Theodor W. Adorno
NOTAS DE
LITERATURA I
Onganizagio da edigéo alema
Rolf Tiedemann
Tradusao e apresentagio
Jorge de Almeida
[Al Livraria
[Al Duas Cidades
editoralll34Palestra sobre
lirica e sociedade
O antincio de uma palestra sobre lirica ¢ sociedade deve
provocar, em muitos dos senhores, um certo desconforto. Esta-
ro esperando uma dessas consideragées sociolégicas que podem
ser alinhavadas a bel-prazer sobre qualquer objeto, assim como
hd cingiienta anos se inventavam psicologias e, hd trinta, feno-
menologias de todas as coisas imagindveis. Além disso, ficario
desconfiados de que o exame das condigées sob as quais deter-
minadas configuragées [ Gebilde] foram criadas e recebidas quer
se intrometer no lugar da experiéncia delas mesmas; de que su-
bordinag6es e relages deixarao de lado a percepcio da verdade
ou inverdade do préprio objeto. Os senhores levantarao a sus-
peita de que um intelectual pode acabar se tornando culpado
daquilo que Hegel reprovava no “intelecto formal”, ou seja, por
ter uma perspectiva geral do todo, ficar acima da existéncia sin-
gular de que fala, isto ¢, simplesmente nao vé-la, apenas etiqueta-
la. O que incomoda em um procedimento como este serd espe-
cialmente sensjvel, para os senhores, no caso da lirica. Afinal,
trata-se de manusear 0 que hd de mais delicado, de mais fragil,
aproximando-o justamente daquela engrenagem, de cujo con-
tato o ideal da lirica, pelo menos no sentido tradicional, sempre
pretendeu se resguardar. Uma esfera de expressao que tem sua
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esséncia precisamente em nio reconhecer o poder da socializa-
Go, ou em superd-la pelo pathos da distancia, como no caso de
Baudelaire ou de Nietzsche, deve ser arrogantemente transfor-
mada, por esse tipo de consideragdo, no contrario do modo co-
mo concebe a si mesma. Quem seria capaz de falar de lirica e so-
ciedade, perguntarao, senao alguém totalmente desamparado
pelas musas?
Obviamente, essa suspeita sé pode ser enfrentada quando
composicgées liricas nao so abusivamente tomadas como obje-
tos de demonstracao de teses socioldgicas, mas sim quando sua
referéncia ao social revela nelas préprias algo de essencial, algo
do fundamento de sua qualidade. A referéncia ao social nao deve
levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para
dentro dela. E isso o que se deve esperar, ¢ até a mais simples
reflexdo caminha nesse sentido. Pois 0 teor [Gehalt] de um poe-
ma nao é a mera expressao de emogées ¢ experiéncias individuais.
Pelo contrario, estas s6 se tornam artisticas quando, justamente
em virtude da especificagao que adquirem ao ganhar forma es-
tética, conquistam sua participagao no universal. Nao que aquilo
que 0 poema lirico exprime tenha de ser imediatamente aquilo
que todos vivenciam. Sua universalidade nao é uma volonté de
tous, nao é a da mera comunicagio daquilo que os outros sim-
plesmente nao sao capazes de comunicar. Ao contrario, o mer-
gulho no individuado eleva o poema Ifrico ao universal por tor-
nar manifesto algo de nao distorcido, de nao captado, de ainda
nao subsumido, anunciando desse modo, por antecipagao, algo
de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fun-
do algo particular, acorrente 0 outro, o universal humano. A
composigao lirica tem esperanga de extrair, da mais irrestrita
individuago, o universal. O risco peculiar assumido pela Ifrica,
entretanto, é que seu principio de individuag4o nao garante nun-
ca que algo necessario e auténtico venha a ser produzido. Ela nao
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