o mundo se apresentar à consciência como
moderna, esta só veio, de certo modo, substituir aque- um conjunto de "coisas" empíricas, tinha-se apresentado
les»e).
como um conjunto de potências e de acções mítícas»e).
Embora Lévi-Strauss não possa ser suspeito de utilizar Nesta última citação, do livro de Cassirer de 1923, que tal-
o termo mito de maneira imprecisa, uma afirmação deste vez seja a última grande teorização filosófica do mito no
tipo, mesmo nele, aproxima-se mais do uso comum, não nosso século, surge com clareza um elemento que é implí-
técnico, do termo mito, entrando, portanto, no carácter cito e essencial na moderna teoria do mito: a ideia de que é
vago da noção a que nos referíamos. Nos ulteriores My- um saber que «precede» o saber científico, mais antigo,
thologica, quando Lévi-Strauss aplica um conceito mais menos maduro, mais ligado a aspectos da infância ou da
específico e preciso do mito às suas possíveis reminiscên- adolescência da história da mente humana. Mesmo Lévi-
cias no mundo de hoje, refere-se sobretudo à música e à -Strauss, que decerto não tem uma concepção meramente
literatura, como elementos e formas de experiência em que evolucionista do mito como destinado a desenvolver-se no
o mito, embora dissolvido, sobrevivee). Não é, porém, a logos, apresentando-se antes como um anti-historicista
este sentido mais limitado e técnico do termo mito que fa- radical, considera o pensamento mítico como um passado
zemos referência, quando falamos de presença do mito na para a nossa cultura, ao ponto de se preocupar com indicar
nossa cultura, mas sim a um sentido mais vago que, apro- quer o seu sucedâneo na ideologia política, quer os seus
ximativamente, entende o mito na base das seguintes ca- aspectos reminiscentes na música e na literatura.
racterísticas: ao contrário do pensamento científico, o mito Mas quando explicitamos estes conteúdos implícitos na
não é um pensamento demonstrativo, analítico, etc., mas posição de Cassirer e até na de Lévi-Strauss - para não
narrativo, fantástico, abrangendo as emoções e, global- falar de Weber - experimentamos um certo mal-estar.
mente, com menores ou nenhumas pretensões de objecti- Na base deste mal-estar está um facto evidente: a mo-
vidade. Tem a ver com a religião e a arte, com o rito e a derna teoria filosófica do mito, até à mais recente, a de
magia, e a ciência, por sua vez, nasce em oposição a ele (~assirer, sempre se formulou no horizonte de uma con-
como desmitificação, «desencanto do mundo». O saber cepção meta física, evolutiva, da história; ora, acontece que
racional sobre a realidade, «onde quer que procure consti- este horizonte de filosofia da história se encontra hoje per-
dido. Consequcntemente, até a teoria filosófica do mito
deixou de ser formulada de modo preciso, e o uso comum
e) c. Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, Plon, Paris, do termo mito regista e exprime esta confusão teórica; por
1958, p. 231. um lado, o termo continua a significar uma forma de saber
CZ) Ver, por exemplo, de Lévi-Strauss, o capítulo final de

L'uomo nudo (Mythologica, IV, 1971), tradução italiana de E.


Lucarelli, Il Saggiatore, Milão, 1974 e a «Abertura» de Il crudo e) E. Cassirer, Filosofia delle forme simbo/iche (1923), tra-
e il cotto (Mythologica, I, 1964), tradução italiana de A. Bono- dução italiana de E. Arnaud, La Nuova Italia, Florença, 1966,
mi, Il Saggiatore, Milão, 1966. voI. 11, p. 3.

38 39
não actual, muitas vezes considerado mais primitivo, mas nas confrontações de movimentos da cultura e da socie-
caracterizado, em relação ao saber científico, por uma me- dade mais gerais. O que na vanguarda artística histórica
nor objectividade - ou, pelo menos, por uma menor efi- constituía principalmente um interesse por modos de
cácia tecnológica. Por outro lado, quer devido à crise que, representação do real não comprometidos com a tradição
em filosofia, sofreram as metafísicas evolucionistas da his- das linguagens artísticas herdadas, embora amplamente
tória (e, juntamente com elas, o próprio ideal de racionali- mesclado, pelo menos em determinadas poéticas (surrea-
dade científica), quer devido a outras causas menos teóri- lismo, expressionismo), com uma profunda polémica con-
cas e mais ligadas à história política, a concepção do mito tra a cultura burguesa, tomou-se hoje uma atitude geral: a
como pensamento primitivo parece ser insustentável. Estas má consciência da «intelligentsia» liberal nas confronta-
confusões e contradições podem ser postas em relevo se ções do chamado Terceiro Mundo também se exprime,
procurarmos recensear as atitudes que hoje condicionam decerto, nas suas posições acerca do mito. Na generali-
mais amplamente a utilização do conceito de mito - atitu- dade, de resto, sem esta inspiração política, em sentido
des que proponho descrever na base de certos tipos ideais, amplo, não se perceberia nem a popularidade de que a an-
os quais, na maioria dos casos, não se encontram expressos tropologia estrutural tem beneficiado nem talvez, mais
teórica e praticamente no estado puro, mas são igualmente genericamente, o facto de que, nos anos da sua maior di-
presentes e característicos da situação cultural em que nos fusão a nível de cultura comum, o estruturalismo - não só
movemos. Estas atitudes predominantes podem revestir antropológico, evidentemente - tenha podido surgir como
três títulos: arcaísmo, relativismo cultural, irracionalismo uma posição teórica «de esquerda»; na base de tudo isto,
temperado. Todos eles, como veremos melhor, são carac- havia a ideia de que, quer o estudo puramente estrutural
terizados por incoerências e confusões que derivam do fac- dos motivos e das culturas «selvagens», quer a conside-
to de não se ter resolvido o problema da filosofia da histó- ração geral do homem em termos não historicistas (<<es-
ria que está na base de cada uma das concepções do mito: tudar os homens como formigas», dizia Lévi-Strauss con-
ou seja, nascem da recusa da metafísica da história que tra Sartre), fossem um modo de liquidar a ideologia eu-
regia a teoria do mito precedente, mas não conseguem for- rocêntrica do progresso, com todas as suas implicações
mular-se em termos teoricamente satisfatórios, porque não imperialistas e colonialistas; a favor de um pensamento
elaboraram uma nova concepção filosófica da história, qlle recuperasse os valores «autênticos» de uma relação do
simplesmente puseram de lado o problema. homem com a natureza não mediado pela objectivação
Descreverei como arcaísmo uma atitude que se poderia científica estreitamente ligada - corno mostrara a crítica
também chamar «atitude apocalíptica». Trata-se da des- de escola de Francofortc, mas também o Lukács da His-
confiança difusa na cultura científico-tecnológica ociden- tória e consciência de classe -- à organização capitalista
tal, considerada como modo de vida que viola e destrói a do trabalho. A esta crítica c à má consciência nas confron-
autêntica relação do homem consigo próprio e com a natu- tações no imperialismo e das várias formas de neocolonia-
reza, e que está também inelutavelmente ligada ao sistema lismo vieram unir-se, mais recentemente, as preocupações
de exploração capitalista e às suas tendências imperialistas. ecológicas pelas consequências devastadoras que a ciência,
Podemos ver na preferência da vanguarda artística do iní- a tecnologia, a exploração capitalista e a corrida aos arma-
cio do século xx pelas máscaras africanas um sinal do va- mentos têm na natureza externa e na própria natureza física
lor profético que a arte muitas vezes teve, como neste caso, do homem.

40 41
Partindo de todos estes factores nasce o que proponho tinado a ficar teoricamente mudo ou, de algum modo, não
chamar arcaísmo na consideração do mito: deste ponto de enunciando em teses precisas. Quando não amadurece em
vista, o mito não é urna fase primitiva e superada da nossa programas de restauração da cultura tradicional, e em con-
história cultural, mas sim urna forma de saber mais autênti- sequentes posições políticas «de direita», este arcaísmo
ca, não devastada pelo fanatismo puramente quantitativo e pode dar mesmo lugar, e é esse o caso de muita da cultura
pela mentalidade objectivamente própria da ciência mo- liberal europeia recente, a puras atitudes de crítica «utópi-
derna, da tecnologia e do capitalismo. A partir de um con- ca» da civilização científico-tecnológica e do capitalismo.
tacto renovado com o mito, aguardamos - quer na forma Neste caso, admite-se que não tem sentido, e é mesmo po-
dos mitos das culturas «outras» (os mitos estudados pelos liticamente perigoso e inaceitável, procurar restaurar a cul-
antropólogos nos povos selvagens ainda existentes), quer tura «tradicional»; mas o saber mítico, não comprometido
na forma dos mitos antigos da nossa tradição (os mitos com o racionalismo do Ocidente capitalista, continua a ser
gregos, revisitados com métodos e mentalidades antropo- um ponto de referência, pelo menos negativo, para recusar
lógicas por filólogos e historiadores de formação estrutu- a modemidade e os seus erros.
ralista) - uma possível via de saída das deformações e A segunda atitude que, na nossa cultura actual, condi-
contradições da actual civilização científico-tecnológica. dona e qualifica a presença do mito, dando-lhe urna actu-
Grande parte da popularidade de Nietzsche e de Heidegger alidade específica, é o relativismo cultural. Segundo esta
na recente cultura europeia continental parece poder repor- posição, os princípios e os axiomas fundamentais que de-
tar-se - mesmo através de equívocos de interpretação nos finem a racionalidade, os critérios de verdade, a ética e
quais não me demorarei - a estes cenários. A crítica da que, na generalidade, tomam possível a experiência de
civilização científico-técnica e o interesse pelo pensamento uma determinada humanidade histórica, de uma cultura,
arcaico que se encontram, sob diversas formas, em Nietzs- não são objecto de saber racional, de demonstração, já que
che e em Heidegger, são assumidos como ponto de partida deles depende toda a possibilidade de demonstrar alguma
para tentar uma recuperação do mito, ainda que nem Nie- coisa. Uma expressão desta posição, que se tomou popular
tzsche, nem sobretudo Heidegger, justificam semelhante no debate epistemológico dos últimos anos, pode conside-
empreendimento.
rar-se a teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn, pelo me-
Além disso, seria difícil indicar posições filosóficas ou nos sua formulação original(4). Mas também a hermenêuti-
programas culturais que, explicitamente, proponham um ca que se reclama de Heidegger é muitas vezes considerada
retomo ao saber mítico; exceptuando uma parte do movi- uma teoria deste tipo, mesmo que existam boas razões para
mento que, em Itália e em França, surge sob o nome de crer que, para ela, as coisas se passem de maneira dife-
«nova direita», e que retoma a polémica anticapitalista do rente. No relativismo cultural, não só não existe qualquer
nazismo e do fascismo misturando-a com temas derivados ideia de uma racionalidade unívoca à luz da qual se pos-
do movimento de sessenta e oito. Mas o arcaísmo, como de sam considerar «míticas» certas formas de saber, como
resto as outras duas atitudes «ideal-típicas» que passarei a
descrever, não dá lugar a verdadeiras e apropriadas posi-
ções doutrinais acabadas, pelas razões que já mencionei. (4) Ver Thomas Kuhn, La struttura delle rivoluzione scienti-
Nasce como consequência da crise do historicismo metafí- fiche (1962), tradução italiana de A. Carugo, Einaudi, Turim,
sico, mas não propõe uma alternativa, estando, assim, des- 1969.

