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Pedro Paulo quer saber em que e como as nossas condições nos "trópicos" podem

iluminar o que seria a vida para além do biopoder. Uma vida que desafia não só as
políticas públicas que tendem a homogeneizar condições e circunstâncias díspares
impedindo uma avaliação adequada da complexidade das experiências vividas, mas
também que desafia os próprios esquemas teóricos explicativos que dado o lugar de
sua produção e as limitações de suas afecções acabam também por exibir ao pes-
quisador atento os seus pontos cegos. Como, por exemplo, a incapacidade de obser-
var plenamente as conexões entre a modernidade ocidental e as práticas coloniais.
Neste esforço ele se junta aos que querem provincializar a Europa a fim de abarcar
experiências que não deveriam, mas a mais das vezes lhe são estranhas. Não de-
veriam porque lhe constituem, mas como face não só oculta como também ocultada.

Otávio Velho

Pedro Paulo sabe que, tal como os corpos, as teorias se movem e viajam. Ao serem
traduzidas, se transformam. Suspeita que os movimentos e as torções dos corpos e
das teorias possam ser perturbadores e até subversivos.

Guacira Lopes Louro


Os artigos deste livro tratam de traves- PEDRO PAULO GoMES Pereira é doutor
sias, desvios e deslizamentos. O autor em Antropologia pela Universidade
conta histórias de gente segregada como de Brasília e livre-Docente pela Uni-
"restos humanos", gente que experimen- versidade Federal de São Paulo. É
ta violência e silenciamento. Conta como atualmente professor da Universida-
alguns engendram formas de transformar de Federal de São Paulo. Suas áreas
sua fragilidade em força, virando do aves- de interesse são: corpo, saúde, doen-
so o assombro que provocam; como são ça, aids, antropologia da biomedicina
capazes de escapar, por algum tempo ou e das tecnologias.
de algum modo, da abjeção que lhes é
atribuída.
Pedro Paulo sabe que, tal como os cor-
pos, as teorias se movem e viajam. Ao
serem traduzidas, se transformam. Sus-
peita que os movimentos e as torções dos
corpos e das teorias possam ser pertur-
badores e até subversivos. Assim, acaba
por descobrir um "queer" nos trópicos.
Quem lhe mostra essas possibilidades
são os parceiros e as parceiras que en-
contra pelo caminho, capazes de tramar
destinos, inventar dobras e questões. Pe-
dro Paulo não se perturba com eventuais
desarranjos. Em vez disso, tira proveito
das mudanças e dos acidentes, acolhe
e multiplica as perguntas e fabrica este
"livro-experiência".

Guacira Lopes Louro

.
p~dr6 :Pê-1.1.~6/g~ p~reí;rê-

COLEÇAO QYEER

~~:r(:~tp~~ (!<f~.a17'~~sia,s
Comitê editorial: Richard lvliskolci (coordenação), Berenice Bento,Judirh Jack Halbersram,
Larissa Pdócio, Rossana Rocha Reis

A coleção Annablume ~ecr rem o objetivo de publicizar estudos sobre sexualidade. gênero e
direitos humanos. Cotnpreende pesquisas contemporâneas sobre sexualidades dissidentes assim
como estudos históricos críticos sobre a compreensão ciendfica. médica c social dos gêneros e das
se-x·ualidades. Lidando con1 sexualidade e gênero como cuegorias analíticas, histórica e socialmente
criadas, a coleção busca trazer a um público nuis amplo a rica produção acadêmica atual sobre
esta esfera de relações cujo interesse ultrapassa os muros universitários e se associa às demandas de
reconhecimento e direitos.

Conheça os títulos desta coleção no final do livro.

~!3WME
Q l: > r. R

/\NN~UME
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

P436 Pereira. Pedro Paulo Gomes.


De corpos e travessias: uma antropologia de corpos e :tfetos. í Pedro Paulo Gomes Pereira.
Prefácio de Rich.ud Miskolci. Apresentação de Odvio Velho. - S:io Paulo: Annablume, 2014.
(Coleção
242 p.:

ISBN 978-85-391-0642-4

1. Estudos de Gênero. 2. Sexualidade. 3. Antropologia do Corpo. 4. Antropologia d.1 Saúde.


5. Antropologia da Doença. 6. AIDS. 7. Biomcdicina. 8. Teoria ~eer. L Título. li. Uma
Ill. Série. IV. Miskolci, Richard. V. Velho, Otávio.

CDU 305
CDD 390

Caralogaçi.o elaborada por Ruth Simil.o P;mlino

DE CORPOS E TRAVESSIAS:
UMA ANTROPOLOGIA DE CORPOS E AFETOS

Prr~jeto t' P,-oduç.ío e


Coletivo Gráfico Annablume

Rel:fs,io do TCxto
Edna Lúcia

lnitlgemdz
Na sombra ou na luz, fvlaría Padilha me conduz. Foto tirada em uma ~cssão de
Ivfaria P<1dilha do Cruzeiro e Zé Pelintra (Pai Ricardo de Ieman.iá e
Pesquisa da f-Oto realizada por Jvlarrha H. T. de Souza. Tratamenw da imagem por Cynrhia Alexandra.

Annablume Editora
/\ rea Corpo. Sexualithdes e Políticas d«- Ivtulridáo
Conselho Ciendhco
Richard lvt iskolci
Berenice Bemo
JudithJack H,1lbersum
Luissa Pelúcio
Rossana Rocha Reis

1'1 edição: março de 2014

Pedro Paulo Gomes Pereira

Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554. Pinheiros


054ls-020 . São Paulo . SP . Brasil ""Toda vez que dou um passo o mundo saí do lugar."
Te!. e Fax. (011) :l539-0226 --- Tdevendas 3539-0225
W\VW.annablun1c.cotn.br (Siba)
Agradecimentos

Este livro é uma instância provisória e parcial de um conjunto de


ideias e perguntas que venho elaborando e que foram apresentadas, em
2013, no Concurso de Livre-Docência da Universidade Federal de São
Paulo. Penso nele não como produto de questionamentos de um ator
central, mas como efeito das relações de sobreposição de diversos agentes:
CNPQ (financiamento de pesquisa e publicação), Fundación Carolina
(bolsa pesquisa na Espanha), FADA (bolsa produtividade), Universitat
de Barcelona (pós-doe); cidades de Brasília, Barcelona Goiânia e São
Paulo; membros da Banca de Livre Docência; professores e pesquisadores
- enfim, um conjunto de instituições, lugares e pessoas que possibilitou
De corpos e travessias.
Muitas pessoas participaram da minha vida e me ajudaram na pu-
blicação deste livro. Elas me ensinaram mais do que pude registrar, mas
a gratidão é maior que esta simples lembrança. Agradeço aos professores
e professoras que aceitaram o convite de participar da Banca de Livre
Docência: Luiz Ramos, Otávio Velho, Leny Sato, Guacira Lopes Louro,
Eleonora Meniccuci, Rubens Adorno. Sou grato à Rita Laura Segato,José
Jorge de Carvalho, Richard Miskolci (que debateu rodo o livro e tem sido
um interlocutor atento e grande incentivador), Wilza Villela, Francisco
Lacaz, Berenice Bento, Larissa Pelúcio, Luiz Cecílio, Ricardo Barbosa,
Arnaldo B. S. Neto. De formas e imensidades diferentes,Judith Turner,
Lola Luna, Angel Martinez, Octavi Piulats também contribuíram para
os argumentos aqui desenvolvidos. Agradeço ainda à Suely Gimeno (que
vem me ensinando epidemiologia e a arte da gestão); aos professores ~i­
Sumário
rino, Ethel e Rita; aos meus colegas de Departamento; aos profissionais
e pesquisadores do Projeto Xingu, em especial Sofia, Douglas, Maurici e
Patrícia. Em São Paulo, aprendi muito com Denise Martin, Eunice Naka-
mura, Nelson Filice, Andréa Barbosa, lVIarcos Rufino, Renato Sztutman,
Stelio Marras,Juliana Rosalen, Francirosy Campos,Joon Ho Kim, Raquel
\Veiss, Paulo Peres, Élcio Nogueira, Ana Bretas, Janine Schirmer, Lucila
Vianna, João Erbs. Edna Lúcia fez a revisão com paciência e dedicação
-distantes, compartilhamos um momento ditlcil. Devo igualmente aos
meus orientandos e orientandas, em especial, Manha Souza, 1V1arcos
Signorelli e Odilon Castro.
~eria agradecer também às pessoas que vêm me ajudando a con- Prefácio 11
tinuar ir em frente: Dona Antônia, tia Zada e tia Loce, Carla, Leonardo Richard Miskolci
e Oscar; meus irmãos Zezé, Zizia e Olavinho (ainda quando distantes
sempre me fazem lembrar de uma infância cheia de fantasia e alegria); Apresentação 17
meus primos, sobretudo o Bolinha. lVIeu pai me ensinou a rir e minha Otávio Velho
mãe povoou minha imaginação de personagens, lugares e comidas.
De corpos e trtwessias é para Bárbara e para Daniela: Bárbara me faz Introdução 19
uma pessoa melhor a cada dia; Daniela me acompanhou em todos os
momentos e me incentivou quando pensava em desistir. As duas fazem Parte 1 27
minha vida possível.
I - O silêncio e a voz 29

2 - Nas tramas de um debate 51

3 - Em torno da vida 77

Parte 2 99

4 - A grande divisão e o campo da saúde 101

5 - Violência e tecnologias de gênero 117


6 - Queer nos trópicos 133 Prefácio
Parte 3 155

7 - Limites, traduções e afetos 157

8- Variações em torno d'água 187 Richard Miskolci 1


Referências Bibliográficas 209

De corpos e tnwessias: uma antropologitz de corpos e tif(:tos é um livro


múltiplo, formado por capítulos que lidam com temas correlacionados,
como aids, violência, sexualidade, saúde, assim como sobre os quadros
teórico-conceituais que buscam compreendê-los. Escrito com leveza e
precisão, traz discussões caras aos cientistas sociais, apresentando reflexões
teóricas inovadoras e pesquisas que interessarão também a estudiosos e
profissionais da área de saúde.
A maioria dos capítulos lança outro olhar sobre os hospitais, a me-
dicina e os desafios de profissionais como médicos/as e enfermeiros/as
na sociedade contemporânea. E mostra como vivemos em um cenário em
que grupos biossociais emergem reivindicando cidadania, solicitando ou
recusando intervenção medicamentosa e até questionando etiologias, cada
vez mais desafiando pessoas cuja formação, experiência e fontes teóricas
não dão conta das transformações necessárias para a atuação no presente.
Diante disso, surge a dúvida: O que fazer? A questão- tão cara a
pessoas formadas para intervir socialmente - não encontra aqui resposta
imediata, tampouco definitiva. Mas, Pedro Paulo Gomes Pereira oferece
meios para sair dela. De forma inovadora em relação à bibliografia inter-
nacional, ele mostra que a biomedicina muitas vezes é permeável a outros

1 Professor Associado do Depanamenm e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCare Pesquisador


doCNPq.
12 De corpos c travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 13

saberes e os profissionais de saúde, em alguns casos, têm abertura e flexi- a aids e as dos dissidentes que afirmam que a síndrome seria um "miro':
bilidade para lidar com os diferentes contextos, assim como os pacientes Declarando-se claramente ortodoxo em sua perspectiva sobre a etiologia
detêm agência. Em outras palavras, apresenta evidências de que a área de da aids, o autor não deixa de reconhecer que a controvérsia permite refletir
saúde não pode ser compreendida apenas na chave da reificação e do poder. sobre as relações entre política do conhecimento e das representações.
Coerentemente com suas fontes empíricas, foca nas trocas e nos Ainda que o autor demonstre que a ciência se mantém em seu já
encontros, pois são neles que os saberes e as técnicas oficiais são interpe- antigo posto de aferidora de verdades, a polêmica reatualiza outras ver-
lados por realidades outras, como pacientes de classes sociais, culturas, dades que emergiram desde fins da década de 1960, também envolvendo
origem regionais, etnias diversas. Por isso mesmo pode explorar evidên- parologização e homossexualidade. O então emergente movimento
cias de que, entre nós, diferentemente do que se passou na Europa e nos homossexual desafiou o saber psiquiátrico no início da década de 1970,
Estados Unidos, a biopolítica sempre operou de forma diferencial. Se fato sem o qual a homossexualidade não teria sido retirada do manual de
historicamente, desde fins do século XVIII, a sociedade passou a girar em diagnóstico de doenças mentais (Diagnostic and Statistical Manual of
torno do direito à vida e à saúde, nas áreas do mundo que foram colônias Mental Dísorders, DSM). Entre 1970 e 1973, ativistas gays, alguns deles
jamais se deu o mesmo ponto de viragem. também psiquiatras, manifestaram-se durante os encontros anuais da
Nos trópicos ainda se vive e se deixa morrer, alguns têm acesso à Sociedade Americana de Psiquiatria até que, no terceiro ano, um acordo
saúde e outros não. Esse fato é explorado já na primeira parte da obra, foi alcançado: a homossexualidade deixava imediatamente de ser consi-
a começar por sua etnografia em um retiro para portadores do HIV em derada uma doença mental. O que se passou foi um tour de force em que
Brasília. Há poucos quilômetros do Ministério da Saúde algumas dezenas o aspecto político das definições científicas sobre normalidade e desvio
de pessoas viviam quase amontoadas, sem cuidado efetivo, identificando- foi evidenciado e dobrado.
-se como "sucata do mundo". Cenário que fàz pensar, em termos globais, No capítulo "Em torno da vida", Pereira traz uma discussão tão
na desigualdade entre as políticas de saúde para portadores do HIV nos necessária quanto ainda pouco explorada entre nós: como pensar sobre
países mais ricos e o que se passa noutras partes como, por exemplo, o a vida no contexto brasileiro? Segundo ele, se quisermos usar o conceito
continente africano. Tudo aponta para a não superação das desigualdades foucaultiano de biopolítica temos que - antes - descolonizá-lo. Ou, em
coloniais e para o faro de que a biopolítica só fàz sentido para o Sul Global seus termos,provincializm· Foucault e suas reflexões como intrinsecamente
quando pensada nesse eixo diferencial em termos geopolíticos. As vidas associados ao contexto dos países centrais e seu poder colonial, pois se a
precárias e sob constante ameaça de perecer são indissociáveis das seguras vida e a saúde passaram a ser valores do chamado "Ocidente" isso só foi
e saudáveis, como dois lados de uma mesma realidade. possível porque em suas bordas se mantiveram vidas precárias, castigadas
O aspecto político que regula essa ordem em que para alguns se e até mesmo relegadas à morte. Não se trata, portanto, de uma recusa
oferece saúde e condições de viver e a outros se nega estes mesmos direi- pura e simples dos conceitos foucaultianos, antes de uma sofisticada
tos emerge também no capítulo sobre os dissidentes da aids. Trata-se de incorporação reflexiva para a nossa realidade, a qual não foi (tampouco
uma contribuição importante para uma história não oficial da epidemia é) a mesma dos países centrais.
e, sobretudo, para a compreensão da forma como a construção social de A segunda parte do livro apresenta discussões que envolvem saúde,
patologias e patologizados faz parte da criação de modalidades de cidada- gênero e sexualidade em uma perspectiva queer sublinhando que: "A
nia e, portanto, de acesso desigual a direitos e condições de vida. Pereira heterossexualidade, concebida como regime político de administração
reconstitui e analisa o debate entre as visões oficiais sobre o vírus HIV e dos corpos e gestão da vida, conforma-se numa tecnologia destinada a
14 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
15

produzir normalidade e corpo heteros" (p.78). Na esteira do conceito de fronteiriça em que escolheu atuar profissionalmente, a de viver no limiar
Teresa de Lauretis de tecnologia de gênero, dedica um capítulo à análise de entre dois mundos, o que o leva a apostar na travessia da fronteira por meio
como a violência é retratada em notÍcias de jornal, atentando para como da tradução entre culturas. Ao invés de se alocar na posição daquele que
ela é associada também a classe-social em nosso país, já que populares são fala pelo outro prefere a cria pontes entre diferentes mundos. Aposta em
associados à violência como "estado natural", enquanto nas classes altas ela uma antropologia dos corpos e dos afetos, tradutora de universos culturais
é vista como um desvio de uma pressuposta "natureza boa': Destaca-se a distintos - especialmente entre pacientes e profissionais de saúde. Seu
forma como mostra que, no Brasil, a violência não é apenas um problema uso da etnografia se dá nesse sentido, como um meio para compartilhar
social, mas também uma forma de (re)tratar o Outro, sobretudo o mais a experiência, uma forma de fazer dialogar quem sofre e quem trata, de
pobre ou estranho. forma que, nesses encontros, ambos saem transformados.
Encerra esta parte com o primoroso ensaio Qyreer nos Trópicos, no De corpos e tr;wessias é, na própria definição do autor, um livro-
qual Pereira aclimara a Teoria ~eer às nossas problemáticas, corpos e -experiência. Como tal, ele nos convida a atravessar fronteiras, questionar
formas de subjetivação. Nele, Pereira apresenta a trajetória deCida, uma limites e nos deixar afetar pelos Outros - exercício fundamental em um
travesti nascida no interior do Brasil que trilhou caminhos e transforma- país tão desigual quanto o Brasil e, em especial, nas experiências-limite
ções subjetivas e corporais singulares, viveu na Europa e- sem perder suas do sofrimento e do adoecer.
raízes - tornou-se cosmopolita. De forma leve, no tom mais reflexivo do
que argumentativo que marca rodo o livro, o autor contrasta a experiência São Paulo, janeiro de 2014.
de Cida com as da teórica espanhola Beatriz Preciado, cuja experiência
com a testosterona gerou um livro marcado pelo eurocentrismo e pelo
aprisionamento à farmacologia hegemônica. Qyteer nos trópicos é uma das
críticas mais profundas e sofisticadas à obra dePreciado, mas também um
estudo exemplar que demonstra o caráter colonizado das tentativas de
sua incorporação irrefletida à realidade brasileira.
A última parte do livro toca nas afecções e afetos de profissionais que
lidam com saúde indígena. Ao invés de choque ou recusa de parte a parte, o
autor vê como o contatO entre diferentes culturas tem interpelado imagina-
tivamente médicos/ as e enfermeiros/ as e como soluções inovadoras podem
emergir. Reconstitui os encontros entre profissionais de saúde e indígenas,
analisando os esrranhamentos culmrais ao mesmo tempo em que insurgem
complexos processos de tradução entre culturas. Pereira privilegia as trocas
e enriquecimentos mútuos e demonstra a emergência de uma intermedica-
lidade, ou seja, da convivência de sistemas médicos distintos. Aponta para
medicinas híbridas em que os agentes interagem na teoria e na prática.
É nesses capítulos finais que também fica mais clara sua concepção
do papel do antropólogo na área de saúde. Reflete então sobre essa situação
Apresentação

Otávio Velho 1

Este livro é antes de tudo o resultado de uma trajetória de estudo


e pesquisa exemplares. Trajetória esta que fez com que o seu autor per-
corresse muitos lugares e situações, mas sempre com extrema coerência.
Desde a sua formação inicial em Goiânia, o seu pleno amadurecimento
na passagem pela Universidade de Brasília até a sua atual inserção como
antropólogo na Universidade Federal de São Paulo. Mas também desde
o seu trabalho em um abrigo para portadores de aids despossuídos até
a observação e contato com índios e os médicos e médicas que os aten-
dem, passando ainda por experiências de pesquisa no exterior que muito
enriqueceram o seu olhar.
Pedro Paulo Gomes Pereira conhece como poucos entre nós a litera-
tura internacional pertinente, sobretudo a que tem a ver com o biopoder e
com a constituição da modernidade ocidental. Ao mesmo tempo, possui
uma capacidade igualmente incomum de utilizar-se dessa literatura sem que
a sua etnografia perca o seu próprio poder de reagir a ela. Para isso escuda-se
em trabalho de campo realizado muitas vezes em condições extremas que o
levam a desenvolver juntamente com a sua competência técnica, qualidades
de compaixão sem pieguice que não passam despercebidas ao leitor.
Com todo o respeito à melhor literatura pertinente, Pedro Paulo
quer saber em que e como as nossas condições nos "trópicos" podem

1 Professor ernériw da Universidade Federal de Rio de Janeiro (Museu Nacional): pesquisador sénior CNPq.
De corpos e rravessías
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iluminar o que seria a vida para além do biopoder. Uma vida que desafia Introdução
não só as políticas públicas que tendem a homogeneizar condições e cir-
cunstâncias díspares impedindo uma avaliação adequada da complexidade
das experiências vividas, mas também que desafia os próprios esquemas
teóricos explicativos que dado o lugar de sua produção e as limitações de
suas afecções acabam também por exibir ao pesquisador atento os seus
pomos cegos. Como, por exemplo, a incapacidade de observar plena-
mente as conexões entre a modernidade ocidental e as práticas coloniais.
Neste esforço ele se junta aos que querem provincializar a Europtl a fim
de abarcar experiências que não deveriam, mas a mais das vezes lhe são
estranhas. Não deveriam porque lhe constituem, mas como face não só
oculta como também ocultada. E nada disso é feito apenas para esclarecer
casos empíricos não previstos nas teorias iniciais, mas para propor um ou- No final de 1978, Duccio Trombadori- jornalista deL'Unitá, peri-
tro olhar. Olhar esse que não deverá reconhecer fronteiras e que se espera ódico do Partido Comunista Italiano - fez uma série de entrevistas com
possa acabar por ter efeito na própria fonte das teorias que nos formaram, Michel Foucault, publicadas em Remarks on Afllrx. Logo nas primeiras
permitindo enxergar o que lá é implícito e reprimido, mas está presente. páginas, Foucault advertia estar, naquela época, escrevendo um "livro-
Nesse movimento, Pedro Paulo também derruba barreiras entre as -experiência". E, na tentativa de descrever as características desse livro,
ciências sociais e as ciências biológicas. Aí de novo buscando uma vida colocou-o como oposto aos "livros-verdades" e aos "livros-demonstração':
para além do biopoder, reconhecendo e respeitando os seus colegas de "Eu me considero", afirmou então, "mais um experimentador que um
uma maneira que se vislumbra propícia para o avanço do conhecimento teórico" (Foucault, 1991, p. 27); e pouco adiante completou: "(~ando
e para a compreensão de nossos interlocutores. Interlocutores que não escrevo, faço isso acima de tudo para me transformar e não penso a mesma
são apenas informantes ou pacientes. coisa como antes':
Tendo tido o privilégio de participar da sua banca de doutorado na Gosto de imaginar De corpos e travessitu dessa maneira: um livro-ex-
Universidade de Brasília e também na do seu concurso de livre-docência periência, que revela algo das minhas investigações em curso, sublinhando
na Universidade Federal de São Paulo de que o presente livro é fruto, não só minhas indagações e movimentos, mas também registrando as
considero esta publicação um evento auspicioso, que sem dúvida merece transformações pelas quais passei - de certa forma, desenhando uma
ser saudado e louvado. cartografia de afecções e afetos.
Escritos na última década, os capítulos que compõem este livro
Rio de Janeiro, janeiro de 2014. são reflexões originadas de experiências em pesquisas: uma etnografia
numa instituição de portadores de aids em Brasília, uma pesquisa sobre
os" dissidentes da aids" na Espanha, e as mais recentes investigações sobre
tecnologia e saúde que venho desenvolvendo em São Paulo. Por mais
que essas experiências tenham produzido em mim uma multiplicidade
de respostas - não totalmente controláveis e capazes de perfàzer algo da
20 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
21

minha própria trajetória -, elas versam sobre preocupações similares. aquilo de que um corpo é capaz. Acima de qualquer outra coisa, encontrei
Embora tenha sempre preferido uma leitura desses capítulos como dife- movimentos, itinerários, caminhos nos quais os corpos são afetados.
rentes entre si, essa "pretensão à heterodoxia" - para falar como Mareio Daí a presença do termo travessia no título e em várias partes deste
Goldman ( 1999, p. 11)- não foi adiante. Acabei por me espantar quando livro. Corno se sabe, travessia é um dos principais conceitos de Grande
percebi que as indagações giravam em torno de um mesmo eixo: o corpo. sertão: veredas. Guimarães Rosa utiliza a expressão conferindo-lhe novos
No decorrer das páginas seguintes, o leitor vai se deparar com significados à medida que sua narrativa avança: "Digo: o real não está na
diversos temas: internos de um refúgio para portadores de HIV em saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia"
Brasília; dissidentes da aids perfazendo novas formas de biossocialidade (Rosa, 2005, p. 62-63); "Aquilo era a tristonha travessia, pois então era
na Espanha e compartilhando convenções na dissidência; convenções preciso. Água de rio que arrasta" (p. 220); "Travessia de minha vida" (p.
sobre a grande divisão natureza-cultura partilhadas e a busca por uma 274); "Travessia, Deus no meio" (p. 292); "Travessia, ali, podia ser pe-
sintaxe que possa dar conta do corpo; tecnologias de gênero nas páginas rigosa" (p. 289); "Aquela travessia durou só um instantezinho enorme"
policiais; travestis (corpos queer) incorporando pomba-gira nas casas- (p. 371); "Ou são os tempos, travessia da gente?" (p. 379); "Travessia
-de-santo; profissionais de saúde e suas afecções e afetos em ações volta- perigosa, mas é a da vida" (p. 510). O conceito se refere ao estatuto da
das ao contexto indígena. Subjacente a essa variedade de temas há uma realidade, ao tempo e ao espaço, às experiências; expressa movimento de
tentativa de compreensão das intricadas relações entre corpos e afetos. ire vir, do perto e do longe, do caminho e do descaminho (Nunes, 1996).
É por essa razão que encontraremos, sob essa miríade temática, corpos Desse modo, o que espero resgatar é essa centralidade do movimento e
que se assujeitam e escapam; tecnologias que constroem corpos, sexo e da circulação, em suas Íntimas relações com as experiências vivenciadas.
gênero, e tecnologias de intervenção em populações, i.e., biopolíticas; Guimarães Rosa nos ensina que a imaginação depende de movimen-
afecções e afetos com capacidade de fazer que personagens de histórias to. O importante é conectar, conjugar, continuar, multiplicar (Braidoti,
dramáticas se repensem. 2004). A travessia destaca a experiência de conceitos nas elaborações de
A indagação sobre um vocabulário e uma sintaxe para f~1lar sobre o outras formas de conhecimento, e se refere à mobilidade e à interconexão
corpo e a busca pela descrição de experiências corporais não objetivaram entre teorias e conceitos. A ênfase está no trânsito, numa busca de agen-
responder o que é um corpo. A estratégia foi outra: busquei seguir as ciamentos e multiplicidades. Tmvessia indica que os próprios conceitos
perguntas que meus interlocutores foram indicando como relevantes e devem ser percebidos em movimento. Indica igualmente atravessam emo
voltando-me às suas inquietações. "O propósito não é responder pergun- de fronteiras, construção de itinerários, caminhos. Discussão esta que
tas", sustentou Deleuze num livro denominado Diálogo, "mas sair delas" aponta para, no mínimo, dois aspectos que gostaria de comentar.
(Deleuze & Parnet, 1998, p. 7). O intento, portanto, não é o de imaginar O primeiro é a importância dos itinerários, das travessias para
um quadro de indagações fixas com respostas diversas, mas o de aproximar meus interlocutores: portadores de aids que ora fogem de instituições,
de perguntas-outras: aquelas que nossos interlocutores elaboram em suas ora "erram" pelos centros urbanos, e viajam; travestis em seus itinerários
sofisticadas teorias. A questão é, então, sairmos de nossas perguntas e pelas casas-de-santo e pelos serviços de saúde; profissionais de saúde
dos conceitos preestabelecidos e experienciarmos perguntas-outras que que se aventuram em rios e igarapés no Xingu. Tudo parece afirmar a
nos afeccionem e possam nos afetar. Assim, as experiências que procurei primazia do movimento e da circulação. Os termos utilizados pelos meus
registrar neste livro parecem se deslocar de uma definição substantiva de interlocutores são significativos: perder-se, vagar, fugir, escapar e errar. Se
corpo para- falando agora como Deleuze, leitor de Espinosa- desenhar a linguagem dos afetos foi empregada para descrever como portadores de
22 De corpos c travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 23

aids se transformam em "sucata do mundo" (Pereira, 2004), as expressões *


usadas para descrever esses momentos de errância são as de deslocamento,
de movimento. Como irei argumentar adiante (Cap. 3 ), refletir sobre esse O livro está dividido em três partes. A primeira agrupa os capítulos
campo semântico poderia nos fazer concluir que as subjetividades tam- relacionados às pesquisas que fiz sobre aids. Nos anos de 1998 e 1999 rea-
bém se localizam naquilo que excede e escapa às normas. E, sob a atuação lizei uma etnografia num refúgio para portadores de aids onde conviviam,
de biopoderes sobre corpos e almas, algo sempre desloca, vaza e escapa. em situação de confinamento, ex-presidiários, ex-prostitutas, moradores
O segundo aspecto é o próprio movimento dos conceitos. Não há de rua, travestis, pessoas abandonadas ou expulsas de casa, usuários de
neste livro uma busca de exegese de um autor, tampouco de adotar qual- drogas injetáveis e ale o o listas. Os internos desse refúgio usavam o termo
quer teoria ou quadro conceitual; pelo contrário, há uma desconfiança de "terror" para descrever a vida que levavam no abrigo. Escrevi "O silêncio
teorias simplesmente aplicadas, pois nesse caso se desconhece que as teorias e a voz" para refletir sobre a tarefa e os dilemas dos antropólogos em
também viajam e se olvida do inusitado dos encontros. E quando viajam, situações de sofrimento e dor. O capítulo explora possibilidades e difi-
as teorias se deslocam, devêm em algo diferente: a viagem, o trânsito, os culdades da antropologia, enfatizando o dilema entre o silêncio e a voz
itinerários afetam-nas- em movimentos de abalo, distorção, ampliação. para antropólogos e para seus interlocutores.
Os trânsitos são amiúde complicados e desiguais. Muito do que circula Logo após o término de meu doutoramento, fui para Espanha
como "teoria universal" está enraizado nas experiências da Europa e dos realizar estudos pós-doutorais (2001-2002). Inicialmente, almejava en-
Estados Unidos, que produzem conceitos genéricos atuando em espaços tender a dinâmica da epidemia naquele país, bem como os dispositivos
onde a teoria universal é testada e refinada ( Connell, 201 O). O que destaco usados na luta contra a aids, mas acabei me deparando com um grupo de
aqui é que as experiências-outras produzem algo mais. E se à antropo- ativistas "dissidentes da aids". Procurei voltar as investigações para esse
logia cabe o exercício de "descolonização permanente do pensamento" grupo. Foi uma experiência difícil, pois havia me vinculado aos dilemas
(Viveiros de Castro, 2009, p. 12), resta também a tarefa de compreender da aids no Brasil e presenciado o bastante para ser ortodoxo no que se
os fluxos truncados, as traduções equívocas, no mesmo movimento em refere à etiologia dessa enfermidade. As discussões me foram especial-
que se busca expandir e aprofundar as experiências culturais. O que me mente duras e não teria saído de diversos dilemas ali colocados se não
interessa mais particularmente é o deslocamento, o trânsito, o encontro fossem Bruno Latour e Roy \'Vagner. De alguma forma neles inspirado,
e os afetos que produzem. "Nas tramas de um debate" segue uma história sobre natureza, cultura,
As afecções são ddtos de um corpo sobre outro no espaço; os afetos política, discurso, metáforas, estabelecimento de verdades cientÍficas,
são os ddtos de um determinado corpo sobre uma duração - variações conflitos, mal-entendidos, descrevendo um debate espanhol sobre a aids
de potência. Afeto corresponde ao modo como problematizamos nossas na África do Sul.
afecções; afecção é aquilo que o corpo absorve no encontro com outros O próximo capítulo, "Em torno da vida", busca sopesar essas duas
corpos. Afeto é o próprio movimento - travessia. Acredito que, de uma experiências. Partindo da etnografia no refúgio para portadores de aids
forma geral, uma antropologia de corpos e afetos se volta para a taret:1 e da pesquisa com os dissidentes da aids na Espanha, mapeando algumas
de tomar as ideias de nossos interlocutores como conceitos e, como sa- das principais abordagens sobre o tema, o texto destaca uma tensão
lientarei no transcorrer deste livro, conceito comporta pelo menos duas entre políticas que incentivam e buscam potencializar a vida e pessoas
outras dimensões, as do afeto e as do percepto, indispensáveis para o excluídas e deixadas para morrer. O argumento se volta para dois tipos de
movimento, para o devir. inquietações: uma que indaga sobre a existência de quadros biopolíticos
24 De corpos e rr.wessi.1s Pedro Paulo Gomes Pereira 25

que acabariam por produzir corpos e subjetividades meramente como homogêneo denominado de "biomedicina'; sem a devida atenção às suas
frutos de exercícios de poder e de controle, sendo, por conseguinte, a experiências.
eles circunscritos; outra que pergunta como ler essa história nos trópicos.
A segunda parte reúne os capítulos nos quais abordo gênero e *
sexo. "A grande divisão e o campo da saúde" explora as dificuldades do
léxico para fàlar o corpo. Pensando no tema, destaco a existência de con- Estes capítulos apresentam, além de um eixo comum em torno do
venções em torno das quais giram cientistas sociais e biomédicos. Essas corpo e uma vontade de estar atento aos movimentos e aos deslocamen-
convenções sinalizam que ciências sociais e biomedicina teriam algo em tos, um tom mais reflexivo que argumentativo. À medida que o tempo
comum: compactuar uma grande divisão como regra básica do jogo, a passava fui procurando repensar e rever algo da minha própria trajetória.
divisão entre natureza e cultura. O capítulo "Violência e tecnologia de Como disse no início, De corpos e trtwessias é um livro-experiência e, sendo
gênero" busca descrever como atua uma tecnologia de gênero, as páginas produto de experiências, escrito no decorrer de uma década, não haveria
policiais dos periódicos, tentando destacar como a máquina jornalística como ter pretensão à homogeneidade analítica ou estilística. Na realidade,
constrói "homens" e "mulheres", o masculino e o feminino. A atenção aqui os capítulos repetidas vezes apresentam ângulos novos sobre o mesmo
se centra nas agências que apresentam dispositivos que constroem o que tema ou sinalizam revisões de argumentos anteriormente expostos. Por
é corpo e o que é gênero. No capítulo subsequente descrevo intricados exemplo, no capítulo "Em torno da vida" surpreendo um dos internos que
itinerários de corpos "estranhos". Incentivado por experiência de trânsito havia encontrado anos atrás no refúgio para portadores de aids vagando
de corpos queer no Brasil e interpelado por suas teorias e invenções, reflito pelas ruas de Brasília. Se em "O silêncio e a voz" meu olhar era centrado
sobre a possibilidade de o gesto político queer abrir-se para saberes-outros em instituições (abrigo, hospitais, prisões), esse meu interlocutor me
(abrir-se a formulações de perguntas-outras a que me rderia logo acima) mostrou a importância das errâncias e da mobilidade, dimensão esta que
ou se estaríamos presos dentro de um pensamento que perfaria um fluxo não pude observar em trabalhos anteriores (Pereira, 2004). No primeiro
inamovível do centro para periferia sem que nada de novo possamos caso, o enfoque foi para corpos reclusos, enfermos, em sofrimento; no
propor ou vislumbrar. segundo, para corpos que também perambulam, viajam, exploram.
Na terceira e última parte me aproximo das afecções e dos afetos Talvez a maior mudança que apresento neste livro seja a maneira de
de profissionais que trabalham com saúde indígena. Em 2008 iniciei perceber os hospitais, a medicina e os profissionais de saúde. Nos meus
uma pesquisa sobre tecnologia e saúde, tentando focalizar, sobretudo, as primeiros trabalhos, quando delineava a atuação dos profissionais e o fun-
biotecnologias e as práticas biomédicas. No decorrer das investigações fui cionamento das instituições hospitalares, a descrição era externa e crítica
interpelado por médicos, enfermeiras, sanitaristas, dentistas que vinham à biomedicina, esta percebida como se fosse homogênea. No entanto, as
me expor suas dúvidas e seus problemas. Desviando de meu propósito experiências pelas quais passei no pós-doutoramento na Espanha e nas pes-
inicial, voltei-me para suas preocupações. Realizei a pesquisa do início de quisas em São Paulo levaram-me a afastar de uma percepção da medicina
2008 ao final de 2011, por meio de observação participante, entrevistas como um aglomerado único, impondo-me a necessidade de abrir e expor
e acompanhamento da vida cotidiana dos profissionais de saúde. "Iàl suas diferenças. Nesse tipo de análise, mesmo a máquina hospitalar não
pesquisa me conduziu a enfrentar os dilemas dos meus interlocutores conseguiria reduzir os pacientes a meros objetos, quanto mais profissionais
que reivindicavam que fossem compreendidas suas especificidades e de saúde em processos de tradução. Esses procedimentos e aproximações
manifestavam desconforto com certa visão que os enquadrava num todo me afastaram das teorias de reificação e objetificação dos pacientes.
26 De corpos c rravessias