42 43
também, e sobretudo, a ideia de que os «princípios primor- sua pura e simples oposição às características próprias do
diais» sobre os quais se constrói um universo cultural espe- saber científico.
cífico não são objecto de saber racional, demonstrativo, Na terceira das atitudes de que me parece depender hoje
deixa aberta a possibilidade de os considerar como objecto a consideração do mito, a que darei o nome de irraciona-
de um saber de tipo mítico: mesmo a racionalidade cientí- lismo temperado ou teoria da racionalidade limitada, o
fica, que constituiu durante tantos séculos um valor direc- mito é entendido num significado um tanto mais específi-
tivo para a cultura europeia é, afinal, um mito, uma crença co' que de resto se relaciona com o sentido etimológico
partilhada na base da qual se articula a organização desta original da palavra. Mito significa, de facto, como se sabe,
cultura; e assim (como escreve, por exemplo, Odo Mar- narração. Sob esta forma, opõe-se ao saber científico, ou
quardt)CS) é também um mito, uma crença-guia não de- distingue-se dele, não por uma simples inversão das carac-
monstrada nem demonstrável, a própria ideia de que a his- terísticas deste último - a demonstratividade, a objecti-
tória da razão ocidental é a história do afastamento do vidade, etc. - mas por um dos seus aspectos específicos
mito, da Entmythologisierung.
positivos: a estrutura narrativa. Podemos, de facto, chamar
Diversamente do arcaísmo, o relativismo cultural não teoria da racionalidade limitada ao conjunto de atitudes
atribui qualquer (mítica) superioridade ao saber mítico em culturais que consideram o saber mítico, enquanto essen-
relação ao saber científico típico da modernidade; em ge- cialmente narrativo, como uma forma de pensamento mais
ral, nega apenas que exista uma oposição entre os dois ti- adequado a determinados âmbitos de experiência, sem
pos de saber, uma vez que ambos se baseiam em pressu- contestar, ou de algum modo pôr explicitamente em causa,
postos que têm a característica do mito - da crença não a validade do saber científico-positivo noutros campos da
demonstrada, mas antes imediatamente vivida. Nem sem- experiência.
pre estas crenças-base próprias de cada universo cultural Podemos encontrar exemplos desta posição em pelo
são denominadas mitos, como vimos Marquardt fazer; mas menos três campos: a) na psicanálise, na qual a vida inte-
é um facto que, no relativismo, o interesse pelo mito está rior tende a ser considerada, quer no seu funcionamento
tão vivo como no arcaísmo. Não porque se procure reen- normal, quer na situação terapêutica, como estrutura de
contrar um saber mais autêntico no mito, mas porque o narração; ou então, como acontece na psicanálise de deri-
estudo dos mitos de outras civilizações nos pode porven- vação de Jung, como referente necessário a certas «histó-
tura ensinar o método correcto para conhecer também a rias» basilares, a certos mitos arquetípicos, que a modelam
nossa, já que também ela tem uma estrutura fundamental- não como princípios abstractos, jogos de forças, etc., mas
mente mítica. Como se verifica através da utilização do precisamente como histórias, as quais não se deixam sub-
termo no texto citado de Marquardt, mito equivale aqui a meter, entre outras coisas, a modelos estruturais de que se-
saber não demonstrado, imediatamente vivido. E, portanto, riam apenas símbolos, alegorias, ou aplicações (neste sen-
é assumido num sentido ainda muito condicionado pela tido, creio, Hillmann fala também de politeísmo)(6); b) na

(6)Ver, por exemplo, D. L. Miller - J. Hillmann, II nuovo


e) Ver O. Marquardt, Abschied vom Prinzipiellen, Reclam, politeismo (1981), tradução italiana de M. Bonaeei e P. Don-
Estugarda, 1981, p. 93.
franeeseo, Comunità, Milão, 1983.

44 45
teoria da historiografia, onde o modelo da narratividade é frontações do mundo moderno que não seja, e isto é sig-
cada vez mais importante - não só porque revela os nificativo, a proposta de restauração, pela direita, da cul-
modelos retóricos sobre os quais se constrói a historiogra- tura «tradicional». O tradicionalismo de direita, que re-
fia, mas sobretudo porque descobre, na pluralidade destes presenta a única saída visível do arcaísmo em política, é
modelos, a base para negar a unidade da história e para significativo porque manifesta, agudizando-a, a debilidade
reconhecer a sua irredutível pluralidade - a qual se teórica que consiste em transformar simplesmente o mito
distingue cada vez mais dos mitos, na medida em que já do progresso num mito das origens, as quais seriam, mas
não reflecte uma realidade-norma; c) na sociologia dos só como tal, mais autenticamente humanas e dignas de
mass media: aqui, a aplicação original da noção de mito constituir, ou o fim de urna revolução política ou, pelo
aos movimentos das massas (revolucionárias) proposta por menos, o ponto de referência para urna crítica da moder-
Sorel foi (muito significativamente, creio) substituída pela nidade.
análise em termos de mitologia dos conteúdos e das ima- Idealizar como condição perfeita o tempo das origens é
gens do mundo difundidas pelo cinema, pela televisão, tão vazio como idealizar o futuro como tal (como fez e faz
pela literatura e diversas artes de consumo. ainda o ideal secularizado do progresso, do desenvolvi-
Podem qualificar-se estes vários modos de pensar o mento, etc.). Mas não só: estamos em ligação com as ori-
mito, em termos de aplicabilidade a vários campos da ex- gens mediante o processo que daí derivou, desde o início
periência, como irracionalismo temperado ou teoria da ra- até nós. O arcaísmo pretende simplesmente pôr de parte o
cionalidade limitada, porque têm em comum um pressu- problema constituído por tal processo e, em primeiro lu-
posto que, aliás, remonta ao tempo de PlatãoC): o pressu- gar, o problema seguinte: se a condição de mal-estar, alie-
posto segundo o qual certos campos de experiência não se nação, etc., em que nos encontramos surgiu precisamente
deixam compreender mediante a razão demonstrativa ou o nas origens, por que razão havemos de remontar a elas?
método científico, exigindo antes um tipo de saber que só São problemas deste tipo, problemas de filosofia da histó-
pode ser qualificado como mítico. ria, que o arcaísmo pôs de parte sem os ter discutido de
Como disse inicialmente, defendo que estas várias ati- modo suficiente, enquanto eles não se tomaram efectiva-
tudes (que não inspiram apenas determinadas posições nas mente inactuais pelo facto de as metafísicas evolucionistas
confrontações do mito, mas que encontram nele um dos da história terem acabado.
seus conteúdos mais característicos) nascem todas, mais ou O mesmo se pode dizer do relativismo cultural. Neste
menos directamente, da dissolução das filosofias metafí- caso, porém, é ainda mais evidente que o problema da his-
sicas da história, mas sem consumar (ou digerir) sufi- toricidade não é colocado nem resolvido, mas simplesmen-
cientemente esta dissolução. É precisamente por isso que te «saltado»: o rclativismo cultural não presta atenção,
apresentam equívocos e contradições, que as tomam teo- nem (a) ao efectivo contexto em que a tese da pluralidade
ricamente insatisfatórias. O arcaísmo, para começar pelo irredutível dos mundos culturais é enunciada; nem (b) à
primeiro, não só não coloca o problema da história como efectiva impossibilidade de isolar os mundos culturais uns
não consegue dar lugar a uma posição praticável nas con- dos outros - e não só, como em (a), pelo nosso universo,
de nós, antropólogos e estudiosos do mito, que fazemos a
sua teoria. O problema que tantas vezes se põe aos antro-
c) Ver por exemplo Timeu, 19 d. pólogos que trabalham «no terreno» - e da relação entre

46 47
eles, expoentes de uma cultura forte, muitas vezes colonia- uma teoria explícita sobre a possibilidade de distinguir ver-
lista, e os seus informadores indígenas - é só um aspecto dadeiramente entre campos reservados ao saber mítico e
do mais amplo problema hermenêutico que o relativismo campos em que a racionalidade científica é válida. A todos
cultural não suscita. O estudo das culturas «outras» surge estes problemas, a metafísica da história de tipo idealista
cada vez mais num contexto que toma impossível, e artifi- ou positivista dava uma resposta, concebendo a história
cialmente falsa, a pretensão de as representar como objec- como um processo único de Auj7darung e de emancipação
tos separados; elas são, antes, interlocutores de um diálogo da razão. O processo de emancipação da razão foi, todavia,
que, no entanto, uma vez reconhecido, levanta o problema além daquilo que o idealismo e positivismo esperavam:
do horizonte comum em que de facto ocorre, tomando vã a povos e culturas multíplices tomaram a palavra na cena do
diferenciação pressuposta pelo relativismo. Este horizonte mundo e tomou-se impossível acreditar que a história é um
comum é o problema da filosofia da história, que não se processo unitário, com uma linha contínua dirigida a um
pode liquidar facilmente. telos. A realização da universalidade da história tomou
Por fim, a teoria da racionalidade limitada - ou seja, a impossível a história universal. Com isto, também a ideia
ideia difusa sob várias formas segundo a qual o mito, como de que o curso histórico pudesse ser pensado como Aufkla-
saber narrativo, seria um tipo de pensamento adequado a rung, libertação da razão das sombras do saber mítico, per-
certos campos da experiência (a cultura de massa, a vida deu a sua legitimidade. A própria desmitificação foi reco-
interior, a historiografia) - deixa de parte, também ela, o nhecida como um mito(8).
problema de definir a própria colocação histórica: não cai Mas a descoberta do carácter nítido da desmitificação
na conta de que se baseia numa aceitação tácita da distin- legitimará realmente as atitudes para com o mito, que aci-
ção entre Natur- e Geisteswissenschajten; distinção que se ma descrevemos?
toma cada vez mais problemática e dúbia quanto mais se Desmitificar a desmitificação não significa restaurar os
aprofunda a consciência de que também a ciência exacta é direitos do mito, entre outras razões, porque entre os mitos
um empreendimento social, e assim que os métodos objec- a que devemos reconhecer legitimidade está também o
tivantes das ciências da natureza são um momento no seio mito da razão e do seu progresso. A desmitificação, ou a
de um contexto que, como tal, se incluiria de pleno direito ideia da história como processo de emancipação da razão,
no campo das ciências histórico-sociais. não é algo que se possa exorcizar tão facilmente. Nietzsche
Em vários graus e sob diversas formas que decerto po- já tinha demonstrado que quando se descobre que também
deriam ser mais amplamente indagadas - as três atitudes o valor da verdade é uma crença baseada em exigências
concorrentes na cultura actual sobre o mito põem de parte vitais, portanto, um ~~erro»,não se restauram simplesmente
muito apressadamente o problema da própria contextuali- os erros precedentes. Continuar a sonhar sabendo que se
zação histórica: não dizem onde elas, como posições teóri- está a sonhar, como diz a passagem já citada da Gaia Ciên-
cas, se situam. O arcaísmo quer regressar às origens e ao cia, não equivale certamente ao sonho puro e simples. As-
saber mítico, sem se questionar sobre qual é o período sim acontece com a desmitificação: se queremos ser fiéis à
«intermédio» que nos separa do momento inicial; o relati-
vismo cultural fala de universos culturais separados e autó-
nomos, mas não diz a qual destes universos pertence a pró- (8) Ver ainda O. Marquardt, op. cit., p. 93, e todo o ensaio
pria teoria relativista; a racionalidade limitada não tem «Lob des Polytheismus».

48 49
nossa experiência histórica, teremos de registar que, uma windung)(9), que a conserva mas que também a esvazia
vez revelada a desmitificação como um mito, a nossa re-
parcialmente. Creio que destes elementos do conceito de
lação com o mito não se toma ingénua, mas fica marcada secularização se podem aproximar quer as teses de Norbert
por esta experiência. Uma teoria da presença do mito na Elias sobre a história da civilização europeia(lO), quer as
cultura de hoje deve partir novamente deste ponto. A pala- teses de Girard sobre o sagrado como violência e sobre o
vra de Nietzsche na Gaia Ciência não é apenas um para- cristianismo como processo de dessacralização(ll). Em
doxo filosófico, é a expressão de um destino da nossa cul-
Elias, o processo de civilização moderno desenvolve-se
tura: tal destino pode ser indicado por outro termo, o de quando o poder e o exercício da força se concentram no
secularização. Nesta palavra, exprimem-se os dois ele- soberano, no Estado absoluto e, depois, constitucional.
mentos indicados pelo mote da Gaia Ciência: saber que se Correspondendo a isto, a psicologia colectiva sofre uma
está a sonhar e continuar a sonhar. A secularização do es- transformação radical: os singulares interiorizam, em todas
pírito europeu da idade moderna não é só a descoberta e a as classes sociais, as «boas maneiras» dos cortesãos, que
desmitificação dos erros da religião, mas também a sobre- antes tinham feito a experiência da renúncia à força a favor
vivência, sob diveresas formas e, em certo sentido, degra- do soberano; as paixões já não são fortes e abertas, como
dadas, daqueles «erros». Uma cultura secularizada não é
nas épocas passadas, a experiência perde vivacidade e cor,
uma cultura que simplesmente carrega às costas os con- mas ganha em segurança e formalização. Também aqui, o
teúdos religiosos da tradição, mas que continua a vivê-Ios progresso é acompanhado por uma maior intensidade da
como facetas, modelos encobertos e distorcidos, mas pro- experiência, uma espécie de esvaziamento ou de diluição.
fundamente presentes.
Quanto a Girard, o seu discurso diz respeito à civilização
São coisas que em Max Weber estão claramente liga- humana em geral: civilização cujo caminho, segundo ele,
das: o capitalismo moderno não nasce como abandono da vai desde o nascimento do sagrado - que exorciza a vio-
tradição cristã medieval, mas como a sua aplicação «trans- lência de todos contra todos, concentrando-a na vítima do
formada». O mesmo sentido tem a pesquisa de Loewith sacrifício, mas deixando-a sobreviver como base das insti-
sobre o historicismo moderno; também aqui, as várias me- tuições - até à sua desmitificação por parte do Antigo
tafísicas da história até Hegel, Marx e Comte não são mais Testamento e de Jesus; este último mostra que o sagrado é
do que «interpretações» da teoria da história hebraico-cris-
tã, pensadas exteriormente ao quadro teológico original.
Não tanto em Loewith, mas certamente em Weber, ou
mesmo na oposição comunidade-sociedade de Tonnies, o c) Sobre a noção de Verwindung, em Heidegger, e a sua in-
processo através do qual a modernidade (como capitalismo terpretação no sentido aqui assinalado veja-se o capo X do meu
industrial em Weber, como sociedade já não baseada em Lafine della modernità, Garzanti, Milão, 1985.
ligações orgânicas em Tonnies) se destaca das suas ma- eo) De N. Elias, ver especialmente Potere e civiltà (1937),
tradução italiana de G. Panzieri, Il Mulino, Bolonha, 1983.
trizes religiosas originais surge como um misto inseparável
(11) De R. Girard, além de La vioZenza e il sacro (1972), tra-
de conquista e perda: a modernização não ocorre através
dução italiana de O. Fatica e E. Czerkl, Adelphi, Milão, 1980,
do abandono da tradição, mas através de uma espécie de ver especialmente Delle cose nascoste sin dalla fondazione deZ
interpretação irónica desta tradição, uma «distorção» (Hei- mondo (1978), tradução italiana de R. Damiani, Adelphi, Milão,
degger fala, num sentido não distante deste, de Ver- 1983.

50 51
a violência, e abre o caminho a uma nova história humana apontar para a superação da oposição entre racionalismo e
que, mesmo contra a terminologia e os propósitos de Gi- irracionalismo; uma superação que, no entanto, volta a co-
rard, podemos bem denominar secularizada. locar o problema de uma renovada consideração filosófica
A cultura moderna europeia está assim ligada ao pró- da história.
prio passado religioso não só por uma relação de superação
e emancipação, mas também, inseparavelmente, por uma
relação de conservação-distorção-esvaziamento: o pro-
gresso tem uma espécie de natureza nostálgica, como o
classicismo e o romantismo dos séculos passados nos ensi-
naram. Mas o significado desta nostalgia só se toma mani-
festo com a experiência da desmitificação levada até ao
fim. Mesmo quando a desmitificação se revela um mito, o
mito recupera a legitimidade, mas apenas no quadro de
uma genérica experiência «enfraquecida» da verdade.
A presença do mito na nossa cultura actual não exprime
um movimento de alternativa ou de oposição à moderni-
zação, pelo contrário, é um seu resultado consequente, um
ponto de chegada, pelo menos até agora. O momento da
III1
1II

I!!

lil desmitificação da desmitificação pode, assim, ser conside-


I!I
rado o verdadeiro· momento de passagem do moderno ao
pós-moderno. Esta passagem ocorre em Nietzsche, na sua
,1:1
!II forma filosófica mais explícita. Depois dele, após a des-
mitificação radical, a experiência da verdade já não pode
ser apenas a mesma que anteriormente: deixa de haver
evidência irrefutável, a evidência em que os pensadores da
época da metafísica procuravam um fundamento abso-
lutum et inconcussum. O sujeito pós-moderno, quando pro-
cura dentro de si uma verdade primordial não encontra a
segurança do cogito cartesiano, mas as intermitências do
coração proustianas, os relatos dos media, as mitologias
evidenciadas pela psicanálise.
Aquilo que o «retomo» do mito procura captar na nossa
cultura e na nossa linguagem é precisamente esta ex-
periência, moderna ou pós-moderna, e não um renasci-
mento do mito como saber não inquinado pela moderni-
zação e pela racionalização. Só neste sentido, o «retomo
do mito», quando e na medida em que se produz, parece

52 53
A ARTE DA OSCILAÇÃO

Tal como aconteceu durante toda a idade modernae), é


provável que também hoje os aspectos salientes da existên-
cia ou até, para falar em termos heideggerianos, o «sentido
do ser» característico da nossa época, se anunciem de
modo particularmente evidente, e antecipador, na expe-
riência estética. É necessário, portanto, olhá-Ia com parti-
cular atenção, se queremos compreender não só que existe
arte, mas mais genericamente que existe ser, na existência
moderna recente.
O problema da arte numa sociedade de comunicação
generalizada foi enfrentado de modo determinante, e ainda
hoje actual, pelo ensaio de Walter Benjamin sobre A obra
de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, de
1936CZ);um texto a que é necessário regressar continua-
mente, pelo menos na minha opinião, nunca foi efectiva-

e) Sobre isto, veja-se o capo VI do meu livro La fine della


modernità, Garzanti, Milão, 1985.
e) Está publicado em italiano, com tradução de E. Filippini,
por Einaudi, Turim 1966.

55
mente assimilado e «digerido», digamos, pela investigação tradição metafísica ocidental, de Aristóteles a Rege!. Que a
estética posterior. De facto, ele foi geralmente entendido conciliação seja utópica, e se insira no domínio da aparên-
como puro e simples reconhecimento sociológico das no- cia, como sublinha Adorno ao retomar oportunamente
vas condições em que a arte contemporânea opera, utili- Kant contra Regel, não significa, no entanto, uma verda-
zando-o quer como instrumento de polémica contra o mer- deira mudança de essência, mas apenas a sua colocação
cado da arte, quer como base teórica para a reflexão sobre num futuro indefinido, que preserva o seu papel de ideal
todos os fenómenos artísticos que se colocam fora das ins- regulador. É sobre este ponto que convém reflectir, mesmo
tituições tradicionais da arte (fora do teatro, como o hap- face às recentes recuperações, sobretudo em França (com
pening; fora do museu e da galeria, como várias formas de um certo atraso em relação a outros domínios culturais,
arte comportamental, land art, etc.); ou então, acabou por como a Itália), da estética de Adorno e até do pensamento
ser liquidado como expressão de uma ilusão, a ilusão de de Emst Bloch.
que a reprodutibilidade técnica pode representar uma Contudo, em Benjamin, encontram-se as premissas para
chance positiva para a renovação da arte, quando, na reali- orientar uma reflexão sobre o novo Wesen da arte na socie-
dade, ela está bem longe da realização das condições da dade industrial actual, superando mesmo a definição meta-
utopia de Benjamin, como defendeu Adorno, que viveu na física tradicional da arte como lugar da conciliação, da
América a experiência da civilização massificada, repre- correspondência entre interior e exterior, da catarse.
sentando antes o esmagamento total de toda a arte na ma- Estas premissas podem ser adequadamente desenvolvi-
nipulação do consenso por parte dos mass media. Estas das partindo de uma analogia à primeira vista paradoxal,
várias leituras do ensaio de Benjamin parecem, contudo, sobre a qual, que eu saiba, ainda não foi chamada a aten-
largamente insuficientes. É sobre a intuição central desse ção. No mesmo ano de 1936, em que era escrito o ensaio
ensaio que convém reflectir de novo, ou seja, sobre a ideia de Benjamin, nascia também outro escrito determinante
de que as novas condições da produção e da fruição artísti- para a estética contemporânea, a saber, o ensaio de Rei-
ca, que os mass media determinam na sociedade, modifi- degger sobre Der Ursprung des Kunstwerkes, hoje incluído
cam de modo substancial a essência, o Wesen da arte (um em Holzwegee). É o texto em que Heidegger elabora a sua
termo que utilizeremos aqui no sentido heideggeriano: não noção central de obra de arte como «prática da verdade»,
a natureza eterna da arte, mas o seu modo de realização na que processa no conflito entre os dois aspectos constituti-
época actual). Em relação a esta mudança de essência, nem vos da obra: a exposição do mundo e a produção da terra.
Adorno, com a sua crítica radical de reprodutibilidade, Ora, a obra assim concebida exerce sobre o observador um
nem as interpretações sociologizantes (que vão até à espe- efeito que Reidegger define com o termo Stoss - choque,
rança de uma reconciliação estética da existência, como à letra. No ensaio de Benjamin, encontramos - na base
em Marcuse) disseram verdadeiramente algo de novo e de de premissas completamente diferentes e, aparentemente,
adequado às premissas colocadas por Benjamin. Quando
Adorno nega que a arte pode (ou deve) perder a aura, que
isola a obra do quotidiano, está certamente a defender o e) M. Heidegger, «L' origine deU' opera d'arte», no voI. Sen-
poder crítico da obra em relação à realidade existente; mas tieri interroti, (1950), tradução italiana de P. Chiodi, La Nuova
adopta também, e defende, a concepção da arte como lugar Italia, Florença, 1969. (Tradução portuguesa, A Origem da Obra
de conciliação e de perfeição que se exprimiu em toda a de Arte, Edições 70, Lisboa, 1990, nesta colecção.)