Talvez devido a esse repensar - esse movimento -, os capítulos


conversem entre si. Em pelo menos três deles ( Cap. 2, 3 e 4), insisto no
tema da tradução; noutros dois discuto sobre as viagens das teorias e seus
problemas ( Cap. 3 e 6); a busca de entender a medicina e os profissionais
de saúde para além da discussão de reificação encontra-se em quatro
capítulos (Cap. 2, 4, 7, 8); empreendo uma discussão sobre tecnologias
em três deles ( Cap. 2, 3 e 4) e em quatro abordo os limites e a potência
daquilo que Foucault denominou biopoder (Cap. 1, 2, 3, 6). Ou seja, eis
aqui um livro de leituras cruzadas e de conversas.
Conversas construídas ao longo do tempo, inacabadas, incompletas,
assinalam que as ideias ainda não foram terminadas. Se é que poderiam
ser: um livro-experiência é algo interminável - há que se decidir pelo
ponto final. Árdua tarefa para quem entende as experiências como acon-
tecimentos (Beaulieu, 2002), instantes de recepção espaço-temporal de
afecções e percepções e que, tal qual Deleuze pensava para os corpos, são
Parte 1
capazes de fazerem-se num devir infinito e intensivo.
1 - O silêncio e a voz

Escrever sobre o silêncio é tarefa paradoxal. O mesmo ato linguístico


que enuncia esmaece a força do enunciado, na medida em que as palavras
preenchem o vazio outrora ocupado pelo silêncio. Essa constatação dis-
solve seu caráter de aporia ao percebermos que o silêncio não é medida da
sonoridade ambiente, nem do vazio. A escrita produz silêncio e roda obra
afirma, sublinha, ressalta, mas também exclui e silencia. A persistência
do silêncio revela mais do que esconde, ou melhor, revela ao esconder.
Como o silêncio é um dispositivo discursivo, devemos buscar
entender as diferentes maneiras de não dizer, averiguar quem pode ou
não falar, verificar quem fala por quem. Podem-se entender os silêncios
como partes integrantes das estratégias dos discursos. A polissemia do
termo indica as numerosas possibilidades de aproximação: o silêncio
impossível em época de comunicação midiática; o silêncio como forma de
comunicação; a aspiração do silêncio como nostalgia do passado vivido e
inalcançável; o abalo do silêncio numa era que prima pelo imperativo de
"tudo dizer"; o silêncio como modalidade de sentimento. Outra forma de
compreender o silêncio repousa em verificar como parcelas da sociedade
podem ser silenciadas, como o silêncio pode ser gerido por meio do exílio,
do aprisionamento, da exclusão, do isolamento.
Com base nessas constatações, abordarei uma das variantes da his-
tória do silêncio: a expropriação da linguagem e da condição de fala- o
silenciamento - de um grupo de portadores de aids. Vou narrar a seguir
30 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
31

um pouco de suas histórias, subsumidos num campo de dor e com a A população dessa instituição contava, em agosto de 1998, com 102
linguagem golpeada. O drama dessas pessoas não se resume à violência adultos e 50 crianças. Esse número é flutuante, porém, durante os anos
do ato que impede diretamente a fala, mas também à censura produtiva de 1998 e 1999, nunca esteve abai.xo de 92 pessoas, chegando a ter 200
daqueles que f~1lam em nome dos direitos dos desautorizados a falar. Essa internos. Os adultos - e parcela das crianças - eram portadores de aids.
história pode indicar que as estratégias do poder, além de submeter partes A maioria manifestava doenças oportunistas e precisava de acompanha-
indesejadas da sociedade a condições extremas de silêncio, subtraem a mento médico cotidiano. Tuberculose, toxoplasmose e citomegalovírus
voz no próprio ato de defender seus direitos. Seria paradoxal afirmar que figuravam como as doenças mais frequentes.
a produção do silêncio pode nos "fàlar" sobre o modo que escolhemos Há uma organização formal dos internos da Fraternidade, compos-
para organizar nossas vidas, principalmente em situações de sofrimento, ta por um líder e por vigias. Esse grupo tem reuniões periódicas, mas é
de dor e de doença? do líder (uma espécie de coordenador) a responsabilidade de pequenas
deliberações do dia a dia. E é ele quem controla e coordena os demais,
A produção do silêncio estando, por sua vez, subordinado à autoridade máxima da instituição: a
presidenta "tia Janaína': Os fatos importantes são a ela transmitidos, que
No início da década de 1990, surgiu, na periferia de Brasília, uma termina por decidir o que fazer. Acabam-se concentrando em suas mãos
instituição sob o nome de Fraternidade. 1 Assentou-se no lugar outrora as decisões importantes. Essa concentração produz respeito e temor e
ocupado por uma amiga fàzenda nas proximidades da rodovia que liga o confere à presidenta extraordinário poder sobre a vida e os corpos dos
Distrito Federal a Goiânia. Ao ser instalada, a Fraternidade mudou o con- internos. A estrutura da instituição repousa nessa dependência, fabri-
torno do bairro, apresentou novos problemas à população local e emergiu cando uma organização centrada nas ordens de uma única pessoa e uma
no cenário da cidade e do país, talvez por sua condição sui generis: a de consequenre falta de mobilização dos internos, já que as decisões devem
conter uma população formada por portadores de HIV. Para lá se dirigia ser necessariamente submetidas ao escrutínio da presidenta.
qualquer pessoa que se descobria doente e não possuía lugar para morar. Os internos chamam a presidenta, algumas diretoras e as voluntárias
Com rapidez impressionante, quase duas centenas de pessoas passaram a (colaboradoras e mantenedoras da Fraternidade) de tias. O emprego do
habitar uma área rural cedida pelo Governo do Distrito Federal. Aquilo termo é compulsório; os internos novatos que ainda não conhecem as
que se originou de um ato de caridade acabou por se transformar numa regras de convívio são penalizados ou admoestados quando usam termos
instituição sustentada por beneficência. diferentes. A utilização de um termo de parentesco (também empregado
A Fraternidade tornou-se centro das atenções de hospitais, casas de na primeira infância para amigas próximas ou para professoras) denota
saúde, profissionais de saúde e, enfim, daqueles envolvidos na assistência e uma das facetas de infàntilização dos internos e é consoante com a estru-
no apoio a portadores de HIV. À complexidade da epidemia HIVI Aids tura de poder na instituição.
somou-se uma realidade de exclusão social, de pobreza e de abandono de Os internos moram em casas de alvenaria e de madeira - sem es-
forma tão concentrada que tem intrigado pesquisadores e profissionais trutura de esgoto e água encanada. Os solteiros alojam-se em número de
da área. quatro ou cinco por casa, obedecendo ao critério de separar homens de
mulheres. As fàmílias permanecem numa mesma residência. A divisão
1 A ernograha foi realizada no período de 1998 a 2000. Elaborei um quadro mais completo da Yida na Fraternidade de homens e mulheres tem como um dos objetivos fàcilitar o controle
em outros rrabalhos (Pereira. 2001, 2003. 2004). Salvo quando indicado, os nomes de pessoas e instituiçóes
que aparecem neste capimlo são ficdcios.
sobre a vida sexual dos solteiros. Tia Janaína proíbe quaisquer relações
32 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 33

íntimas ames do casamento. O movimento não é o de imeriorização do grave, e que não estão internados em alguma instituição hospitalar, acabam
"sexo seguro"- tal como a efetuada pelos hospitais e pelas ONG -,mas sendo atendidos precariamente ou abandonados.
o da proibição de sexo ames do casamento. Ao ver-se obrigado a subme- Outro fator determinante na caracterização da Fraternidade é a
ter suas atividades sexuais ao exame e controle de tia Janaína, o interno presença constante da morte. Pensada, desde o início, como um lugar
acaba por reproduzir situações de relacionamentos entre adolescentes. para os portadores de HIV morrerem, sob o signo de uma doença infec-
Boa parte dos namoros e das relações ocorre às escondidas e sempre sob o tocontagiosa sem cura e com a presença constante de doenças oportu-
temor de, se descobertos, advir castigo. Não é incomum ali a visualização nistas graves, as atividades do interno ora se direcionam para cuidar dos
de cenas de homens e mulheres adultos encontrando-se às escondidas, que estão em estado grave, ora para atender o próprio corpo enfermo.
com medo das "tias': Ainda que durante o trabalho de campo eu tenha acompanhado poucos
Invariavelmente, é tia Janaína quem ministra os casamentos. óbitos, a morte é personagem central na instituição, sobre a qual versam
Como as relações sexuais são proibidas aos namorados, amiúde ocor- as discussões e os vaticínios. É rotineiro o debate sobre quando e como
rem casamentos para "arranjar situações". Esse é um dos motivos da alta um interno vai morrer, e qualquer sinal do corpo pode ser interpretado
mobilidade dentro da própria instituição, pois, se o desejo de relações como o anúncio de sua proximidade: ali a morte é ubíqua.
amorosas e sexuais conduz a matrimônios, a fugacidade de relaciona- A passagem por penitenciárias e casas de reabilitação é comum
mentos que se efetivam para garantir pequenos privilégios e fugir das para oitenta por cento da população masculina da instituição, existindo
punições oriundas do namoro às escondidas acarreta separações cons- circulação entre os valores das penitenciárias e os da Fraternidade. Alguns
tantes. Os núcleos familiares formam-se e extinguem-se com a mesma portadores de aids, legalmente pertencentes ao sistema carcerário, são au-
rapidez e fàcilidade. À inconstância dos núcleos fàmiliares somam-se as torizados a se transferir para a Fraternidade. Isso se deve à intervenção de
frequentes mudanças compulsórias de lugar de moradia, dificultando o tia Janaína junto ao Judiciário. A liberação dá-se pela debilidade do sistema
estabelecimento de vínculos. Não existe nenhum tipo de vínculo mais carcerário do Brasil em dar assistência aos enfermos com aids, assinalando o
sólido, seja com o local de moradia, seja com os móveis e objetos ou reconhecimento do Judiciário da inadequação nas formas de atendimento.
com própria instituição. A condição dessa transferência é a promessa de controle nas atividades e no
A maioria da população está desempregada e só dez pessoas rece- trânsito do interno, que deve ser circunscrito ao máximo à Fraternidade.
bem o Benefício de Prestação Continuada do Governo. As atividades Isso faz com que se aumentem as medidas de controle de circulação.
remuneradas são proibidas. As únicas ocupações são aquelas realizadas A medida imediata é: ninguém pode sair da instituição sem au-
pelos internos que estão em condições de trabalhar: cozinhar, capinar, torização e consentimento prévio de tia Janaína. As "saídas" são, em
atender chamadas telefônicas, dirigir a ambulância, entre outras. Enfim, sua maioria, para hospitais da rede pública ou para receber o Benefício
o trabalho permitido é aquele direcionado à instituição. As tarefas e afa- de Prestação Continuada do Governo. Os internos vivem, assim, entre
zeres da instituição são realizados pelos próprios portadores. Não existem pelo menos três instituições: a Fraternidade, os hospitais e os presídios.
atividades ocupacionais ou terapêuticas, fato que acarreta transtornos, Geralmente, o contato com a sociedade abrangente ocorre por meio de
dado o número de alcoolistas e de usuários de drogas ilícitas. Não há outras instituições e, em sua maioria, em momentos de dor e doença ou
na Fraternidade um quadro de profissionais dotados de conhecimento em atividades relacionadas à enfermidade. Aqueles que saem sem auto-
técnico e tampouco pessoas aptas a desenvolver afazeres básicos quando rização e que não exercem suas atividades cotidianas recebem castigos
os enfermos não podem fàzê-los. Isso significa que pacientes em estado subministrados por tia Janaína.
De corpos c rraYessi,1s Pedro Paulo Gomes Pereira 35
34

Os moradores da Fraternidade não questionam a validade e a necessida- A maioria dos castigos dá-se com o aumento da carga horário de
de da ptmição. A "economia política do castigo" direciona-se para delimitar a trabalho e, sempre, incumbindo o interno de tarefas pelas quais ele sente
quantidade e a qualidade dos castigos, que vão dos considerados mais simples mais aversão, com o objetivo de aumentar a punição. Dada a associação
- como a advertência verbal - até a expulsão. Ficar sem comer por um dia, entre trabalho e castigo, as atividades tornam-se indesejáveis e sem pro-
responsabilizar-se pela cozinha, lavar pratos e ficar impossibilitado de sair da pósito, mas compulsórias. A não realização das atividades conduz ao final
Fraternidade são algw1s dos castigos administrados. Essas medidas assumem conhecido pelos internos: a expulsão.
proporções drásticas com o advento das enfermidades: ser proibido de se ali- As cenas relacionadas à expulsão são corriqueiras e perfazem o
mentar é 1m1 castigo severo para w11 portador de HIV, conduzindo à piora da quadro habitual dos internos. Ao recusar-se a executar as tarefas, de ime-
saúde do interno. Da mesma forma, para quem precisa de assistência médica, diato o interno recebe um castigo maior ou é expulso da instituição. Para
estar impedido de ir ao hospital é bem mais penoso e implica ruptura com as maioria, a expulsão é impensável, pois significaria o retorno ao sistema
terapêuticas disponíveis no sistema de saúde. Não há, inclusive, terapêutica carcerário ou à vagància nas ruas. As expulsões provocam insegurança, já
eficaz que possa se efetuar na presença dessa economia política dos castigos. que não sabe onde se estará no dia seguinte nem se haverá condições de
Durante o trabalho de campo, não consegui observar wn único caso de sucesso sobrevivência. Essa instabilidade corta os possíveis laços de vizinhança.
com as terapias antirretrovirais. Presenciei episódios difíceis, como a de uma A expulsão impele o interno às ruas, até que seu estado de saúde se
interna grávida, com óbito fetal, mas sem autorização para ir aos hospitais por torne insustentável e ele acabe chegando a algum hospital para tratamento.
estar "de castigo': bse caso só pode ser solucionado com intensa negociação As internações não são raras nesse caso. Com a melhora, mas sem lugar
entre o Hospital Universitário de Brasília (doravante HUB) e tiaJanaína, que para morar, o interno solicita ao hospital que intermedeie sua volta à
acabou por autorizar o deslocamento para o hospital. Fraternidade. Na maioria das vezes, fica de dois a três dias suplicando o
O sistema de castigo é geral, e dele ninguém - nem as crianças retorno. Como muitas vezes o hospital, segundo dizem os profissionais
- consegue escapar. Ninguém logra evitar as punições, e as atividades de saúde, não dispõe de pessoas para tal tarefa nem de leitos disponíveis,
cotidianas são advindas de castigos. A economia política de castigos é o interno vê-se na situação de ter de ficar na cerca de arame que demarca
resultado e atribuidora de poder à tia Janaína, já que a ela compete fixar as os limites da Fraternidade, implorando por sua volta. A súplica é mais um
punições e nunca é objeto de qualquer medida de retaliação. TiaJanaína elemento da vida diária do interno e perfaz uma pedagogia que, conforme
não pode ser punida. Ela estabelece o que se deve fazer, quem e quando, me disseram, "ensina os desajustados como devem se portar na instituição".
mas é a única que escapa das regras por ela formuladas. As exceções são A economia política dos castigos e a pedagogia da súplica conforma
por ela estabelecidas à sua conveniência e desejo. certo tipo de subjetividade que pode ser observada nas fases do interno na
~ando um interno faz algo considerado errado por tia Janaína, instituição. Há três fases distintas. ~ando alguém ingressa na Fraternida-
e não se sabe em quem aplicar o castigo correspondente, rodos são res- de, desenvolve pequenas críticas aos encaminhamentos de tiaJanaína e ao
ponsabilizados. As punições produzem consigo um sistema de vigilância andamento da instituição. É comum, então, indignar-se por ter "perdido"
continuada e delação premiada, gerando silêncios e incitando mentiras a vida, e o desejo é permanecer naquele local até "as coisas melhorarem"
como forma de convívio. Ali, rodos estão observando, delatando ou ou até seu estado de saúde evoluir positivamente. Nessa fase, a Fraterni-
sendo observados e delatados. "~alquer hora, você cai de castigo. Não dade nunca é pensada como destino definitivo. Posteriormente, apesar de
há como escapar sempre", ouvi repetidas vezes no decorrer do trabalho algumas críticas dos internos persistirem, sobrevirá maior submissão às
de campo. ordens de tia J anaína e uma identificação com seus valores e ideias. Nesse
De corpos e uavessías Pedro Paulo Gomes Pereira 37
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período, o interno, mesmo quando age de modo a contrariar as decisões Primeiro, a dinâmica mais geral do Estado. Se no período clássico
de tia Janaína, avalia estar fazendo "alguma coisa errada". Suas ordens não houve a laicização das obras de caridade, e o Estado tomou a seu encargo a
são mais sentidas como algo de fora, mas como um bom caminho a ser miséria, a situação vem se alterando. Principalmente em países periféricos,
seguido. ~ando o desejo pessoal entra em contradição com as ordens da o Estado tem abdicado de tarefas históricas a que se propunha, como as
instituição, os internos saem ou são expulsos. A terceira fase é aquela na de colocar em ordem o capitalismo, acabar com a miséria e com o de-
qual os internos - os moradores mais antigos - acham-se submetidos ao semprego. Não se fàla agora em suprimir a miséria, mas em ignorá-la ou
domínio de tia Janaína e não têm mais a perspectiva de sair da instituição circunscrevê-la a espaços determinados e cerrados. É assim que, a despeito
e nem forças para mudar a situação. A submissão, nessa fase, é tão extrema do propalado sucesso do governo brasileiro na intervenção contra a aids,
que chega a constranger quem testemunha sem fazer parte desse quadro parece existir uma zona na qual tais medidas não têm penetração e alcance.
de relações. Até para o interno, a submissão chega a ser inexplicável. Uma zona de abandono, enfim, caracterizada pela completa ausência de
A história narrada não é daqueles que sofrem e daqueles que se ações que objetivem modificar quadros como o anteriormente descrito.
colocam fora desse campo do sofrimento. O quadro é mais complicado. Segundo, a dimensão simbólica associada à contaminação e à cons-
Lidar com um agrupamento de usuários de drogas, de pessoas que viviam trução de seres abjetos. A Fraternidade pode ser pensada como originada
nas ruas, de presidiários, convivendo num mesmo espaço sob o signo do desejo de conter os contaminantes e a própria contaminação. Fraterni-
de uma doença infectocontagiosa, dirigidos por pessoas despreparadas dade e aids são a única e mesma coisa, sinônimos da contaminação, o signo
tecnicamente para as tarefas mais básicas, sem estrutura (física, financeira, do contágio, perfazendo uma conjuntura que mescla piedade e repugnân-
etc.) adequada, acarreta um envolvimento, inclusive daqueles que definem cia. O que parece caracterizar a Fraternidade é uma cadeia metonímica
e atribuem os castigos e punições, no campo de sofrimento. Os dirigentes que apresenta uma relação de contiguidade entre exclusão, isolamento e
da Fraternidade também estão inseridos nesse campo de sofrimento - contágio. Não estamos falando de um núcleo de pessoas excluídas, isoladas
inclusive, e talvez mais preponderantemente, a tiaJanaína. temporariamente, para em um futuro reintegrar o corpo social. Para os
O contexto produz um interno infantilizado, sem amizades cons- internos da Fraternidade destina-se o isolamento e a morte. A produção
tantes ou vínculos, executando tarefas nas quais não vê sentido algum, do silêncio efetiva-se com o movimento simultâneo de afastamento do
controlado em suas atividades sexuais, desvinculado de seu ambiente de Estado, exclusão e construção de seres contaminantes e abjetos.
residência, tendo de lidar com uma doença estigmatizante, com enfermi-
dades diversas e com a proximidade permanente da morte. Os dilemas da voz
Apesar de conter características das instituições totais, tais como
formuladas por Goffman (1974), a Fraternidade possui peculiaridades Na narrativa de Kafka (2003), Diante da lei, a ação ocorre entre o
que lhe conferem cor diferenciada: não estamos falando de uma institui- homem que pergunta e o guardião, entre o fora-da-lei e o primeiro de uma
ção fruto da burocracia moderna, mas de um produto do abandono do série de representantes da lei. Esse homem que está fora da lei deseja a lei,
Estado. Trata-se de uma instituição sui generis, originada e sustentada por acredita ser seu direito entrar nesse lugar, nessa porta impossivelmente
práticas oblativas, por sentimentos de piedade para com portadores de acessível. Impossível porque o acesso à lei depende da consciência de que
HIV. Mas, como entender o surgimento e a possibilidade de existência ela não tem lugar, ela só existe quando alguém se apresenta e compreende
de uma instituição como a Fraternidade? Não há respostas simples para que a lei não é nada sem aquele que a percebe. Esse espaço vazio possibilita
essa indagação. Mas, algumas dimensões podem ser salientadas. que a lei seja explorada por representantes que supõem representar a lei
38 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
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e extrair de sua mirada seu poder dissuasório, repressivo, exercendo sua Parecia que cu já sabia que estava com a aids. Fui o único que se preo-
"tranquila e absoluta violência" ( Cixous, 1995, p. 69; Derrida, 1993). cupou, dentro da cadeia, com o exame de HIV. Eu sempre procurava
Uma das histórias mais significativas do espaço vazio existente o carcereiro, sempre pressionando, sempre querendo saber. Eu fiquei
entre a lei e seus representantes foi narrada pelo interno Luiz, natural de sabendo. Colocaram-me numa cela só para portador. Eu não quis
Uberlândia (MG). Ele tinha 33 anos em 1998 e já estava há seis meses na passar para essa cela. Chamaram o batalhão de choque, juntaram
Fraternidade quando conversou comigo sobre sua vida: "Minha infância uma média de vinte a trinta homens na porta (risos) e evacuaram
foi boa. De moleque, de calção caído, aqueles que seguram o calção de todo mundo, botaram todo mundo para tora. Fiquei só eu lá dentro
lado. Ladrão de mexerica, de laranja no fundo do quintal dos outros': Com da cela com uma faca na mão (risos), querendo brigar com trinta
12 ou 13 anos viu-se obrigado a trabalhar e teve de abandonar os estudos. homens. Eles me deram choque elétrico. Desmaiei e acordei na cela.
Com estatura e robustez consideráveis, Luiz foi trabalhar num ferro- Depois, conheci a Fraternidade na cadeia.
-velho, cortando carro a machadadas. Já um pouco mais velho, chegou a
pesar 135 quilos. Segundo ele: "Eu era muito forre, [... ].Depois, com a Ele insistia que os trinta homens estavam com medo da aids: "não
aids, fi.li para 115 e agora estou com 102 quilos. Só fui rebaixando. Estou queriam colocar a mão em mim; eles tinham medo da aids'; repetia. Luiz
mesmo humilhado!". Foi nessa época que Luiz começou a ter problemas se recusou a ser isolado por sua doença e foram necessários trinta homens
com a f1mília. Os pais eram alcoolistas e ele não conseguia ficar bem em para conseguir colocá-lo no isolamento. Suas lembranças e reminiscências
casa. Nesse período, começou a se envolver com drogas ilícitas e a efetuar -aquilo que escolheu como parte importante de sua vida- relatam-nos a
roubos, com o objetivo de obter drogas para consumo próprio. Foi preso história do contágio, o medo da contaminação e a construção do sujeito
a primeira vez por tentativa de roubo e homicídio: contaminante. Ele ressalta a violência como ponto fundamental de sua vida
e alerta para a íntima ligação entre contaminação e violência. A aids seria,
Eu ingeria cocaína, tomava cocaína c ficava muito dopado. Então, o para ele, o produto da vida desordenada e consequência da violência. Dentro
excesso da droga superou minha cabeça, ultrapassou o meu limite. do campo da desordem, ele pôde, inclusive, vaticinar sua própria soropositi-
Acabou a droga que eu tinha, cu queria mais droga, queria mais dro- vidade: "eu já sabia que estava com aids, eu sentia'; disse-me numa ocasião.
ga! Fui correr atrás. Coincidentemente, estava passando um rapaz e Depois de anos na prisão, Luiz conseguiu ser transferido para a
de viu que eu estava me dopando. Eu catei e esfaqueei o cara. Corri Fraternidade. ~ando saía das dependências da instituição, envolvia-se
para o ferro-velho e pedi a bicicleta do dono emprestada. Eu já tinha em tráfico de drogas e furtos. Nos momentos de iminência de encarcera-
tomado uma geral da polícia e estava sendo suspeito de tentativa mento, cortava-se com uma faca, fazendo com que o sangue se espalhasse
de homicídio. Fui pedir a bicicleta, mas o dono estava embriagado pelo corpo, com o objetivo de impedir a aproximação dos captores. A
também. Ele ameaçou atirar na minha cabeça. Eu vi o machado de polícia não se aproximava. O sangue esparramado era signo da concepção
lado, o próprio machado [com] que eu estava trabalhando. Eu peguei miasmática e proteção contra a violência policial. A força do "aidético"
e matei o homem. Fui para cadeia. resumia-se ao medo do contágio:

Luiz me contou essa história diversas vezes nos dois anos que estive- A viatura encosta e a gente cortao braço mesmo[ ... ]. Cortao próprio
mos em contato. Ele sempre lembrava também que foi na cela 6 de uma braço e espalha o sangue no corpo. Cortou o braço, a polícia pula
cadeia pública que soube que estava com aids:
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 41
40

para trás c não chega perto. Os policiais têm medo e se afastam. Nin- cidadão alemão comum que, na época da Segunda Guerra Mundial, pas-
guém quer pegar aids. Aí não tem jeito de tirar nós do local mesmo. seava ao lado dos campos de extermínio com indiferença perturbadora.
Ainda que alguns alertassem para o exagero desse tipo de comparação e
O aro de cortar seu corpo denota a consciência do medo do contágio das imagens a ela associadas, havia algum consenso sobre a necessidade
como elemento central das relações interpessoais, e a compreensão de ser de mudança e de uma urgente reclamação por direiros. Afinal, exclamou
ele próprio contaminante. A construção de um ser vinculado ao contágio certa vez um médico do HUB, "os Direitos Humanos tinham que valer
e à violência não é algo que se dá unilateralmente e de fora. Consiste para os moradores da Fraternidade também':
também no percurso doloroso, lento e contínuo de se considerar abjeto Contudo, como e o que reivindicar? ~e tipos de direitos teriam
e de naturalizar em si o contágio. Entre Luiz e os policiais que tentavam ou, pelo menos, deveriam ter os internos da Fraternidade? Uma das ide ias
aprisioná-lo- os primeiros dos diversos representantes da lei-, há o silên- era denunciar o caráter manicomial da instituição, outra era a tentativa
cio. Não há interlocução, nem perguntas ou respostas. O ato de cortar a de estabelecer condições para a autonomia do interno. Os castigos eram
carne e de expor o sangue sugere a impossibilidade de romper o silêncio. considerados como tipo de tortura, e alguns se questionavam como
A antropóloga indiana Veena Das ( 1995), procurando entender impedir a execução. Os envolvidos na discussão afirmavam que só com a
o silêncio das pessoas que estão sofrendo, questiona se a dor destrói a "autonomia" o interno poderia aderir às terapêuticas antiaids e ter meios
capacidade de comunicação ou se cria uma comunidade moral entre os para organizar sua vida. Para isso, deveria trabalhar, fàzer cursos, adquirir
que sofrem. Evocando "eventos críticos" que nos aproximam do campo do possibilidades de autossustento. Essas atividades, como vimos, estavam
terror, Das encontra, para além da mutilação dos corpos, a mutilação da na direção contrária às diretivas da Fraternidade.
linguagem como a "verdade essencial" do terror. Nessas circunstâncias, a Essas diferenças propiciaram clima de embate entre os profissionais
linguagem é golpeada e cai numa condição de silêncio e emudecimento. de saúde. O conflito entre as posições criou uma conjuntura de discórdia
O fato de a violência aniquilar a linguagem indica que o terror surge no continuada. A magnitude do enfrentamento pode ser observada nas po-
campo do indizível. É nesse campo do indizível que se encontra Luiz. Daí sições expressas pelos profissionais do HUB. Os membros desse hospital
a inexistência da voz que reivindica uma porta de acesso à lei. Esse silêncio acreditam na existência de incompatibilidade entre suas posturas e as ações
possibilita o surgimentO daqueles que tentarão defender os direitos de desenvolvidas na Fraternidade. Os debates referem-se, em primeiro lugar,
outros que não podem fàlar. às diferenças nas formas de conceber o portador de HIV Os profissionais
alertam que a Fraternidade trabalha com a terminalidade 2 e afirmam
que tiaJanaína não incentiva qualquer procedimento com o objetivo de
O impossível falar por
resgatar a autonomia dos portadores. A Fraternidade consistiria num
Diversas entidades e profissionais manifestaram indignação com amontoado de pessoas esperando pela morte, como se depreende das
a condição de vida dos internos da Fraternidade. Críticas aos proce- intervenções que registrei numa das reuniões no HUB:
dimentos, aos castigos e à conduta na instituição foram elaboradas e
se tornaram comuns, especialmente entre os profissionais de saúde do Vera (psicóloga): Eu acho que ela [tiaJanaína) trabalha com a ideia

Distrito Federal. A situação dos internos incitou alguns a lembrar dos de separar todos os portadores de HIV para deixá-los morrer. f... l Ela

campos de concentração, e a constatação de que ninguém estava atuando


2 aids está com morte iminenre, restando como propiciar-lhe uma
para mudar o quadro levava a uma comparação com a sensibilidade do . A noção de terrninalidade tem sido criticad,l desde o início
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 43
-+2

tem uma postura assistencialista, paternalista e, ao mesmo tempo, As discussões referem-se a duas possibilidades: ora se entende que o HUB
desrespeitosa, manicomial. Porque eu acho que a Fraternidade tem deve intensificar sua busca de compreender a Fraternidade e tomar me-
estrutura manicomial, como estrutura institucional.kfanicomúd! Ali didas que considerem as características de seus internos; ora se propõe
é o manicômio ptzm HIV! Eles incentivam a dependência e o ócio! abstrair o interno de seu contexto e tratá-lo como um paciente qualquer,
José (psicólogo): Ela trabalha com a terminalidade, é esta sem atentar para seu vínculo institucional. Se no primeiro caso, por mais
a questão dela. que se compreenda o interno, acaba-se esbarrando nas características da
Rosa (assistente social): Mas é sobrevida, não vida! instituição, como sua economia política de castigos e suas formas próprias
de pedagogia; no segundo, abstrai-se das peculiaridades do interno que
A concepção da Fraternidade como lugar "aonde se vai para morrer" conduz a um distanciamento ainda maior.
justifica o inusitado crescimento da instituição. Ao imaginar uma morte Penha, defensora da ideia de descontextualizar o morador da Frater-
iminente, poder-se-ia pensar num fluxo constante de internos que se nidade, afirmou: "Eu acho que a sua proposta [deVera J é extremamente
sucederiam, conservando números administráveis, com uma organização importante e é nesse sentido que a gente tem que dissociar o paciente da
mínima e estrutura de poder centralizada, como as da Fraternidade. Essa Fraternidade. Nós trabalhamos com indivíduos". Esse tipo de enunciado
ideia chocou-se com a dinâmica geral da epidemia no Brasil. Formou-se era habitual e persistente, e sinalizava para qual a direção das ações. Não
então um amontoado de pessoas com aids sem que os profissionais de é que os esforços no HUB estejam apenas direcionados para cuidar de
saúde pudessem intervir, uma instituição refratária às medidas de pro- sujeitos autônomos e "razoáveis", nem que só se compreenda a autonomia
moção da saúde ou socioeducativas. como facilitadora das terapias propostas, mas que é necessário construir
É nesse contexto que as diretrizes e as terapêuticas do HUB veem- o sujeito individualizado e racional, pois a própria vida do interno da
-se confrontadas pela política da Fraternidade. Os internos da Frater- Fraternidade só se torna possível, para os profissionais de saúde do HUB,
nidade são impedidos de se deslocarem para as consultas periódicas, com a adesão a esses valores - a valores que, como já foi dito, lhe são
obstacularizando o tratamento e, em alguns casos, dificultando o acesso estranhos. O dilema do interno repousa no fato de a sua sobrevivência
a medicamentos antiaids. A luta pela autonomia do paciente e pela busca estar consignada a esses valores.
de se "viver com aids" confronta-se ainda com a impossibilidade de o Associar autonomia à condição de existência significa dizer que aquelas
interno trabalhar (de forma remunerada) e, assim, ele se depara com a pessoas que não se adaptam e não aceitam um estilo de vida considerado como
inexistência de meios para sua independência. Igualmente, as atividades "racional" afàstam-se da possibilidade de manutenção da vida. A falência das
de prevenção realizadas pelos profissionais de saúde não encontram atividades dos profissionais do HUB está em perceber a "humanidade" do
continuidade na Fraternidade. Sem a possibilidade de desenvolverem interno circunscrita a ideais que lhes são estranhos e não desejáveis. Os profis-
suas políticas, os profissionais do HUB sentem-se reféns e não sujeitos sionais de saúde falam dos e em nome dos direitos dos moradores da Fraterni-
da ação em saúde. dade, pressupondo que a necessidade do interno é a de ser capaz de cuidar de
A surpresa de "estar todo mundo indo para a Fraternidade", somada si e de manter uma vida saudável, movimentos sempre compreendidos como
ao desalento de observar a ineficácia das próprias ideias e ações, conduz vinculados à ideia de autonomia. A ironia de jàlarpor ancora-se na vontade
ao descrédito qualquer medida ou iniciativa tomada. O esfacelamento de representar - e de buscar representar efetivamente - o interno, lutar por
das ações do HUB em relação à Fraternidade proporciona um questiona- seus direitos e por sua humanidade, supondo uma demanda que não existe. 3
mento constante sobre a adequabilidade de suas políticas na luta antiaids.
Para uma análise da voz em pessoas privadas de direiws, bem como dos dilemas de represemá~los, ver Spivak
44 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
45