56 57
também com significado diferente - uma teoria que atri- mente o valor «cultural» da obra, a favor do seu valor
bui à arte mais característica da época da reprodutibilidade «expositivo»; o que equivale a dizer que a obra não tem
técnica - o cinema - um efeito definido precisamente um «valor de uso» distinto do seu valor de troca; ou que,
em termos de shock. A tese que tenciono propor é a se- em suma, todo o seu significado estético se identifica com
guinte: desenvolvendo a analogia entre o Stoss heideggeri- a história da sua Wirkung, do seu destino, aceitação, inter-
ano e o shock de Benjamin, é possível captar os aspectos pretação, na cultura e na sociedade (isto, diga-se de passa-
essenciais da nova «essência» da arte na sociedade indus- gem, não equivale a assumir uma posição de puro e sim-
trial mais recente, aspectos que mesmo a reflexão estética ples niilismo hermenêutico, expresso no moto de Valéry:
contemporânea mais aguda e radical - em primeiro lugar, «mes vers ont le sens qu'on leur prête»; as interpretações
Adorno - deixou escapar. singulares não pairam no vazio, estão ligadas, num nexo
A reprodutibilidade técnica parece operar em sentido que é histórico-factual, mas que tem também um alcance
exactamente oposto ao shock: de facto, na época da repro- normativo, a todas as outras interpretações, à global Wir-
dutibilidade, quer a grande obra de arte do passado, quer kungsgeschichte, ou «história dos efeitos», da obra)(4).
os novos produtos nascidos já para os media reprodutíveis, Mas o problema da relação entre valor cultural - ou
como o cinema, tendem a tomar-se objectos de consumo «aurático», no sentido de Benjamin - e valor expositivo da
comum, logo, também cada vez menos relevantes no cená- obra de arte não se resolve verdadeiramente, se não seguir-
rio da comunicação intensificada; à parte este efeito de mos até ao fim as implicações da teoria do shock. Até que
embotamento psicológico que podemos identificar corno o se pense que a fruição da obra de arte é caracterizada como
«consumar» dos símbolos tantas vezes transmitidos e mul- apreensão da perfeição da forma e como satisfação vivida
tiplicados, mesmo sob um outro aspecto, os meios técnicos por esta perfeição, será impossível aceitar que, como dis-
da reprodução tendem a nivelar as obras porque, por muito semos, o valor de uso se dissolve no valor de troca, ou que
aperfeiçoados que sejam, acabam por acentuar e isolar nas o valor cultural da obra cai a favor do seu valor expositivo.
obras um conjunto de características que são as mais «per- No ensaio de Benjamin, o efeito de shock é característi-
ceptíveis» pelo próprio meio técnico, ou encerram, de cer- co do cinema, que neste aspecto foi antecipado pelas poéti-
to modo, a obra dentro dos limites ligados às condições do cas dadaístas: a obra de arte dadaísta é, de facto, concebida
meio: Adorno insistiu, por exemplo, na distorção dos tem- como um projéctillançado contra o espectador, contra to-
pos musicais que é produzida para encerrar os registos das as suas seguranças, expectativas de sentido e hábitos de
dentro dos limites de um disco. percepção. Também o cinema é feito de projécteis, de pro-
Naturalmente, o conflito entre um «ser em si» da obra e jecções: mal se forma uma imagem, é logo substituída por
a sua adaptação às exigências do meio de reprodução só se outra, à qual o olho e a mente do espectador têm de se
apreende quando nos colocamos do ponto de vista - que é adaptar novamente. Numa nota, Benjamin compara expli-
o de Adorno - que distingue ainda um ideal «valor de
uso» da obra do seu alienado e decaído valor «de troca»
(ligado às condições do mercado, às modas, etc.). Por sua (4) Este é um dos termos centrais do debate hermenêutico
vez, Benjamin, como sabemos, no ensaio de 1936, já tinha contemporâneo; ver H. G. Gadamer, Verità e metodo (1960),
saudado como uma novidade decisiva e positiva o facto de tradução italiana de G. Vattimo, Bompiani, Milão, 1983, espe-
a reprodutibilidade técnica fazer desaparecer completa- cialmente pp. 350 e segs.

58 59
citamente as prestações perceptivas requeridas ao especta- mundo existe. A experiência da angústia é uma experiência
de «desenraízamento» (de Un-heimlichkeit, de Un-zu-Hau-
dor do filme como as necessárias a um peão (ou, podemos
acrescentar, a um automobilista) que se movimenta no se-sein)(8). A analogia do Stoss da arte com esta experiên-
meio do tráfego de uma grande cidade moderna. «O ci- cia da angústia percebe-se, se pensarmos que a obra de arte
nema - escreve Benjamin - é a forma de arte que corres- não se deixa reportar a uma ordem de significados pré-es-
ponde ao perigo cada vez maior de perder a vida, perigo tabelecida, pelo menos no sentido de que não é dela de-
que os contemporâneos são obrigados a ter em considera- dutível como uma consequência lógica; e também no sen-
ção ...»e). Parece ler-se aqui, numa forma curiosamente tido de que não se insere simplesmente no seio do mundo
desmitificada e reduzida a dimensões de vida quotidiana tal como este é, mas pretende lançar sobre ele uma nova
luz. O encontro com a obra de arte, tal como Heidegger o
- o tráfego e os seus riscos - aquilo que Heidegger teo-
riza no ensaio sobre A Origem da Obra de Arte com a no- descreve, é como o encontro com uma pessoa que tem uma
ção de Stoss. Também para Heidegger, num sentido dife- visão do mundo, com a qual a nossa se deve confrontar
rente mas talvez profundamente próximo do sentido de interpretativamente. É sobretudo neste sentido que se deve
Benjamin, a experiência do shock da arte tem a ver com a entender a tese heideggeriana, segundo a qual a obra de
morte; não tanto ou principalmente com o risco de ser atro- arte cria um mundo, dado que se apresenta como uma
pelado por um autocarro na estrada, mas com a morte como nova «abertura» histórico-eventual do ser. Embora o Stoss
possibilidade constitutiva da existência. O que, na expe- pareça ser descrito com termos mais «positivos» da an-
riência da arte, provoca o Stoss, para Heidegger, é o pró- gústia de Ser e Tempo, que se relaciona sempre com Stim-
prio facto de que a obra é mais do que não ser(6). O facto mungen como o medo, a ânsia, etc., o seu significado é,
de ser, o Dass, como recordam os leitores de Ser e Tem- no essencial, o mesmo: o de pôr em estado de suspensão
o carácter óbvio do mundo, de suscitar uma preocupada
poC), está também na base da experiência existencial da
angústia. No parágrafo 40 de Ser e Tempo, a angústia é admiração pelo facto, em si insignificante (em sentido ri-
descrita como o estado emotivo que o ser-aí (ou seja, o goroso, não remete para nada, ou remete para o nada), de
homem) vive, quando é confrontado com o facto nu do que o mundo existe.
ser-lançado no mundo no mundo. Enquanto as coisas sin- Até que ponto a noção de Stoss tem realmente a ver,
gulares pertencem ao mundo como que inseridas numa além da proximidade terminológica, com o shock de que
rede de correspondência, significações (cada coisa é refe- fala Benjamin, em relação com os media da reprodutibili-
rida a outras, como efeito, como causa, como instrumento, dade? Heidegger parece ligar o Stoss da obra de arte ao
como sinal, etc.), o mundo como tal, no seu conjunto, não facto de que ela é «um pôr-em-obra da verdade», isto é,
uma nova abertura ontológico-epocal; neste sentido, só se
tem correspondências, é insignificativo; a angústia regista
deveria falar de Stoss em referência a grandes obras que se
esta insignificância, a gratuidade total do facto de que o
apresentam como decisivas na histórica de uma cultura ou,
pelo menos, na experiência vivida das pessoas singulares:
a Bíblia, os trágicos gregos, Dante, Shakespeare ... O shock
(5)L' opera d' arte, cit., p. 55, nota 29.
(6)Sentieri interroti, cit., pp. 49-50.
O Ver M. Heidegger, Essere e tempo (1927), tradução itali-
ana de P. Chiodi, Utet, Turim, 1969. (8) Essere e Tempo, cit., pp. 296-297.