A situação em que vivem os internos da Fraternidade clama por d) determinar cuidados higiênicos e alimentares compatÍveis com a ne-
solução. Os profissionais do HUB sofrem com o sofrimento deles, porque cessidade dos doentes; e) acabar com o sistema de castigo.
sentem que sua tentativa de_{tzlar por é ineficaz e cria uma situação que, A notícia dessa reunião se espalhou, e seu caráter foi se alterando
além de não amenizar a dor do interno, acrescenta sofrimento. O drama na medida em que chegava a cada hospital. Por fim, modificou-se tanto
dessas pessoas concebidas como contaminantes e como parte abjeta que de seu sentido original que muitos acreditavam ser um encontro para
deve ser isolada do corpo social- com doenças seriíssimas e sem adesão reivindicar o cumprimento dos Direitos Humanos na Fraternidade. A
às práticas terapêuticas, vivendo numa instituição que as submete a uma expectativa geral era a de que, a partir dessa reunião, os profissionais pas-
economia política de castigos e sem condições de modificar sua situação sassem a empreender denúncias direcionadas aos órgãos de governo e a
- exora por medidas que possam, no mínimo, amenizar a dor. Ou seja, solicitar o imediato implemento dos Direitos Hwnanos para os internos
faz-se necessário insistir em reivindicar os seus direitos. Mas, como? Foi da Fraternidade.
em torno dessa pergunta que os profissionais do HUB, em outubro de Apesar de a conjuntura ser grave, no dia e no horário marcados só
1999, convocaram uma reunião com os profissionais de saúde do Distrito uma pessoa apareceu: um voluntário da Fraternidade. Depois de conversar
Federal. com o organizador da reunião, asseverou:

A reunião impossível Se vocês criticarem a Fraternidade, nós tomaremos as nossas me-


didas[ ... ]. Não admitiremos essa história de Direitos Humanos na
A reunião teria como objetivo discutir sobre os internos da Frater- Fraternidade[ ... ] vocês são muito bons para criticar, mas quero ver
nidade. A ide ia era centralizar os debates nos "problemas de saúde'; pois o que vocês vão fazer se a tia Janaína fechar a Fraternidade! Vocês
os médicos do HUB acreditavam estar se desenvolvendo na Fraternidade vão levar internos] para a casa?
um tipo de tuberculose não tratável pelos medicamentos convencionais,
constituindo-se num sério problema de saúde pública. Havia, também, A reunião não se realizou. Os profissionais de saúde que não foram
a expectativa de que "rodos os problemas [da Fraternidade] viessem à à reunião justificaram a ausência por falta de tempo ou por problemas
baila", manifestou o psicólogo José. Com esse intuito, foram convidados de agenda. No HUB, a conclusão era a de que a Fraternidade seria uma
vários profissionais de outros hospitais e instituições que atendiam os "caixa de vespas" que "ninguém quer pôr a mão': Segundo o psicólogo
internos da Fraternidade. José, essa reunião seria "impossível'; pois não havia disposição para lidar
Se a reunião ocorresse, a vontade dos profissionais do HUB era com a drástica situação e "ninguém quer enfrentar a tiaJanaína':
propor uma série de ações para serem efetivadas na Fraternidade, como A importância desse evento crítico reside no fato de as dramáticas
forma de melhorar as condições de vida de seus moradores. Os membros ações dos atores sociais encenarem um espetáculo em torno do receio ou
do HUB formularam uma plataforma básica de reivindicações, que do desejo dos Direitos Humanos. 4 Ao que parece, o simples fato de pro-
apontava, entre outras, para as seguintes atitudes: a) garantia de escola nunciar a expressão Direitos Humanos evoca um campo de sentimentos
para as crianças; b) verificar a situação dos órfãos que vivem na institui- e sensibilidades que incita ao posicionamento e à ação. Só a possibilidade
ção; c) empreender práticas terapêuticas para os dependentes de drogas;
4

(1987 e 1994).
46 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereir.1
4-7

de sua enunciação fez com que: a) a tia Janaína se posicionasse contra europeu, branco, heterossexual, e os direitos estariam exclusivamente
qualquer modificação na Fraternidade; b) os profissionais de saúde se destinados a ele- ou seja, empreender apenas uma crítica à universalida-
questionassem sobre quais medidas deveriam ser implementadas; c) se de dos Direitos Humanos parece ser tão unívoco e dogmático quanto a
discutissem os Direitos Humanos. aceitação a priori desses direitos. E, o que é pior, termina por imobilizar
Talvez o caráter de impossibilidade dessa reunião resida no fato de as ações e as possibilidades de se trabalhar nas contradições, nas brechas,
ser um evento que exige respostas às indagações sobre a própria huma- nos espaços inexplorados do discurso hegemônico.
nidade. Para ter acesso aos seus direitos, o interno tem de ser humano. Mas, se o intento dejàlar por provoca o silenciamento, o que fàzer
Porém, são seres abjetos e contaminantes, excluídos e isolados, que estão então? Como abordar o silêncio existente entre o interno e a lei? Podemos
distantes do ideal hegemônico de humanidade e aE1stados dos parâmetros falar de direitos universais do homem para pessoas tão à margem? Como
de sujeito universal (Pereira, 2004). Cabe a dúvida: qual humanidade? ser uma voz e representar as pessoas privadas de direitos sem se tornar outra
O que é o humano? O próprio aro de enunciar um homem universal ou forma de opressão ao exercer a tranquila e absoluta violência de que nos
a universalidade do homem cria o inumano? O aro que garante os direi- fala Cixous ( 1995)? A vontade dejàlar por manifestada pelos profissionais
tos do homem gera aqueles que não são homens e, por isso, não devem do HUB exemplifica a construção do sujeito humano universal como in-
ter direitos? O ato de enunciar os Direitos Humanos cria o in uma no e divíduo (Dumonr 1985 e 1992 ). Os internos da Fraternidade, entretanto,
oferece-se, em um ato piedoso, para garantir os seus direitos? Os Direi- organizam suas vidas em torno de outras noções e valores (Pereira, 2004).
tos Humanos só existem com a condição de negar direitos para parcelas Se a situação na qual se encontram é perversa e degradante, as opções que
significativas da humanidade? lhes oferecem não aplacam o campo de sofrimento.
Alguns antropólogos alertaram que os Direitos Humanos são No caso da Fraternidade, se trabalhar os Direitos Humanos, desconside-
etnocêntricos porque objetivam a adequação de suas noções para uma rando seus valores e especificidade, pode conduzir a suposição antecipada do
multiplicidade de locais e experiências. Assim, apoiados numa estrutura que requer os seus internos -como ocorre an1iúde com a atuação das ONG
poderosa de Estados Nacionais, impõem ao mundo os ideais ocidentais, e do HUB -,o cepticismo poderia levar a concluir pela impossibilidade da
consistindo em instrumentos políticos de imposição e de hegemonização validez da reivindicação de direitos. A ide ia de que a universalidade dos Direitos
globalizada. Não obstante, essa visão não consegue dar conta das fissuras e Humanos é contestada pelas interpretações locais - e, assim, não se poderia
conflitos - e do caráter contestatório - que os Direitos Humanos adqui- falar em universalidade e nem de Direitos Hun1anos - não estaria reificando
rem quando bem manejados por saberes insurgentes. A defesa dos Direitos a oposição entre universal e local? Haveria algum caminho entre aqueles que
Humanos para os internos da Fraternidade fornece a possibilidade de pressupõem saber as necessidades dos outros de antemão e aqueles que a&.umem
questionar sua realidade, pois exige acordo - força uma negociação - antecipadan1ente a fàlência de qualquer empreendin1ento comtmicativo?
entre representante e representado do que é ser humano e do que se deve
reivindicar. Esse campo de negociação abala a ide ia de que a humanidade A invenção do impossível
já foi previamente definida e, dessa maneira, arrefece as concepções que
pressupõem que o trabalho se resumiria em moldar os corpos destoantes Diversos antropólogos têm procurado dar respostas aos dile-
para se adequarem a um poder-saber construído de antemão. mas dos Direitos Humanos. Para alguns autores (Das, 1995; An-
Dizer unicamente que os Direitos Humanos são excludentes, que o -Naim,1992; Dwyer, 1991; Wilson, 1997; Se gato, 2003 e 2006), os
homem universal (aquele construído por Hegel, Spengler ou Kant) seria antropólogos podem contribuir na mediação entre as diversas culturas
De corpos e (ra\'essias Pedro Paulo Gomes Pereira 49
48

e suas noções de Direitos Humanos. A experiência emográfica vem A voz


demonstrando que a antropologia pode emergir no espaço no qual se
questiona o que é o humano, sugerindo as diversas interpretações - Deittzdo em um leito do HUB, Gzrlos mantém os olhosfixos na parede.
por meio de numerosas experiências culturais -para essa indagação. Szw condiçâo flsica está piorando a cada dia, visivelmente. Seu olhar
A possibilidade de outras equações e definições coloca-se distante de üparenta aqueltz cor amareladtl que eu - talvez ingenutlmente- con-
um universalismo excludente e abre espaço às diversas articulações sidero como um sín,d de aproximaçâo da morte. Ele está sozinho e tl
do que é humano. A antropologia examinaria, assim, categorias m,zgnitude de sua tristeztl me assombra. Tento folar sobre a Frater-
essencializadas, abrindo-as para um balanço crítico, arguindo suas nidade, sobre su,z vida, mas nad,z parece ater mais a su,z atenção do

capacidades de inclusão. que sua próxima dose de morfina. Carlos teve suas perntzs mnputtzdas,
Como incluir na humanidade aquelas pessoas que não são conhe- suafàmília náo aguenta nem ouvir o seu norne. Está cego. Viciado em
cidas como humanas? A articulação entre a antropologia e os Direitos mmfintl, utilizada inicialmente ptzra abrandar as suas dores. Ninguém
Humanos, no caso dos internos da Fraternidade, dá-se quando um grupo vem visitar Gn-los, somente os t:zssistentes sociais e os psicólogos do HUB.
de pessoas portadoras de aids surge no cenário nacional. Esse aparecimento Enquanto um médico o atende, penso em meu trabalho de cmnpo, ntl
extraordinário do outro, esse emergir de pessoas que não são consideradas situaçáo de Carlos, naquilo que eu poderiafozerpara ajudd-lo, no que
humanas, coloca em xeque um universalismo restritivo e interpela a máquina eu deveritl fàlar. De repente Cm-los começt1 t1 chomr: Sem stiber o que
antropológica do Ocidente (Agamben, 2002). Essa reivindicação inusitada, deveríafàzer e como, coloquei deliCtZdarnente il mâo sobre seu ombro.
nova, sem precedentes, abre brechas na lei. ~ando solicitaram leis que as Ajeitei Cm-los em uma posição mais cómodtZ. C,zdosj1lou (ou foi minh,z
resguardassem da homofobia e do racismo e pudessem salvaguardá-las do im,zginaçâo? Náosei!): ':z vidafoi ruim, mas a morte será piortZinda':
abandono do Estado, as primeiras pessoas portadoras de aids invocavam Balbuciei ,zlgunM coist<. Fui pt<m tl cas,z com tZ senst1çâo da inutilidade
leis que não observavam nenhuma lei anterior (Buder, 2001 ). Da mesma monumenttd de tudo o que jzzi,z. (Trecho de meu diário de campo,
forma, a exigência de condições razoáveis de vida e de leis que as conso- escrito em outubro de 1998)
lidem - enfim, o reclamo de humanidade para pessoas tão desarraigadas
como as da Fraternidade - apresenta possibilidades de gerar efeitos que se Lida retrospectivamente, a história de Carlos parece estar naquele no
confrontem com a lei e de rearricular aquilo que é denominado humano. campo kafkiano da realidade mágica anteriormente mencionada. Seu esta-
Essa irrupção do outro se dá com a luta pelo esfacelamento daque- do de saúde e de abandono provoca un1a sensação de incredulidade. Dores
las condições que construíram o silêncio do interno da Fraternidade. A abissais sobre um corpo e tamanho apartamento produz a percepção de
antropologia surge nesse romper como uma voz. l'vlas, que voz? Essa voz que mesmo quem presenciou essa cena se pergunta sobre sua realidade.
não seria outra maneira de Jàlarpor? Como construir uma voz sem nive- Lendo meu diário de campo, não há como me esquivar das perguntas:
lar a complexidade conjuntural do outro? E, no caso de uma situação de não haveria algo de comoção pessoal na descrição? O estilo não primaria
fragilidade e de vulnerabilidade como as da Fraternidade, como construir por sentimentalismo exagerado? A absurda e simples atitude de colocar
essa voz sem excursionar pela miséria alheia? Como a antropologia pode a mão sobre o corpo de Carlos não seria também um modo de construir
se constituir como voz sem silenciar outras? 5 o silêncio? Haveria, por fim, jeito de refrear essa sensação de inutilidade?
As respostas para vencer o silêncio e o embotamento da linguagem
!994). ver Said
provocado pela dor talvez se encontrem na busca contÍnua dejàlar com e
(1989). O trabalho de lvkHobbie aborda os dilemas e os li mires de se excursionar sobre a misérL1 alheia (l 982).
50 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
51

no afastar-se da atirude de}zlar por. Essa busca da voz não pode ser alheia à No final, a antropologia pode ser uma das muitas maneiras de escu-
dor do outro. Ao contrário, como sugere Das ( 1995 e 1997), apropriando- tar, de olhar, de desenvolver outros sentidos perceptivos. A proposta não é
-se da análise de \Xlittgenstein, devemos buscar a possibilidade de uma reificar a oposição entre o silêncio e a voz ou de imaginar a antropologia,
dor se localizar em outro corpo e vice-versa, pois a força curativa da ou qualquer outra disciplina, longe do silêncio, mas de construir um dis-
antropologia pode ser a do compartilhar a dor e as experiências do sofrer. curso que procure uma reflexão sobre si e que se pretende interlocutório,
Wittgenstein (2003) demonstra a possibilidade de comunhão na tecendo-se e entretecendo-se entre falas.
dor. Em sua abordagem da dor ntzlinguagem, ele se pergunta: "Como sinto A etnografia talvez possa não somente proporcionar uma quanti-
compaixão por esta pessoa? Como se mostra o objeto da compaixão?". E dade considerável de informações e conclusões sobre hábitos, tormentos
responde que a compai.xão "é uma forma de convicção de que o outro tem e modos de socialização de portadores de aids, mas fàzer com que a nar-
dores': A compaixão indica uma proximidade entre pessoas, possibilitando a rativa compartilhe a dor do e com o outro. A antropologia pode tentar
convicção de que o outro sente dores e ensejando o compartilhar dessas dores.6 possibilitar que a dor do outro possa ser sentida noutros corpos. Não se
A compaixão para com meu amigo conduz à indagação sobre o trata de fiz/ar por, mas de compartilhar a fala, ou a impossibilidade dela,
que posso fazer por ele. Segurar sua mão, oferecer palavras de conforto, e de fazer com que outros participem dessa experiência.
trazer comida, arrumar as roupas de cama. Essas simples ações indicam
que doo minhas capacidades motoras, que são guiadas pelo desejo do
outro. Se ele estiver sedento, minha mão buscará bebida. Se ti:aco, meus
membros provirão força. Agiremos como se fôssemos um só corpo. Meu
corpo atuará como alívio ao sofrer. O compartilhar aliviará a dor, que está
ancorada na experiência do isolamento.
A dor e a doença rompem a comunhão com o mundo natural
e social, marcado pela experiência do solipsismo. ~ando os corpos
se interconectam, quando entram em comunhão, quando meu corpo
compassivo entra em contato com o corpo doente, temos a possibilidade
de atuação de uma força curativa. O compartilhar não visa a legitimar a
disciplina e os especialistas, mas sim a compor um só corpo, por meio de
narrativas, provendo voz- a possível num campo tão difícil-, de forma
a fazer a dor ser experienciada em outros corpos. É esse compartilhar que
talvez confira sentido ao simples ato de tocar um corpo enfermo e aponte
a possibilidade de comunicação. É essa experiência da dor, do sofrimento e
da com passividade que constrói o locus do qual a antropologia pode falar
de direitos, nas suas esferas axiológicas e práticas, sem se tornar mais um
dos discursos normalizadores.

6 A análise de Cavell ( 1997) sobre \Xlittgensrein .:tpont<l a dor como principal rópico em ln7_:csúg,zçôc~Jilo.'ófict<s.
2- Nas tramas de um debate

Uma tradução é saída contra Babel; e tenho que, do gorar da Torre,


adveio não apenas a separação das fàlas: cada qual, ao mesmo tem-
po, perdeu algo da geral eficácia, ficando repartido entre as outras,
e que só no rcmírar do conjunto é que deverá restituir-se de ver.
(Guimarães Rosa).

Seguir a trama de uma história que envolve natureza, cultura,


política, discursos, metáforas, estabelecimento de verdades científicas,
conflitos, mal-entendidos - e que perfaz um capítulo da história da
epidemia HIV/ Aids- é a proposta geral deste capítulo. Apesar de ser um
fenômeno relativamente recente, análises sólidas já se debruçaram sobre
diversos aspectos e ângulos dessa epidemia. Pretendo abordar - numa
aproximação antropológica sem intenção de ser exaustiva, admitindo a
necessária parcialidade e incompletude da empreitada- uma parte menos
comentada dessa história, talvez por ter sido considerada ultrapassada
do ponto de vista científico: a história dos "dissidentes da aids': Ou seja,
cientistas, ativistas, profissionais de saúde, políticos que discordam daquilo
que denominam "concepção oficial da aids".
Este capítulo percorre um complexo e estranho itinerário, impul-
sionado por pesquisas que iniciei no Brasil (Pereira, 2004 e 2008) e que
se direciona a um impressionante debate em Barcelona (Espanha) sobre
a controvérsia da aids na África do Sul. Essa controvérsia envolvia uma
Pedro Paulo Gomes Pereira 55
De corpo~ e travessias
54

mas o genoma do vírus é RNA. O HIV transcreve sua informação em


disputa sobre a etiologia da aids c a dinâmica da epidemia no continente
DNA, utilizando para tal a enzima viral denominada transcriptasc reversa.
africano, conformando um entrecruzar de perspectivas que impunham
O DNA viral é incorporado ao genoma da célula. ~ando as partes dos
diferenças no mesmo movimento em que compartiam determinadas
vírus são produzidas pelas células, a protease produz novos vírus que, li-
convenções. Convém também frisar que meu intuito não era investigar os
berados, buscam novas células para infectar. O HIV ataca, assim, o centro
dilemas da aids na África, até porque realizei a etnografia em Barcelona,
do sistema imunológico. Sua grande possibilidade de replicação excede
entre agosto de 2001 e agosto de 2002, durante estudos pós-doutorais,
a capacidade do sistema imunológico de destruir as células infectadas
quando não só acompanhei as atividades c as ações dos "dissidentes': mas
1
e de exterminar os vírus, propiciando não só a insuficiência do sistema
também frequentei espaços médico-hospitalares da Espanha.
imunológico, mas também a ação de micro-organismos oportunistas no
Para estruturar o capítulo, passo a desenhar os pontos principais da
sistema debilitado.
"controvérsia sobre a aids". Há casos nas quais o HIV infccta uma célula, mas não se apossa de
suas funções; essas células não são destruídas pelo sistema imunológico,
A controvérsia sobre a aids porque não há atividade com indicação de estarem infectadas. Isso explica
por que um portador de HIV pode passar anos sem manifestar deficiência
Nos debates travados na Espanha, despontavam-se duas posições no sistema imunológico ou diminuição dos linfócitos CD4. ~ando
centrais e contrárias que procuravam explicar a aids c os fenômenos a ocorrem manifestações de imunodeficiência, surgem enfermidades que
ela associados: de um lado, a posição "oficial"; do outro, a "não oficial': poderiam ser evitadas se o sistema imunológico estivesse funcionando
ou dissidente, a despeito de sua variedade de matizes. Essas expressões, adequadamente. A aids é uma síndrome na qual se manifestam várias do-
empregadas pelas próprias partes em disputa, compreendem a posição enças, todas relacionadas ao aparecimento c à ação do HIV no organismo.
"oficial" como aquela estabelecida pelos órgãos oficiais c consubstanciada Essa compreensão possibilita o aparecimento, além de uma tecno-
nos conceitos e nas recomendações terapêuticas, e pelas práticas médicas logia de prevenção, de uma série de fármacos direcionados ao combate
correntes nos serviços hospitalares. A posição dissidente- ou "não oficial" do HIV. As recomendações de tratamento sustentam a necessidade de
- é tida como aquela que se opõe ao tratamento antirretroviral e rejeita administração de um "coquetel" composto por diversos fármacos - de-
a visão oficial da aids. signado de terapia antirretroviral (Tarv ). Os "oficiais" advogam que esses
Os "oficiais" assumem que o princípio explicativo da Síndrome da fármacos agem sobre o HIV que se instala principalmente nas células T
Imunodcficiência Adquirida (aids) é o vírus da imunodcficiência humana CD4. Esse procedimento diminuiria a carga vira! do paciente infectado.
(HIV), de ação complexa. O HIV só se replica em células em cuja su- Apesar da reconhecida toxidade, quem defende sua administração salienta
perfície existam proteínas que possibilitem a adesão do vírus. A principal que os medicamentos propiciariam melhora significativa na condição de
proteína celular é a CD4, que se localiza, principalmente, nas células vida do portador de HIV. 2
do sistema imunológico denominadas linfócitos T CD4. Essas células Na prática médico-hospitalar, esses pressupostos não são questio-
coordenam a resposta de defesa do organismo em casos de infecções. O nados e constituem aquilo que Latour (2000) denominou "caixa-preta''
objetivo do vírus é entrar na célula e, ao tomar posse, tàzer que ela replique
novos vírus. O material genético dos seres vivos é constituído por DNA,
2 Esse desenho geral da definição da aids nem de longe Eu. jus à teoria do sistema imunológico e à densa
imunólogos. Detenho-me aqui por haver uma bibliografia razoável sobre o tópico
?víantive os nomes dos "dissidcmes" (Luís Botinas. Perer Duesberg e Srebn Lanka) que se pronunciarJm que meus ínrerlocurores "náo oficiais" resumiam o "miro da <.1ids''.
sobre a controvérsia da aids. Os demais nomes s:âo ficrlcios.
56 De corpos e uavcssias Pedro Paulo Gomes Pereira 57

- a transformação das indagações, dos raciocínios e dos pensamentos em uma vez que a ação dos fármacos acabaria por interromper a ligação en-
fatos científicos que se tornam indiscutíveis, eliminando as divergências tre os aminoácidos formadores da sequência genética, interpondo nesse
e as controvérsias. Numa caixa-preta, a trajetória dinâmica de produção espaço moléculas estranhas - uma ação devastadora e invasiva.
científica, com suas incertezas e pontos obscuros, transforma-se em algo Apesar da opinião comum contra o que denominam "o mito da
de simples adesão universal. aids", os "não oficiais" se dividiam em pelo menos duas correntes. A
Os "não oficiais" atuam questionando essa "caixa-preta'', tanto num primeira considera que o HIV foi isolado e, por conseguinte, existe,
movimento interno, de debate no interior do campo científico;' como mas não é responsável pela aids, desautorizando, por consequência, a
externo, dos ativistas, das instituições e dos agrupamentos que passam equação aids == HIV. Para utilizar uma fórmula mais direta, nega-se que
a contestar os "faros", denunciando a política da construção dos faros o que é denominado aids consista em algo designado HIV. Essa corrente
científicos. Os "não oficiais" investigam exatamente onde os "oficiais" de- é ainda a majoritária entre aqueles que rechaçam os pressupostos oficiais,
sejam fechar a caixa-preta: a aids seria provocada por um vírus? Produtos contando com pesquisadores como Duesberg. Deriva-se dessa acepção
químicos poderiam causar aids? A própria terapia (pensada aqui só em que o tratamento anti-HIV hospitalar- o "coquetel" -deve ser consi-
sua dimensão medicamentosa) recomendada pelos "oficiais", o "coque- derado não só como ineficaz, mas também causador de aids e de morte.
tel", poderia causar aids? Para responder a essa série de indagações, Peter Em face disso, deveria ser proibido. A outra corrente argumentava que
Duesberg - considerado um dos maiores expoentes dos "dissidentes da o HIV nunca foi isolado como "retrovírus" e que não se cumpriram as
aids" e evocado pelos ativistas de Barcelona como figura central na disputa condições que os próprios retrovirólogos estabeleceram como necessárias
-sustentou que a aids não tem perfil epidemiológico de uma doença viral, para isolar um vírus.
já que não apresenta período de incubação curto, não se caracteriza por Para Stdàn Lanka (1995), o HIV nunca foi isolado e ninguém
fases típicas (crescimento exponencial, cume e declínio), e os postulados pode afirmar que ele existe, tampouco que seja a causa da aids. Nem para
de Koch - que caracterizam as doenças virais - não são preenchidos o HIV, nem para nenhum outro suposto retrovírus, preencheram-se os
(Gonzaga, Oliveira & Bastos Filho, 2007). Conforme esses postulados, quatro requisitos preceptivos (válidos para qualquer vírus ou retrovírus
um vírus específico provoca uma doença específica; ele deve ser isolado e existente) para poder afirmar que o vírus foi isolado. Embora sejam essas
causar a mesma doença quando inoculado noutro indivíduo. A conclusão duas principais posições dos "não oficiais'; deparei-me com uma variedade
é que a aids não preenche os requisitos de uma epidemia viral." de versões do miro da aids, especialmente em leituras de ativistas, que
Os testes de HIV existentes são, quando muito, reveladores de an- variavam desde "o HIV não existe"; "existe, mas é inofensivo"; "o HIV
ticorpos. Deduz-se daí que o sistema imunológico conviveria bem com só causa aids numa combinação de fatores"; "diversos outros vírus, além
o HIV, que seria um vírus inócuo. Nessa concepção, ser soro positivo não do HIV, causam aids".
significa estar doente. Manifesta-se daí a posição contrária ao "coquetel", Essa discussão entre biomédicos, virólogos, imunólogos não se limita
aos laboratórios ou à altercação entre pares da Academia, alcançando
de fornH bem line. o termo de Pierre Bourdieu (1983). sem implicar qualquer ,tdesáo reórico-
os movimentos sociais e a militância. Com efeito, deparamo-nos com
mewdológica às concepçócs do dutor. Essa divisão de moYimemo imerno do campo cíemíhco e externo dos um entrelaçamento de cientistas e ativistas, a tal ponto que os limites de
\·estigada, pois oáo consegue explicar o movimento
analiticamente dos A.uxos e agenci,tmemos dessa demarcação entre eles se tornam imprecisos, nublados. Aqui, as imagens
(19SS. 1989a.1989b.1991. 1992 e
do cientista neutro no laboratório e do campo científico apartado por
e as "políticas de conhecimemo" uma linguagem própria e por objetivos específicos, mesclam-se com cenas
58 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 59

do cientista militante e do ativista virólogo negociando um idioma que ciais"): de insuficiência do sistema imunológico. Mas, a insuficiência seria
permita um entrelaçamento, num contínuo traduzir. A aids e a tecnologia provocada pelo número excessivo de drogas injetáveis, pela administração
que envolve essa epidemia não são algo longínquo de especialistas e cien- descontrolada de medicamentos e pela má nutrição crônica, bem como
tistas em laboratórios e de médicos em hospitais e consultórios, mas uma por medo, problemas psicológicos, tratamentos supostamente preventivos
rede de circulação de discursos que altera as formas de (auto) percepções (antibióticos- em especial seprrin -, ansiolíticos, antidepressivos, corti-
e (auto)produz novas subjetividades (Biehl, 2004 e 2007). coides, são considerados imunossupressores), por maus hábitos de vida
Nesse processo de tradução e numa linguagem híbrida, os ativistas (consumo de drogas, meradona, poppers, medicamentos e desnutrição).
indicam os requisitos preceprivos para se afirmar a existência de um vírus. Essas afirmações levavam os "oficiais" a redarguirem, alertando para o
Ouvi de Ramón, ativista "dissidente", que se autodenominava "etiqueta- "moralismo" da visão dos "dissidentes': que acabavam por adjudicar aos
do de aids" (forma irônica utilizada pelos "dissidentes" para designar as comportamentos considerados inadequados e desviantes toda a explicação
pessoas que fizeram os testes antiaids e foram oficialmente declaradas sobre as mortes dos "etiquetados de aids". Haveria nesse tipo de argumen-
como HIV positivas), numa enumeração detalhada desses requisitos. tação, alertavam os "oficiais", uma concepção subjacente do bem viver, do
Segundo ele, os requisitos seriam os seguintes: 1) apresentar quatro condenável, das formas corretas de promover a saúde.
fotografias (do vírus dentro da célula, do vírus sozinho, das proteínas da Os termos "batalha", "luta" e "enfrentamento" são comumente uti-
envoltura do vírus e da informação genérica que o vírus contém em seu lizados na disputa. O campo semântico que envolve o termo "disputa"
interior); 2) caracterizar tanto as proteínas como a informação genérica, indica os diversos caminhos e fios de uma trama complexa. Para além
sequenciando-as, ou seja, estabelecendo quais são seus componentes e qual de um debate científico, que poderia ocorrer entre pares, nos limites
é a sua ordem; 3) fazer repetidos experimentos de controle com o objetivo dos laboratórios ou da Academia, remos uma multiplicidade de atores
de evitar qualquer contaminação com as proteínas ou com a informação que se embrenharam na contenda: objetos, vírus, cientistas militantes,
genética da célula que contém o vírus; 4) publicar em revistas científicas personalidades, instituições, revistas científicas, governos. De um lado,
as condições técnicas do experimento, assim como os resultados obtidos, médicos vão à imprensa fazer declarações como essa: "se tivéssemos êxito
possibilitando a outros investigadores reproduzi-los e chegar a efeitos e encarcerássemos alguns desses tipos [os não oficiais], garanto que o
idênticos. Para os "dissidentes", nada disso foi realizado para o HIV. 0 movimento de negadores da aids morreria rapidameme" 6• Do outro,
As correntes dos "dissidentes" colocam em dúvida os testes antiaids, mães grávidas, consideradas soro positivas, se negam a tomar o "coquetel"
mas, quanto a isso, não há acordo. Para alguns, os anticorpos conviveriam e a administrar-se o AZT. Aqueles que adoecem ficam sem saber o que
bem com o HIV, pressupondo assim que os testes os detectam, mas que o devem fazer: tomar os antirretrovirais, como lhes aconselha o corpo mé-
HIV seria inócuo e não relacionado à aids. Para outros- aqueles que defen- dico oficial, ou ouvir os conselhos dos "não oficiais", segundo os quais as
dem que o HIV nunca foi isolado -,os testes de aids detectam anticorpos pessoas devem se cuidar à margem de toda a história da aids, e fazê-lo da
que são gerados numa situação de stress crônico. Os seres humanos possuem forma menos agressiva possível. A disputa se inscrevia no próprio corpo
naturalmente esses anticorpos em quantidades distintas e variáveis. dos envolvidos, pois as partes em disputas advogavam e administravam
À pergunta do que morrem aqueles cuja wusil mortis é estabelecida tecnologias.
como aids, os "dissidentes" respondem (replicando, nesse aspecto, os "ofi-
6 Ver P/uril! 2l.dS!DA en Jji·ictZ? Doaanent.u:ión. (2001. p. 5).
Dossie África, sustenta guc, no lbe: Globe m-uf A1Rif do Canadá, sob o dmlo "Os
Ramón repeLia as afirmaçóes que podem ser encontradas na revisra Pluml21. dVIJ-!/SIDA? nownunttláón, aids deveriam ser encarcerados': o Dr. N1ark \Xlainberg declarou: "Si mviéscmos éxito y encerásemos a un par
2001. p. 2. dei VIH moriría rápidameme".
60 De corpos c tr.wessias Pedro Paulo Gomes Pereira 61

Em torno da comenda surgiu, em Barcelona, uma associação que "Mas que verdade?", eu insisti naquele momento. José então contes-
reunia pessoas consideradas soro positivas, mas que discordavam do diag- tou: ''A verdade é que a aids é um mito, e que a epidemia nunca existiu".
nóstico e do que implicava o "mito da aids". A denominada Associación A África se tornava, para todas as posições, algo que poderia responder
Vencedor I es de la Si da (Associação dos Vencedore( a)s da Aids) reivindica- às controvérsias sobre a veracidade da aids e dirimir as divergências. A
va transparência do fazer científico, sempre alertando que, até o momento, epidemia no continente africano não só se transformou no centro da
só havia hipóteses não comprovadas sobre a aids. A maior demanda era disputa, mas também uma discussão impossível de evitar aqueles que
a de que a hospitalização e a terapêutica ocorressem sem pressão sobre procuravam, na Espanha, debater sobre a epidemia.
a administração do coquetel. Dito de forma sumária: a Associação dos Antes de iniciar descrever a discussão sobre a África, vou me deter
Vencedores da Aids objetivava, com essa atuação e essas reivindicações, na questão da "verdade".
pressionar o Estado a reconhecer as dúvidas existentes no caso da aids
e o direito de os infectados escolherem terapias alternativas às oficiais. Em torno de verdades
Esse campo de batalha no qual cientistas, militantes, pesquisadores
empenham-se para provar "sua visão" do fenômeno da aids se exarcebou A ide ia polêmica de que a aids não seria uma enfermidade, mas sim
na XIV Conferência Internacional de Aids, em 2002, em Barcelona. Para- algo que se deveria desmantelar, tem gerado muitas críticas. Essa contro-
lelamente a esse evento, outro se formou com o objetivo de "contrapor-se vérsia foi - e ainda é - acirrada. Acompanhando a controvésia sobre a
às visões oficiais da aids': O encontro dos "dissidentes" foi simbolicamente dinâmica da epidemia na África, quero comentar algumas dimensões do
marcado para a mesma data e cidade da XIV Conferência. Mas as dis- assunto em pauta.
cussões sobre essa Conferência já haviam sido anunciadas em momento São três as reticências diante de textos que abordam os "dissidentes
anterior, na África do Sul, quando os "dissidentes" espanhóis proclamaram da aids": os perigos de um relativismo complacente do tipo que afirma
seu desejo de coorganizar, em Barcelona, de 4 a 15 de junho de 2002, a verdade e a razoabilidade de todos os lados; a dúvida quanto à posição
o I Congresso Mundial pela Saúde e a Vida, que incluiria a I Reunião do próprio pesquisador; a dimensão política que pode ser resumida na
Internacional dos Vencedores da Aids. Nesse entrecruzar de eventos e seguinte indagação: um assumo tão ultrapassado cientificamente, numa
expectativas, a disputa se tornou ainda mais intensa. No I Congresso, época de epidemia, não seria politicamente incorreto? Essas três dimen-
além das altercações sobre as terapêuticas e a etiologia da aids, outro sões, mesmo interligadas, serão comentadas separadamente.
assunto incontornável em Barcelona foi a aids na África. As discussões O que está em jogo neste capítulo não é a verdade ou a falsidade
acabavam por mencionar a quantidade de mortes na África e a dinâmica das posições, mas as relações estabelecidas em torno de "verdades". Cabe,
específica da epidemia nesse continente. Esse movimento foi de tal modo sobretudo, explorar essas novas configurações sociais que tanto inquie-
resumido por José: taram meus interlocutores na Espanha. Não se trata de um relativismo
que afirma a verdade de todas as partes: o pomo não é, para replicar aqui
Não há como se escapar da discussão sobre a Africa, tanto pela inven- Viveiros de Castro (2009) leitor de Deleuze, afirmar a relatividade do
ção de cifras, cada vez maiores, de infectados como pela liderança da verdadeiro, mas sim a verdade do relativo. O intento é perceber como
Africa do Sul. O presidente da Afi-ica do Sul foi o primeiro a declarar as pessoas são afetadas, colocadas em movimento por vírus, linfócitos,
publicamente a necessidade de discutir as estatÍsticas e a própria controvérsias, terapêuticas, instituições. A proposta é: em vez de essências,
enfermidade. Um presidente querendo saber a verdade. verdades, realidades, declarações (verdadeiras ou fàlsas), teremos relações,
De corpos c travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 63
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proposições articuladas, conexões (Latour, 2004a). Numa proposta como A África como metáfora
essa, é impensável buscar a "defesà' de um dos lados da contenda. Pretendo
esquivar-me da discussão verdade versus fàlsidade para me concentrar nos Ao focalizar minha atenção nos debates travados em Barcelona sobre
efeitos da polêmica. E, de fàto, em momento nenhum existirá qualquer a aids na África, constatei que eles seguiam uma lógica que perfazia, na
"defesa" dos "dissidentes da aids': Até porque sou bem ortodoxo quanto opinião dos "dissidentes': a trajetória da "invenção da aids': Do surgimento
à etiologia da aids e às terapêuticas existentes. da epidemia, passando pela implementação do "coquetel'; chega-se ao
A discussão, portanto, não se direciona em mostrar que o vírus ponto em que os debates eram mais importantes: os dilemas da epidemia
HIV não existe. Mas, ao contrário, que existe muito mais além dele. O na África. Essa trajetória pode ser mais bem visualizada no quadro abaixo:
que estou defendendo - para utilizar o argumento do antropólogo Oscar
Calavia Sáez ( 2009, p. 16) - não é que não persista uma realidade objetiva, Posições "oficiais" Posições "dissidentes"
A aids não tem entidade biológico-patológica
mas que nela existam mais objetos, relações e conexões do que o suposto. Em 1981 aparece uma epidemia de uma própria, mas é o nome conferido a uma série
nova enfermidade chamada aids. de enfermidades antigas, ao slress crônico e
Não quero negar a realidade do vírus, mas indicar as ideias e as ações que
a provas de laboratório mal interpretadas.
envolvem a controvérsia sobre a etiologia da aids e sobre a dinâmica da Ninguém isolou nem caracterizou o HIV
Os casos de aids podem ser curados com
epidemia na África, com o objetivo de seguir as tramas de outra história Em 1984 determina-se que a causa é o HIV
base em tratamentos do stress oxidativo e
que não aparece com fi-equência nos relatos sobre a epidemia. Sigo aqui nitrosativo.
Desde 1985, alguns testes plenamente
as advertências de Latour & \Voolgar (1997, p. 23), para quem confiáveis indicam, de maneira segura, a
Os "testes de HIV" nunca foram validados,
e são inespecíficos e quantitativos (teste
infecção pelo HIV, pois são específicos e
mais-menos).
quantitativos (sim-não).
é possível fazer uma antropologia do verdadeiro, assim como O HIV se transmite por via sexual, ou de
A denominada aids não pode ter causa vira!.
do falso, do científico, como do pré-científico, do central, como do mãe para filho, ou por sangue (seringa.
transfusões, hemoderivados).
periferico, do presente, como do passado, ou então é absolutamente Os linfócitos T4 são as defesas. Os linfócitos T4 não são defesas.
inútil dedicar-se à antropologia, que nunca passaria de um meio per- Segundo seu próprio inventor, o Dr. Mullis,
A técnica do PCR mede a carga vira!.
a técnica do PCR não serve para medir a
verso de desprezar os vencidos, dando a impressão de respeitá-los A contagem de T4 e da carga vira! é
carga vira! (e menos ainda de um vírus não
indicadora da pessoa infectada.
isolado).
Os tratamentos administrados aumentam a
Esses argumentos nos levam a perceber que o assumo não deve vida das pessoas infectadas ou enfermas.
Os tratamentos administrados são oxidativos
e mortais em médio prazo; os "coquetéis"
Em particular, desde 1996, os "coquetéis"
ser evitado com o medo do politicamente incorreto. A relevância dessa só podem beneficiar enfenmos graves
converteram a aids numa enfermidade
transitoriamente.
discussão foi bem salientada por Epstein (1996) e Fassin (2006). Mas, crônica.
No Ocidente, os "casos de aids" diminuíram
mesmo no campo mais propriamente político, Fassin & Schneider (2002),
A epidemia no Ocidente foi detida graças às antes da administração dos "coquetéis", e
em suas ponderadas análises sobre essa controvérsia na África do Sul, de- campanhas preventivas e aos "coquetéis''. as "infecções por HIV", antes da primeira
campanha de prevenção.
monstraram que uma política eficaz contra a epidemia necessita de uma
Não existe e nunca existiu uma epidemia de
Na África e em outras partes do terceiro
política de reconhecimento, na qual os pomos de vista contrários devem mundo. a epidemia segue crescendo.
aids, nem no Ocidente nem na África, ou em
p<lfl.e alguma
ser compreendidos em vez de desacreditados. E como se verá adiante, nos -· - ---- -

labirínticos debates sobre a aids na África, embora exista discordância


Esse quadro, retirado e adaptado do Dossiê Aids na /Ífim da revista
sobre a etiologia da aids e das terapêuticas medicamentosas existentes,
Plura/21, resume a sequência apresentada pelos "dissidentes". A África
há muito em comum entre os "oficiais" e os "não oficiais':
De:: corpos e nan:.-,sJas Pedro Paulo Gomes Pereira 65
64

- como um todo homogêneo e a realidade homogênea de epidemia - de infecções oportunistas. A essas argumentações, biomédicos "oficiais"
transforma-se num dos pontos centrais da disputa, sendo conclamada a redarguiam que a eficácia das terapêuticas por si só indicava o acerto das
comprovar as argumentações de "oficiais" e "dissidentes". Nos debates em teses oficiais. Escutei várias vezes a seguinte frase expressa pelos "oficiais":
Barcelona, os "oficiais" advogavam a necessidade de ações direcionadas à "Eles têm [os "dissidentes"] um moralismo exacerbado e conjecturas sobre
prevenção e à adesão aos tratamentos antirrerrovirais, já que os números a dominação das elites e laboratórios; nós, a ciência e a eficácia".
dos infectados no continente africano eram alarmantes e catastróficos. Essa polêmica adquiriu proporções inusitadas quando o presi-
A amplitude de epidemia pode ser aferida nos dados divulgados pelo dente da África do Sul passou a posicionar-se sobre a controvérsia. Na
Programa Conjunto das Nações Unidas Sobre HIVI Aids (Unaids): em época, Thabo Mbeki vinha colocando em suspeição tanto o valor dos
2000, estimavam-se 36 milhões de pessoas infectadas no mundo e 25 mi- antirretrovirais quanto o HIV como causa da aids, pactuando com os
lhões de casos na África; nessa mesma época, a África do Sul, que contava "não oficiais". Para orientar na resposta à epidemia, Mbeki nomeou uma
com uma população de 43 milhões, tinha 4 milhões e meio de infectados comissão presidencial composta por nomes de destaque no cenário da
(Fassin, 2006). Os "dissidentes" - estranhando essas assombrosas cifras controvérsia sobre a aids, como o já mencionado Peter Duesberg. Além
- direcionavam os discursos em uma perspectiva diferente, que pode ser disso, organizou encontros que antecederam a Conferência de Durban,
acompanhada nas seguintes demandas: por que ninguém contabiliza a para discutir a epidemia. Em maio de 2000, em Pretoria, e, em julho
quantidade de casos de tuberculose? ~al a razão de tanto alarde sobre do mesmo ano, em Joanesburgo, Mbeki reuniu 52 especialistas em aids
a aids na África? Uma edição da revista Plum/21 buscava refletir sobre (virólogos, infectologistas, autoridades, o próprio Luc Montagnier e
"dissidentes", como Peter Duesberg, David Rasnick, Roberto Giraldo,
indagações semelhantes às anteriormente formuladas:
Elena Papadopoulos-Eleopoulos e o sul-africano Sam Mhlongo). Em
~ando é impossível continuar falando de "uma epidemia de aids construções discursivas sinedóquicas da África homogênea, as narrativas
no Ocidente", quando os esforços para criar uma "epidemia asiática faziam emergir a África do Sul como representante de toda a realidade do
de aids" (na época da X Conferência Internacional de Aids no continente, num deslize tropológico que descreve e constrói a realidade
Japão, em 1996) não lograram grandes resultados; c à espera que a da epidemia. A África do Sul se tornou o epicentro mundial da epidemia.
eventual XIV Conferência em Barcelona, de 2002, permita lançar Para os "dissidentes", essa posição do presidente da África do Sul era
uma "epidemia latino-americana de aids", o único trunfo que resta citada como mais um elemento sobre o caráter nebuloso das estatÍsticas
[aos oficiais] é insistir na "epidemia africana". (Botinas, 2001, p.l) oficiais da aids no continente africano. Já a recusa, ou a hesitação, do go-
verno sul-africano em fornecer a terapia antirretroviral em larga escala foi
Esse tipo de questionamento era comum e se replicava em cada considerada pelos "oficiais" como a principal causa do aumento das taxas
encontro dos "dissidentes", que sustentavam que os números, se contabi- de mortalidade, que, segundo eles, tomaram proporções de genocídio,
lizados de forma coerente, ao contrário de indicar uma epidemia de aids levando a África do Sul a ter o maior número absoluto de pessoas com
na África, comprovariam que as ocorrências consideradas pelas estatÍsticas aids no mundo. Para a concepção oficial, discutir sobre a veracidade da
oficiais como de infecção pelo HIV eram, na realidade, casos inflamatórios aids num momento catastrófico era por si só uma irresponsabilidade, e
e infecciosos crônicos, falta de proteínas e nutrição deficiente, contami- Mbeki havia infligido um dano inestimável aos esforços de prevenção e
nação de águas potáveis por bactérias nutrificantes e carga nitrossamínica terapêutica da epidemia na África do Sul. A crítica mais contundente ao
nos alimentos. Esses fatores podem levar a uma sintomatologia clínica presidente afirmava que ele estava politizando fatos cientÍficos. Em respos-
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 67
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ta às posições de Mbeki, e numa paradoxal tentativa - paradoxal porque nos encontros e nas reuniões, com rapidez impressionante. Num desses
elaborada em forma de resposta política, num ambiente politizado - de encontros, ponderei com ativistas "dissidentes" sobre a distribuição de
despolitizar fatos científicos, mais de cinco mil investigadores assinaram antirretrovirais. Em países como o Brasil, em que o acesso a medicamen-
a "Durban Declaration", ratificada pela Sociedade Sul-Africana de Medi- tos era fruto da luta de organizações não governamentais, de associações,
cina, que afirmava peremptoriamente: o HIV causa aids. A "Declaração" do movimento popular, e que tratar o assunto simplesmente como uma
foi publicada na revistaJVtzture com o objetivo de responder a uma massiva "imposição imperialista de pessoas distribuindo veneno para a popula-
consternação de cientistas, médicos e profissionais que trabalham com ção" - como se parecia depreender dos argumentos mencionados pelos
a aids ante as ideias propugnadas pelos "dissidentes". O material buscava "dissidentes" - seria desconsiderar parte substancial da história, talvez
encerrar de vez a controvérsia. mais complexa. Alertei também para os conflitos de interesses existentes
Outro fato era comumente observado nas discussões em Barcelona. nos tortuosos caminhos internacionais, que envolviam estabelecimento e
Mbeki não foi a única figura de proeminência a se pronunciar. Edwin quebra de patentes, acordos comerciais internacionais e acesso a terapias
Cameron, juiz da Suprema Corte da África do Sul, proferiu a primeira antirretrovirais, como se observa no caso brasileiro.· A resposta que obtive
palestra "Jonathan Mann'', repreendendo o então presidente da África do foi algo entre o fetiche de medicamentos, a ideologia imposta e a crença
Sul por sua "irresponsabilidade", que, segundo ele, beirava a criminalida- inocente de países do Terceiro Mundo.
de. No mesmo momento em que tornava pública sua soropositividade, A controvérsia parece demonstrar as intricadas relações entre a
Cameron censurava o governo pelo fracasso em garantir tratamento às política do conhecimento e a das representações. A epidemia da aids
pessoas infectadas, pelo insucesso em prevenir a transmissão do HIV -como alertou Paula Treichler (2006)- surge como uma poderosa epi-
aos recém-natos e pela não redução das taxas de infecção. A narrativa do demia de significados. Lida da Espanha por ativistas e cientistas, a África
juiz desenhava o quadro evolutivo de sua própria doença e o surgimento despontou como uma metáfora para falar de doença e ciência, cada qual
das infecções oportunistas, culminando, didaticamente, na sua melhora interpretando, de forma bem particular, os acontecimentos.
significativa com a submissão às terapias antiaids. Cameron insistiu, em
diversas ocasiões, que essa evolução se devia ao tratamento antirretroviral. Silêncios
Na Espanha, biomédicos, tomando como exemplo o caso de Cameron,
alertavam para a eficácia das terapias antiaids, o que sinalizaria o acerto Em toda essa controvérsia sobre a aids na África, mais especificamen-
da elaboração oficial sobre a epidemia. te na África do Sul, destacam-se as conotações particulares dos debates
O singular aparecimento de um estadista do porte de Thabo Mbeki locais que acabaram por ser filtradas nas discussões da Espanha, com
e de autoridades como Cameron, ora questionando a visão oficial da aids, questões girando, quase que exclusivamente, em torno de aspectos que
ora defendendo a distribuição das terapias antirretrovirais - ambos se comprovariam ou não a existência da aids, da eficácia dos medicamentos e
envolvendo na polêmica sobre a veracidade da epidemia -, marcou os dos testes antiaids. Não obstante, o caso sul-africano apresentava conexões
debates em Barcelona. Os "dissidentes" acompanhavam a discussão de íntimas e conflituosas entre aids, raça, sexo e doença, conexões advindas
perto. Os discursos de autoridades sul-africanas sobre o assunto eram de processos de essencialização e estigmatização do corpo negro, que,
lidos, comentados, publicados em revistas.
Com a proximidade dos eventos e dos desdobramentos da epide- 7 Sem me poder derer nesses iünerários, indico o de
disrribuicáo de amirretrovirais no Brasil, ver Galváo (2002a e 2002b) e Tei..xeira. Vitória &
mia na África do Sul, os acontecimentos eram narrados, na Espanha, patentes e dos acordos comerciais, ver Casrro & \'{?esterhaus (2006).
De corpos e rravessias Pedro Paulo Gomes Pereira 69
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8
na história colonial, sempre foi relacionado à lascívia e à devassidão. -com os textos de Mbeki distribuídos na ocasião e com os "dissidentes"
As interpretações locais associavam a aids aos rropos constantes dos dis- acompanhando cada evento-, as intervenções não abordavam as intri-
cursos colonialistas. A epidemia seria, nessas leituras, mais um capítulo cadas relações existentes entre sexo, raça e doença. Os debates efetuavam
de uma história que narrava a África como a encarnação da selvageria de uma espécie de depuração. E a demanda sul-africana por atenção às suas
instinto. As formas de transmissão da aids e sua conexão imediata com a especificidades não parecia constar nas preocupações dos "dissidentes".
sexualidade, associadas à história colonial, permitiram leituras locais que Indaguei a diversos "dissidentes" sobre o porquê de tal procedimen-
uniam doença e racismo (Posei, 2006; Fassin, 2006). to, já que os discursos de Mbeki eram diretos e claros sobre o assunto,
Os dilemas de nacionalidade, raça, regime de tzpartheid, além dos e amplamente divulgados por eles. As respostas que obtive indicavam
sistemas de saúde pública locais, estavam, pois, imbricados na dinâmica a tentativa de não se envolver em tais questões e se fixar em fatos mais
da epidemia de aids na África do Sul. Na história do país, as políticas objetivos. A disputa na Espanha deveria se concentrar - parece indicar
sanitárias serviram para fundamentar as primeiras medidas de segregação esse tipo de proposição - na objetividade dos fatos e não em sua politi-
racial e funcionaram para justificar as condições de exploração da força zação, distanciando-se, assim, da conflituosa história da África do Sul.
de trabalho. As epidemias de sífilis e tuberculose foram utilizadas como Numa entrevista com Ramón, explicitei minhas dúvidas sobre o porquê
exemplos que subsidiaram os argumentos sobre os quais se edificaram as desse silêncio dos "dissidentes" em relação a dimensões fundamentais da
teorias de inferioridade dos negros e a promiscuidade sexual africana - dinâmica da epidemia na África. Ele obtemperou:
argumentos, por sua vez, utilizados pelo regime de aptZrtheid para imple-
mentar programas genocidas de controle. É dentro desse contexto, alerta A questão não é compreender a história da África, mas desmontar

Fassin (2000), que se devem compreender, na África do Sul, os receios de o mito da aids - esse mito que se utiliza da África para provar sua

políticas do Ocidente contra a aids, não havendo como desconsiderar essa realidade. A luta é por essa realidade. Não é uma luta contra a ciência,

história e o medo que a população negra tem das autoridades biomédicas porque estamos reivindicando mais ciência, uma ciência mais verda-
deira e transparente. Com isso, em breve veremos que o mito da aids
e dos programas contra epidemias.
Essas dimensões da história da África do Sul estavam presentes vai desaparecer e que uma epidemia de aids nunca existiu na África.
nos discursos e na conduta de Mbeki, que denunciavam a associação de
aids e racismo. Suas intervenções reivindicavam, em sua inserção direta O que se reivindicava era uma ciência mais verdadeira. Para tal,
na controvérsia da aids, a necessidade de valorizar o corpo negro, de o movimento realizado era o de afastar das polêmicas relações entre
positivar as imagens da África e de apontar os agenciamentos entre aids racismo e ciência, bem como de questões relacionadas apenas à política,
9
e racismo. Não posso deter-me nessa outra história, mas é interessante ainda que as reivindicações utilizassem formas adstritas a essa esfera. A
salientar que na Espanha, nos grandes debates sobre a epidemia na África reincidência desse tipo de resposta, mesmo entre biomédicos "oficiais';
indica uma convenção -para utilizar, livremente, o conceito de \Vagner
( 1981) - entre as partes em disputa.
8 Faz-se ,H.JUi uma imerlocuç;io com o an::igo de Deborah Posd (2006), no qual a ,lUtof<l
comrovérsia sul"africana sobre a aids foi impregnada pelas leiwras mais globais da aids na O que cabe salientar não é um equívoco dos "dissidentes" na obli-
representação que homogeneizaram raça. sexualidade e padrôes de teração de partes significativas da história da África do Sul, nem uma de-
doença como pane da história da África. O ''negacionismo.. (negação tb existência da J.ids) constituiria uma núncia de um silêncio proposital ou de um esquecimento conscientemente
remativa de recusa drt ess.encialização do corpo negro- uma recusa que se valia de premissas que repousavam
numa lámra tão essencialista_ quanto as versões coloníal e neocoloniaL perpetrado. Não é um erro que se deseja reforçar, até porque a questão
9 Sobre o assumo. ver Schneider & Stcin (200 l ). Van Der VlieL ( 1996 e 200 l) e Fassin & Schneider (2002).
70 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 71

aqui -como já ressaltei - não é "a verdade", mas as relações estabelecidas Enunciados das esferas da política e da ciência, geralmente diver-
em torno de verdades. Ames de qualquer coisa, esse silêncio revela as gentes, atuam em conjunto na situação da controvérsia da aids na África
"regras do jogo", as convenções da disputa sobre verdades, pois, de alguma do Sul. Se a política se manifesta avessa à transparência, exatidão, repre-
maneira, havia certo acordo entre "oficiais" e "dissidentes", e, na lingua- sentação fiel da realidade, características próprias à ciência, como salienta
gem negociada, o desejo de se preservar a objetividade dos fàtos sempre Latour (2002), é de um regime de enunciação política que se exigem essas
se manifesta. Todos reivindicam objetividade e universalidade de seus mesmas características. A conjuntura impele a traduções; no entanto, as
pressupostos e, com isso, maior proximidade com a verdade. Ninguém, leituras são diversas, e as traduções são ora eficazes, ora ineficazes. Desse
para falar como Viveiros de Castro (2002b), concorda em discordar, já modo, os encontros e os desencontros assinalados nessa história confusa
que se reivindica o acerto de suas posições, baseadas num único mundo não são só aqueles da posição oficial e dissidente, como narrado na primei-
onde as verdades científicas são universais e incontestáveis. No ponto ra parte deste capítulo, mas de uma multiplicidade de atores, regimes de
cujo desacordo é mais extremo - disputa etiológica da aids, comenda enunciação, conexões, propiciando uma situação na qual a comunicação
epidemiológica sobre a dinâmica da aids na África - há uma convenção, só pode ocorrer em traduções: dilemas de nacionalidade, raça; histórias
uma combinação acerca de qual jogo jogar. O desacordo é, então, certo diversas em contato; interpretações locais; projeções de olhares; regimes
acordo; e a controvérsia ocorre dentro dos limites de certa linguagem, de enunciação diferenciados; enunciados contraditórios; convenções
de certas convenções. E, quando parece haver um acordo - tais como compartilhadas; divergências no que se acredita estar de acordo - tudo
entre o presidente Mbeki e os "dissidentes" -, ele surge de desacordos, em movimento e em constante tradução. A comunicação clara, direta e
de linguagens truncadas, de traduções ambíguas, pois a adesão às teses racional como projeto depara-se com a parcialidade de posições, a frag-
"dissidentes" se deu mais por fidelidade à luta contra o tZptZrtheid do que mentação babélica. Mas, mesmo numa disputa como a aqui narrada, a
a acordos quanto à etiologia da aids (Posei, 2006; Fassin, 2006). persistência da tradução aventa a promessa de uma maior comunicabili-
Em Barcelona, envoltos numa polêmica acirrada, ambos os lados dade: a tradução parece realmente ser, como nos ensina Guimarães Rosa
buscavam afastar-se de qualquer possibilidade de subjetivação, e centra- (1957), a saída para Babel.
vam-se em demonstrar ou contestar a veracidade de "fàtos científicos': Ou Se a linguagem metafórica, contagiante, da aids na África do Sul
seja, por mais distintos que fossem os lados da contenda, todos investiam multiplicava a vinculação entre racismo, identidade nacional e enfermi-
no jogo epistemológico "objetivista'', no qual conhecer é, simultaneamen- dade, como nos contam Fassin (2006) e Posei (2006), na Espanha, os
te, objetivar (distinguir o que é intrínseco ao objeto daquilo que pertence discursos dos "dissidentes" e dos "oficiais" promoviam a assepsia, dessas
ao sujeito) - e dessubjetivar (especificar a parte do sujeito presente no vinculações, concentrando-se numa busca por objetividade. Depuravam-
objeto). O que não pertence à esfera da objetividade é irreal (Viveiros de -se os discursos de suas cores locais, que, acreditava-se, levariam a contro-
Castro, 2002a). Na controvérsia que estamos seguindo, tudo acontece vérsia a espaços de subjetividade cada vez mais distantes da "verdade" ou
como se o outro lado da contenda subjetivasse, afastando-se assim da da "realidade" da doença- subjetividade inconcebível numa discussão de
objetividade desejável. Daí a necessidade de distanciar-se das relações "fatos cientÍficos'', de verdades naturais da ciência; e cores locais impen-
entre racismo e aids. De qualquer forma, a ciência se mantém no lugar de sáveis em lugares de universalidade incolor. Assim, essa ausência, ou esse
aferidora de verdades, num sinuoso itinerário de construção de discursos silêncio, revela o que é e o que não é negociável na comenda, demarca as
de verdade. regras do jogo, estabelecendo os limites onde a linguagem deve operar e
as formas possíveis de conhecimento razoável.
70
;.;... De corpos c traYessías Pedro Paulo Gomes Pereira
73

Biopoder acontecimentos e dar respostas aos "oficiais", planejaram um evento si-


multâneo à XVIII Conferência Internacional sobre Aids, com o objetivo
Os fltLxos, as conexões e os agenciamentos são mais complexos do de "repensar a epidemia'; marcada para Viena (Áustria). A intenção era
que pude registrar nesse itinerário que percorri e narrei. Não pude abordar fazer uma conferência paralela, semelhante à ocorrida em Barcelona, em
várias dimensões: as relações entre as instituições, as formas de conexões 2002. Em abril de 2011, Lluis Botinas ministrou um curso na cidade de
estabelecidas pelos ativistas em escala internacional, as leituras dessa Múrcia (Espanha), com o significativo título: "1984-2011: 27 anos de
polêmica que se alastra na internet, em chats, em grupos de discussão, as fraude científica de HIVI Aids'; no qual anuncia suas ide ias defendidas
traduções dessa história por "dissidentes" sul-africanos. Mesmo com essas no seu livro, de quase quinhentas páginas, denominado El VIH/SIDA es
limitações, depois do percurso traçado, fica difícil restringir as discussões unaJicâón: preguntas para desmontar el SIDA, un invento 'made in USA':
à verdade ou à falsidade dos argumentos. As questões sobre veracidade A epidemia na África segue em pauta, a querela sobre as estatÍs-
são deslocadas e revelam as pnformances fundamentais da construção ticas da epidemia no continente ainda persiste. A disputa ainda não se
dessas poderosas ficções de ciência (Haraway, 1991 ). A polêmica em findou; a África continua como o epicentro da controvérsia sobre a aids;
torno da aids possibilita desvendar as formas que as ciências duras ele- as discussões permanecem mesclando tropos da militância e do sistema
gem para construir seus objetos, como a criação das verdades cientÍficas, imunológico; ativistas "dissidentes" recusam-se a deixar a ciência aos
a adoção dos critérios de veracidade adotados e das metodologias. Por cientistas e impelem a luta para o interior da ciência. Nos laboratórios,
sua vez, a controvérsia que seguimos permite desvelar mais uma fàceta as investigações sobre o vírus continuam cada vez mais envolvidas no
da construção cientÍfica. fascinante universo dos genomas.
Na primeira semana de agosto de 2009, pesquisadores da Universi- Talvez uma das questões mais interessantes dessa trajetória seja poder
dade da Carolina do Norte publicaram um artigo na Nature, demonstran- compreender um pouco mais de pessoas com enormes responsabilidades
do como a estrutura do genoma completo do HIV-1 foi sequenciada pela sobre seus corpos e sobre a manutenção de suas vidas. Esses cidadãos
primeira vez na história (\\7eeks et al., 2009). O artigo foi disposto na capa discutem a eficácia de fármacos, embrenhando-se em sofisticados debates
da revista, sinalizando a importância conferida ao fàto e às expectativas sobre tecnologias médicas, atuação de retrovírus, validade de testes. São
em torno da descoberta. A perspectiva dos investigadores é de uma trans- agentes ativos do bem-estar e na promoção da vida. Obviamente, ques-
formação completa nas terapêuticas, na elaboração de medicamentos, já tões como "deixar morrer" ou "fazer morrer" são também alvo do debate
que se muda a compreensão das táticas que o vírus utiliza para infectar. O narrado. E podem ser percebidas na denúncia do "deixar morrer" partes
que se espera é apreender o ciclo de vida do vírus, para poder combatê-lo contaminadas e abjetas do mundo, como se observa em análises frequentes
mais eficazmente. Os biomédicos que consultei também se mostraram sobre a existência de zonas de não intervenção do Estado no combate à
otimistas, prevendo uma alteração completa - em relativamente pouco aids; e na acusação do "fazer morrer", perpetrada pelos "dissidentes" que
tempo- das terapias. Nesse período,Jean-Christophe Plantier, da Uni- não cansam de afirmar que os Estados nacionais estão fornecendo veneno
versidade de Rouen, afirma ter encontrado um novo vírus numa mulher ("coquetel") às populações. Seja como for, o que está em jogo nessas rela-
em Camarões. Esse vírus, diferente dos três já conhecidos, está relacionado ções perigosas, nessas controvérsias, é a vida (Rabinow, 1996; Rabinow
a uma versão símia descoberto em gorilas selvagens. & Rose, 2006; Rose, 2007). Trata-se de novas configurações daquilo que
De forma quase que simultânea, os "dissidentes" debatem o que Foucault (1985) denominou biopoder, nas quais a ciência mesma (e seu
consideram "os 25 anos de fraude da aids". Para discutir os últimos aparato técnico, farmacológico, terapêutico; i.e., seus dispositivos) entra
-4 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 75

no campo das reivindicações, das contestações, tornando-se o centro das novas subjetividades, essas novas formas de vida, em seus intricados e
disputas. As relações entre as pessoas giram em torno da biotecnologia e insólitos itinerários.
são expressas em traduções. Esse movimento produz, como vimos, sujeitos
capazes de construir narrativas sobre a ação de retrovírus nos organis-
mos e sobre quadros epidemiológicos, e que se debatem sobre verdades
científicas. Independentemente do grau de profundidade desses sujeitos
- sejam cientistas, militantes, médicos - sobre os temas abordados, da
precisão dos dados ou da veracidade das conclusões, podemos perceber
a emergência de formas de biossocialidades, em demanda por verdades
biológicas, reivindicando terapêuticas adequadas e construindo, enfim,
um discurso "cidadão" sobre a biotecnologia. 10
Os debates, que extrapolam as discussões entre especialistas e
mesclam trapos de sistema imunológico e metáforas dos movimentos
sociais, versam sobre a política da vida, sobre o caráter vital dos seres
humanos. Discursos de verdade e autoridades competentes para falar a
verdade entram no jogo e são questionados; seus discursos são contor-
cidos, a ponto de alterar sua linguagem e, muitas vezes, deslocar o local
de fàla. As estratégias de intervenção, as terapêuticas, são confrontadas
com outras formas de intervenção sobre a vida. Estamos, pois, diante de
novas configurações nas quais grupos biossociais - portadores de aids,
etiquetados de aids, Associação de Vencedores da Aids etc. - emergem
advogando cidadania, reivindicando terapêuticas, solicitando ou negando
intervenção medicamentosa. Os indivíduos são conclamados a amar sobre
si, a se posicionarem em relação a discursos de verdade. As terapêuticas
antiaids implicam práticas de si adotadas em nome da vida, da saúde,
perúzendo biossocialidades inusitadas. Os discursos e os grupos extra-
polam as fronteiras nacionais, projetando dilemas e valores europeus à
África, propiciando com isso leituras cruzadas, traduções ( im) pertinentes,
linguagens híbridas. À antropologia cabe o desafio de acompanhar essas

10 O conceito de Rabino\v de "biossocialidade" rdúe-se à emergCm:ia dt: novos ,lgrupamentos e ídemídades


numa tentativa de entender .:ts rransfàrmaçóes na compreensâo de vida e de Yerificar como <1s
emergentes dão forma a aüvísmos rd.Kionados a doenças e como transformam os sígnífic,1dos de
enfermidades. Faço referéncia também ao conceito de ''cidadania biológica'', de Adriana Perryna (2002), que
analisa como as populações pós~Chernobyl desenvolveram uma linguagem de direitos, ao buscarem seus
direitos d serviços de saúde e apoio so...:ial.
3- Em torno da vida

No último capítulo de A ·vontade de s,1ber ( 1985 ), Michel Foucault


dissertou sobre uma era em que a morte começava a não mais fustigar a
vida. O "limiar de modernidade biológica'; dizia ele, se situa exatamente
quando a vida entra na história, inaugurando "a era de um biopoder"
(p.l32). Foucault descreve a modernidade numa indissociabilidade da
vida biológica e da vida política - a política voltando-se para governar
a vida. Os conceitos de biopoder e biopolítica, depois das conotações
conferidas por Foucault, tornaram-se centrais nas ciências sociais e nas
humanidades; para alguns, inclusive, voltar-se a eles tornou-se o desafio
mais urgente do pensamento contemporâneo. É sobre esse quadro con-
ceitual que este capítulo busca refletir.