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de Benjamin parece ser, no entanto, algo muito mais sim- de todas as concepções da experiência estética em termos
ples e familiar, precisamente como a rápida sucessão de de Geborgenheit, mediante a noção de oscilação. Isto re-
imagens na projecção do cinema, que exige do espectador quer uma deslocação de acento no modo habitual de inter-
uma prestação análoga à requeri da a um condutor que se pretar o sentido da estética de Heidegger: esta é, de facto,
movimenta no tráfego da cidade. Todavia, os dois concei- uma doutrina carregada de ênfase romântica, se insistirmos
tos, o de Heidegger e o de Benjamin, têm pelo menos um muito na função de «fundação» que a obra de arte exerce
traço em comum: a insistência no desenraízamento. Num e nos confrontos do mundo. Realmente, em Heidegger há
noutro caso, a experiência estética surge como uma expe- também a seguinte insistência: «o que dura é criado pelos
riência de estranhamento, que exige um trabalho de recom- poetas», segundo a afirmação de HOlderlin, que ele tantas
posição e de readaptação. Este trabalho não visa, no en- vezes cita; significa isto que na poesia ocorrem as viragens
tanto, alcançar uma condição final de recomposição; a ex- decisivas da linguagem, linguagem que é a «casa do ser»,
periência estética tem como objectivo, pelo contrário, ou seja, o lugar em que se definem as coordenadas funda-
manter vivo o desenrafzamento. Para Benjamin, dado o mentais de todas as experiências possíveis do mundo.
exemplo do cinema por ele escolhido, é desde logo eviden- Todavia, o que mais interessa a Heidegger, e que surge
te que não podemos pensar que a experiência do filme se quer em muitas páginas do ensaio de 1936, quer nas suas
realize quando ele se reduz a um quadro estático. Para Hei- leituras dos poetas(9), não é a definição positiva do mundo,
degger, a experiência do despaísamento da arte contrapõe- que a poesia inicia e funda, mas a determinação da capaci-
-se à da familiaridade do objecto de uso, no qual o carácter dade de «ruptura» que a poesia inseparavelmente, sempre
enigmático do Dass (do «quê») «se dissipa no carácter uti- tem.
litário». Não podemos supor que Heidegger pensa numa Fundação e ruptura são o sentido dos dois aspectos que
«conclusão» da experiência de desenraízamento estético Heidegger assinala como constitutivos da obra de arte, ou
através de uma recuperação da familiaridade e do óbvio, seja, a exposição (Auf-stellung) do mundo e a pro-dução
como se o destino da obra de arte fosse transformar-se, no (Her-stellung) da «terra». O mundo exposto pela obra é o
fundo, num simples objecto de uso. O estado de despaísa- sistema de significados que ela inaugura; a terra é pro-du-
mento - quer para Heidegger, quer para Benjamin - é zida pela obra enquanto apresentada, mostrada como o
constitutivo e não provisório. É precisamente o que consti- fundo obscuro, nunca totalmente consumável em enuncia-
tui o elemento mais radicalmente novo destas posições es- ções explícitas, nas quais se enraíza o mundo da obra. Se,
téticas nas confrontações da tradicional reflexão sobre o como já vimos, desenraízamento é o elemento essencial e
belo - e até da sobrevivência desta tradição nas teorias não provisório da experiência estética, a terra é muito mais
estéticas do nosso século. Desde a doutrina aristotélica de responsável por tal despaísamento do que o mundo; só
catarse, até ao livre exercício das faculdades de Kant, até à pelo facto de o mundo de significados desenvolvido na
concepção do belo como perfeita correspondência de inte- obra estar obscuramente radicado (portanto, não logica-
rior e exterior em Hegel, a experiência estética parece ter
sido sempre descrita em termos de Geborgenheit, - de
segurança, de «adaptação» ou «readaptação». e) Está finalmente disponível uma tradução italiana, exce-
Podemos indicar o novo elemento da posição de Hei- lentemente preparada por L. Amoroso, dos escritos de Heideg-
degger e de Benjamin, através do qual eles se diferenciam ger sobre La poesia di Holderlin, Adelphi, Milão, 1988.

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mente «fundado») na terra, a obra produz um efeito de só aos perigos acidentais a que a vida do peão metropoli-
despaísamento: a terra não é mundo, não é sistema de co-
tano está sujeita, mas à própria estrutura precária da exis-
nexões significativas, é o outro, o nada, gratuidade e insig- tência em geral. O shock característico das novas formas
nificância geral. A obra só é fundação enquanto produz um de arte da reprodutibilidade é apenas o modo em que de
contínuo efeito de desenraízamento nunca recomponível facto se realiza, no nosso mundo, o Stoss de que fala Hei-
numa Geborgenheit final. A obra de arte nunca é tranquili- degger, a oscilação essencial e desenraízamento que cons-
zante, «bela» no sentido da perfeita conciliação de interno titui a experiência da arte.
e externo, essência e existência, etc. Talvez possa ter algo Enquanto no ensaio de Benjamin se capta facilmente
de catarse aristotélica, mas só se a catarse for entendida
uma orientação geral de valorização positiva da existência
como exercício de finitude, um reconhecimento dos limi-
tecnológica, dado que o fim do valor cultural e aurático da
tes intransponíveis, terrestres, da existência humana; não
obra de arte é por ele explicitamente entendido como uma
como purificação perfeita, mas como phrónesis. É neste chance positiva de libertação da arte da superstição, da
sentido, não tanto fundante como de ruptura, que o Stoss alienação, em suma, das grilhetas da rnetafísica, parece que
heideggeriano se pode interpretar como análogo ao shock Heidegger é um juiz severo das condições de existência
de que fala Benjamin. A analogia desaparece e parece ab- moderna, sobretudo porque a banalização da linguagem,
surda quando, à aparente insignificância do schok de Ben-
que se verifica na sociedade da comunicação generalizada,
jamin, se contrapõe uma visão enfática da obra de arte
destruiria a própria possibilidade de existência da obra
como inauguração e fundação de mundos histórico-cultu- como obra, reduzindo-a à insignificância. Mas é difícil
rais. Mas ler nestes termos a teoria de Heidegger significa demonstrar que Heidegger seja um teórico da obra de arte
ainda interpretá-Ia de forma metafísica ou, falando em ter- no sentido cultural da palavra, isto é, que ele veja o valor
mos heideggerianos, ôntica: neste caso, o Stoss dependeria estético da obra ligado ao hic et nunc da sua presença de
do facto, da imponência positiva, das proporções decisivas forma conseguida e perfeita, de produto do artista enten-
do novo mundo que inaugura a obra e funda; interpretar e dido como génio criador. São categorias que, embora
fruir a obra significaria uma estabilização neste mundo e essenciais na concepção cultural da obra de arte, são radi-
na sua nova significação. Mas é claro que a Heidegger, no calrnente estranhas à atitude heideggeriana, segundo a qual
Stoss e na angústia, interessa o desenraízamento em rela-
a obra é «o pôr-em-obra da verdade» precisamente por ser
ção a qualquer mundo - quer o que é dado, quer o que é sempre mais do que arte, mais do que forma conseguida e
perspectivado pela obra em termos positivos.
perfeita ou resultado de um acto criativo ou de uma mes-
«O cinema - diz Benjamin - é a forma de arte que tria. A obra funciona como abertura da verdade porque é
corresponde ao perigo cada vez maior de perder a vida ...» um «acontecimento» (Ereignis) do ser, o qual tem a sua
Mas, no contexto de todo o seu ensaio, é também a forma essência de acontecimento no ser subvertido e «expro-
de arte que realiza a essência tardo-moderna de toda a arte,
priado» no «jogo de espelhos do mundo» (como diz Hei-
aquela à luz da qual se torna então possível cada uma das degger no seu ensaio sobre «A coisa»)eo).
experiências estéticas, mesmo de obras de arte do passado.
Esta experiência já não pode ser caracterizada por ne-
nhuma Geborgenheit, por nenhuma segurança e concilia- eo) O ensaio está inserido no volume Saggi e discorsi
ção; pelo contrário, é essencialmente precária, ligada não (1954), tradução italiana de G. Vattimo, Mursia, Milão, 1976.

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É mais importante aprofundar agora um outro proble- delee4). Heidegger vê mesmo no Ge-Stell, isto é, na so-
ma, o da atitude de Heidegger nos confrontos com as ca- ciedade da técnica e da manipulação total, uma chance de
racterísticas da existência humana no mundo da técnica. ultrapassar o esquecimento e a alienação metafísica em que
Esclarecendo este problema, podem encontrar-se impor- viveu até agora o homem ocidental. O Ge-Stell pode ofere-
tantes indicações sobre o significado estranhante e «oscila- cer esta chance, precisamente porque se define em termos
tório» da experiência estética na modernidade mais recen- que são quase idênticos aos usados por Benjamin quando
te, indicações que servem também para desenvolver os ele- fala do shock.
mentos implícitos nas propostas de Benjamin. (Diga-se de Efectivamente, Heidegger escreve: no Ge-Stell, «toda a
passagem que é possível que ambos, Heidegger e Ben- nossa existência é provocada algures - ora em jogos, ora
jamin, tenham ido buscar os elementos para a descrição da impulsivamente, ora estimulada, ora impelida - para se
existência humana na metrópole moderna a George Sim- entregar à planificação e ao cálculo de cada coisa»es).
mel)(ll). Voltemos às páginas de Identidade e Diferença e A provocação a que se sujeita a existência do homem mo-
de Ensaios e Discursose2), nas quais Heidegger ilustra a derno é análoga à condição do peão citadino de Benjamin,
sua noção de Ge-Stell. Com este termo, que, aproximativa- para o qual a arte não pode deixar de ser shock, despaí-
mente, se pode traduzir por im-posição, Heidegger carac- samento contínuo e, no fundo, exercício de mortalidade.
teriza todo o conjunto da técnica moderna que, na generali- A chance de ultrapassar a metafísica que o Ge-Stell pro-
dade, se pode pensar como um Stellen, como um «pôr»: o porciona está ligada ao facto de que, nele, «homem e ser
homem põe as coisas como objectos da sua manipulação perdem as determinações que a metafísica lhes atri-
mas, por sua vez, são-lhe sempre exigidas novas presta- buiu»ct6): a natureza já não é apenas o lugar das leis ne-
ções, de tal modo que o Ge-Stell é uma espécie de contínua cessárias das «ciências positivas», e o mundo humano -
e desenfreada provocação recíproca de homem e ser. Mas também ele duramente submetido às técnicas de manipu-
a essência da técnica moderna assim definida não é apenas lação - já não é o complementar, e simetricamente opos-
o supremo ponto de chegada do esquecimento metafísico to, reino da liberdade, campo das «ciências do espírito».
do ser; para Heidegger, o Ge-Stell é também «um primeiro Neste baralhar de cartas, o teatro da metafísica com os seus
e premente relampejar do ereignis»(13), isto é, do aconte- papéis definitivos acaba, podendo, por isso, proporcionar-
cimento do ser, para além do esquecimento metafísico -se uma chance de novo advento do ser.
A nossa terminologia estética, os conceitos de que dis-
pomos para falar de arte - quer como produção, quer

e1) Ver de G. Simmel o ensaio «La metropoli e Ia vita men-


tale» (1903), tradução italiana de F. Luciano no volume Imma- e4) Sobre este conceito de esquecimento do ser próprio da
gini deU' uomo, preparada por Ch. Wright Mills, Comunità, Mi- metafísica, e sobre outros termos da filosofia heideggeriana,
lão, 1965. podem encontrar-se mais ilustrações no meu livro Introduzione
e2) Identitá e differenza (1957) está traduzido em italiano a Heidegger, Laterza, Roma-Bari, 1982. (Tradução portuguesa:
por U. Ugazio em «aut aut», n.º 187-88, Janeiro-Abril 1982; Introdução a Heidegger, Lisboa, Edições 70, 1989.)
para Saggi e discorsi ver a tradução citada na nota 10. es) Identità e differenza, cit., p. 11.
(13) Identitá e dif.ferenza, cit., p. 14. e6) Ibid., p. 13.