Experiência etnográfica

Nos anos de 1998 e 1999 realizei uma etnografia num refúgio


para portadores de aids onde conviviam, em situação de confinamento,
ex-presidiários, ex-prostitutas, moradores de rua, travestis, pessoas aban-
donadas ou expulsas de casa, usuários de drogas injetáveis e alcoolistas
- como descrevi no primeiro capítulo. Ao longo do trabalho de campo,
escutei repetidamente o termo "terror": os internos se referiam à vida que
levavam entre o abrigo que os acolhera e os hospitais; mesmo discorren-
do sobre suas enfermidades, valiam-se repetida e insistentemente desse
...
0;.: corpo:<> e u,tvessias. Pedro Paulo Gomes Pereira 79
78

termo e do campo semântico que evocava. As narrativas dos internos de antirretrovirais. Tudo era novo quando comecei minhas pesquisas. E
compunham falas que desenhavam o quadro de isolamento, solidão e no que se seguiu, o Brasil tornou-se protagonista internacional no que
incomunicabilidade. Sugeri na minha etnografia (Pereira, 2004) que o se refere à política antiaids, perfazendo uma história que vai da quebra
terror se apresentava aos internos como forma sistemática de ruptura das de patentes e disputas internacionais até a exportação de tecnologia para
relações de dádiva: a impossibilidade de criar vínculos, em razão do rompi- países como Moçambique.
mento das situações de dádiva, principalmente em pessoas que precisavam A Coordenação Nacional HIVI Aids e o HUB estavam separados
desses vínculos para sobreviver, suscitava um estado de estupor. Foram as do refúgio onde desenvolvi minha pesquisa por aproximadamente 30
rupturas extremas desse tipo de relações que se apresentaram como uma quilômetros. Se na Esplanada dos Ministérios planejavam-se as políticas
das faces mais proeminentes do sofrimento e do terror. públicas contra a aids no Brasil, e se ali os profissionais de saúde mane-
Examinei as formas pelos quais o terror se inscrevia nos corpos e javam sofisticadas formas de gestão e distribuição de medicamentos, na
tomava coma da consciência desses internos, fechando o horizonte de periferia, numa chácara às margens de uma cidade-satélite de Brasília,
sentido em torno deles. Busquei apresentar as estratégias e os métodos de encontravam-se pessoas para as quais as políticas não faziam efeito.
disciplinamento utilizados pelas autoridades da instituição, colocando
1 Eram portadores de HIV cujas doenças não recebiam acompanhamento
o foco da exposição na descrição e análise da manipulação corporal dos e que sobreviviam sem auxílio ou intervenção direta do Estado. A luta
internos, e no exame dos discursos cujo tema constante é a iminência da por formas de proteção contra a epidemia, as políticas para evitar a
morte. Os internos encontravam-se sem formas de resistência relacio- contaminação, as ações pela vida, tais como declaradas nos hospitais e
nadas à cura, e a medicina e os serviços de saúde produziam um campo propaladas pelas políticas públicas, deparavam-se com pessoas excluídas
de ampliação de sofrimentos. Essa trama formava, enfim, um espaço de e relegadas à morte.
sofrimento, no qual doentes, dirigentes da instituição e profissionais de Esse abandono e a exclusão eram concomitantes às ações de Estado,
que formulava e operava práticas preventivas e de adesão às terapêuticas
saúde estavam inseridos.
Acompanhei esses internos também em seus itinerários por hospitais antirretrovirais e distribuição gratuita de medicamentos. A existência
e serviços de saúde, especialmente no Hospital Universitário de Brasília de um refúgio como este demonstra que há uma zona onde as políticas
(HUB). No universo hospitalar, deparei-me com as políticas públicas públicas não conseguem entrar ou não fàzem efeito. Certa vez um médico,
direcionadas à epidemia, que compunham saberes que iam das práticas diante da constatação da incapacidade de práticas terapêuticas razoáveis
de prevenção, passavam pela etiologia da doença e pelas terapias medi- para aquelas pessoas, me falou: "Como a realidade não podia ser mudada,
camentosas até a dinâmica geral de epidemia. Foi essa experiência que tratava-se de salvar os que podiam ser salvos, ou cuidar dos que podiam
me aproximou da estrutura e dos métodos da luta contra a aids no país, ser cuidados". Os esforços direcionados àquelas pessoas eram inúteis.
e me tornou ciente da história dessa enfermidade. Diz-se que em 1982 Não que se recusassem cuidados para os internos daquele abrigo, até
foi detectado o aparecimento do primeiro caso de aids no Brasil. O Pro- porque eles vagueavam pelos serviços de saúde do Distrito Federal, mas
grama Nacional de Controle da Aids foi criado em 1986 e reorganizado que, como se sabia então, "eles não iriam adotar práticas de cuidados ou
em 1992. Em dezembro de 1996, dois anos antes da minha pesquisa, aderir aos tratamentos': Portanto, "não havia nada que pudesse ser feito".
com a Lei Federal n. 9313, iniciou-se a distribuição universal e gratuita "Estão ali para morrer", sentenciavam por fim diversos profissionais de
saúde, numa frase que escutei por mais de dois anos. Performatizando uma
1 Uülizo indisrint,lmeme os rermos refúgio. abrigo e ínsrituição por serem as expressôes usadas pelos meus tensão entre o fazer viver e o deixar morrer, lado a lado estavam políticas
imerlocurores (Pereira. 2004).
"'
80 De corpos e rrasessias Pedro Paulo Gomes Pereira 81

de prevenção, medicamentos, formas de gestão, e pessoas para as quais às suas técnicas de confissão; das razões do Estado, aos saberes da polícia.
essas medidas e ações não chegavam, deixadas à própria sorte num rdiigio Biopoder seria, assim, um conjunto de ações relativamente racionaliza-
para portadores de aids. das, desenvolvidas por autoridades para intervir no âmbito da vitalidade
humana: nascimento, desenvolvimento, adoecimento e morte. A vida
Fazer viver e deixar morrer assume relevância estratégica.
Apesar dessa história de uma modernidade que se afasta da mor-
Explorei essa tensão entre o fazer viver e o deixar morrer em alguns te e que rompe da era das epidemias, Foucault alerta também para a
trabalhos (Pereira, 2003, 2004, 2008). Michel Foucault foi referência existência de práticas de morre que rondam essa mesma modernidade.
por ser ele quem estabeleceu uma nova forma de explorar teoricamente o Tudo acontece como se a proliferação de formas de controle e de manu-
tema (Lemke, 2011 ). Narrando o inusitado aparecimento do sexo como tenção da vida seja simultânea à exclusão, à criação de outros abjetos, e
fundador da identidade e da inteligibilidade do indivíduo moderno, à tentativa da extirpação de partes consideradas indesejáveis. Temos um
Foucault ( 1985) sustentou que o poder, que outrora se esforçava em movimento ambíguo: junção de uma vida que se deve proteger a todo
evitar a morre, começa a se centrar na produção, regulação e manutenção custo, a invenção de outros que ameaçam a vida, e o surgimento de vidas
da vida. Surgia um poder produtivo que controlava e gerava aquilo que que não merecem ser vividas. Assim, se estamos numa época em que há
disciplinava. Assim, a potência da morre relacionada ao poder soberano uma supervalorização e proteção à vida, ao mesmo tempo existem zonas
foi recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. nas quais pessoas são dei.ndas para morrer - como as que acompanhei
Os mecanismos de poder acabam por dirigir-se ao corpo e à vida, em tudo durante meu trabalho de campo.
que faz proliferar e reforçar a espécie. O conceito de biopoder assinala Pensando numa escala global, é interessante lembrar que, ao lado do
o momento no qual o poder passa a investir na vida. Essa transformação incremento de políticas sanitárias, da vacinação em massa, das inovações
ocorre por uma anatomopolítica do corpo humano (maximizando suas na ciência que possibilitam qualidade de vida e saúde para as populações,
forças para integrá-lo em sistemas eficientes) e por uma biopolítica da tivemos nas últimas décadas conflitos como os de Ruanda, Iugoslávia,
população, focalizada no corpo como espécie. Um corpo que é imbuído L ibéria e Sudão. Chegou-se a falar da década de 1990 como a da violência
com os mecanismos da vida: nascimento, morbidade, mortalidade, longe- em larga escala, caracterizada pelo excesso de raiva que produziu uma cria-
vidade, entre outros (Foucault, 2005 e 2008). 2 A importância conferida às tividade na degradação e violação: corpos aleijados e torturados, pessoas
políticas sanitárias, demográficas e urbanas no século À'\'III é a primeira queimadas e estupradas, mulheres estripadas, crianças mutiladas, humi-
etapa para uma caracterização biopolítica que penetra as esferas sociais, lhações sexuais de rodos os tipos, como nos lembra Appadurai (2009).
produzindo a "governamentalização" da vida3 , que vai do poder pastoral A biopolítica apresenta aspectos inconciliáveis: ou produz subje-
tividades ou morte; ou torna o sujeito seu próprio objeto ou o objetiva;
2 ou é política da vida ou sobre a vida (Esposito 2004). Essa "indecibili-
dade", como quer Esposito, levou os teóricos a caminhos diversos, ora
assinalando que o conceito de biopoder hoje sinaliza para seu caráter
produtivo, ora ressaltando que uma das características principais da
biopolítica na contemporaneidade é a produção do homo sacer. Talvez
seja essa tensão em torno da vida que proporcione posicionamentos tão
4

82 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 83

diferenciados, como os que podem ser observados nas formulações de Se Agamben define como capital a relação entre soberano, homo
Agamben (2004a e 2004b) e nas críticas a elas formuladas por Rabinow sabere a capacidade de o primeiro instituir o estado de exceção, Rabinow
& Rose (2006). & Rose (2006) sustentam que esses momentos são extraordinários, não
podendo ser hoje a característica fundamental para definir o biopoder. Na
O conceito de biopoder em disputa realidade, biopoder nos Estados contemporâneos especifica uma relação
entre deixar morrer e fazer viver; o que o singularizaria e definiria seriam
Agamben defende uma relação estreita entre três figuras que ele as "estratégias de governo da vida': Na tentativa de mapear essas estratégias,
considera centrais: poder soberano, homo sacer e estado de exceção. Rabinow & Rose destacam as seguintes dimensões: o aparecimento de
O poder soberano estabelece os limites entre a vida que merece ser novos modos de individualização e concepções de autonomia com seus
protegida e aquela que pode ser morta; a vida entra no jogo político, direitos associados à saúde, à vida, à liberdade e à posse de formas de feli-
ora resguardada e potencializada, ora exterminada. O soberano está ao cidade (entendida em termos corporais e vitais); o surgimento de novos
mesmo tempo dentro e fora da ordem jurídica, já que tem a capacidade tipos de grupos de pacientes e indivíduos que definem sua cidadania em
de constituir o estado de exceção. E inversa à figura do soberano surge termos de seus direitos; a irrupção de novos circuitos de bioeconomia;
a do homo sücer - indivíduo que pode ser morto sem que tal morte uma capitalização da biociência em larga escala e uma mobilização de seus
constitua crime nem sacrifício. Essa relação entre soberania, estado elementos em novas relações de troca, estabelecendo conexões constitu-
de exceção e homo s11cer é o próprio fundamento da organização dos tivas entre vida, verdade e valor.
corpos no Ocidente. Com essas dimensões em mente, Rabinow & Rose definem biopo-
A característica mais marcante da vida moderna é que cada vez mais der como discursos de verdade sobre o caráter vital dos seres humanos;
o estado de exceção vem se transformando em regra, tornando-se tênue e conjunto de autoridades consideradas competentes para falar aquela
instável a linha divisória que demarca a fronteira entre a vida que merece ser verdade; estratégias de intervenção na existência coletiva em nome da vida
vivida- e que deve ser protegida e incentivada- e a vida nua, desprovida de e da saúde; e modos de subjetivação, nos quais os indivíduos atuam sobre
garantias e exposta à morte. Diferentemente de Foucault, para Agamben, si próprios em nome da vida ou da saúde individual ou coletiva. Rabinow
a biopolítica não surge com a modernidade, sendo no mínimo tão antiga & Rose nos mostram a emergência de biossocialidades, novas formas de
quanto a exceção soberana, visto que desde então coloca a vida biológica subjetivação, ou como a ciência pode potencializar a vida.
no centro de seus cálculos. O Estado moderno apenas clarifica o elo entre Num livro sobre as "políticas da vida em si", Nikolas Rose (2007)
poder e vida nua, pois a biopolítica existe desde que o homem se separa define biopolítica como as estratégias específicas relacionadas à vitali-
do animal e a vida biológica se estende até a vida política (Fassin, 2006b). dade humana, à morbidade e à mortalidade; às maneiras como ocorre
Agamben mostra como cerne da biopolítica a distinção de zoé, o simples o estabelecimento de autoridades e das intervenções que são definidas e
faro de viver comum a todos os seres vivos- a vida biológica-, e bíos, a legitimadas como as mais eficazes e mais adequadas. Para ele, a biopolí-
maneira de viver própria a um indivíduo ou grupo, na qual o homem se ticahoje está relacionada a trabalhos de laboratórios biotecnológicos na
aparta do animal, qualificada amiúde de vida política. O dualismo entre zoé criação de novos fenômenos (e patologias), ao poder computacional dos
e bíos forma o par categoria! basilar da política ocidental. A modernidade dispositivos que vinculam histórias clínicas com sequências genômicas,
teria como característica a confusão crescente entre zoé e bíos. 4 aos poderes mercadológicos das empresas farmacêuticas, às estratégias
regulatórias de comitês de pesquisa, de bioética, e de vigilância de
-i Para uma leitura crítica da obra de Agamben. ver Lemke (201 1).
..

8-t De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 85

drogas e alimentos e, também, à busca de lucros envolvendo todas essas Paradigma imunitário
5
instâncias.
Independentemente dessas divergências, há que se ressaltar que uma A epidemia de aids trouxe mudanças significativas nas relações
leitura do biopoder centrada apenas nas potencialidades da ciência, se não sociais, nas formas de perceber as diferenças sociais, nas concepções de
for completada por outras leituras atentas às formas de governo da vida saúde e de doença, fazendo-nos compreender como um vírus pode trans-
sobre os corpos (Fassin, 2000), pode fazer olvidar quadros como o que formar a sociedade. O medo do contágio e o terror milenar das epidemias
me deparei na minha etnografia (Pereira, 2004). Além disso, são muitos intensificaram-se. A concepção miasmática proporcionou condições para
os momentos nos quais a ciência é chamada para sustentar qual é a vida a interrupção das trocas, porque a metáfora do contágio- que é um tropo
biologicamente melhor e como torná-la mais potente - processo que da circulação- refloresce ideais assépticos que buscam o corte simbólico
torna uma vida mais potente, mas pode ser consubstanciai a morte das de um indivíduo a outro, na tentativa de evitar uma possível contami-
vidas consideradas biologicamente piores (Foucault, 2005). A complexi- nação. O trauma psíquico oriundo das pestes e das epidemias, reativado
dade da politização da vida e a tensão entre o fazer viver e deixar morrer pela aids, encontrou seus culpados potenciais e acirrou a necessidade de
podem ser acompanhadas na quantidade e variedade de aproximações evitar a proximidade com as prováveis fontes de contágio. A operação
teóricas que vão, como bem ressaltou Fassin (2006a, p. 40), do horizonte de localizar no "outro" a contaminação advém, principalmente, da busca
do laboratório e da bioinformática, da imunologia clínica e da sequência de compreender a epidemia e de identificar os contaminadores. O com-
genética, da reprodução assistida e da terapia oncológica - estudados portamento desviante do "outro" torna inteligível o próprio contágio,
por Rabinow (1999), Napier (2003), Rapp (2000), Lowy (1996) -,ao conferindo segurança e distância para enfrentar o trauma da pandemia
campo de refugiados e deportados, à proteção social e aos programas aids (Pereira, 2004).
de assistência, tais como os analisados por Agamben (2004a), Bauman Houve diversas respostas à epidemia e seria simplista reduzir um qua-
(1998), Malkki (1995) e Agier (2002). dro de políticas de Estado, emergência de leis e normatizações, mobilização
Diante desse contexto, como perceber situações como as descritas da sociedade civil na luta contra a aids à manifestação de ideais assépticos ou
no primeiro capítulo? Seria possível uma definição de biopoder que ao medo de contágio (Bastos, 1999). Entretanto, não há como se esquivar
olvidasse momentos nos quais partes consideradas abjetas são relegadas desses aspectos, incorporados que estão no quadro maior dos dispositivos
à morte ou ao abandono? Haveria como se esquivar daquela tensão que biopolíticos, principalmente em quadros como o brasileiro.
percebi na minha etnografia que colocava o que se tinha de mais moderno A aids tem vitimado os setores menos favorecidos da sociedade no
de prevenção e manutenção da vida ao lado de pessoas que se percebiam Brasil. Existe um aproveitamento das estruturas da desigualdade e de opressão
como "sucata do mundo" (Pereira, 2001, 2004, 2008) e para as quais as social que coloca milhões de pessoas em situação de acenruada vulnerabili-
políticas de saúde não tinham efeito? Como escapar da antinomia que dade. Em Brasília, uma pessoa nessas condições é conduzida ao refUgio onde
coloca a vida a que se protege ao lado de vidas excluídas que circulavam desenvolvi minha pesquisa. O corte simbólico ensejado pelo advento da aids
em torno da morte? e a extrema pobreza conduziram quase duas centenas de pessoas a um pro-
cedimento de assepsia social que retira de si as partes impuras e indesejáveis,
tornando possível agrupar em uma instituição pessoas sem moradia, seres
que vagueavam pelos hospitais, pelos serviços de saúde, pelas prisões e demais
Rose (200:) ana!is.-l du.tsdimensôescruciaisda biopolítíu. atual ,1 molecularizaç<l.o biologícisra.dos fenómenos estabelecimentos carcerários.
humano: e a ccmralidade d.t ideia de víralidade.
De corpos e tr<wessias Pedro Paulo Gomes Pereira gc-
86

Essa centralidade de noções como contágio e imunização para o do contágio aparta, em diversas esferas, inclusive nos hospitais; e o aparta-
entendimento da epidemia de aids no Brasil é que me levou ao trabalho mento se constitui (sendo considerado como) aterrorizante. As diferenças
de Esposito ( 1998, 2002 e 2004 ), que vem refletindo sobre o "enigma da entre o que descrevi e as formulações do autor de Bíos são muitas, o ponto
biopolítica''.6 Segundo ele, vivemos momentos de superposição imediata principal residindo na maneira de perceber a biopolítica: enquanto Espo-
entre política e bíos, configurando um duplo movimento: politização da sito f.<la de um paradigma imunitário, ou seja, algo de pretensão universal,
vida e biologização da política - conformação que coloca a vida no cen- minha aspiração era unicamente registrar uma gramática que relacionava
tro do jogo político, mas que produz a tanaropolítica. Esposiro lembra, interrupção de trocas a uma linguagem de afetos. Além disso, tentava-se
inclusive, que foi o próprio Foucault quem fez esta pergunta: "Por que compreender o que surgia dessa tensão entre, por um lado, a ausência de
uma política da vida ameaça em traduzir-se em prática de morre?". Para Estado e, por outro, as ações médico-terapêuticas para portadores de aids.
tentar responder a esse enigma, Esposito formulou a ideia de "paradigma As teorias mapeadas 7 formulavam propostas que, quando solici-
imunitário": tendência a proteger a vida dos riscos implícitos nas rela- tadas a focalizar a realidade que eu tentava descrever, produziam certa
ções entre homens e mulheres, em detrimento da extinção dos vínculos dissonância. Essa situação gerou inquietações sobre as quais pretendo
me deter adiante, ainda que de forma breve e sem intenção de exaurir as
comunitários.
As circunstâncias invasivas de contágio exoram medidas de questões: 1) A primeira se refere à ideia de um biopoder que se exerce
imunização. Essa configuração forma um dispositivo fundamental da sobre os agentes, açodando-os e controlando-os em todas as esferas, ou
modernidade: há riscos que devem ser detectados para que se possam seja, a pressuposição de forma transcendente de poder atuando sobre seres
desenvolver medidas de proteção, com a imunização. Esposito sustenta demasiadamente normalizados e percebidos de forma homogênea. 2) A
que, se a imunização é comum para rodas as épocas e sociedades, somente segunda está relacionada às noções de modernidade que se depreendem
a modernidade a institui como estrutura, estabelecendo o paradigma dos autores anteriormente comentados, bem como com as possíveis for-
imunitário como central. O dispositivo imunitário atua na suposição de mas de ler aqui nos trópicos essa história de uma época em que a morte
enfrentar a existência do mal e acaba, nesse movimento, por reproduzir principia a não mais fustigar a vida.
o próprio mal que objetiva impedir. Para se defender preventivamente do
contágio, injeta-se uma porção do mal no corpo que se deseja salvaguar- Errâncias
dar. Na imunização social, a vida é cusrodiada numa forma que nega seu
sentido mais comum (Campbell, 2006; Castiel, 201 O). Como dizia, uma das inquietações refere-se ao desenho de quadros
O núcleo da proposta de Esposiro se aproxima da que registrei na biopolíticos que envolvem todas as relações e que tudo controlam. Esse
minha etnografia: o terror pensado como interrupção de trocas, a cen- tipo de visão acaba por impedir uma aproximação à complexidade da
tralidade do medo do contágio no dia a dia, o sentimento de impossibili- própria experiência vivenciada. Nesse caso, há uma homogeneização da
dade de relações, ensejado por certo tipo de assepsia social, o risco como variedade de pessoas, produto da representação de suas estratégias como
linguagem habitual (Pereira, 2004)- enfim, a utilização de termos como meramente exercícios de poder e controle, que ignora a complexidade e
terror, medo, pavor, receio como uma linguagem de afetos a dissertar sobre historicidade dos agentes. Pelo menos, foi o que aprendi com Eduardo, um
a impossibilidade de criar vínculos e sobre a ruptura das trocas. O medo
7 Até esta parte remei
me ímerpe!aram durante as invesrigações. Tal f-àto se jusdfica.
6 A revisra Dúlailiu dedicou um número especial <l Esposito (Y. 36. n. 2. 2006). com artigos que estabelecem
o tema, entre eles Lazzarato (2000), Fassin (2000, 2006a.
um panorama geral da obra do filósofo italiano, ainda pouco explorado no Brasil.

88 De corpos. r;: travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
89

de meus interlocutores. ~e ria falar um pouco dele, de como o localizei relento muitas vezes, mas como imaginar que sua doença e seu corpo
num refúgio para portadores de aids e de nosso inesperado encontro logo enfermo causassem tanto horror? "Eu sou aquilo que os rejeitados rejei-
depois de encerrado meu trabalho de campo. tam'; concluiu.
Eduardo contou-me sua história na condição de interno do refúgio A história do Eduardo - mais complexa do que poderei aqui des-
onde fiz meu trabalho de campo. Ele era um homem de 35 anos, bem crever- narra algo sobre exclusão e sobre relações íntimas entre contágio
franzino, de olhos claros, que havia circulado pelo Brasil, passando por e isolamento que possibilitaram que sua vida e suas práticas de trocas
diversas cidades até chegar a Brasília. Nasceu em Praia Grande, litoral (de corpos, fluidos) fossem transformadas em condição de apartamento
paulista. Foi criado nas ruas, numa situação insólita: fora raptado pelo e distância. Tentar compreender a biopolítica hoje passa por entender
pai quando tinha seis anos. A intenção do pai era utilizá-lo para pedir quais trajetos permitem um retiigio para portadores de aids como este
esmolas na rua: Eduardo era bonito e de olhos claros, características que que registrei em minha etnografia e o que possibilita uma história como
facilitavam essa atividade. Além disso, o pai o ensinou a fazer pequenos a de Eduardo. O que significa entender como um país que se destaca no
furtos. Por seis anos percorreu cidades e somente com doze anos voltou combate à aids (com políticas públicas, tecnologia, distribuição universal
a viver com a mãe em São Paulo. e gratuita de antirretrovirais, lutas espetaculares internacionais de quebra
Ela colocou Eduardo na escola e passou a exigir-lhe condutas de de patentes, entre outros) cria esses outros abjetos, que se veem como
higiene e a impor-lhe regras de comportamento. Ele não conseguiu se "sucata do mundo".
adaptar, voltando a viver nas ruas lá pelos 17 anos. Disse-me, certa vez, Essa não é toda história de Eduardo. Depois de um ano do térmi-
peremptório: "Aquela vida não era para mim!". A inadaptação provocava no de meu trabalho de campo, eu o encontrei na porta do HUB. Ele
fugas constantes, até quando decidiu não mais voltar. Eduardo descreve estava com pressa, mas ainda assim pedi-lhe que conversasse comigo.
uma vida itinerante: passando de cidade em cidade, vagueando pelas ruas, Teceu rápidas considerações sobre as pessoas que conheci e com as quais
"errando pelo mundão grande de meu Deus': E foi nesse caminhar que convivi durante minha pesquisa e deu informações sobre o andamento
se contaminou com HIV; contaminação por ele atribuída aos cabarés da instituição que o havia abrigado. Foi quando percebi que estávamos
de beira de estrada e ao uso de drogas injetáveis. Os contornos de sua andando, distanciando-nos do hospital, e já atravessando a rua, em direção
vida foram descritos naquela ocasião como "errância": como um vaguear às quadras da Asa Norte. Iniciava-se ali um itinerário inusitado, que eu
perene, envolto em excessos e erros. não pudera, por motivos diversos, realizar até então. Esse itinerário me
A enfermidade acabou por debilitá-lo. ~ando o encontrei pela possibilitou perceber dimensões inalcançáveis na pesquisa focalizada nas
primeira vez estava sem condições de andar e com metade de seu peso instituições (no refúgio ou nos hospitais), como a que realizei.
habitual, quadro agravado por diversas doenças oportunistas, inclusive Naquele dia, Eduardo andava pelas ruas com desenvoltura. Con-
pela tuberculose que contraíra à época. Foi como "sucata do mundo" seguia dinheiro para necessidades imediatas: pedia dinheiro na rua, nos
que se apresentou. "Eu sou um resto': disse-me várias vezes, sublinhando bares, na padaria, modificando para tal sua postura corporal. De imediato
aquilo que lhe parecia ser sua definição: "um resto humano': Nessa mesma adquiria um tom circunspecto, e voltava ao semblante tranquilo quando
conversa, insistiu em contar a história dramática de sua primeira noite falava comigo. Conhecia os donos de restaurantes e, com o passar do tem-
no refúgio que o acolhera: outros internos que moravam na residência po, "descolou" duas "quentinhas': que foram nosso almoço. Reconhecia a
a ele também destinada acabaram por colocá-lo para dormir ao relemo, gramática da cidade, andando com fluidez pelas "entrequadras" de Brasília
receosos de se contaminarem com tuberculose. Ele já havia dormido ao e inventando caminhos. Manejava um vocabulário de gírias com as quais
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 91
90

J,

desenvolvia comunicação tão rápida e específica que me perdia em suas Modernidades


modulações. E foi assim que passei o dia andando pela Asa Norte, de
certo modo cortando-a diagonalmente. As teorias sobre biopolítica aludidas neste capítulo parecem girar
~em observasse Eduardo naquela caminhada, naquele itinerário em torno da definição de modernidade. Como vimos, se Foucault ( 1985,
torto, poderia ver uma "vida nua", relegada à própria sorte. Mas ele, 2005 e 2008) pensa a modernidade vinculada à entrada da vida na his-
apesar da penúria, era mais. Eduardo havia achado um entre que minha tória, para Agamben (2004a e 2004b), a biopolítica não surgiria com a
etnografia, vale repetir, concentrada que foi em instituições, não pode modernidade, já que o Estado moderno apenas elucida e ressalta a ligação
acompanhar. Essa invenção de um entre precário possível o fazia escapar, entre poder e vida nua; a característica mais marcante da vida moderna é
escorregar, escorrer. Nesses itinerários, Eduardo não era apenas alvo de que o estado de exceção vem se tornando a regra. Esposito ( 1998, 2002
terapias medicamentosas, nem unicamente objeto de um poder médico e 2004), por sua vez, defende que é exatamente na modernidade que o
que tudo controla, nem era só a "sucata do mundo" depositada num paradigma imunitário se institui como estrutura. A discussão sobre bio-
refúgio para portadores de aids, nem somente uma vida desnuda a exibir poder e biopolítica é, por conseguinte, consubstanciai ao entendimento
sua precariedade e irrelevància numa paisagem social já por demais sa- do que seja modernidade. Mas, quem está incluído e quem está fora dessas
turada, tampouco simples produto da agência de um sistema imunitário concepções de modernidade? Essas teorias, com suas pressuposições de
que quer se precaver do contágio e da poluição dos seres abjetos. Sendo, modernidade, dissertariam sobre si enquanto universalizariam seus pró-
talvez, tudo isso, ele era mtlis. Um mais que o fez escapar naquele dia, prios pressupostos teóricos?
conformando minha última imagem dele: andando pelas ruas, errando ~ando relacionava modernidade à época em que a morte não mais
pelo seu intricado e imprevisível itinerário. "Aonde você vai Eduardo?", fustigaria a vida no Ocidente, Foucault estava ciente do caráter eurocên-
indaguei. "Vou para onde minhas pernas forem, errando por esse mundão trico de sua narrativa (Butler 2001 ). 8 No mesmo parágrafo em que afirma:
de meu Deus!", repetiu. E sorriu. "O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva
"A travessia é perigosa", dizia Guimarães Rosa, "mas é da vida': Ora, num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de
é a vida, parece nos ensinar Eduardo, que é travessia, incapaz que é de se vida, saúde individual e coletiva", Foucault ( 1985, p.134) também lembra
prender exclusivamente aos poderes que a conformam, às biopolíticas que que "fora do mundo ocidental, a fome existe numa escala maior do que
tudo querem alcançar. Eduardo perfàz uma travessia com seus perigos, nunca; e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores[ ... 9 r
incertezas, escapes, fugas, vacilações; com suas errâncias. Os termos por Pensando nessas conjunturas desiguais, podemos perguntar: e, no Brasil,
ele utilizados- e por muitos de meus interlocutores - são significativos: quais seriam as condições histórico-sociais quando da era do biopoder
perder-se, vagar, fugir, escapar e errar. Se a linguagem dos afetos foi empre- no Ocidente?
gada para descrever como portadores de aids se transformam em "sucata Sem condições de me deter em demasia nesse quadro histórico-
do mundo", como demonstrei na minha etnografia (Pereira, 2004), as -social, gostaria apenas de lembrar que, no que se refere à saúde, Roberto
expressões usadas para descrever esses momentos do entre, momentos de
errância, são as de deslocamento, de movimento. Levar a sério esse campo Biopoder e biopolírica esrào vinculados à ideia de governamemalidade. E, igualmente aqui, as de
semântico poderia nos fazer concluir que as subjetividades também se Foucau!t sobre o tema não se referem às fOrmas de governo fora do Ocidente. A P"overn::lmenr~li(bclt>
Europa moderna (Inda. 2005. p. !2). Ver rambém Pels (199~).
localizam naquilo que excede e escapa às normas e que, sob a atuação 9 vai questionar essa "construção da modernídade ocidental,
trás como possibilidade histórica como se f-Osse
de biopoderes sobre corpos e almas, algo sempre desloca, vaza e escapa. ~.-m., ..... ;..,..;,~_., ..,_,,.._.,'"'..-.A_._,,.. liberar da morte a modernidade"
,.
De: corpos e tr,lYes~ias Pedro Paulo Gomes Pereira 93
92

Machado et al. ( 1978) sustentou que a administração portuguesa não se É cerro que Foucault não era historiador - ainda quando seu
caracterizou pela organização do espaço social na busca em combater às material e sua forma de trabalhar eram históricos -, mas genealogista
causas das doenças, agindo mais de forma negativa. Na realidade, conclui (Rabinow, 2011 ). Apesar disso, a justaposição dessas histórias, desses
Machado, a saúde não formou parte do projeto colonial. Até a chegada quadros tão díspares, faz lembrar o artigo de Edward Said sobre Mans-
da Corte portuguesa ao Brasil, asseveram Escorei e Teixeira (2008), os jield Park, de Jane Austen. A narração da obra de Austen se situa entre
poucos médicos existentes atendiam as camadas mais altas da população os séculos XVIII e XIX. Said (1989 e 1993) afirma que a narradora em
das grandes cidades. Só a partir de 1808 foram criadas as primeiras ins- Mansjield Park explora o cotidiano de uma ordem social imaginada como
tâncias de saúde pública no país, incumbidas de habilitar e fiscalizar o perfeita, desenhando o panorama moral que a sustenta. O compromisso
registro daqueles que se dedicavam à arte da cura e vigiar os navios para com a verossimilhança na descrição da sociedade inglesa - com suas
impedir que chegassem novas doenças nas cidades costeiras (Gurgel, divisões de classe, casamentos por conveniência, pessoas fúteis e outras
2008). Já em meados do séc. XIX, diante de várias epidemias, houve ambiciosas e de pouco caráter - tàz emergir na narrativa, ainda que de
uma centralização do poder imperial, que empreendeu uma reforma nos forma tímida, a escravidão: enquanto os personagens discutem como
serviços de saúde; durante esse período, no entanto, a ação do Estado na transformar aquela mansão de província num lugar idílico, o senhor da
assistência médica se limitava à internação de doentes graves em lazaretos e casa precisou deslocar-se às pressas ao Caribe com o objetivo de sufocar
enfermarias improvisadas e à internação dos loucos no Hospício instituído uma rebelião de escravos em uma de suas plantações. A vida em lvfansjield
pelo Imperador. Os serviços médicos hospitalares estavam ao encargo de Park está sustentada pela escravidão. Said vai concluir que, mesmo como
entidades filantrópicas. Nas últimas décadas do sé c. XIX, praticamente a portador de valores pretensameme universais, o colonizador não pode
10
mesma organização vigente no final do Império foi mantida. retirar aquilo que é impuro ou horroroso de suas narrativas. As obras do
Porém, os dados mais assustadores são sobre as condições de vida dos império, sustenta Carvalho ( 1998), "nascem como monstruosas" por não
negros. Richard Miskolci (2012, p. 9) indica que, em 1872 ;'a expectativa conseguirem eliminar o rastro semi ótico do grupo dominado. Realizando
de vida no Brasil era de 27 anos, mas de apenas 18 para os escravos". Se um movimento analítico similar ao de Said, podemos colocar os corpos
um escravo, num grupo de quarenta, sobrevivesse a dez anos de trabalho, com probabilidade de vida no Ocidente justapostos aos corpos negros
perceberia que todos os demais haviam sido mortos, por doença, tortura nos trópicos. Mas até que ponto e de que maneira os primeiros corpos
ou suicídio. De uma forma geral, as propostas oficiais de atenção à saúde estariam relacionados aos corpos precários dos trópicos?
dos escravos foram poucas; menor ainda o número delas que acompa- Os estudos pós-coloniais vêm alertando que o quadro histórico-
nhadas de medidas que sequer eram cumpridas (Porto, 2006). Ângela -social desenhado no Ocidente é produto da Íntima relação estabelecida
Porto (2006) constatou a inexistência de uma preocupação com a prática com os Outros considerados não modernos. Essa relação de confronto
médica voltada para a força de trabalho escrava. Pensando nesse quadro, com seus Outros é, na realidade, constitutiva da modernidade ocidental
não havia como pensar, por essas paragens de cá, naquilo que Foucault (Mignolo, 2003). A vida pôde surgir na história ocidental porque o
aventou para o Ocidente em sua definição de biopoder: probabilidade Ocidente emergiu numa conformação determinada: a modernidade é
de vida e saúde. produto das possibilidades que se abrem pela "centralidade" da Europa
e pela alocação das outras culturas como sua "periferia" (Dussel, 1992,
2005). O empreendimento colonial é condição para formação da mo-
JO A~:nr::~nerísricas
dernidade ocidental, por conferir vantagens cumulativas que produzem
medicina e insüruiçóes médicas. ver Luz ( 1982 e l 986).
9-i 95 De corpos e travessias
Pedro Paulo Gomes Pereira

uma superioridade, fruto, em grande medida, da acumulação de riqueza e presente. Surgiriam daí "modernidades alternativas" que colocariam a
e conhecimentos ( ~ijano 2005). Assim, a entrada da vida na história relação entre tradição e modernidade em questão, e que levariam à percep-
no Ocidente dá-se sob, e tem como condição, a própria ação colonial. ção de aspectos que não são vistos como modernos, ou entendidos como
Lida aqui dos trópicos, a modernidade ocidental surgiria ela própria sob incompletamente modernos, como formações específicas de modernidade
o signo da colonização, num dramático quadro no qual a emergência (Giumbelli, 2006). Vistas aqui de baixo, as modernidades aparecem numa
da vida e a potência de produzir a vida no Ocidente nasceriam sob o pluralidade de manifestações, constituindo-se não como uma estrutura
manto da exploração. A saúde e a expectativa de vida no Ocidente não singular, mas como um conjunto de saberes, de práticas discursivas com
são apenas simultâneas aos corpos precários dos trópicos, mas deles vários modos de manifestação, apresentando-se sempre por meio de suas
variantes e versões (Velho, 1997, 1998 e 2010). Isto nos leva a concluir
dependentes.
A história de Foucault sobre o aparecimento da vida na história e que: a) uma configuração biopolítica, com suas pressuposições de mo-
as formulações que a ela se seguiram - como as de Agamben, Rabinow dernidade, longe de ser uma estrutura, conformação paradigmática ou
ou Esposito- não parecem abordar essas vinculações entre modernidade conceito dado de antemão, é um espaço aberto que necessita ser carro-
ocidental e práticas coloniais, perfazendo um silêncio sistemático sobre grafado; b) falar em biopolítica implica sempre indagar de onde se está
uma face fundamental da constituição da modernidade. Menos que in- falando, pois, se alguns vivem a modernidade sob o emblema do triunfo,
ventariar as escassas referências à questão colonial nesses autores, talvez outros vivem sob o signo da suspeita e da busca ( Chatterjee 2004).
seja mais produtivo perceber esse silêncio vinculado ao envolvimento
deles com seus contextos socioculturais; esse silêncio sendo atribuído Escapar
aos limites da própria imersão nos dilemas da modernidade ocidental.
A percepção desses autores intimamente vinculados aos seus quadros Essas inquietações - ou conjunto de perguntas e problemas - que
histórico-sociais faria com que a maneira de compreender as teorias apresentei neste capítulo não pretendem assinalar a inadequação dos
fosse alterada, pois nessa condição as teorias apareceriam como produtos conceitos de biopoder e de biopolítica. É certo que indaguei sobre alguns
locais, profundamente envolvidas em dilemas particulares. Os conceitos de seus prováveis limites: concepção de poder transcendente que oblitera
de biopoder e suas pressuposições de modernidade, em suas diversas a agência dos sujeitos; eurocemrismo e silenciamento sobre o contexto
versões, seriam, não obstante as pretensões universais, teorias ancoradas colonial; pressuposição de modernidade única, com pretensões w1iversais.
12
em histórias particulares, locais, provinciais. Mas há também formas de escapar dessas armadilhas.
É essa localidade que produz certa distância com formas alternativas A primeira forma está relacionada à possibilidade de pensar a vida
de perceber a própria modernidade - estas um "privilégio da periferia" além do biopoder. A história de Eduardo conta algo de modos de habitar
que permite postular, como vem sustentando Otávio Velho ( 1997), que o mundo, narrados por meio de metáforas poderosas de deslocamento,
a modernidade seria produzida simultânea e comemporaneamente em de errâncias. Diversos pesquisadores têm recorrido a Deleuze para in-
vários locais, numa multiplicidade de maneiras de relação entre passado dicar que, no lugar de uma focalização exclusiva em campos rígidos e
abstratos, talvez fosse melhor perceber a sociedade como algo que flui e
escapa, composta por "linhas de fuga': e que se volte para subjetividades
]]
que excedem, resistem e esquivam. Mas, mesmo Foucault, poderia ser
12
pensado nessa direção. Num texto no qual comenta a obra de Cangui-
96 De corpos c tr,wessias Pedro Paulo Gomes Pereira 97