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por duas características que reconhecemos, ao seguir as


como fruição - e que regressam sempre, sob diversas for-
indicações de Benjamin e de Heidegger: em primeiro lu-
mas, à nossa reflexão, serão os adequados para pensar a
gar, é apenas, no fundo, uma mobilidade e hipersensibili-
experiência estética como despaísamento, oscilação, rup-
dade dos nervos e da inteligência, característica do homem
tura, shock? Um sinal de que não o são poderia verificar-se
metropolitano. A esta excitabilidade e hipersensibilidade
no facto de que a teoria estética ainda não fez justica aos
corresponde uma arte, não já centrada na obra mas na ex-
mass media e às possibilidades que eles oferecem. Isto é,
continua a parecer que se trata de «salvar» uma essência de periência, mas pensada em termos de variações mínimas e
contínuas (segundo o exemplo da percepção do cinema).
arte (criatividade, originalidade, fruição da forma, conci-
São elementos que a estética dos séculos XIX e XX, embora
liação, etc.) das ameaças que as novas condições de exis-
sem desenvolver as suas últimas consequências, tantas ve-
tência da civilização de massa representam não só para a
zes teorizou: Heidegger assinala-as, por exemplo, aliás de
arte, diga-se, mas para a própria essência do homem. As
modo polémico, na teoria da arte de Nietzsche.
condições da reprodutibilidade, particularmente, são consi-
A segunda característica que constitui o shock como
deradas inconciliáveis com as exigências da criatividade,
único resíduo da criatividade na arte da recente moderni-
que parece ser indispensável na arte, não só porque a rá-
pida difusão das comunicações tende a banalizar imediata- dade é aquela que Heidegger pensa sob a noção de Stoss.
Isto é, o desenraízamento e a oscilação que têm a ver com
mente cada mensagem (que, aliás, para satisfazer as exi-
gências dos media, já nasce sempre banalizada) mas, so- a angústia e a experiência da mortalidade. Ou seja, o fenó-
meno descrito por Benjamin como shock não diz apenas
bretudo, porque se reage a este consumo dos símbolos
respeito às condições da percepção, nem é apenas um facto
através da invenção de «novidades» que, como as da
a confiar à sociologia da arte; é antes o modo de a obra de
moda, não possuem a radicalidade que parece necessária à arte actuar como conflito entre mundo e terra. O shock-
obra de arte, antes se apresentando como jogos superfi-
-Stoss é o Wesen, a essência, da arte nos dois sentidos que
ciais. Os mass media conferem, de facto, a todos os con-
esta expressão tem na terminologia heideggeriana, ou seja,
teúdos que difundem uma característica peculiar de preca-
o modo como se nos apresenta, na modernidade recente, a
riedade e superficialidade; esta entra duramente em choque
experiência estética; e é também o que nos parece essencial
com os preconceitos de uma estética que se inspira sempre,
mais ou menos explicitamente, no ideal da obra de arte para a arte tout court, isto é, o seu acontecer como nexo de
fundação e ruptura, na forma da oscilação e do despaísa-
como «monumentum aere perennius», e da experiência es-
mento; em suma, como exercício de mortalidade.
tética como experiência que co-implica profunda e auten-
Chegar-se-á assim à proposta de uma apologia dema-
ticamente o sujeito, criador ou espectador. Estabilidade e
siado expedita da cultura de massa, liberta, segundo pare-
perenidade da obra, profundidade e autenticidade da expe-
ce, de todas as características alienantes eficazmente re-
riência produtiva e fruidora são coisas que, na verdade,
conhecidos por Adorno e pela sociologia crítica? O equí-
não podemos esperar da experiência estética tardo-moder-
voco desta sociologia surge-nos hoje baseado no facto de
na, dominada pela potência (e impotência) dos media.
não ter distinguido as condições de alienação política, pró-
Contra a nostalgia pela eternidade (da obra) e pela autenti-
cidade (da experiência), temos de reconhecer claramente prias das sociedades de organização total, dos elementos
de novidades implícitos nas condições de existência tardo-
que o shock é tudo o que resta da criatividade da arte, na
-modernas. O resultado deste equívoco é que, muitas ve-
época da comunicação generalizada. E o shock é definido
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zes, a perversidade da massificação e da organização total
foi condenada em nome de valores humanistas cujo al-
cance crítico estava ligado exclusivamente ao seu anacro-
I
nhores da linguagem em geral. Neste caso, a ambiguidade
poética é apenas meio para produzir, afinal, uma mais
plena apropriação da linguagem por parte do sujeito; por-
nismo. De facto, eram valores inspirados em momentos tanto, trata-se também de um desenraízamento instrumen-
precedentes da metafísica que desembocaram, como Hei- tal, visando um enraízamento conclusivo, que fica prisio-
degger viu bem, precisamente na organização total da so- neiro, se não da categoria de obra, pelo menos da categoria
ciedade. Hoje, talvez estejamos em condições de reco- de sujeito, que as faz corresponder. A experiência da am-
nhecer que os elementos de superficialidade e precarie- biguidade é, pelo contrário, constitutiva da arte, tal como a
dade da experiência estética, tal como se realiza na socie- oscilação e o despaísamento; são estas as únicas vias
dade tardo-moderna, não são necessariamente sinais e ma- através das quais a arte se pode configurar (não ainda, mas
nifestações de alienação, ligados aos aspectos desumani- talvez finalmente) como criatividade e liberdade no mundo
zantes da massificação. da comunicação generalizada.
Contrariamente ao que a sociologia crítica acreditou
durante longo tempo - e com boas razões, infelizmente
- a massificação niveladora, a manipulação do consenso,
os erros de totalitarismo não são o único resultado possível
do advento da comunicação generalizada, dos mass media,
da reprodutibilidade. Paralelamente à possibilidade - que
deve ser decidida politicamente - destes resultados, abre-
-se uma possibilidade alternativa: de facto, o advento dos
media comporta igualmente uma acentuada mobilidade e
superficialidade da experiência, que contrasta com as ten-
dências para a generalização do domínio, dando lugar, en-
tretanto, a uma espécie de «enfraquecimento» da própria
noção de realidade, com o consequente enfraquecimento,
também, de toda a sua coacção. A «sociedade do espec-
táculo», de que falaram os situacionistas, não é só a so-
ciedade das aparências manipuladas pelo poder; é também
a sociedade em que a realidade se apresenta com carac-
terísticas mais flexíveis e fluídas e na qual a experiência
pode adquirir os aspectos da oscilação, de despaísamento,
do jogo.
A ambiguidade que muitas teorias contemporâneas con-
sideram característica da experiência estética não é uma
ambiguidade provisória: não se trata, através do uso mais
livre e menos automatizado da linguagem que se verifica
na poesia, de nos tomarmos - como sujeitos - mais se-

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DA UTOPIA À HETEROTOPIA

A transformação mais radical que se verificou, entre os


anos sessenta e hoje, no tocante à relação entre arte e vida
quotidiana pode descrever-se, segundo me parece, como
uma passagem da utopia à heterotopia.
Os anos sessenta (e sem dúvida, principalmente sessen-
ta e oito, mas trata-se de um movimento que só vem culmi-
nar na contestação daquele ano e que está vivo desde o
imediato pós-guerra) assistem a uma vasta difusão de pers-
pectivas orientadas para um resgate estético da existência,
que nega, mais ou menos explicitamente, a arte como
momento «especializado», como «domingo da vida», no
sentido em que falava Regel. A utopia apresenta-se obvia-
mente na sua forma mais explícita e radical no marxismo;
mas tem também uma versão «burguesa», que se pode en-
contrar na ideologia do design que se impõe amplamente,
por exemplo, através da popularidade de Deweye), na

e) De Dewey, veja-se sobretudo L' arte come esperienza


(1934), tradução italiana sob a direcção de C. Maltese, La Nuo-
va Italia, Florença, 1966; e sobre a estética de Dewey o belo
estudo de R. Barilli, Per una estetica mondana, Il Mulino, Bo-
lonha, 1964.

73
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filosofia e na crítica europeia dos anos cinquenta. Também caminho a uma consideração positiva, do ponto de vista
Dewey, como os teóricos e os críticos marxistas (de Lukács marxista, das vanguardas, sobretudo como revoluções for-
aos mestres de Francoforte e a Marcuse) tem ascendências mais das linguagens das várias artes (a dodecafonia de
hegelianas. Para Dewey, a experiência do belo está ligada à Schonberg, o silêncio de Beckett ...), Marcuse «sintetiza»
percepção de um fullfilment que tem tudo a perder ao ser igualmente na sua utopia outros aspectos significativos da 'JJ

separado do concreto da vida quotidiana: se existe um vanguarda, por exemplo, as instâncias de uma transforma-
'11

"

campo da arte em sentido específico, ele alude a uma sen- ção geral das relações entre experiência estética e quotidia-
sação de harmonia mais geral, que tem as suas raízes na nidade, instâncias valorizadas pelo surrealismo e pelo si-
utilização dos objectos, no estabelecimento de equilíbrios tuacionismo. Como pano de fundo de tudo isto estão alguns
satisfatórios entre indivíduo e ambiente. Quanto às várias grandes mestres do marxismo crítico - Benjamin para
formas de marxismo, têm em comum a ideia de que a se- Adorno, Bloch para Marcuse; e personagens como Henri
paração da arte e a especificidade da experiência estética Lefebvre(4), mais explicitamente ligadas à experiência das
são aspectos da divisão do trabalho social que deve ser vanguardas e do seu prolongamento até aos primeiros anos
eliminada com a revolução, ou então com uma transfor- cinquenta, como é precisamente o caso do situacionismo.
mação da sociedade no sentido de reapropriação, por parte Olhando aqueles anos com a distância relativa que hoje
de todos, de toda a essência do homem. Em Lukács, esta deles nos separa, surgem também atenuadas as diferenças
perspectiva age principalmente ao nível de metodologia teóricas nada pequenas que distinguiam, por exemplo, a
crítica (realismo não é puro reflexo das coisas tais como ideologia do design (o sonho de um resgate estético da
são, mas uma representação da época e dos seus conflitos quotidianidade através da optimização das formas dos ob-
com uma referência implícita à emancipação e à reapro- jectos, do aspecto do ambiente) da atitude revolucionária
priação); em Adornoe), a promesse de bonheur constitu- dos vários marxismos. A partir destes pontos de vista entre
tiva da arte processa-se sobretudo como instância negativa si diversos visava-se sempre uma unificação global de sig-
e desmascaramento da desarmonia do existente - com a nificado estético e significado existencial que podemos,
correlativa revalorização «revolucionária» das vanguardas com todo o direito, considerar uma utopia. Utopia era, se-
históricas, que o realismo lukacsiano considerava, por sua gundo a famosa obra de Bloch, de 1918e), o significado
vez, puros sintomas da decadência. Esta revalorização das das vanguardas artísticas dos princípios do século XX; e
vanguardas em chave utópica explicita-se depois, até às
suas extremas consequências, no sonho marcusiano de uma
saios recolhidos em Cultura e società (1965), tradução italiana
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existência esteticamente (e também sensível e sensualmen-
de C. Ascheri, H. Osterlow e F. Cerruti, Einaudi, Turim, 1969, e
te) libertada na sua totalidadee). Se Adorno tinha aberto o
La dimensione estetica (1977), tradução italiana de Cannobbio-
-Codelli, Mondadori, Milão, 1978. (Tradução portuguesa, A Di-
e) De Adorno, ver sobretudo a Teoria Estetica (1970), tra- mensão Estética, Lisboa, Edições 70, 1981.)
dução italiana de E. De Angelis, Einaudi, Turim 1975, que apre- (4) De Henri Lefebvre, ver sobretudo, sobre estes temas, a
senta teses já propostas em obras anteriores de Adorno. (Tradu- Critique de Ia vie quotidienne, Paris, 1947.
ção portuguesa, Teoria Estética, Lisboa, Edições 70, 1982.) (5) E. Bloch, Spirito deU'utopia (1918 e 1923), tradução ita-
e) De H. Marcuse, além do clássico Eros e civilità (1955), liana de F. Coppellotti e V. Bertolino, La Nuova ltalia, Floren-
tradução italiana de L. Bassi, Einaudi, Turim 1964, ver os en- ça,1980.