lhem, Foucault ( 1994) faz a vida surgir como a<.Juilo que é capaz de erro. pensar as intricadas relações entre raça, sexualidade e diferença colonial. 13
Ele retira a vida do campo da consciência para encontrá-la no limite da O movimento de Stoler é o de romper e recuperar Foucault.
enfermidade e da anomalia, "com uma intensidade frente ao qual o cur- Na realidade, o desafio que essas formas nos colocam é romper com
so da existência banal empalidece" (Giorgi & Rodríguez, 2009, p. 33). um pensamento- forma transcendente de poder que tudo controla, e que
Contra os arranjos do biopoder sobre a vida, a noção da "vida como erro" se ancora numa visão de modernidade custodiada por universais abstratos
adquire um sentido afirmativo. E aqui recordo do itinerário que percorri produzidos pela modernidade ocidental -, mas, concomitantemente,
com Eduardo e seus deslocamentos, entre erro e errâncias. Errância está "recuperar" 14 sua potência. Assim, o problema não é que meus interlocu-
relacionada ao deslocamento e também ao erro. "Errar" significa andar tores não tenham algo de homo sacer, nem que as práticas hiperpreven-
a esmo, peregrinar, perambular e cometer erros. Errância é, segundo o tivas ( Castiel, 201 O) não lembrem o paradigma imunitário de Esposito,
Diciontirio Aurélio, qualidade, hábito ou condição de errante. Já errante ainda menos que não devamos estar atentos às estratégias de governo da
é aquele que erra, que vagueia; vagabundo; erradio; errabundo, nômade, vida ou às "formas emergentes de vida" (Fischer, 2003 ). O problema está
vagante. O campo semântico que envolve esses termos transita entre falta, em tomar essas teorias como meramente "aplicáveis" a outras realidades
erro, desvio e travessia. Na relação com o erro e com o desvio - que não que não aquelas que a produziram, descontextualizando-as de seu local
é individual ou coletivo; que é corpo, mas que o excede-, a virtualidade de enunciação. E a grande provocação é valer-se desses conceitos, mas
do vivente torna possível pensar modos alternativos de habitar o mundo. subvertendo-os, a partir das histórias partilhadas/ entrelaçadas originadas
A segunda forma versaria sobre como se relacionar abaixo da no contexto (pós) colonial- a diferença colonial como parte integrante
do Equador com essas teorias de biopolítica. Ann Laura Stoler ( 1995) da definição de biopolítica. Trata-se de romper com a hegemonia euro-
também assinalou o eurocentrismo de Foucault, que havia elaborado uma cêmrica e aproveitar dos conceitos ali formulados.
narrativa na qual o sexo anunciava o fim da era do reinado da morte com Biopolítica (e biopoder) surge como um vasto campo a ser etna-
a emergência do biopoder, mas que pouco abordava as questões colonial, grafado. Claro que não basta adicionar as histórias locais e mexer. 15 É
imperial e racial. Stoler alerta, apesar desse silêncio, para a potência da necessário que as experiências aqui de baixo afetem, no sentido forte do
análise de Foucault. Perfazendo um movimento semelhante ao que tentei termo, o próprio quadro conceitual, e que, assim, ele possa se modificar,
realizar aqui, ela indaga se as configurações raciais e sexuais do império se transformar. O desafio reside em verificar como essas teorias com sua
em lugar de perifericas seriam dele constitutivas e, respondendo afirma- potência e seus limites, que vêm sendo por nós manuseadas, possam ser
tivamente, conclui que raça e sexualidade compartilham sua emergência renovadas, reconfiguradas, recriadas das margens e, para utilizar uma
com a ordem burguesa no início do século XIX. Stoler então se pergunta expressão que nos é cara, devoradas, aqui, no calor dos trópicos.
se Foucault poderia ter escrito, no contexto da Europa da década de 1970,
uma história do racismo num ambiente político na qual a identidade
racial não tinha força política, nem espaço estratégico para raça (p. 23).
*
O movimento de Stoler é o de provincializar a Europa, ao colocar as
formulações (e limites) de Foucault em seu contexto histórico-social;
e, desse lugar, agora provincializado, o autor de Vigiar e punir ajudaria a 13 Sobre a proposta de provincializar a Europa, ver Chakrabarry (2000).
l 4 Utilizo os t:ermos "romper .. e "recuperar" pensando na análise de Otávio Vi:
15 Valho-me aqui da forma como Odvio Velho (2010) usou a asseniva de Henrierra ?vfoore (1988) segundo a
qual nào era suhcieme "acrescentar-a-mulher-e-mexer': ou seja, aplicar uma "teoria existente para rt:solver o
problem,l de integrar a perspectiva feminina à anrropologia··· (Velho. 201 O, p. 22).
4 - A grande divisão e o campo da saúde

Neste capítulo procuro refletir sobre a singularidade de atuação de


cientistas sociais no campo da saúde 1 e discutir os problemas enfrentados
num ambiente de hegemonia biomédica e numa região de fronteira, em
que saberes diversos se cruzam e se entretecem. Para discorrer sobre esse
tema, optei por uma abordagem que, além de debater os problemas, as
divergências e as dissonâncias, buscasse também direcionar os esforços em
compreender aquilo que possibilita a comunicação e as traduções, abor-
dando as convenções da área. Meu desejo é problematizar as convenções e
verificar as dissonâncias nos processos de tradução. Não quero, com isso,
oferecer saídas aos problemas ou assinalar pontes para traduções, mas
destacar as aventuras e os perigos da travessia dessa região de fronteira.
Para isso, assinalo, a seguir, aspectos da imersão dos cientistas sociais na
grande divisão natureza-cultura.

"A grande divisão

Os cientistas sociais que pesquisam as diversas dimensões dos fenô-


menos de saúde e doença e atuam no campo da saúde pública/coletiva
salientam as dificuldades de trabalhar num universo cuja hegemonia é
biomédica; enfàtizam, ainda, como são árduas as negociações e mediações

1 Utilizo o rermo "campo'' de forma livre, sem relaçâo imedíat:a com o conceü:o de Píerre Bourdieu.
102 De corpos e tr,1vcssia.s Pedro Paulo Gomes Pereira 103

numa zona de fronteira. Os problemas enfrentados são muitos: inter- próprias ciências sociais, que pode ser acompanhada em imitações das
secção nem sempre razoável de metodologias, concepções de ética em ciências naturais, numa busca de objetividade para garantir a cientificidade
confronto, além de questões de representação (nem sempre equânimes) dos empreendimentos analíticos. Isso porque a grande divisão natureza-
em fóruns e instâncias da área. A litania é extensa, os rumores são cada -cultura é consubstanciai ao jogo epistemológico "objetivista", no qual
vez maiores, e um dos desafios parece ser o de elaborar traduções que conhecer é, simultaneamente, objetivar (distinguir o que é intrínseco
P ossibilitem a comunicacão
'
sem tornar medíocre a conversacão.
'
ao objeto daquilo que pertence ao sujeito e dessubjetivar) e especificar a
Um dos caminhos para refletir sobre o assunto é o de examinar o parte do sujeito presente no objeto. O que não pertence à esfera da obje-
que permite a comunicação e as bases que possibilitam as traduções; ou tividade é irreal (ver Cap. 2). Ames de concluir pelo caráter paradoxal de
seja, o de focalizar os acordos estabelecidos, para que a indagação recaia, essa importação de ideais de objetividade se sobrepor às severas críticas
assim, sobre as convenções em torno das quais giram cientistas sociais e à biomedicina, podemos perceber essa justaposição como um índice de
biomédicos. Tal procedimento analítico deve-se a uma suspeita de que imersão das ciências sociais no jogo epistemológico objetivista.
este capítulo vai explorar: talvez as ciências sociais e a biomedicina tenham Nesse acirrado jogo e suas intermináveis disputas, terminamos - e
mais em comum do que estamos (os cientistas sociais) dispostos a admitir. escrevo aqui como cientista social, mais especificamente como antropó-
Não obstante as diferenças enunciadas de parte a parte, bem como os logo- caindo numa trampa. Estamos em lados opostos: ora assinalamos
dilemas de tradução e os sérios problemas daí advindos, muitas vezes os as diferenças, ora desejamos padrões estabelecidos pela biomedicina, mas
cientistas sociais e os biomédicos acabam por compactuar uma grande em todos os casos acreditamos nas regras do jogo. Participamos, então,
divisão como regra básica do jogo, que poderia ser resumida da seguinte do mesmo universo imaginativo, da mesma cosmopolítica (Stengers,
forma: de um lado, está a natureza; do outro, a cultura. Os cientistas 1996), da mesma imaginação conceitual. Somos lados opostos de uma
sociais cuidam dos fenômenos relacionados à cultura ou à sociedade; os única maneira de pensar. As ciências sociais seriam os "primos pobres"
biomédicos, dos referentes à natureza. Somos diferentes; mas, em certo de um jogo que, de antemão, se aceita jogar e se valida com as mesmas
sentido, somos iguais, pois acreditamos nas mesmas convenções, as quais críticas que acreditamos ser aquelas capazes de mudar o quadro. Estamos
se instituem como regras do jogo que aceitamos jogar. imbricados numa grande divisão natureza-cultura que nos leva, como vêm
As dificuldades surgiriam porque o conhecimento da natureza é con- assinalando amores como Latour (1997, 2000, 2001, 2004b) e Latour
siderado mais objetivo, mais verdadeiro, mais Útil e mais eficaz. A natureza & Woolgar (1997), à conclusão de uma natureza universal entendida e
seria mais real que a cultura - a natureza é objetiva, a "cultura" ou a "socie- dominada por meio da ciência, servindo como justificativa para equiparar
dade': não-, razão da maior legitimidade e hegemonia da biomedicina. Os o pensamento moderno, a ciência, a biomedicina e a verdade universaL
cientistas sociais, que se voltam para o estudo da cultura e da sociedade, são I Ao compartilhar as convenções que instituem a própria biomedi-
mais subjetivos, menos eficazes, menos próximos da realidade e não têm a cina como ciência, aceitamos também a partilha estabelecida e os limites
mesma legitimidade. As críticas dos cientistas sociais, frequentemente, se impostos: não podemos dar explicações sobre a ciência e a objetividade
dirigem aos efeitos dessa grande divisão natureza-cultura, concentrando-se dos fàtos; os fàtos da biomedicina são reais, objetivos, duros, técnicos,
em demonstrar a preponderância do saber biomédico e a arrogância de um eternos, o que os distanciam dos interesses humanos e sociais. Essa ma-
determinado tipo de conhecimento que se arvora como universaL terialidade e essa objetividade escapam dos limites da sociedade e fogem
A hegemonia da biomedicina vem propiciando a importação de da capacidade de compreensão dos cientistas sociais. Essa partilha pode
ideais de objetividade e de padrões de conhecimento para dentro das ser acompanhada em diversas dissertações e teses produzidas na área de
lO~ De corpos c uavessias Pedro Paulo Gomes Pereira lOS

saúde pública/ coletiva que inventariam (no sentido de arrolar, descrever -voltadas à compreensão de saúde, doença e corpo- acabam se tornando
minuciosamente), por exemplo, as dimensões sociais da tuberculose ou da subsidiárias à mesma biomedicina que criticam. Vejamos um exemplo.
aids numa determinada região ou a adesão a terapias, sempre questionando O trabalho de Kleinman e colaboradores, de 1978, propõe a me-
"comportamentos': "determinantes sociais", "padrões culturais"," represen- diação negociada das diferenças cognitivas e dos valores entre médicos
tações sociais". Esses trabalhos (quase) nunca se detêm em perguntar o que e pacientes. A mediação entre as diferenças cognitivas e as de orientação
é a tuberculose ou a aids para os próprios interlocutores. Uma pergunta valorativa deve ser buscada insistentemente. A tarefa consiste em negociar
irrelevante, pois é considerada óbvia e já dada pela biomedicina. Amiúde com o paciente uma aliança terapêutica. Por exemplo, conforme Klein-
se discorre sobre o aspecto físico-biológico da enfermidade, sua sinto mato- man, se um paciente aceita usar antibióticos, mas acredita que acender
logia, em réplicas imperfeitas do discurso biomédico. Aqui, tudo se pode incensos, usar amuletos ou consultar adivinhos seja também necessário,
questionar, debater ou criticar (críticas especialmente direcionadas aos deve-se entender essa "crença': sem necessidade de mudá-la. Mas, se o
interlocutores que "teimam" em não acatar as ordens médicas), a não ser a paciente classifica a penicilina como remédio "quente", inapropriado
acepção da própria enfermidade, antecipadamente definida, caracterizada para doenças quentes e esteja pouco disposto a utilizá-la, convém ne-
e conceituada pela biomedicina, que não é objeto de análise. Ou seja, gociar modos de "neutralizar" a penicilina ou tentar persuadi-lo de sua
gira-se em volta do que "acontece antes, em torno e depois de um fato convicção imprecisa.
medicamente definido" ( Carrara, 1994, p. 41; Herzlich & Augé, 1994; A supremacia da medicina e do pensamento racional coloca em
Minayo, 1998), de forma que se interrompem as indagações justamente xeque o caráter da mediação negociada. Com certa ironia, Taussig ( 1992,
onde elas poderiam ter se iniciado. p. 107) considera estranha uma aliança em que uma parte avalia um modo
As doenças são físico-biológicas, e cada sociedade, cada cultura, particular de compreensão com o propósito de manipulá-lo adequada-
elabora leituras socioculturais do dado biológico. Essa frase, tantas vezes mente. O movimento de compreender as dimensões sociais da doença,
repetida por cientistas sociais que trabalham no campo da saúde pública/ para possibilitar uma intervenção- com ideais humanistas, pragmáticos
coletiva, é considerada quase um mote em nossa lida diária, pois revela e objetivando "melhorar as condições de vida dos envolvidos"-, sustenta
muito de nossa imersão imaginativa no universo da grande divisão. In- o poder médico. A negociação é, na verdade, outra forma de instituir (e
seja a distinção natureza (biológica) e suas leituras (sociais ou culturais), reinstituir) o poder da biomedicina. 2 O papel do antropólogo, nesse
assim como as divisões consubstanciais entre fàtos e valores, mundo e caso, resume-se a inventariar as "crenças" para que se possibilite uma
representações. A "materialidade da doença", a "objetividade dos cor- intervenção eficaz. Por trás da "eficácia", das terapêuticas e dos ideais
pos" e a "definição das enfermidades" ficariam sob a responsabilidade da humanistas, há uma ciência intocável, real, inquestionável e uma grande
biomedicina. Essa partilha coloca as ciências sociais como dependentes • divisão compartilhada.
e subservientes de um saber que não se pode interrogar, cabendo apenas A grande divisão natureza- cultura é, nesse sentido, perniciosa, pois
buscar as dimensões sociais ou culturais de algo previamente definido. já sabemos de antemão o que é doença e saúde na concepção de nossos
Muitas vezes essa busca de dimensões sociais ou de formas culturais interlocutores. O que precisamos, vale insistir, é catalogar as "diferenças
específicas reveste-se de um caráter pragmático: saber como determinada culturais" e as diferentes "leituras sociais': sempre as cotejando com as
"população" pensa sobre tal doença facilitaria a adesão a tais terapêuticas definições biomédicas. Essa partilha produz uma relação assimétrica com
e aumentaria a eficácia de tais tratamentos. Nessa situação, habitual para
quem trabalha na área, envolta numa áurea humanista, as ciências sociais
No capítulo 7. buscarei problem,uízar a concepçáo de Taussig sobre a biomedicina.
106 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 107

as "outras culturas": eles têm cultura; nós, a ciência; eles têm crenças, Mas, antes dele, já em 1927, Mareei Mauss (1981, p. 50-51) apontava
nós podemos avaliar essas crenças, o que justifica o tom paternalista de para as especificidades da técnica, por meio das quais a divisão nature-
muitas análises. Afinal, cabe aqui lembrar as críticas de Viveiros de Castro za-cultura seria abalada. E, como se sabe, foi Mauss ( 1973) a apontar
(2002b), segundo as quais o que constitui nossos interlocutores (nossos o corpo como o primeiro e o mais natural instrumento do homem - o
nativos, nossos "objetos de pesquisa") é a pressuposição, por parte dopes- primeiro e mais natural objeto técnico. Na década de 1970, Gregory
quisador, de que a relação deles com sua cultura é natural, isto é, intrínseca, Bateson ( 1972), também se voltando às técnicas, perguntou se a bengala
espontânea, não reflexiva, inconsciente. Eles exprimiriam diretamente sua de um homem cego seria ou não parte dele. A resposta foi positiva: a
cultura em seu discurso. É assim que a divisão natureza-cultura produz bengala de um cego não lhe\ exterior, faz parte dele e compõe sua inte-
o divisor nós x eles, precisamente ao estabelecer a ciência como verdade rioridade, já que participa de sua percepção e de seu agir no mundo. Um
universal. A ciência, como uma metanarrativa para o mundo, possibilita o sistema é constituído a partir das trocas informacionais com o mundo e
enquadramento dos "outros" como alteridades totais e substancializadas.-' cada objeto que participe dessas trocas faz parte do sistema. O cego e a
Estou, evidentemente, exagerando o grau de compactuação com bengala constituem um sistema integrado. Por conseguinte, os demais
a grande divisão, já que nossas etnografias e pesquisas fazem emergir, a objetos técnicos também participam do modo como pensamos e agimos
despeito de nosso enquadramento conceitual, novas formas de perceber sobre o mundo e sobre nós mesmos. A tecnologia integra as histórias
e imaginar o mundo: novas regras, novas convenções. Basta acompanhar não como projeção, no mundo externo, de forças, funções, qualidades
as em o grafias e textos que versam sobre o que Viveiros de Castro e Tânia e atributos intrinsecamente dados no sujeito, mas como mediador que
Sztolze Lima denominaram "perspectivismo ameríndio" (Viveiros de participa da constituição da interioridade e de suas relações com a exte-
Castro, 2002a), para percebermos a riqueza e a singularidade de formas de rioridade. Assim, tanto Mauss como Bateson foram fundamentais para
conceber a natureza que escapam do esquema da grande divisão (tal como as atuais críticas aos grandes divisores, como as de Latour ou, ainda, de
definida por Latour). Em relação aos pesquisadores mais vinculados à área Tim Ingold (2000 e 2011), cujo objetivo é superar o dualismo mente
da saúde, é suficiente lembrar de um par de nomes para termos uma ide ia e corpo defendendo que há um contínuo entre a cultura e a natureza.
de uma contribuição rica e diversificada, que por sua argúcia etnográfica Se Mauss e Bateson indicavam a centralidade de tais questões para
faz emergir novas formas de perceber o mundo, novas imaginações con- as Ciências Sociais, a maior sensibilidade ou abertura a esses ensinamentos
ceituais. Além disso, diversos pesquisadores vêm se debatendo em torno não significa, no entanto, isenção de mal-entendidos. Afirmar que o mundo
de híbridos, qborgs e pensando em zonas de fi·onteira onde a divisão entre moderno vê-se invadido por todos esses movimentos e alegar a crise de sua
natureza e cultura não faz sentido. O que fazer, indaga Latour ( 1997), ontologia naturalista não significa atestar a morte dessa ontologia que con-
com coisas que são tão reais como a natureza, narradas como discurso tinua a operar em vários domínios (Sztutman, 2008). Há imensa dificuldade
e coletivas como a sociedade? O que fazer nas zonas de indefinição de de nos livrarmos da ideia de natureza como algo inato e, portanto, como algo
humanos e não humanos? Essas situações têm proporcionado vitalidade n-rerior à ação htmuna. Essa é un1a das constatações de Roy \Vagner ( 1977)
à imaginação antropológica. em sua comparação dos ideais da ciência com o pensamento dos povos da
Latour vem mostrando que os fatos internos à própria ciência Nova Guiné. Tim Ingold ( 2000 ), por sua vez, vem alertando que os antropó-
contribuem para a crítica da separação moderna entre natureza e cultura. logos podem até concordar que a divisão entre natureza e cultura é produto de
determinada un1a construção cultural, mas não estão prontos para perceber
3 Goldman & Lima ( 1999. p. 83-92) apresentam com maís detJ.Ihe os mecanismos de produçáo de grandes suas próprias concepções imersas nessa mesma fundação ontológica.
divisores.
108 De corpos c travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 109

Seja lá como for, não há como desprezar a magnitude do envolvi- O corpo e sua materialidade são pojormtidos (Mol, 2002 ), pois admitir o
mento dos cientistas sociais na grande divisão, principalmente em áreas caráter inegável do sexo e sua materialidade é sempre admitir certa versão
tão sensíveis a ela, como as de saúde, doença, corpo. Essa polêmica é do corpo sexuado e cerra materialidade. Buder se esforça em analisar a ma-
evidente nas discussões sobre corpo, sexo e gênero. Os debates sobre o terialização do corpo, recusando-se a fixá-lo como primário e antecedente
tema vêm demonstrando os esforços para contornar os dilemas ensejados ao discurso; ressalta que o acesso ao corpo só se dá por meio do discurso.
pelos grandes divisores, bem como a recalcitrância de uma linguagem que Enunciar o corpo comi anterior ao discurso é também posicioná-lo e
parece não atuar além de determinada imaginação conceitual. É dessa significá-lo como anterior; o corpo, no entanto, não se reduz a discurso.
discussão que procuro me aproximar na seção seguinte. O corpo excede e atua sobre as normas que o constroem e o posicionam.
O raciocínio de Buder é interessante por contornar os dilemas
Corpo, sexo e gênero do "construtivismo social": ela mostra como o idealismo reduz toda a
matéria ao signo e como os materialistas separam a matéria dos signos.
A categoria "gênero" surgiu nas discussões sobre a mulher, e so- Os primeiros ignoram que a matéria não pode ser criada pelo discurso;
bre mulheres, como sujeito histórico, sempre na busca de interrogar a os segundos, que a matéria é só materializada pelo discurso. Ambos não
universalidade atribuída ao homem. Essa categoria foi pensada como compreendem que os signos são matéria. 5 Butler tenta se distanciar do
constituída por relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre construtivismo de pelo menos duas formas.
os sexos, e que se instituíam no interior de relações de poder. Gênero era, Primeiro, na sua argumentação sobre os efeitos contingentes. As tra-
enfim, a organização social da diferença sexual. A diferença sexo-gênero (a mas de poder que configuram os sujeitos produzem efeitos contingentes
relação de gênero e as diferenças percebidas entre os sexos) pressupunha que essas mesmas tramas de poder não podem controlar, nem limitar. A
a antecedência do sexo. Tal pressuposição acabava por colocar o sexo contingência do poder possibilita a emergência de práticas e posições de
como elemento pré-discursivo, como não tardou em assinalar certa crítica sujeito que não estavam previstas naquela ordem de discurso da qual havia
feminista que, ancorada em análises de autores como Michel Foucault e surgido. A partir desse potencial subversivo que se abre na contingência,
Thomas Laqueur, passou a refletir sobre o caráter histórico do sexo. Esse a agência aparece como espaço possível de negociação e questiona o de-
movimento permitiu afirmar que o sexo é resultado discursivo, e que o terminismo implícito na ideia de construção (Sabsay, 2012).
gênero constituía o sexo. Gênero não está para cultura, assim como sexo Segundo, na sua ideia de "exterior constitutivo". As tramas de poder
está para natureza. ~estio na-se, assim, a constituição pré-discursiva do e de significação nas quais os sujeitos se constituem produzem zonas de
sexo. A diferença sexo-gênero deveria ser criticada, tratando-se de redar- exclusão que ficam fora do significável. É só por meio da produção de
guir concepções que estabeleçam ideias de identidade estável de gênero. um exterior constitutivo ao inteligível, ao significável, que se produz a
Gênero, na definição de Butler ( 1990, 1998, 2004), seria perfor- totalidade social, que cobra sentido em oposição àquele abjeto e desenha
mtlnce, e a performatividade do gênero, um efeito do discurso. " O sexo
Numa emrevisra, Buder reage i afirmação de que ela estaria envolta nos dilemas do "construrivismo radica!":
consistiria num efeito do gênero. As regras discursivas da heterossexu- ''[ ... ]acho que pode ser um erro argumemar que Bodies that nMtteré um trabalho consrrmiv
considerar a ma[erialidade em rermos consuurivistas. Seria
alidade normativa produzem performmtces de gênero que são reiteradas
e citadas. A própria sexualização dos corpos deriva de tais perfornumces.

"'-'-''"!-'"'""<''" os intricados caminhos de Butler emre os conceiws de performance, ped-Ormativo e Latour. Tim Ingold (2000 e 2011 ). por caminhos
ver Joana Pl.1za Pinto (200/ e 2013). amropólo.gos mais imeressames para pensarmos a divisão natureza e cultura.
110 De corpo,., e uavessias Pedro Paulo Gomes Pereira
111

o limite da humanidade. Esse exterior não é externo ao poder, mas uma tudo circula de forma previsível e constante, a apropriação pelos corpos
dobra do poder - algo que subverte e excede a ordem estabelecida. De não é uniforme, existindo deslocamentos dos órgãos nos corpos e a rein-
forma que as possibilidades às que se abre este exterior abjeto não podem venção constante dos corpos.
ser previstas. O construtivismo não pode dar conta deste exterior desde o O corpo está longe de ser o efeito de um sistema fechado de poder
qual se pode transformar o social, já que a ide ia de construção não admite ou de ideias que atuarA na matéria passiva; ao contrário, pode-se defini-lo
nada a ela exterior (Sabsay, 20 12). como o nome de um dispositivo sexo-político (a medicina, a pornogra-
Entretanto, é a própria Buder (2004, p. 198) quem confessa: ""lo das fia, os vibradores) que é reapropriado pelas minorias sexuais, pelos seres
as vezes que tento escrever sobre corpo, a escrita termina por ser sobre "abjetos" e "anormais". O corpo não é um dado passivo de um biopoder,
linguagem': Essa confissão indica as dificuldades da empreitada e estimula mas a potência que torna possível a incorporação prostética dos gêneros
novas abordagens. É nesse lapso que surgem buscas por algo mais do que (Preciado, 2002 e 2005).
uma teoria de performatividade que se sustenta num modelo de linguagem As relações entre gênero, sexo e corpo são muito mais ricas e com-
fundamentada em aros de fala, na procura insistente de uma materialidade plexas do que pude expressar nesta sumarização das discussões existentes
dos corpos. Esse movimento que ocorreu dentro das próprias discussões sobre o tema. Contudo, parece-me claro que o debate gira em torno do
de gênero permitiu uma maior aproximação às técnicas que constroem os grande divisor natureza-cultura, proporcionando embates e saídas interes-
corpos (Mauss, 1973) e à necessidade de hisroricizar as categorias de sexo, santes desse universo imaginativo. O desejo de escapar do mote resistente
carne, corpo, biologia e natureza, tal como conclamava Haraway ( 1991 ). das ciências sociais e das humanidades, segundo o qual devemos ter acesso
O sexo - os denominados órgãos sexuais, as práticas sexuais e os às leituras sociais (o gênero) de dados objetivos (o corpo), levou a um tipo
códigos de masculinidade e feminilidade - é elemento fundamental dos de leitura que não aceita o jogo da grande divisão, buscando historicizar
cálculos do poder. O sexo e as tecnologias de normatização das iden- corpo, sexo e alcançar as formas por meio das quais os corpos se tornam
tidades sexuais são agentes de controle da vida. A heterossexualidade, matéria. Esse percurso possibilita-nos, por caminhos diferentes daqueles
concebida como regime político de administração dos corpos e gestão trilhados por Latour, concluir que a operação que divide o material de
da vida, conforma-se numa tecnologia destinada a produzir normalidade que o mundo é feito (partículas, genes, neurônios, hormônios) de suas
dos corpos héteros. O corpo, porém, é múltiplo e plástico, possuindo representações é fundamentalmente política - cosmopolítica.
uma pluralidade de expressões que não podem se reduzir ao masculino e Parece simples, depois dessa trajetória, falar contra a grande divisão
feminino. A categoria "gênero", nessa crítica de inspiração queer (Pereira, e contra os grandes divisores. 6 Mas é comum, mesmo para autores expe-
2008), foi inventada para restringir essa multiplicidade à masculinidade rimentados, depois de percorrer a extensa e rica discussão sobre técnicas
e à feminilidade. corporais e corporalidade, acabar com a frase: "não [se] está negando a
Há um vínculo entre a produção de identidades e a fabricação de existência do corpo também como dado biológico". Tim Ingold vem em-
certos órgãos como sexuais e reprodutores. O sexo se converte num objeto baralhando concepções como a subjacente a essa assertiva ao reconectar
central da política e da governabilidade. Essa conversão implica a necessi- biologia e cultura de forma produtiva, assinalando que, de uma perspectiva
dade de regular, controlar e normalizar os corpos, definir a normalidade bem delimitada, as diferenças culturais são biológicas (Ingold, 2000).
e estabelecer o que se elucidaria como anormal. Esse controle depende
de uma produção tecnológica - fluxos de silicone, hormônios, técnicas 6
cirúrgicas, além de um transbordamento de representações. Como nem
ser contra e realizar um trabalho a favor".
De corpos c travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 113
112

Mas, a persistência desse tipo de enunciação pode ser explicada pela resis- sos conteúdos, sem que estes últimos alterassem o conceito. A sociedade
tência de uma linguagem que não parece dotada de um vocabulário que seria, ao mesmo t<'tnpo, sua manifestação transcendental (Sociedade) e
permita exprimir - sem assinalar o caráter paradoxal da enunciação - o sua encarnação empírica (sociedade). 7 Ademais, como observa Latour,
signo como matéria. Os problemas e recidivas nesse caminho se devem o adjetivo social reitera a grande divisão, unifica sujeitos, separando-os
muito provavelmente à persistência de uma imaginação dependente e dos objetos, e assume sempre o papel de explicar os elementos subjetivos
vinculada ao universo da grande divisão, e a uma linguagem que não subservientes ao mundo objetivo. 8
possui um léxico para escapar da grande divisão. Na próxima seção, vou Uma das expressões utilizadas na área, para voltar à discussão da
me dedicar aos problemas na sintaxe dessa linguagem que falha. seção anterior, é o "corpo como suporte simbólico". O campo semântico
para o vocábulo "suporte" remete às seguintes acepções: àquilo que su-
porta ou sustenta alguma coisa; àquilo em que algo se firma ou se assenta;
Problemas na sintaxe
ao material que serve de base; ao material capaz de receber e conservar a
Os pesquisadores que atuam na área de saúde e adoecimento repeti- inscrição de um texto. O corpo aparece aqui como algo que "suporta" o
damente se deparam com expressões como "dimensões sociais da doença", simbólico, ou seja, como anterior ao signo. Existe, pois, uma postulação
"determinantes sociais ou culturais da doença". Tais assertivas, além de do corpo como algo que suporta, onde se assentam (a base de, o material
assinalar a distinção comum à área - o grande divisor natureza-cultura, de) seus significados. Essa enunciação produz o corpo - esse mesmo
que Didier Fassin (2008) chega a qualificar como o "fundador da saúde corpo que se afirma ser precedente ao signo. Aqui, a sintaxe expressa uma
disputa entre o desejo de escapar daquela divisão corpo (natureza) e suas
pública" como campo de pensamento e ação-, indicam que operamos
uma linguagem arredia na qual algo sempre nos escapa. Primeiro, porque leituras sociais, já que se busca o simbólico, e uma linguagem arredia a
essas frases exprimem uma distinção entre "algo" que se denomina doença esse desejo, pois parece não possuir um léxico que consiga se distanciar
e "algo" que seria o social; esse social consistiria numa dimensão (às vezes da divisão natureza-cultura sem paradoxalismos.
Algumas indagações podem ser elaboradas, depois dessas rápidas
determinante) daquilo que se intitula doença. Um dos problemas está
pinceladas sobre os problemas de nosso vocabulário e de uma sintaxe que
no lapso, na distinção, que sempre evoca a partilha da doença (natural) e
se debate com convenções tributárias ao grande divisor. Continuaremos
do social. Ademais, como nos lembra Latour (2007), não é evidente que
existam relações específicas para serem denominadas sociais. O social não a repetir esse vocabulário? Permaneceremos utilizando o velho mote de
pode ser considerado como um tipo de material ou domínio -afirmação determinações sociais da doença (natural)? E como pensar os fenômenos
que conduz ao questionamento do projeto de uma "explicação social" de de saúde e adoecimento sem usar termos caros para a área como "socie-
algum "estado de coisas". Em vez disso, Latour propõe rastrear conexões, dade"? Conceitos como "sociedade" e "cultura" estariam por demais
seguir redes emaranhadas de articulações, com o intuito de evitar a dis- carregados para serem inocentemente utilizados? O que fàzer quando o
tinção expressa nas frases habituais no campo de saúde públicaí coletiva. elemento fundador da saúde pública (o grande divisor natureza-culturaí
Somos conclamados a falar sobre as "dimensões sociais da doen- sociedade) não nos serve mais? Continuaremos a repetir nas salas de aula
ça" e nos tornamos "especialistas em sociedade", aqueles que poderiam
7 É pensando nesses limites da noçáo de sociedade que Strarhern (2006) irá
"detectar" as "determinações sociais': Um dos problemas do conceito Para acompanhar a discussáo, ver Srrarhern (1992a, 1992b, l 992c, 1999,
"sociedade" é o de utilização unilateral: uma vez definido como forma inusitado e.
como pode ser observado num glossári; que o autor acre;ce~ra ao final de Polítims
universal de organização humana, o termo "Sociedade" englobaria diver- 2004. p. 369-386).
14 De corpos e rravessias Pedro Paulo Gomes Pereira 115

que o que define a antropologia é "trabalhar com o problema da relação mas de expor nossos conceitos aos conceitos dos outros, possibilitando
entre a unidade biológica do homem e sua diversidade sociocultural?" que eles sejam af6tados. A questão é não apenas assinalar os problemas
(Viveiros de Castro & Goldman, 2008, p. 212). Evidentemente, este dos jogos que costumamos jogar, mas indagar sobre as regras que cons-
capítulo não pode responder a todas essas perguntas, até porque figuras tituem o próprio jogo; refletir sobre as convenções compartilhadas que
como Latour, lngold, Strathern, Viveiros de Castro já vêm empreendendo conformam nossas cosmo políticas; perquirir sobre o que possibilita tais
sérias tentativas de elaboração de um léxico e método que permitam dar regras e convenções e o que implica aceitá-las; investigar os problemas
conta desses desafios. Antes de tudo, como se salienta logo no início deste de uma linguagem que falha ao buscar escapar das convenções. ~içá,
capítulo, o que se intenta é assinalar os perigos da travessia. assim, imaginemos outras formas de jogar.
Essas aventuras e desafios são grandes, e nossos itinerários são cada
Grande divisão: travessias vez mais desafiadores. Apesar de neste capítulo ter buscado contribuir
com algumas ideias e muitas dúvidas e receios, os perigos da travessia
A partilha colocou a biomedicina como "fora do jogo", porquanto justapõem-se à possibilidade de pensarmos alternativas criativas e ino-
dada objetivamente, convencionada como objetiva e produtora de ver- vadoras. Digo travessia porque "travessia [é] perigosa, mas é da vida'; e
dades. Uma das tarefàs mais interessantes na área de saúde seria, então, o real não está na saída nem na chegada, "ele se dispõe para a geme é no
emografàr a biomedicina, direcionar as investigações para as convenções meio da travessia", como nos ensinou o grande mestre Guimarães Rosa.
que a instituem como discurso de verdades, indagando sobre as políti-
cas de elaboração dos "fatos científicos", como vem salientando Latour.
Podemos pensar a biomedicina como ações e movimentos performados
(enllcted), no sentido conferido por Moi (1999 e 2002) e, quem sabe, se
nos dedicarmos a verificar o processo de construção científica talvez pos-
samos nos lembrar de que a biomedicina, bem como o conceito médico
de doença, mal completa dois séculos de história. As tarefas podem tanto
assinalar outras formas de concepção de saúde e doença quanto interrogar
o próprio fàzer biomédico.
Não há nada de novo aqui. Mas o objetivo não é só inserir a biome-
dicina no campo das investigações; o "desafio maior': para citar Viveiros
de Castro & Goldman (2008, p. 215), "é tratar os nossos conceitos com
a mesma dureza que tratamos os conceitos dos outros - e com ajuda dos
conceitos dos outros". E são essas "experiências outras", essas outras ima-
ginações conceituais, que vêm nos sugerindo que nosso vocabulário pode
estar um tanto anacrônico para dar conta de filosofias ricas e complexas
que inventam a cada dia novos jogos e novas convenções. Isto nos leva
a repensar nossas sintaxes e a reavaliar o léxico de que dispomos para
trabalhar, não somente no sentido de inventar vocabulários alternativos,
5 - Yiolência e tecnologias de gênero

O jornal impresso continua sendo um dos meios importantes


pelos quais recebemos informações e elaboramos nossas perspectivas
e visões de mundo. Por nos apresentar eventos e modelar e posicionar
nossos olhares, os jornais constituem uma poderosa tecnologia. Neste
capítulo, entendendo a mídia impressa como uma tecnologia de gênero
que constrói imagens de "homens" e "mulheres", e que atua na produção
do masculino e do feminino, analiso a forma de atuar dessa tecnologia.

Tecnologias de gênero

Num de seus textos mais conhecidos, Teresa de Lauretis (1994)


afirmou que gênero é produto de diferentes tecnologias sociais, tais como
internet, rádio, televisão, cinema ou jornais, de epistemologias e práticas
críticas institucionalizadas, bem como da vida cotidiana. Em diversas
outras obras (De Lauretis, 1984, 1989 e 2007), a autora vem insistindo
que gênero não é uma propriedade dos corpos nem algo que existe a priori
nos seres humanos, mas um conjunto de efeitos produzidos nos corpos,
comportamentos e relações sociais.
Aproveitando essa definição, almejo alcançar a forma de atuar de
uma tecnologia de gênero - no caso, aquela que constrói homens e mu-
lheres nas páginas policiais dos jornais. Não pretendo abordar a violência
contra a mulher, nem de analisar as diferentes histórias de violência de
De corpos e tnvessías Pedro Paulo Gomes Pereira !I~
118

,
mulheres. O foco analítico consiste no agir da tecnologia de gênero (os João Batista Torres ( 1994), em sua etnografia na redação do jornal Folha
jornais) que constrói mulheres e homens quando narra a violência. As- de S. Paulo. E foi com essa padronização e com essa maneira de estruturar
sim, não são os tipos diferenciados de violência que me interessam mais as notícias que me deparei quando estava pesquisando o Dossiê do Banco
diretamente, mas uma tecnologia de gênero específica. de Dados do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).
O discurso jornalístico é um dispositivo que constrói o masculino Utilizei cinquenta notÍcias do ano de 1995 selecionadas e cataloga-
e o feminino e institui a razoabilidade de gêneros (De Lauretis, 1989; das no Banco de Dados do MNDH, e pertencentes ao que se denomina
Haraway, 1995). Focalizo a atenção no agir desse dispositivo e em "páginas policiais': O Banco de Dados consiste num arquivo de notícias,
como as páginas policiais descrevem a violência nos homens das classes que envolve casos de diversos tipos de violência, retirados de dois jornais
populares e nos homens das classes altas, e em como relatam a violência de grande circulação em cada unidade da federação. 1 No Banco de
contra a mulher. Como gênero está no centro do exercício da violência, Dados, em seu dossiê 1995, obtive notícias que descreviam a violência
convém falar, para os objetivos aqui propostos, em violência de gênero. envolvendo homens de classes populares e altas, e violência contra mu-
Evidentemente, dadas a inércia constitutiva da linguagem e a persuasão lheres, dos jornais Correio Braziliense e Jornal de Brasília (doravante
que os significantes exercem sobre nós, meu texto deslizar-se-á entre os CB e JB, respectivamente). Além dos textos, o Banco de Dados agrupa
significantes "homem" e "mulher" (De Lauretis, 1994; Segato, 2003). o perfil dos envolvidos a partir das seguintes variáveis: idade, cor, sexo,
As páginas policiais são complexas tecnologias de interpretação, ocupação, menção ao uso de drogas, implicação em atividades ilícitas e
representação e criação de mundos "reais" (Haraway, 1995). De Lauretis relação entre os personagens.
já havia mostrado que o cinema era uma forma de modelar e posicionar Os tipos de jornalismo incluem aqueles mais críticos, que buscam
homens e mulheres dentro da matriz heterossexual. As imagens cine- subverter as próprias formas específicas do discurso jornalístico. A lite-
matográficas se transformam em modelos, já que "formatam" o olhar ratura sobre o assunto é extensa, o que parece indicar resistência a abor-
sobre o mundo. Se De Lauretis pôde demonstrar como as tecnologias dagens unidirecionais. Entretanto, minhas pesquisas almejaram apenas
cinematográficas e os códigos cinemáticos constroem gêneros, existe a uma aproximação parcial às páginas policiais dos jornais.
possibilidade de visualizarmos os jornais e seus códigos também como Essa experiência de pesquisa me fez pergtmtar: como podem ser posicio-
tecnologias de gênero, encontrando o caráter gendered das notícias sobre nados e valorados os discursos que procuram se construir de forma "neutra''
violência nas páginas policiais. -que se autoproclamam imparciais, como linguagem que se busca "objetiva"
A imprensa ressalta determinadas dimensões de forma mais ou me- -, tentando dizer tudo com frases simples e claras, informando o leitor da
nos consciente. Embora esses discursos condensem emoções vivenciadas totalidade do evento já no primeiro parágrafo? Os jornais, especialmente
coletivamente nas imagens e nas letras reproduzidas pela mídia, existe as páginas policiais, atuam na busca de eliminar os elementos figurativos
certo grau de consciência nos jornais. Os jornais não são apenas porta- da linguagem, efetuando 1m1a verdadeira assepsia estilística. Esse modo de
dores de eficácia mágica que consolidam a reciprocidade entre editores operar indica a tentativa de eliminação da linguagem figurativa como índice
e leitores; são discursos posicionados e valorados (Torres, 1990, 1994). significativo de seu caráter valorado. A convencionalidade da linguagem
Há cerra padronização dos escritos jornalísticos, como se pode assinalaria o seu posicionamento. 2 Como então entender o funcionamento
observar nos manuais de redação dos grandes jornais, nos cursos para os de uma máquina que busca apagar os elementos de sua própria constituição?
profissionais que ingressam nas redações, no controle diário da escrita
I Para uma análise detalhada desse Banco de Dados, ver Brito e Silva ( 1998).
efetuado pela própria maneira de organizar os jornais, demonstrado por ~ando mencionar os termos "jornais': "díscurso jornalístico~ "te:x-ros de jornal': estarei me rdúindo às páginas policiais.
120 De corpos e tra\·essids Ps&.ro Paulo Gomes Pereira 121

Tempo e espaço: o conceito de cronotopo dorov, 1984). O conceito de cronotopo pode ajudar a compreender as
maneiras de operar dos assépticos textos jornalísticos que noticiam a
O texto jornalístico possui uma forma própria de operar. As notí- violência de gênero.
cias, construções discursivas com forma própria de narrar/ criar eventos, Se o cronotopo é um modo de compreender a vida dentro de um
podem ser analisadas com o objetivo de perceber no evento narrado como espaço e num ponto específico do tempo histórico, a própria violência
o "aparelho jornalístico" constrói e naturaliza os gêneros. A experiência não pode ser distanciada de sua dimensão espaço-temporal. A violência
de pesquisa nas páginas policiais revelou a persistência de motivos que se configura numa ideia-valor que marca os discursos, constituindo-se
se caracterizavam por determinada configuração espaço-temporal. As em forma de determinado agrupamento social se pensar e de se atribuir
investigações indicaram que, por mais que um texto prime pela assepsia, divisões, hierarquias e escalas de poder. Consiste em maneiras de tratar
pela busca da neutralidade, pela eliminação da linguagem figurativa, ele, o "outro", de solucionar conflitos, de sustentar identidades, de obter re-
necessariamente, se constitui nalguma relação espaço-temporal. Essa conhecimento social, entre outras. 3 Portanto, o direcionamento adotado
característica nos conduz ao conceito bakhtiniano de cronotopo, que é não foi arbitrário: pretendo sugerir que os discursos jornalísticos que
um entrecruzar das coordenadas de tempo e espaço, uma intervinculação relatam a violência utilizam cronotopos diferenciados, o que implica um
espaço-temporal de uma narrativa ou discurso. posicionar específico.
Ao se representarem no espaço e no tempo, as narrativas se colocam
de determinada maneira como ser histórico. Cada cronoropo, deter- Os jornais e as classes populares
minando uma imagem espaço-temporal, supõe concepções valoradas
e aponta o caráter posicionado da narrativa. Numa primeira instância, Como dizia, faz parte de certa imagem achar que o jornalismo tem
cronotopo é, para Bakhtin, uma combinação particular de tempo e espaço uma forma peculiar de contar que é única em todos os casos e que se
resultantes de manifestações históricas de formas narrativas, vinculadas materializa numa assepsia estilística. Porém, se é possível assinalar crono-
principalmente à literatura. Mas, como o ser "histórico real" se revela nos topos diferentes para os textos jornalísticos, essa ideia seria, no mínimo,
cronoropos, pode-se acreditar que esse conceito proporciona um meio de relativizada. As pesquisas que realizei no Banco de Dados do MNDH
explorar a relação complexa, indireta e frequentemente mediada entre vida levaram a essa conclusão: quando descrevem um crime qualquer ocorrido
e discurso (Holquist, 1991). Mais do que um instrumental técnico para com homens das classes populares, 4 os periódicos utilizam um cronotopo;
análises literárias, o conceito de cronotopo possibilita captar a forma como mas, quando apresentam um crime semelhante com homens das classes
homens e mulheres se representam. Esse conceito bakhtiniano demonstra altas, o cronotopo se transforma. Um movimento análogo ocorre com
que texto e vida estão em permanente diálogo, e o caráter dialógico assinala a posição cronotópica da mulher quando ela é personagem participante
como um enunciado está sempre interconectado a outros. de um crime ou ação violenta.
O caráter dialógico evita a absoluta separação entre a existência
livre de convenções fora dos textos e um mundo de convenções dentro
do texto. Dessa maneira, apesar de o estudo de cronotopo de Bakhtin Soares (1995b) adveniu sobre a urilizaçâo de violtncia como "palavra-valise", com tendência a homogeneizar
as observaçóes relativas a fenórnenos associados à violência. Na tentativa de escapar das ciladas já apontadas.
ser explicitamente dedicado à descrição de vários modelos que têm violência é aoui percebida como ideia-valor. modo de construir a alreridade (Soares & Carneiro, 1997).
4 )fÍncípalmeme no
dominado a história da novela, suas análises fornecem elementos para
estabelecer a vinculação entre práticas sociais, história e literatura (To-
De corpos c travessias P~ro Paulo Gomes Pereira 123
122

Nas páginas policiais que descrevem eventos ocorridos com homens acontecem ao personagem que se encontra privado de iniciativa. Sendo
das classes populares, as ações se desenrolam tendo como marco um ponto passivo, sofrendo o jogo do destino, ele se resguarda, conservando pro-
fundamental: a violência. Esse ponto se torna o acontecimento essencial funda identidade consigo mesmo. Os acontecimentos não alteram nem
da vida dos personagens, transfigurando-se no índice significativo das forjam nada; só provam a solidez de um produto já fabricado. O mundo
biografias. Apesar da existência de faros e de acontecimentos anteriores e os homens estão prontos e imóveis, suprimindo-se possibilidades de
a esse ponto, nos discursos desses jornais tudo se passa como se, nesse transformação. Os fatos aparecem por acaso, e desaparecem sem deixar
período, nada de essencial ocorresse. Os personagens só existem por causa vestígios no comportamento dos envolvidos. Durante o tempo anterior
da violência; a construção cronotópica indica que até aquele momento à ação violenta, os personagens permanecem inalterados. ~ando os
nada significativo havia acontecido em suas vidas. eventos surgem, são organizados numa série temporal exterior à vida, de
Exemplos variados podem ser alocados para confirmar essa afirma- forma simplesmente técnica. Os fatos ocorrem de repente, e a vida só é
ção. Notícias como "Empregada é assassinada''; "Grávida morre, mas bebê interrompida pelo acaso.
escapa"; "J'vfenina é estuprada e morta pelos pais", entre numerosas outras, Essa organização temporal conduz a uma dimensão anistórica e
apontam os nomes dos envolvidos na cena da violência, apresentam des- natural, asseverando que os personagens não se modificam. O acaso,
crição do episódio, indicam, quando muito, pequenos antecedentes que que amiúde leva à violência (na construção jornalística, se torna o
já antecipavam o próprio ato de violência e os prováveis desdobramentos fato mais relevante na vida dos personagens), assinala que o tempo
originados, sempre referentes à ação. 5 Descontextualizam-se o agressor não pertence às pessoas, implicando a naturalização das ações dos
e a vítima, suprimindo suas histórias de vida. A exceção a esse procedi- personagens.
mento formal é mínima e se circunscreve a casos em que pequenos fatos De um lado, ocorre a naturalização do homem que, diante das
já demonstravam a "propensão ao crime", como atestam depoimentos de situações proporcionadas pelo acaso, comete naturalmente atos de
vizinhos e amigos: "Eu sempre achei João muito esquisito, caladão, cheio violência. Ou seja: é natural que homens das classes populares sejam
de marcas de facadas e tiros espalhados pelo corpo". A vida dos envolvidos violentos. Daí que não é necessário narrar os eventos e faros anteriores
só existe em função imediata ao ato de violência. a um crime, nem mostrar as mudanças ocorridas ou as marcas que
Antes do ato de violência- como pomo fundamental-, há um deixou nos homens e mulheres. Mas, de outro lado, há a forma des-
hiato, pois o que acontece não deixa marcas, não indicando qualquer contextualizada de colocar os faros; isolados e excepcionais, não se
possibilidade de mudança. Desfechos como "O casal deverá ficar preso admite um tempo-espaço concreto. Nesse caso, a distância admitida
até a conclusão das investigações" e "Os médicos ainda tentaram salvar no discurso parece propor, para além da naturalização da violência nas
a vítima. Em vão" sugerem a inexistência de crises e de transformações, classes populares, a necessidade de colocá-las num mundo estranho, à
margem do mundo normal e familiar de quem está narrando. Assim, nos
seja no agressor, seja na vítima.
~ando os jornais narram violência de homens das classes po- discursos jornalísticos, podem-se localizar cronotopos com as seguintes
pulares, o tempo abstrato encerra um ser passivo e imutável. Os fatos características: a) ligação técnica e abstrata do espaço e do tempo; b)
reversibilidade dos momentos da série temporal; c) possibilidade de
O objeti\·o não é analisar ou acompanhar os evemos noticiados na ímegra, mas somente captar nos discursos
transferência no espaço.
dos jorn.1is as relações emre ,.,mmo"\ ,~ t'<.:n:~ro. on sei a. os motivos cronotópicos.

de género.
12-; De corpos e tr,wessia.s Pe14o Paulo Gomes Pereira 125

Os jornais e as classes altas conduzem à construção de uma nova imagem, em que o homem é res-
ponsabilizado pelos seus atos. Já não é mais um tempo abstrato e técnico,
O mundo imutável de um tempo-espaço abstraro e tecnicamente o tempo é "um todo essencial e irreversível" que exige concremde e se
arranjado, namralizado e estrangeiro, construído nos discursos jornalísti- aproxima do tempo da vida cotidiana (Bakhtin, 1988, p. 239).
cos que descrevem a violência de homens das classes populares, comrasta Depois do ato violemo, as páginas policiais salpicam declarações
com os discursos dos jornais ao relatarem a violência de homens nas dos ('lmiliares, dos envolvidos, mostram como há lições e ensinamentos
classes altas. Nesses discursos, um motivo fundamental é o da meta- no episódio, e sugerem como os personagens mudaram suas vidas e
morfose, entendida como modo de interpretação e de representação do seus modos de agir. Não é a identidade anterior que é afirmada, mas sua
destino particular do homem. A metamorfose é a base da representação modificação com a crise e com a ruptura advinda dos acontecimentos.
da vida humana em seus momentos essenciais de crise e de rupmra, nos Há nesses textos uma fusão da vida do homem com seu caminho real
períodos em que um personagem se transforma em outro. O motivo da e espacial, com suas peregrinações. Surge, então, o motivo do caminho
metamorfose coloca a crise e a transformação como partes do discurso, da vida, que passa pela terra natal, familiar. O espaço é preenchido pelo
apresentando-se duas ou três imagens do mesmo personagem, desunidas sentido da vida do personagem. O cronoropo da estrada permite, além
por suas crises. de maior familiaridade, a existência da vida cotidiana; já não se fala em
As imagens são alocadas uma ao lado da outra, como no caso do sui- lugares distantes, mas do "quintal'; do lugar onde os faros aconteceram
cídio de um jovem "da classe média alta". O início é esclarecedor:"]. R. G. e modificaram os rumos de vida. O espaço se concretiza: não é qualquer
T. C., 17 anos, era um rapaz inteligente, saudável e tranquilo. Tinha carro espaço, trata-se do sítio da metamorfose, da mudança.
próprio, computador, carinho da família. Estudava em escola particular, Essa vida cotidiana, não obstante, só existe em determinados mo-
frequentava festinhas com amigos e pretendia formar uma banda de rock". mentos, nos caminhos laterais da estrada, pois os personagens principais
Logo a seguir, outra imagem: "Deu um tiro na cabeça com um revólver e os acontecimentos estão fora do cotidiano. O personagem tem um
calibre 38 no quintal de sua casa no Lago Sul" (CB ). Como esse episódio, caminho fora do cotidiano e só o transpõe numa das fases de sua vida. Ao
são numerosos os casos de homens "normais'; que eram vizinhos, amigos se retirar o personagem de seu dia a dia, empurrando-o para as margens,
e parentes, mas, de repente, se transformam e cometem atos violenros. fragmentando-o em pedaços independentes e desunidos, privando-o de
Os textos de jornal que relatam a violência - principalmente laços substanciais, elimina-se também sua historicidade.
crimes - em classes altas também não sugerem um tempo histórico, Particular e privada, a vida cotidiana não contém nada de público e
proporcionando apenas momentos excepcionais que, por sua vez, deter- só se desvencilha da esfera privada quando a ação violenta acontece. Nas
minam as imagens do personagem que caracterizam sua vida posterior. páginas policiais, o crime, nas classes altas, é o momento da vida plivada
Diferentemente dos elementos contidos no cronotopo anterior, o tempo em que ela, a contragosto, se torna pública.
deixa marcas no personagem, apesar de ainda se evidenciar pelos aconte-
cimentos excepcionais e pelo acaso. Motivos cronotópicos da construção da Mulher
Nas descrições de violência de homens das classes altas, o acaso atua
somente nos limites, pois a iniciativa primeira pertence ao homem. Essa A diferenciação cronotópica entre os relatos jornalísticos que ver-
iniciativa não é "positivamente criada", mas sim uma iniciativa da falta, sam sobre a violência com homens das classes populares e com homens
do erro e do engano. Nessas condições, os faros vividos pelo personagem das classes altas deve ser comparada com os motivos cronotópicos dos
126 De corpos e trave~sias J..dro Paulo Gomes Pereira.
127

relatos de violência contra a mulher. Tal movimento possibilita verificar acaso, "pela coincidência ou pela não coincidência fortuitas em dado lugar
as formas escolhidas para construir os personagens, captando as maneiras no espaço" (Bakhtin, 1988, p. 224). Os fatos podem se passar em qualquer
escolhidas para representar mulheres e homens, o que indica o caráter lugar: Ceilândia, Samambaia, Taguatinga, Sobradinho ou Plano Piloto.
gendered do discurso jornalístico. Existe a suposição de que algumas localidades na cidade são mais violentas
Ao relatarem a violência contra as mulheres, os jornais concebem do que outras, mas, mesmo nesses sítios, não se propõe a descrição espacial
tempo-espaço como abstratos, não existindo vestÍgio de construção cro- nem a vinculação entre espaço e personagem. O ato de violência ocorreu
notópica que remeta a algum tipo de historicidade. O tempo e o espaço aqui, como poderia ter acontecido em qualquer lugar. 6 As localidades
abstratos conferem ao feminino um caráter passivo, pois, já que a dimensão consideradas de maior índice de violência recebem, entretanto, motivo
espaço-temporal é exterior à constituição dos personagens, as mulheres cronotópico diferente, o de lugar distante e desconhecido, o que serve
acabam sendo conformadas como sem iniciativa. Ao se movimentarem para consolidar a visão de que a violência ocorre nos espaços marginais
no tempo e no espaço sem qualquer inserção, as mulheres sofrem o jogo da sociedade (Hall et al., 1973, p. 226).
do destino: "L. M. N. foi esfaqueada por seu amante", "M. P. O. morta a Esse mundo naturalizado e de tempo e espaço abstratos e tecnica-
tiros por seu marido'; "E. L. S. assassinada pelo irmão"- nada da vida dos mente arranjados se distancia do tempo-espaço concreto, inevitável na
personagens, nem das condições que ensejaram o ato violento. representação de um mundo familiar. Seja pela distância denunciada pela
Daí fica claro que os discursos jornalísticos, quando descrevem a objetividade e assepsia dos textos de jornal, seja pela forma de interligar
violência contra mulheres, desconhecem a localização histórica do tempo tempo e espaço, ao relatar a violência relacionada ao feminino, as pági-
dos acontecimentos. A história é excluída dos textos jornalísticos. As nas policiais a colocam num mundo estranho e estrangeiro. E nele não
datas fornecidas são referenciais, exteriores ao curso do acontecimento, se verifica familiaridade com o autor. Esse caráter de "estranho" é dado
em geral se limitando à própria data do jornal diário, constituindo-se também pela forma descontextualizada de colocar os fàtos.
em instrumental técnico de informação, mas, no essencial, não guardam A construção espaço-temporal conduz à indistinção tanto dos
nenhuma vinculação com o fàto ocorrido. "Ceilândia, terça-feira à tar- personagens como de suas ações. Esse procedimento pode ser observado
de"; "Um homem não identificado invadiu ontem de madrugada"; são as quando se nubla a biografia dos sujeitos ou quando as páginas policiais
referências temporais amiúde fornecidas nessas circunstâncias. O tempo resumem a vida ao ato violemo. No mesmo jornal diário, o assassinato
nos discursos jornalísticos é abstrato e anistórico. de uma mulher pelo seu marido e o estupro de uma jovem de 16 anos
História e mudança não devem ser confundidas, pois a persistên- perpetrado pelo vizinho são alocados numa disposição que subsome essas
cia da estrutura através do tempo é ela própria histórica. Entretanto, o notícias num amplo universo, não as diferenciando, por exemplo, do furto
texto jornalístico constrói a realidade como se fosse anistórica. Ao criar de uma bicicleta, seguido de prisão, por um jovem da periferia de Brasí-
um personagem que não revê o significado de seus projetos pessoais, o lia. Disposição formal, aliás, deveras comum em jornais. A indistinção
esquema cultural não enfrenta qualquer perigo, não podendo colocar, para naturaliza a violência, incluindo os crimes de gênero numa miríade de
utilizar os termos de Marshal Sahlins (1987, p. 186), ahumbrissimbólica outros crimes e de outras formas de violência. Essa indistinção oculta o
do homem como "uma grande aposta feita com as realidades empíricas". rastro de gênero dos discursos, reforça a ideia de um narrador neutro e
O espaço, à semelhança do tempo, também é abstrato. Para descrever
o ato violento se fàz necessária a delimitação do espaço. Porém, os jornais
6 Concordo com Soares (1995a, p. 26) quando aponta o equívoco da ideia de que a violência é um fenômeno
apresentam os acontecimentos num espaço específico unicamente pelo democrático e com distribuiçâo homogênea. Reforço aqui à exístênci<l de uma fOrma de narrar que vincula
J.bsrraramenre a violência ao espaço de sua localizaçáo.
128 De corpos e travessi.1s ~dro Paulo Gomes Pereira
129

equânime, escondendo sua participação na comunicação, o que também de violência sofrido. A parca quantidade de detalhes ou de dados sobre
gera violência. o ocorrido, bem como das condições geradoras da violência, completa
Até nas notÍcias em que as mulheres cometem crimes, os jornais as e perfaz a própria economia simbólica da violência. Nos discursos jor-
colocam como sujeitos não constituintes. Elas passam a existir por causa nalísticos nada há de novo, nenhuma alteração ou criação; tudo ocorre
dele; o discurso olvida a história de vida e cria um imenso vazio sobre o para confirmar uma identidade que já existia desde o início. Os traços
passado. Mas, além disso, o texto jornalístico procura retirar a mulher biográficos são genéricos e terminam por assegurar a construção de uma
do centro da descrição. O JB descreve a história de uma mulher que mulher também genérica.
matou seu marido e escondeu o corpo. Na matéria, o jornalista começa Mesmo quando se trata de discursos jornalísticos que procuram
dizendo ser O. P. G. acusada de matar seu companheiro a golpes de facão. relatar a violência contra mulheres das classes altas, cabe ressaltar a inalte-
Depois, ele localiza o bairro e o nome da vítima. Em seguida, informa rabilidade dos motivos cronotópicos. É o caso da inexistência do motivo
que os bombeiros encontraram o corpo, que os policiais descobriram o da metamorfose envolvendo mulheres das classes altas nas notícias por
crime por meio de um telefonema anônimo denunciando brigas entre o mim analisadas. A imagem da mulher não sofre alteração na descrição e
casal, revelação feita pelo vizinho. No final, o leitor fica sabendo que O. na narração do ato violento.
P. G. teve ajuda de D., personagem masculino. A presença de um número Os jornais têm estrutura formal e procedimentos estilísticos, já que
infindável de sujeitos constituintes sugere o papel sempre secundário da utilizam motivos cronotópicos, valendo-se de formas da tradição para
mulher, mesmo quando é ela quem efetuou o crime. construir verdades. O jornalista escreve se posicionando- cronotopica-
Falo de crime cometido por mulheres, neste momento, só para mente -;ao se distanciar do leitor e de enquadrá-lo, a construção textual
nuançar os motivos cronotópicos das páginas policiais que constroem exerce sempre seu olhar sob o manto da neutralidade. Essa neutralidade
mulheres como sujeitos não constituintes. Se, ao cometer o crime, a e essa distância se desfazem, entretanto, quando se percebe o caráter
mulher não se apresenta como sujeito, na condição de vítima, ela desa- de classe e de gênero dos discursos, como espero ter demonstrado pela
parece. No primeiro caso, aparece tecnicamente, como um nome que análise da composição cronotópica dos textos de jornal que abordam
reage diante de um fato; no segundo, é um nome apenas- condição a violência. De tal modo, talvez seja melhor compreender as páginas
decorrente, como já fiz notar, da descontextualização das ações e da policiais dos jornais como tecnologias que constroem o outro, que
localização espaço-temporal. agem sob o outro e que classificam, enquadram, definem e inventam a
~ando o texto de jornal descreve práticas violentas nas classes violência e o violento.
populares utiliza um tempo-espaço que coloca os sujeitos como imu- Pode-se observar, ainda, que as relações espaço-tempo nos textos
táveis e anistóricos, um tempo e espaço abstrato que priva os sujeitos de jornal que noticiam a violência ocorrem de forma a criar locais civi-
de iniciativa. Os homens surgem como personagens que cometem lizados, pacificados e espaços marginais, distantes e estrangeiros, que se
ações violentas, existindo por causa delas. No caso das mulheres, como configuram num outro da sociedade hegemônica. Esses textos espargem,
vítimas ou agressoras, os textos de jornais apagam suas atitudes e ações, fragmentariamente, também uma pedagogia da nação limpa da violência,
tornando-as, além de passivas e socialmente marginais, seres à margem composta por homens brancos razoáveis e mulheres passivas que devem
no próprio discurso. As notÍcias de violência reservam às mulheres o ser controladas pelo discurso normatizado r que as enquadra, o que nos
espaço que o ato violento abarca, e pequenas informações são adiciona- lembra da frequente vinculação entre a preservação do território nacional
das à margem, de modo a atestar L}Ue aquele personagem se limita ao ato e o corpo feminino (Segato, 2004 e 2006a).
130 De corpos e u.avessias Ped~ Paulo Gomes Pereira
131

A violência dos textos alteridade. Nos discursos jornalísticos que descrevem a violência contra
mulheres, observa-se também a naturalização da alteridade.
O discurso jornalístico estabelece - e se pauta por - contratos na A construção textual ocorre sempre, pode-se afirmar agora, de uma
interação entre o enunciador e o destinatário. Há uma complexa rede perspectiva e de um lugar denunciados pela composição cronotópica: os
de relações entre jornalista e leitor, o que significa que não podemos do homem branco, pertencente às elites, que direciona seu olhar mascu-
imaginar um isolado criador (o jornalista) de sentidos, sem perceber o lino sobre o outro, perhzendo uma pedagogia da dominação masculina
público também como aquele que marca a formação de significados. A e da assepsia que se quer civilizatória. O discurso jornalístico nas páginas
construção da mulher, ou de "engendramento': não é unidirecional nem policiais constrói uma distância entre o narrador e a violência. Essa distân-
homogêneo (De Lauretis, 1994, p. 206). As tecnologias de gênero são cia é elaborada de maneira diferenciada. Ao tratar das classes populares,
reapropriadas e desviadas. Afirmar que os jornais constroem a mulher o narrador admite uma distância absoluta em relação aos personagens da
não significa dizer que não haja resistências e dissonâncias no processo, ação violenta, pois eles já são os "outros': advindos de um tempo-espaço
e desvios dos instrumentos simbólicos e das tecnologias que efetuam a abstrato, de um mundo estrangeiro, seres imutáveis cuja incômoda exis-
própria construção da mulher e do feminino. Uma limitação deste capí- tência se deve ao ato violento, não existindo nenhuma familiaridade entre
tulo é que ele se c entra em verificar como o gênero é construído por uma o narrador-personagem.l\1as, ao tratar das classes altas, o narrador observa
tecnologia específica (as páginas policiais dos jornais), mas não como ele momentos de tàmiliaridade com os personagens, apresentando imagens
é absorvido pelas pessoas, o que implica a não observância das fraturas, de vida que indicam condutas e procedimentos "normais", e a metamor-
das disjunções- questões que buscarei analisar no capítulo subsequente. fose assinala quando e como os personagens se afastam do narrador e da
O que não significa ser irrelevante analisar o agir dessa tecnologia. sociedade, para se configurar em "outros~
Os artigos de jornal apresentam uma diferenciação cronotópica Os textos de jornal buscam naturalizar a violência no "outro': O
substancial na forma de narrar a violência no universo feminino tanto narrador fabrica a violência como anômala, buscando situá-la nas margens,
nas classes populares quanto nas classes altas. Nas páginas policiais que para retirá-la de si mesmo. Talvez esse modo de narrar tenha o propósito
retratam a violência nas classes populares, os personagens: a) só existem de afastar as motivações consideradas inadequadas e de distanciar os
por causa do crime; b) não se modificam; c) são anistóricos; d) são colo- atos moralmente censuráveis, não obstante continuem constituindo o
cados dentro de um espaço-tempo abstrato. Na representação das classes imaginário e a sensibilidade daquele que relata a violência nos jornais.
altas, os discursos são construídos para mostrar: a) a "metamorfose" do Os discursos jornalísticos concebem os personagens envolvidos como
personagem, indicando a existência de uma vida" normal" anterior à ação alteridades totais, sujeitos situados à margem, dividindo assim a sociedade
violenta; b) diversas imagens do mesmo personagem; c) um tempo-espaço em duas partes: uma região interna e central, composta por pessoas con-
mais concreto. A imagem da mulher não sofre alteração na descrição sideradas puras; e uma margem formada por pessoas impuras, perigosas,
e de narração do ato violemo. No caso dos motivos cronotópicos que violentas (Suárez, 1995).
constroem a mulher e o feminino nas páginas policiais, existe um duplo As matérias de jornais que noticiam a violência - mesmo quando
olhar: em primeiro lugar, a naturalização da mulher dá-se no momento existe um tom de denúncia ou condenação-, em sua própria forma, na
de retirá-la de um tempo-espaço concreto e de seu caráter histórico. Em sua maneira de estruturar o texto (ou seja, nos pilares dessa tecnologia
segundo lugar, nota-se que, independentemente de classe social - e das de gênero), envereda-se na própria violência descrita. Não são apenas
condições histórico-sociais daí advindas -, a mulher é construída como relatos sobre violência, pois, ao fragmentar os personagens, retirar sua
!32
De corpos c travessias

historicidade, construir imagens que refletem mulheres como "sujeitos 6- ~eer nos trópicos
não constituintes", aderem violência aos fatos violentos que descrevem,
tornando-se textos violentos. Como já havia dito que a violência é "uma
forma de tratar o 'outro'", posso agora ampliar minha argumentação
afirmando que é também uma forma de retratar o "outro': de construí-lo
textualmente (Baudrillard, 1996, p. 156).
Os textos homogeneízam o "outro": de um lado, as páginas policiais
apresentam cronotopos variados em situações diversas, mas, de outro lado,
a distinção cronotópica é para afirmar que a violência está no "outro".
Aquele que escreve não se identifica com os personagens e, independen-
temente de sua situação, o personagem é sempre o "outro", retirando seu
caráter irredutÍvel. O que se tem é o desmoronamento da experiência de
alteridade. É dessa forma que se oculta a violência dos textos nos textos A expressão queer, utilizada como forma de autodesignação - re-

sobre violência. petindo e reiterando vozes homofóbicas que assinalam a abjeção


daquele que é denominado queer·, mas descontextualizando-as
desse universo de enunciação, já que se atribuem valores positivos
ao termo, transformando-o numa forma orgulhosa de manifestar
a diferença-, pode ocasionar uma inversão da cadeia de repetição
que confere poder a práticas autoritárias precedentes, uma inversão
dessa hisroricidade constitutiva. Algo novo surgiria, então, desse
processo, anunciando a irredutibilidade e expressando a incômoda
e inassimilável diferença de corpos e almas que teimam em se fazer
presentes. (Pereira, 2006, p. 469)