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estas vanguardas, tendo entretanto passado (através da mas o momento culminante desta tipologia, não põe real-
Bauhaus, como ocorreu historicamente), em muitos dos mente em discussão a distinção dos outros três, antes va-
seus aspectos, pela ideologia do design, por outro lado, lendo como norma transcendental que zela para que não se
através de um longo caminho (da recusa de Lukács até realizem colonizações indevidas (em primeiro lugar, dos
Adorno e, finalmente, até Marcuse), haviam-se ligado ao vários interesses expressos nas três formas de acção em de-
marxismo revolucionário (tal nexo, a nível de massa, é de trimento da comunicatividade; mas, provavelmente, tam-
resto um dos significados, ou o significado de 68). bém de cada um dos três tipos de acção sobre cada um dos
Desta grande utopia unificadora - que era utopia da outros). Não tenciono, no entanto, discutir aqui especifica-
unificação estética da experiência, e que unificava orienta- mente a Teoria da Acção Comunicativa de Habermas, mas
ções teóricas e políticas diversas, conferindo-Ihes uma ati- apenas mostrar nela um exemplo de uma certa restauração
tude geral de indiferença em relação ao que Nietzsche de- teórica da separação e especialização do estético, que aqui,
nominou «a arte das obras de arte», a favor do design ou a segundo uma tradição de pensamento profundamente en-
favor do resgate revolucionário de toda a existência - já raízada na modernidade, é remetido para a expressividade.
não resta hoje, assim parece, grande coisa. É já raro, tanto O facto de Habermas retomar o conceito kantiano de
quanto sei, que o discurso crítico sobre as artes ponha razão tripartida é apenas um sintoma da situação geral a
ainda explicitamente o problema do significado geral da que pretendo referir-me. O conceito de razão tripartida não
arte, conjuntamente com o problema do significado e do é necessariamente citado como facto «negativo» e a criti-
valor da obra. car como um retomo teórico e prático (ainda que, como
Aquilo que Adorno considerava a essência da vanguar- espero mostrar mais adiante, não tenha a menor pretensão
da e a sua verdadeira amplitude utópica, ou seja, o factor de de compartilhar a posição de Habermas e a sua intrépida
pôr em discussão a própria essência da arte com a obra sin- defesa da actualidade do moderno). Habermas exprime,
gular, parece não ser hoje uma questão actuaL Como se o neste aspecto da sua teoria, a queda da utopia e o regresso
«sistema do espírito», com as suas distinções e especializa- a uma tranquila aceitação da separação do estético. No en-
ções, tivesse sido completamente restabelecido: paradoxal- tanto, o que acontece na relação entre arte e vida quotidia-
mente, também uma obra como a de Habermas, que se apre- na nos anos recentes não é só isto, ou principalmente isto:
senta como reivindicação do permanente valor do progra- o retomar da estética kantiana por parte de Habermas po-
ma moderno de emancipação, assume como ponto de refe- deria antes citar--se como sinal do facto de que a sua defesa
rência não controverso a distinção de origem kantiana dos do lIuminisrno e da modernidade implica também uma
âmbitos de vários tipos de acção social, o teleológico, o re- surdez específica nas confrontações de muitos fenómenos
gulador por normas e o expressivo e dramatológico - re- que estão relacionados com a cultura «estética» massifi-
servando a este último, de qualquer maneira, a esfera esté- cada, e que Ilabermas não «quer» ver e reconhecer na sua
tica(6). A acção comunicativa, que representa em Haber- amplitude. O retomo da mie aos seus limites, após a utopia
dos anos sessenta, é apenas um aspecto da situação que nos
interessa, situação que Habermas - no tocante à estética
(6)Ver J. Habermas, Teoria deU' agire comunicativo (1981), - parece isolar de acordo com alguns dos seus preconcei-
tradução italiana de P. Rinaudo, sob a direcção de G. E. Rus- tos teóricos (ou seja, de acordo com a sua recusa da pós-
, coni, 11Mulino, Bolonha, 1986 (2 vols.). -modernidade).
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Mas o certo é que a utopia estética dos anos sessenta bém a sua problemática, nas confrontações da qual não po-
está, de qualquer maneira, a realizar-se, de forma distor- demos deixar de tomar posição. Na sociedade em que Kant
cida e transformada, sob os nossos olhos. Se, por um lado, pensava e escrevia, o consenso da comunidade na fruição
a arte no seu sentido tradicional, a arte das obras de arte, de um objecto belo podia ainda viver-se, pelo menos ten-
regressa à ordem, na sociedade a sede da experiência esté- dencialmente, como consenso da humanidade em geral.
tica desloca-se: não já no sentido do design generalizado e É verdade, para Kant, que, quando tenho a fruição de um
de uma universal higiene social das formas, nem como res- objecto, atesto e vivo a minha pertença a uma comunidade,
gate estético-revolucionário da existência no sentido de mas esta comunidade - ainda que pensada apenas como
Marcuse, mas como desenvolvimento da capacidade do possível, contingente e problemática - é a própria comu-
produto estético - não nos referimos, evidentemente, à nidade humana. A cultura de massas não nivelou a ex-
obra de arte - de «fazer mundo», de criar comunidade. periência estética, homologando todo o «belo» aos valores
Deste ponto de vista, talvez a interpretação mais teo- daquela comunidade -- a sociedade burguesa europeia -
ricamente fiel e adequada da experiência estética, que tem que se sentia portadora privilegiada do humano; pelo con-
sido apresentada nos últimos anos, seja a proposta pela trário, evidenciou de modo explosivo a multiplicidade dos
ontologia hermenêutica de Gadamer. Para GadamerC), «belos», dando a palavra a culturas diversas - com a in-
como sabemos, a experiência do belo é caracterizada pelo vestigação antropológica - mas também a «subsistemas»
reconhecimento numa comunidade de fruidores do mesmo internos da própria cultura ocidental. De facto, o fim da
tipo de objectos belos, naturais e de arte. A razão é reflexi- utopia do resgate estético da existência através da unificação
va, segundo a terminologia de Kant, não só porque não se do belo com o quotidiano ocorreu paralelamente, e pelos
refere ao objecto, mas ao estado do sujeito, mas porque se mesmos motivos, no final da utopia revolucionária dos
refere ao sujeito como membro de uma comunidade (o anos sessenta: devido à explosão do sistema, à impossibili-
que, em certa medida, está já presente em algumas páginas dade de pensar a história como curso unitário. Quando a
da Crítica da Razão). A experiência do belo, mais funda- histÓria se toma, ou tende a tomar-se, de facto, história uni-
mentalmente do que experiência de uma estrutura que versal --- dado que nela tomaram a palavra os inúmeros
aprovamos (mas na base de que critérios?) é, em suma, excluídos, sem palavra, destituídos - tomou-se impossível
experiência de pertença a uma comunidade. É fácil ver pens(í--Ia verdadeiramente como tal, como um curso uni-
como e porquê uma tal concepção do estético se pode apre- t(írio, eventualmente dirigido a uma emancipação. A uto-
sentar com um carácter particularmente persuasivo, em pia, mesmo nos seus aspectos estéticos, implicava o qua-
especial hoje: a cultura de massa multiplicou e tomou dro de referência da história universal como curso unitário.
macroscópico este aspecto da estética, evidenciando tam- E dissolveu-se, também no plano estético, com a reali-
zação efectiva de uma certa «universalidade» na forma
como tomaram a palavra os diversos modelos de valor e de
c) De H. G. Gadamer, além do já citado Verità e metado, ver reconhecimento. O que aconteceu, quanto à experiência
L' attualità deI helio, tradução italiana de R. Dottori e L. Bot- estética e ao seu modo de relacionamento com a vida quo-
tani, Marietti, Génova, 1986, e Persuasività delia letteratura, tidiana, não foi só o «retomo» da arte às suas sedes canóni-
tradução italiana sob a direcção de R. Dottori, Transeuropa, cas modernas, mas também, e sobretudo, o delineamento
Ancona, 1988. de uma experiência estética de massa como tomada de

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sível «defini-Ia» delimitando-a e diferenciando-a: também
palavra por parte de múltiplos sistemas de reconhecimento
aqui, parece que nos encontramos face a uma realização
comunitário, de múltiplas comunidades que se manifes-
imprevista, e talvez «distorcida»(8), da utopia.
tam, se exprimem e se reconhecem em modelos formais e
em mitos diferentes. Assim, a essência «moderna» da ex- O desenvolvimento da experiência estética como expe-
riência de comunidade e não como avaliação de estruturas
periência estética, que Kant já tinha descrito na Critica da
verifica-se, no entanto, exclusivamente no mundo da cul-
Razão, desdobrou-se em toda a sua amplitude, mas tam-
tura de massa, do historicismo difuso e do fim dos sistemas
bém se redefiniu: o belo é a experiência de comunidade,
unitários. É por isso que não se trata de uma realização
mas a comunidade, precisamente quando se realiza como
pura e simples da utopia, mas de uma realização distorcida
facto «universal», sofre um processo de multiplicação, de
e transformada: a utopia estética só se realiza desenvol-
pluralização imparável. Vivemos numa sociedade intensa-
vendo-se como heterotopia. Vivemos a experiência do
mente estetizada, precisamente no sentido «kantiano» da
belo como reconhecimento de modelos que fazem mundo
palavra, isto é, onde o belo age como instituição de comu-
e que fazem comunidade apenas no momento em que estes
nidade, mas em que, devido precisamente a tal intensifi-
mundos e estas comunidades são explicitamente dadas
cação, parece ter-se dissolvido o outro aspecto da univer-
como múltiplices. Nisto talvez se encontre também um fio
salidade kantiana, a identificação, pelo menos tendencial e
reivindicativa, da comunidade estética com a comunidade condutor normativo, capaz de responder às preocupações
humana tout court. que sublinham que se o belo é sempre, de qualquer ma-
neira, unicamente experiência de comunidade, deixaremos
Mesmo na estética esperamos aquilo que, com diversas
de ter qualquer critério para distinguir a comunidade vio-
modalidades e carga dramática, acontece na ciência, que
lenta dos nazis que ouvem Wagner, ou dos rockers que
sempre parecera (refiro-me, aqui, ainda ao modo como
eventualmente se preparam para violências e vandalismos,
Habermas fala: a acção teleológica pressupõe um mundo
da comunidade dosfans de Beethoven ou da Traviata ... Ao
«objectivo», uno) o lugar de dádiva do mundo como ob-
constatarmos que a universalidade em que Kant pensava se
jecto único, ou seja, esperamos que o mundo não seja uno,
real iza para nós sob a forma da multiplicidade, podemos
mas multifacetado; o que denominamos o mundo talvez
assumir legitimamente como critério normativo a plurali-
seja apenas o âmbito «residual» e o horizonte regulativo
dadc explicitamente vivida como tal. O que de modo legí-
(mas com que problemas) em que os mundos se articulam.
timo, e nào só na falsa consciência da ideologia, era para
É verosímil que a experiência estética da sociedade de
Kanl o apelo à comunidade humana universal (a expecta-
massa, a vertiginosa proliferação de «belezas» que fazem
tiva de que, em torno dos valores do belo «burguês», se
mundos, seja profundamente modificada pelo facto de o
mundo unitário, de que a ciência julgava poder falar, se ter
revelado uma multiplicidade de mundos diversos. Já não é
possível falar de experiência estética como pura expressi- (8) Esta «distorção» é pensada na base de um termo central
vidade, pura coloração emotiva multíplice do mundo, da filosofia de Heidegger, a Verwindung; nas confrontações da
como acontecia quando se pensava que este mundo-base metafísica, isto é, do esquecimento do ser, o pensamento só
fosse, de qualquer modo, dado, possível de encontrar com pode exercer uma acção de «distorção» que, de certo modo,
também segue e aceita a tradição; sobre tudo isto, ver o último
os métodos da ciência. Isto deixa seguramente aberto o
capítulo do meu livro O Fim da Modernidade.
problema da redefinição da estética e talvez tome impos-
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solidificasse o consenso de qualquer ser humano verdadei-


ramente digno desse nome), tomou-se hoje, nas diversas arriscado aventar a hipótese de que muitos discursos teóri-
condições da história do ser, a referência explícita à multi- cos da estética filosófica e da crítica das artes se expliquem
plicidade. O reconhecimento de si que grupos e comunida- hoje, apesar de tudo, ainda corno esforços para valorizar
des fazem nos seus modelos de beleza tem, intrinsecamen- critérios «estruturais» na consideração das obras de arte.
te, urna norma, fornecida pelo modo de ocorrência, pelo Mas nem todas as teorias se movem neste sentido exorci-
Wesen da arte e do estético nas condições do nosso destino zante e de fuga regressiva: a partir de Dilthey, cujas teses
histórico: a norma segundo a qual a experiência do reco- reencontramos em Ricoeur e, antes ainda, em Heidegger, a
nhecimento de urna comunidade num modelo se deve fazer capacidade da obra de arte de «fazer mundo» é sempre
em referência explícita, com explícita abertura, à multipli- pensada no plural - portanto, não em sentido utópico,
cidade dos modelos. Sim, isto equivale provavelmente a mas em sentido heterotópico: é precisamente no ensaio
passar a positiva, tomando-a corno padrão, a atitude que sobre A origem da obra de arte, de 1936, que Heidegger
Nietzsche, na sua segunda consideração intempestiva(9) fala, já não do mundo, corno em Ser e tempo, mas de um
descria corno típica do homem do século XIX, produto de mundo (e logo, implicitamente, de muitos mundos). E Dil-
urna cultura histórica exagerada, o qual vagueia corno um theyeo) vê já o sentido profundo da experiência estética (e
turista no jardim da história, e corno numa loja de más- da própria experiência historiográfica) na sua capacidade
caras teatrais junto com disfarces sempre diferentes. A ex- de nos fazer viver, na dimensão imaginária, outras possi-
periência estética toma-se inautêntica quando, nas actuais bilidades de existência, dilatando deste modo os limites da
condições de pluralismo vertiginoso dos modelos, o reco- possibilidade específica que realizamos no quotidiano.
nhecimento de um grupo por si mesmo nos próprios mo- Para Heidegger, bastará sair do horizonte ainda fundamen-
delos vive e se apresenta ainda sob a forma da identifi- talmente cientista em que Dilthey se move, para ver o sen-
cação da comunidade com a própria humanidade; isto é, tido da experiência estética na abertura de um mundo ou
apresenta o belo e a comunidade determinada que o reco- mundos, que não são «só» imaginários, mas que consti-
nhece, corno um valor absoluto. A «verdade» possível da tuem o próprio ser, são acontecimentos de ser.
experiência tardo-moderna é provavelmente o «coleccio- Esta leitura teórica, apenas esboçada, da transformação
nismo», a mobilidade da modas e também o museu e, no da experiência estética dos últimos vinte anos pode ser
fundo, o próprio mercado, corno lugar de circulação de concluída, ainda que provisoriamente, com a explicitação
objectos que desmitificaram a referência ao valor de uso e de duas implicações já incluídas no que acima dissemos: a
são puros valores de troca: não necessariamente apenas de passagem da utopia à hcterotopia comporta corno seu as-
troca monetária, mas de troca simbólica, não status sym- pecto mais relevante a libertação do ornamento e, corno
bois, cartões de identificação de grupos. Talvez não seja seu significado ontológico, o despojamento do ser.
A libertação do ornamento, ou melhor ainda, a desco-
berta do carácter de ornamento do estético, da essência
(9) Ver F. Nietzsche, Sul!' utilità e il danno del!a storia per Ia
vila, (segunda das «Considerazioni inattuali», 1874), tradução
italiana de S. Giametta, em Opere, ed. Colli-Montinari, voL m, eo) Ver, de Dilthey, os textos recolhidos em italiano em Cri-
1., Ade1phi, Milão, 1972. tica del!a ragione storica, sob a direcção de p, Rossi, Einaudi,
Turim, 1954.
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ornamental do belo, é o próprio sentido da heterotopia da seja, das consequências que se situam ao nível ontológico.
experiência estética. O belo não é o lugar de manifestação Daqui deriva a extraordinária importância da «ontologia»
de urna verdade que nele encontra expressão sensível, pro- de Heidegger para o nosso pensamento: só ela parece ser
visória, antecipatória, educativa, corno muitas vezes quis a capaz de nos abrir autenticamente à experiência da moder-
estética metafísica da tradição. A beleza é ornamento no nidade recente sem urna permanente e subentendida refe-
sentido de que o seu significado existencial, o interesse a rência a cânones e princípios metafísicos. No caso da esté-
que corresponde, é a dilatação do mundo da vida num pro- tica, isso é visível precisamente na substancial incapaci-
cesso de reenvio a outros possíveis mundos de vida, que, dade que esta manifesta em considerar corno chance do
entretanto, não são só imaginários ou marginais ou com- destino, e não só corno perversão de valores e essências au-
plementares ao mundo real; mas compõem, constituem, no tênticas, a experiência estética da cultura de massa. O es-
seu jogo recíproco e corno seu resíduo, o chamado mundo forço realizado por Benjamin com o ensaio sobre A Obra
real. A essência ornamental da cultura da sociedade de de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica era
massa, o carácter efémero dos seus produtos, o eclectismo dirigido neste sentido, mas provavelmente estava dema-
que a domina, a impossibilidade de lhe reconhecer um siado ligado a urna concepção dialéctica da realidade para
qualquer carácter essencial - que tantas vezes nos faz fa- ter êxito. Heidegger, por sua vez, ao criticar a identificação
lar de kitsch relativamente a esta cultura - corresponde metafísica do ser com o objecto, com a estabilidade estru-
plenamente ao Wesen do estético, na modernidade tardia. tural do «dado», retira radicalmente a legitimidade da nos-
Ou seja, não é na base de um regresso a valorizações «es- talgia pela forma clássica, pela valorização baseada na
truturais», centradas no objecto belo, que se pode assu- estrutura. Só quando o ser não tem de se pensar corno fun-
mir urna atitude selectiva nas confrontações desta cultura. damento e estabilidade de estruturas externas, mas é dado
O kitsch, a existir, não deixa de responder a critérios for- corno evento com todas as implicações que isso importa -
mais rigorosos e efectua-se no carácter inautêntico da falta em primeiro lugar, um enfraquecimento de base, através
de um estilo forte. O kitsch é apenas o que, na época do or- do qual, corno também Heidegger diz, o ser não é, mas
namento plural, pretende ainda ser válido corno monu- acontece ---.. só nestas condições a experiência estética
mento mais perene do que o bronze, reivindica ainda a es- como heterotopia, multiplicação do ornamento, não-funda-
tabilidade da perfeição e carácter definitivo da forma mento do mundo, quer no sentido da sua colocação num
«clássica» da arte. Não é exagerado afirmar que nem a es- cenário, quer no sentido da sua integral des-autorização,
tética teórica, nem a crítica parecem hoje preparadas para adquire um significado e pode tomar-se terna de urna re-
se orientarem selectivamente no mundo do estético tardo- flexão teórica radical. Sem esta referência ontológica, pro-
-moderno juxta propria principia, isto é, fora de urna refe- curar ler como uma vocação e um «destino» as transfor-
rência duradoura, e irremediavelmente ideológica, à estru- mações da experiência estética das últimas duas décadas
tura do objecto. Poderá discutir-se quando e até que ponto (como, aliás, as das épocas precedentes), não passa de urna
esta insuficiência da estética e da crítica se realiza ver- galanteria historicista, urna cedência à moda, urna fraqueza
dadeiramente. Mas se ela é um facto, corno me parece, de quem quer a todo o custo acertar o passo com o tempo.
depende também provavelmente do reconhecimento fa- Mas o tempo, corno sabemos, tem um passo e só apresenta
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lhado da segunda «implicação» da passagem da utopia à urna direcção quando é lido e interpretado. A aposta com a
heterotopia corno característica da experiência estética, ou heterotopia, chamemos-lhe assim, pode não ser só frivoli-
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1.1
II
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dade, se se ligar a experiência estética transformada da


sociedade de massa ao apelo heideggeriano a uma ex-
periência não Gá) metafísica do ser. De certo modo, é
só quando esperamos, tal como Heidegger, que o ser
seja precisamente aquilo que não é, que se afirma na sua
diferença como não presença, estabilidade, estrutura; só
assim podemos - talvez - encontrar um caminho no
meio da explosão do carácter ornamental e heterotópico
do estético de hoje.

ÍNDICE

/
Pós-moderno: Uma Sociedade Transparente? 9
Ciências Humanas e Sociedade da Comunicação 21
O Mito Reencontrado 37
A Arte da Oscilação 55
Da Utopia à Heterotopia 73

'1,7

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