Inicio este capítulo com esta epígrafe para tentar resumir e ressaltar
o campo de possibilidades aberto pela teoria queer. Na ocasião em que o
escrevi queria destacar a potência do gesto político que justapõe a descon-
textualização da asserção homofóbica inicial, a enunciação da diferença,
a positividade conferida ao termo e a probabilidade de inversão da cadeia
de repetição. Buscarei, a seguir, problematizar tanto a potência como os
possíveis limites da teoria queer quando se viaja aos trópicos.
Tereza de Laureeis ( 1991) foi a primeira teórica a utilizar o termo
queer, mas dela também surgiu uma das primeiras críticas: a teoria queer
havia se transformado numa criatura conceitualmente vazia da indústria
De corpos e rravessía.s Pedro Pa:lo Gomes Pereira 135
134

cultural. Da Austrália, por sua vez, Raewyn Connell (2010) afirmou movimento que sobressai. O queer é, assim, tanto adjetivo (ou substan-
que a ciência da metrópole, geralmente datada em casa, continua a ser tivo) como, mais apropriadamente, verbo -um verbo que desenha ações
exportada num tipo de comércio que incluiria Foucault e a própria teoria e deslocamentos arriscados, delineando trajetórias múltiplas de corpos
queer. E é esse risco - de estarmos repetindo aqui o que está datado no instáveis, provisórios e cindidos. O ato performático muda; o que inco-
Norte Global- que nos alerta para levarmos a sério as indagações sobre as moda e abala é a mudança, não só porque altera os sujeitos que enunciam,
potencialidades do queer nos trópicos. Pensando nesse risco, e incentivado mas porque insere a probabilidade de transformação. A multiplicidade de
por experiência de trânsito de corpos queer no Brasil, podemos indagar: corpos drags, trans, gays assinala a possibilidade do transformar-se. Não
estaríamos diante de mais uma teoria do centro para as periferias (e que é a segurança do corpo cirurgiado, finalmente consoante com sua "iden-
reinscreveria, noutras cores, esse divisor centro-periferia)? A persistên- tidade de gênero", que o queer propaga, mas, sobretudo, a instabilidade
cia do termo em inglês sinalizaria uma geopolítica do conhecimento na dos corpos que não se conformam. Os corpos, as cirurgias, as próteses,
qual uns formulam e outros aplicam as teorias? E como traduzir a pala- as práticas sexuais - @s transexuais, @s drags, @s travestis - surgem em
vra queer? Haveria possibilidade de o gesto político queer abrir-se para movimento, denunciando a precariedade daquilo que se anuncia como
saberes outros ou estaríamos presos dentro de um pensamento sem que norma e se instala como forma de vida coerente e via privilegiada (Bento,
pudéssemos propor ou vislumbrar nada de novo? Como, enfim, pensar 2006; Pelúcio, 2009).
Podemos então falar de reapropriações e de reconversões na cons-
queer nos trópicos?
trução dos corpos queer- uma reapropriação das disciplinas dos saberes/
poderes sobre os sexos e uma rearticulação e reconversão das tecnologias
Teoria queer
da produção dos sexos. Os corpos queer se rebelam contra a própria cons-
O movimento ensejado pela auto designação queer é, às vezes, com- trução de corpos normais e anormais, subvertendo normas de subjetivação
vigentes. O queer promove uma virada da força performativa dos discur-
preendido como uma variação no adjetivo - a alteração incidindo sob a
sos na reapropriação das tecnologias de produção de corpos anormais,
forma de perceber as qualidades desse adjetivo. A modificação é localizada
numa transição de qualidade considerada negativa para uma positiva. e entra no cenário atual como proposta de transformação na circulação
dos discursos e na mutação dos corpos (Preciado, 2002; Pereira, 2008).
Essa alteração anuncia e reitera os corpos queer como possibilidade, pro-
duzindo um abalo que introduz a diferença que não pode ser assimilada É nesse lugar de deslocamento e reconfiguração que o queer se coloca.
Mas, dito assim, de forma tão genérica (e sem o merecido cuidado
no campo do possível. Daí seu caráter transgressor - uma transgressão
produzida por gesto político de afirmação das diferenças e de inscrição com as especificidades), parece que, contraditoriamente, o queer- que
seria uma política da diferença- acabaria por nublar as diferenças, pois a
dos corpos estranhos nos cenários contemporâneos; um gesto que confere
visibilidade aos invisíveis, realçando os "estranhos internos à sociedade" generalização acabaria por abrumar tanto as variações dentro da própria
(Buder, 1990 e 1991; Louro, 2001 e 2004; Miskolci, 2009). Mas não só. teoria queer como histórias locais, esquecidas em definições conceituais
Há outra dimensão desse processo, amiúde desapercebida por aná- tão genéricas. A utilização de repertório comum de autores, a luta contra
a heterossexualidade compulsória (Rich, 1993 ), a posição contrária a
lises que se centram em verificar como era o adjetivo e o que se tornou,
binarismos fáceis, entre outros, são características que conferem uma aura
mas que olvidam o próprio movimento. O queer suplanta o ato identitário
assumido e seus efeitos reificados em identidades. Na ação instável de de transgressão e contestação ao pensamento queer, o que pode sugerir,
transformar uma injúria numa forma orgulhosa de auto-designação é o numa abordagem apressada, uma integração das posições num todo único
136 De corpos e rravessias Pedro P~lo Gomes Pereira
137

e homogêneo. Porém, as divergências no interior do pensamento queer são dimensão discursiva que produziria uma obliteração do corpo. Michel
grandes e, assim, tratar as posições e teorias de forma unificada, desconsi- Foucaulr também não permanece incólume na démarche dePreciado: o
derando a especificidade de cada pensamento, retira a força das propostas autor de História dtz sexualidade, que havia se centrado na ide ia de gestão
e das ide ias. Distante do contexto de enunciação e sem a atenção devida à da vida, não abordou com mais cuidado a propagação das tecnologias do
singularidade de cada corpus teórico, corremos sempre o risco de nublar corpo e de representação, fato que implica limites de sua proposta, como
a densidade das proposições queer - que necessitam de um movimento veremos adiante. É no intuito de manter-se atenta às novas tecnologias
autorreflexivo intenso e contínuo-, o que conduziria à repetição pura e do corpo - avançando onde Foucault e Buder não conseguiram ir- que
simples de teorias sem que houvesse a resistência das realidades analisadas. Preciado vai argumentar que os hormônios seriam ficções biopolíticas
A teoria se torna, nesse caso, dissociada das realidades locais e, sem esse (ficções que se podem tomar, digerir, incorporar). Os hormônios são
confronto, acabamos por entrar num círculo que induz à eterna repetição elementos biopolíticos que criam formações corporais e se integram
(periferica) de teorias (centrais). Seria esse o fardo do queer nos trópicos? aos organismos políticos maiores. Há que se pensar gênero no marco
de produção de um aglomerado de materiais sintéticos, como a pílula
Pontos de tensão anticoncepcional, o silicone, o vestido, a arquitetura e os códigos de pu-
blicidade, a pornografia, os espaços sociais e suas divisões, a divisão dos
Para tentar responder às indagações e dar mais direcionamento corpos em órgãos sexuais e funcionais.
à argumentação, gostaria de comentar o trabalho de Preciado (2002, Além das discussões sobre corpo e performatividade, surge nos
2008 e 2009). A escolha deu-se porque a autora expõe de forma clara trabalhos de Preciado o debate sobre a possibilidade de ação e sobre as
alguns pontos de tensão da teoria queer. Sem qualquer pretensão de me práticas políticas subversivas. Em suas primeiras formulações sobre o tema,
deter nos textos dePreciado, buscarei apenas ressaltar três desses pontos: Buder afirmara que toda significação ocorreria no espaço da obrigação
a) a centralidade das novas tecnologias do corpo; b) o lugar da agência; de repetir. Assim, a capacidade de ação se localizava na possibilidade de
c) o poder farmacopornográfico. mudar a cadeia de repetições. Estando a agência dos sujeitos vinculada à
Preciado vem alertando para a necessidade de estarmos atentos não sujeição às normas que impelem à repetição, é razoável deduzir que só
às novas tecnologias do corpo; e foi a percepção dessa necessidade que os que saem das cadeias de repetição, e divergem das normas estabelecidas,
a levou a assinalar os limites da análise performativa de gênero que re- atuariam de maneira efetiva. 1 A agência é pensada diferentemente por
duziria gênero a efeito do discurso. A teoria da perfornhmce, sustenta a Preciado, dada sua ênfase nas biotecnologias e potencialidades subversivas.
autora, não dá a importância adequada às tecnologias de incorporação Para ela, os sujeitos atuam por meio de próteses cibernéticas e substâncias
específicas - e são essas tecnologias que possibilitam as diferentes inscri- químicas. Isso significa que as próteses e os químicos possibilitam a ação
ções performativas (San Martín, 2009). O conceito de performance de dos agentes e os constituem por meio de ações mediadas. Se, para Butler,
gênero não consideraria as biotecnologias que fàzem que determinadas os agentes contemporâneos se definiriam por atos, gestos corporais e
poformances sejam consideradas naturais em detrimento de outras, com- discursos, para Preciado, o que os caracterizariam seria a mediação entre
preendidas como não naturais. Daí a afirmação segundo a qual gênero corpo e biotecnologias. Preciado opta por uma proposta que privilegia a
não é apenas um efeito performativo, mas, acima de tudo, um processo ação política e parece se afastar da ideia de Butler sobre a inexistência de
de incorporação prostético (Preciado, 2002). As críticas se dirigem a
Judith Buder. Para Preciado, há na teoria de Butler uma centralização na
1 Para um.1 discussâo sobre agência em Butler, ver Femenías (2003).
De corpos e rravessi,ts Pedro P1l1!o Gomes Pereira 139
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um sujeito anterior às normas, atribuindo aos agentes capacidade con- horizonte teórico e superasse as formulações antecedentes de Foucault e
tratual e status, sujeitos relativamente soberanos de sua ação subversiva de Buder. No entanto, se observarmos mais de perto, poderíamos concluir
(San MartÍn, 2009, p. 98-99). que essas contribuições não apresentariam grandes novidades assim. Sobre
Outro ponto nas elaborações de Preciado é a busca de com- as biotecnologias, Haraway e De Lauretis já haviam se debruçado, e mesmo
plementar a teoria de biopoder. Foucault (1985) comentou, no último Burler procurou abordar o assunto em trabalhos posteriores a Gender
capítulo de A ·vontade de saber, sobre uma era em que a morte começava trouble. No que se refere à agência, Burler (2005) enfrentou o assunto em
a não mais fustigar a vida. O "limiar de modernidade biológicà', dizia ele, oJ
Giving tm tzcwunt oneseif, obra na qual tenta superar a oposição entre
se situa exatamente quando a vida entra na história, inaugurando "a era o voluntarismo e determinismo. Nesse livro, valorizou a invemividade
de um biopoder" (p. 132). Foucault descreve a modernidade numa da moralidade - moralidade que não se conforma à redução à regra, lei
sociabilidade da vida biológica e da vida política- a política voltando-se ou valor, mas que na qual o sujeito não é inteiramente livre para ignorá-
para governar a vida. 2 Partindo dessas elaborações, Preciado argumenta -los. Buder sustenta que não seríamos apenas efeitos de discursos, como
que Foucaulr não deu a devida atenção às transformações das tecnologias postularia um construtivismo apressado, pois os discursos e regimes de
de produção da subjetividade que ocorreram a partir da Segunda Guerra verdade nos constituem sempre a um determinado preço (Velho, 2012).
Mundial. São essas transformações que a fazem postular um terceiro As formulações de Butler podem, dessa forma, nos levar a interrogar a
regime de subjetivação, um terceiro sistema de saber-poder, por ela de- ideia de Preciado de agentes com capacidade contratual.
nominado farmacopornográfico. As mudanças se localizam na forma de A proposta de um novo regime de poder-saber é ainda mais
operar: na sociedade disciplinar, as tecnologias de subjetivação contro- complicada. Tanto porque autores como Nikolas Rose (2007) já ha-
o corpo de fora, como um aparato ortoarquitetônico externo; na viam alertado que a molecuralização biologicista é dimensão crucial
sociedade farmacopornográfica, as tecnologias formam parte do corpo da biopolítica contemporânea, como por não problematizar a própria
e nele se diluem - as tecnologias se convertem em corpo, não havendo periodização elaborada por Foucault, simplesmente acrescentando-lhe
espaço entre tecnologia e corpo (Fischer, 2009; San Martín, 2009; Cabral, uma nova configuração, o f.1.rmacopornopoder. Como vimos em páginas
2009). Na sociedade fàrmacopornográfica, o poder atua por meio de precedentes (Cap. 3), quando relaciona modernidade à época na qual a
moléculas, silicones, neurotransmissores, hormônios ... E, entre a validade morre não mais fustigaria a vida no Ocidente, Foucault estava ciente do
da diferença sexual como ideal regulatório e a maleabilidade dos corpos caráter eurocêmrico de sua narrativa. Todavia, o problema não é só o
por um sistema médico que atua com fluxos bioquímicas e bionarrativos, eurocentrismo da análise de Foucault, mas as condições de emergência
abrem-se oportunidades múltiplas e imprevistas para a apropriação dessas do biopoder na Europa. A entrada da vida na história no Ocidente dá-se
tecnologias e narrativas, bem como para subversão. sob -e tem como condição - a própria ação colonial. Lida aqui dos tró-
picos, a era do biopoder (ou a modernidade ocidental) surgiria ela própria
sob o signo da colonização, num dramático quadro no qual a emergência
Teorias situadas
da vida e a potência de produzir a vida no Ocidente nasce sob o mamo
Essas contribuições de Preciado são apresentadas em tropos de da exploração. A história de Foucault sobre o aparecimento da vida na
novidade e superação. Tudo se passa como se algo de novo surgisse no história e as formulações de Preciado não parecem, porém, abordar essas
vinculações entre biopoder e práticas coloniais, perfazendo um silêncio
sistemático sobre uma face fundamental da constituição da modernidade.
2 Discussào esta que pode ser acompanhada no capíwlo Ern torno rLz rida ( Cap. 3).
140 De corpos e uavessia.s Pedro Pa~ Gomes Pereira
141

Esse silêncio está vinculado ao envolvimento dess@s autor@s com seus a ser objetos do fàrmacopornopoder? Existiriam experiências e saberes
contextos socioculturais - sendo esse silêncio atribuído aos limites da insurgentes que pudessem nos fàzer aproximar de respostas às indaga-
própria imersão nos dilemas da modernidade ocidental. Essa percepção ções sobre o queer formuladas no início deste capítulo?
dess@s autor@s vinculad@s aos seus quadros histórico-sociais faria com ~ando me fiz essas perguntas, pensei imediatamente em Cida,
que a forma de compreender as teorias fosse alterada: nessa condição, uma travesti com quem convivi enquanto realizava uma etnografia num
apareceriam como produtos locais, intimamente envolvidas com seus refúgio para portadores de aids (Cap. 1). Em maio de 1998 a encontrei,
dilemas particulares. Os conceitos de biopoder (em suas diversas versões) com 44 anos de idade, num abrigo na periferia de Brasília, onde estava há
e de fàrmacopornopoder seriam, não obstante as pretensões universais, três anos. Muito discreta e econômica no gestual, pareceu-me do interior.
teorias ancoradas em histórias particulares, locais, provinciais. E, de fato, ela nascera numa pequena cidade do interior de Minas Gerais,
Apesar dessas ressalvas, vale lembrar que estamos falando de uma no Vale do Rio Doce. Foi com muito esforço que consegui saber algo de
obra em desenvolvimento. E o trabalho de Preciado (2008) ainda está sua vida. Numa tarde, porém, conversou mais extensamente comigo e
por ser testado e pode vir a superar muito do que se considera como narrou, numa prosa sincopada, sua história. Cida, desde cedo, percebeu
"problemático" em sua teoria. Mas o que considero mais delicado é sua ser diferente dos outros meninos, sentindo o preconceito e a violência
pretensão universalizante. Ela chega a dizer: "entramos numa época na originados do desconforto com suas opções e ações. Deixou transparecer
qual o controle tecnomolecular dos gêneros se estenderá a tudo e a to- nos nossos encontros que sua vida foi um percurso de autoconhecimento:
dos"; e prenuncia: "O século XXI será o século da produção e controle aprendera na infància a observar e a imitar as mulheres que admirava,
fàrmacopornográfico da masculinidade" (p.127). A proposta dePreciado tentando trabalhar seu corpo de forma a fazê-lo atuar com seu desejo.
torna universais modos de articulação teórico-política, os quais são do Várias vezes contou-me detalhes de tecidos, vestidos e festas, em narrativas
norte global de onde fala, restando-nos aplicar teorias nos trópicos com que transitavam entre admiração, desejo e inadequação. No meio de um
pretensões universais formuladas alhures. Essas teorias não abordam de turbilhão de informações, narrou também a história de um médico de
frente as próprias condições de emergência do biopoder no Ocidente, confiança de sua família.
pois a ação colonial é ora esquecida, ora abordada tangencialmente. Não Esse médico percebeu que aquele "menino era diferente" e passou
há, pois, como não pensarmos os textos de Preciado como narrativas a efetuar práticas que mudaram o corpo de C ida. Segundo ela, "ele [o
poderosas caracterizadas por uma construção temporal homogênea, as médico] começou a me bolinar. Ficava sozinho comigo e começava a fazer
quais atuariam nublando a multiplicidade de tempos heterogêneos. E as coisas. Foi me dando remédio e meus peitinhos começaram a crescer.
também não há como olvidar, como salientou Cabral (2009), o trabalho Eu tinha doze anos quando fiz amor com ele': A partir daí seu corpo foi
da manifestação de um norte global que só consegue ler a si enquanto se alterando a tal ponto que se viu obrigada a mudar do interior de Minas,
colhe suas hipóteses sistêmicas de alcance universal. dirigindo-se, inicialmente, para Belo Horizonte. Ali se descobriu travesti:
"Virei travesti. Eu era linda! Depois eu saí e fui ganhar a vida. Trabalhei
Experiências locais muito tempo nas ruas de Belo Horizonte, na Itália, na Espanha". E foi
na Europa que iniciou um drama de envolvimento com drogas pesadas
Depois dessa discussão, podemos voltar a questionar: seria o queer e também ali se contaminou com HIV.
uma possibilidade de abertura a Outros? E será que aqui nos trópicos não A enfermidade fez com que Cida voltasse para o interior. Tentou
teríamos experiências de outras conformações ou estaríamos destinados se fazer desapercebida na cidadezinha onde nascera, cortando o cabelo
142 De corpos c rravessias Pedro Pa~ Gomes Pereira
143

bem curto e "não dando pinta", "fingindo ser homem': Mas não obteve quais habita, e uma travesti que transitou por várias cidades e vive num
sucesso, vendo-se obrigada a se mudar mais uma vez. Não conseguiu refugio para portadores de aids no Brasil. Preciado, que aplicava em si
também voltar a "ganhar a vida" nas ruas, pois as enfermidades foram hormônios, manejava teorias requintadas, falava queer; Cida, um corpo
modificando sua aparência. Sem ter como sobreviver de seu ofício, sem estranho, excêntrico, desfigurado pela aids, mas que também manejava
ajuda de seus próximos e sem o amparo de seus familiares mais diretos, teorias sofisticadas ...
descobriu como única alternativa viver naquele abrigo onde a encontrei. Depois de quase um ano de conversas e de já estar bem familiarizado
A história de Cida me lembrou da que Preciado construiu de si, em com o universo daquele refúgio, tive um encontro com Cida diferente
Testo Jónqui. Algumas semelhanças são evidentes. Ambas passaram por dos demais. Foi naquele dia que ela me contou uma fascinante história de
modificações corporais, viveram em grandes urbes, manifestaram suas sua opção religiosa: era filha de Iansã e adepta da umbanda. Sempre que
sexualidades dissidentes, nasceram em pequenas cidades do interior. As podia se dirigia a um terreiro e era lá que se sentia acolhida. As mazelas
diferenças, entretanto, são muitas. Preciado (2008, p. 77) afirmou: "Eu que vivia, que para ela não fàziam sentido, eram amenizadas quando
habito distintas megacidades ocidentais': O verbo "habitar" é caro para percebia que podia ainda "trabalhar seu corpo': Como no refúgio onde
uma filósof-à, pois indica a decistio de vínculo com esses lugares, como habitava o deslocamento dos internos era controlado (ver Cap. 1), C ida
pode ser observado, por exemplo, em Heidegger ( 1986). C ida, mesmo "fugia" à noite para um terreiro que se localizava nas imediações, numa
viajada, jamais largou sua cidade natal, que a acompanhou em seus ges- rua de estrada de terra, numa casa bem simples e colorida, na periferia
tos e modos de f-àlar. Durante seus itinerários pelos países na Europa, os de Brasília. Dançava e "girava", incorporando pomba-gira. "Tenho aids,
contatos com outros idiomas foram marcados por sensação de inaptidão: não tenho nada na vida, mas vou morrer batuqueira", disse-me então.
"Eu me virava, mas sempre me achei meio burra para línguas", disse-me Anotei essa conversa em meu caderno de campo. Falei sobre isso com
quando lhe perguntei se falava italiano ou espanhol. "Eu sou do interior, especialistas nas religiões afro-brasileiras, mas nunca me detive nessas
até português fàlo errado e com sotaque", emendou C ida, salientando sua formulações de C ida, até por me sentir desconfortável em abordar uma
percepção de inabilidade. Já Preciado (2008, p. 77) sustenta: "Transito temática que não dominava. Não pude naquele momento me aproximar
entre três línguas que já não considero nem minhas nem estrangeiras", e da teoria que Cida estava me apresentando, da qual só pude perceber a
fàla com júbilo do "prazer único de escrever em inglês, em francês, em densidade e relevância muito mais tarde.
espanhol, de caminhar de uma língua a outra ...". Nesse aspecto, C ida está De qualquer modo, sempre pensava nas experiências de Cida.
mais próxima de Glória Anzaldúa ( 1999) para quem "cuando vives enla Recordava que seu corpo fora objeto de tecnologias de harmonização,
frontera ... eres burra': Preciado olha com desconfiança e com certa antipa- mas administradas por um médico de interior, vinculado à sua família.
tia para Burgos, cidade na qual "as meninas" que ela "amava na infância" Lembrava que seu desejo de refazer as perforrnances corporais estava li-
são agora casadas, têm filhos, e "lutam ativamente contra o relaxamento gado às perjorrnances de mulheres tradicionais do interior e não foi à toa
dos músculos do pescoço" (p. 77). Aqui, vemos em Preciado uma narrativa que a descobri naquele misto de recato e comedimento, mas sonhando
distante daquela que Veena Das (2007) construiu ao narrar as histórias com decotes e brilhos. Relembrava que ela era uma pessoa viajada, mas
de Manjit e Asha, e igualmente distante do olhar de admiração que conservava seu sotaque mineiro e um jeitão de geme do interior e, ao que
Cida postava sempre que f-àlava das mulheres nos bailes do interior e de parece, aquela cidadezinha onde nascera sempre a acompanhara em seus
sua maneira delicada de contar sobre as "modas de mulher". Temos uma itinerários, pelo seu corpo e pelo mundo. Enfim, un1 corpo feito de sonhos
filósof-à que f-àla de grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos, nas de paetês, organzas e festas; performances miméticas de posturas, gestos e
De corpm e uav~:::;.~ia:<> Pedro Pat"l!t Gomes Pereira 145
14-l

modos de mulheres do interior do Brasil; hormônios administrados por de silicone. Seus corpos - como os das outras travestis que frequentam
um médico de família; silicones de "bombadeiras" e cirurgiões; viagens as casas-de-santo - passaram por técnicas como ingestão de hormônios,
e troca de experiências e fluidos; experiências intensivas com drogas; um plásticas, longos e demorados apliques de cabelo, sessões de laser para
sistema imunitário debilitado; enfermidades que transformam o corpo; retirada de pelos do rosto ou a utilização de pinça, cera ou gilete.
doenças que conduzem a um refúgio para portadores de aids. Esse corpo Em Santa Maria;' os pais e mães-de-santo dizem que "consideram
era "trabalhado" nos rituais de umbanda, no batuque. O corpo de uma três lados'; a nação, a umbanda e a quimbanda. A pesquisa vem mostrando
filha de Iansã - orixá que foi homem e se transformou em mulher, tem que as travestis preferem participar dos rituais da quimbanda, nos quais,
um corpo de mulher e determinação masculina, rechaça a maternidade como dizem, "reina Exu", pois é o local que as permite incorporar pomba-
e é guerreira e defensora da justiça (Segato, 2003, p. 218). -gira e dançar ao som do batuque, bem como desempenhar performances
corporais ou relacionar-se a um orixá feminino. 4 Em determinadas
Corpos em trânsito ocasiões, principalmente em festas para orixás, as travestis vestem-se
com roupas bem femininas, saem à noite - dispensando, para isso, suas
Em 2011, uma década depois de ter concluído minha etnografia, atividades remuneradas, ordinariamente a prostituição - e se dirigem às
passei a orientar uma doutoranda, l\1arrha Souza, que fazia pesquisas casas-de-santo, indo direto para os locais reservados para a quimbanda. 5
sobre itinerários das travestis de Santa Maria (RS) no Sistema Único de Ao som do batuque, entram em transe, incorporando pomba-gira - o
Saúde (SUS). Manha não tardou em encontrar um vazio no que se refere espírito de uma mulher (e não orixá) que em vida teria sido uma prostituta,
à assistência, assinalando a inadequação dos serviços para receber as traves- mulher capaz de dominar os homens por suas proezas sexuais, amante do
tis. Entretanto, deparou-se com formas, para ela inesperadas, de cuidado luxo, do dinheiro e dos prazeres.
e de acolhida. De um total de mais ou menos cinquenta travestis que Trata-se, enfim, de um quadro complexo que envolve de uma só vez:
acompanhava em seu trabalho de campo, quase quarenta frequentavam contato de perspectivas religiosas diferentes; personagens que manejam
"casas-de- santo" e se diziam católicas, mas também adeptas das "religiões saberes míticos sofisticados e constroem uma gramática de gênero e sexu-
afro-brasileiras". A pesquisa, que se concentrava nas pensões e residências alidade que se afasta da heterossexualidade compulsória; reconstruções
onde as travestis moravam, bem como nos pontos de prostituição e nos de corpos por tecnologias; perfonnances rituais nas quais os corpos estão
postos de serviços de saúde, acabou se direcionando também para as casas- no centro, perfazendo um movimento de evocar e produzir esses mesmos
-de-santo, localizadas, em sua maioria, em bairros pobres de Santa Maria. corpos ... Esse quadro permite, como mencionado, uma travesti, que passou
Manha descobriu uma realidade muito mais rica que podia ima- por rodo tipo de tecnologia para produzir um biocorpo feminino, que
ginar, com personagens marcantes, como Xuca, uma travesti de apro- se aurodenomina por um nome feminino, seja um pai-de-santo, tendo
ximadamente 30 anos, com Iemanjá como "santo de cabeça" e Oxalá como santo de cabeça Iemanjá: mitos, tecnologias, rituais, inventando
como "santo de corpo': Xuca é o pai-de-santo Ricardo, casada com um novas formas de estar no mundo. Na realidade, podemos falar aqui que
babalorixá, candidato a vereador na cidade. Personagens como Joy e
Carol: a primeira, a travesti mais decana da cidade, com mais ou menos 3 Sobre as religióes afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, ver Correa (1994) e Oro (2002. 2008). Sobre batuque
54 anos, mãe-de-santo respeitadíssima; a segunda, Carol, filha de Pai no Rio Grande do Sul, ver Corre a (1992) e Braga ( 1998).
4 E.xu, no candomblé, é o orixá mensageiro entre os homens e o mundo dos orixás. Pomba-giras e exus sáo
Ricardo (Xuca), pai-de- santo. As três têm Iemanjá como santo de cabeça; associados à rransgressio. As pomba-·giras sáo ex:us fCmininos. Sobre o assumo, ver Trindade ( 1985), Comins
& Goldman (1984), Augras (1989), Meyer (1993).
rodas, loiras, administram hormônios e fizeram cirurgias para implante Para uma análise do vesmário na químbanda, ver 'Ii::ixeira (2005).
De corpos e traYessias Pedro PaultiiGomes Pereira 147
!46

corpos-homem e corpos-mulher não se atrelam à biologia e se reinven- Não se trata de uma realidade sem conflitos. A diversidade das reli-
tam, fazendo questionar se são adequados os termos "homem-mulher", giões afro-brasileiras produz formas distintas de lidar com a sexualidade
alocados em justaposição ao vocábulo "corpo", questionando a vinculação que podem ser de acolhimento, como acontece com as travestis em Santa
direta de gênero e sexualidade. De qualquer forma que se pense esse con- Maria, e de práticas que se vinculam mais à lógica binária e heterossexual
texto, parece bem claro que existe uma procura insistente por gramáticas (que precisam ainda ser mais bem descritas e analisadas) .6 Outra dimensão
importante, também conflitante, é o grau de envolvimento das travestis
diferentes de corpos e sexualidades.
com a perspectiva religiosa. Há um tipo de agência que não se assemelha
às ações reivindicatórias da linguagem dos movimentos sociais, mas que se
Corpos diferentes, mediadores distintos
envolve com determinadas formas de conhecimento e de fazer religioso,
com mitologia e pnformtznces rituais, com teorias e códices religiosos.
O meu trabalho de campo e a experiência que estou vivendo com
O envolvimento com esse universo, no entanto, não é uniforme, como
Manha em Santa Maria coadunam com as análises de diversos pesqui-
pode ser observado na distinção entre as travestis iniciadas, ou pais e
sadores sobre sexualidade nas religiões afro-brasileiras (Fry, 1977, 1982;
mães-de-santo, e aquelas travestis de Santa Maria que apenas frequentam
Birman, 1985, 1995, 2005; Leão Teixeira, 2000; Segato. 1995; Santos,
os rituais de quimbanda. No primeiro caso, a atuação se processa numa
2008). Segato ( 1995), ao refletir sobre o xangô do Rede, argumenta
linguagem diferenciada e num distanciamento expressivo dos padrões
que o xangô busca sistematicamente liberar as categorias de parentesco,
hegemônicos de sexualidade e gênero, dada a imersão nessa outra for-
de personalidade, de gênero e sexualidade das determinações biológicas,
ma de conhecimento e nesse outro universo valorativo. Entretanto, no
e procura deslocar a instituição do matrimônio da sua centralidade na
segundo caso, as travestis buscam o acolhimento de suas sexualidades
estrutura social. Essa busca pode ser acompanhada: na prática de atribuir
dissidentes no interior de uma nova gramática, procurando na religião
"santos-homem" e "santos-mulher': indistintamente, a homens e mulheres
opções performáticas, morais e de conhecimento que justifiquem suas
como tipos de personalidade; no tratamento dado pelos mitos aos papéis
escolhas, que as acolham e por meio das quais possam se expressar. Essa
femininos e masculinos dos orixás; na visão crítica dos membros em re-
distinção é observada pelos pais e mães-de-santo. Instigado a falar sobre
lação aos direitos derivados da maternidade de sangue; na importância
o assunto, o babalorixá Cláudio fez a seguinte formulação:
conferida à família fictícia que é a "fàmília de santo"; na definição dos
papéis masculinos e femininos dentro da família de santo; e na bissexua-
Por exemplo, se vem um travesti jogar com a gente e se o [pai] Fer-
lidade da maioria dos membros masculinos e femininos do culto. Dessa
nando jogar para ele e ver que tem um santo homem na cabeça, aí a
maneira, a visão de mundo do xangô adota uma postura de caráter não
gente não troca [o nome do santo]. Porque a travesti pensa assim ó:
essencialista, visto que opera desnaturalizando os modelos de fàmília,
eu tenho que ser da Oxum, da Iemanjá ou da Oyá. Porque daí elas
gênero e maternidade. Esse pálido resumo não fàz justiça à sofisticada
argumentação de Se gato, mas é suficiente para a discussão aqui proposta. 6 masculinos nos ritos. José Jorge de Carvalho, em
A análise de Segato e o material de que disponho permitem afirmar a mulheres são interditadas de sacrificar os a~imais ofertados aos

existência de um tipo de operação que sustenta a independência da esfera rituais por género é o único âmbito que a vida sociorrdigiosa obedece ao
. Em Sama l\1aria, perguntado sobre o assumo. pai Ricardo disse que as travestis
da sexualidade, fazendo com que se escape de categorias essenciais, ou de são rambém homens, pois "rêm pênis" e, por isso, podem fazer riruais com sacrifício de animais. De acordo
identidades rígidas, e se busque uma nova gramática que possa acolher com ele, ""<U· mulbere:; precúmn de umtl ciénó.l pilm podn mattZr ,mimilis. Depois de_fi1:zer {1
ou entâo ,nnrrnmn um ho?nem de r~judmue': Ou seja, o corpo
os desejos e anseios. divisão de papéis riruais por gênero.
148 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
149

vão justificar porque se vestem de mulher. Porque daí ela se veste de Olha que menina linda,
mulher, ela vai usar coisas da Oxum. Aí eu sou filha da mãe. Eu tenho Olha que menina bela
que estar bem pintada, bem arrumada. Se quiser vim de mulher, vem. É Pomba-Gira Menina,
Só o respeito em si da casa. Me chamando da janela. (bis)
._ Gira Jvfenina, Gira, Gira que eu quero ver...
As travestis buscam estabelecer uma relação com os santos, como se Gira linda Menina,
ser consagrada a um santo feminino justificasse sua sexualidade e sua ~e o Exu não tem querer.
nilidade. Os orixás, os exus e toda mitologia são acessados pelas travestis
para pensar as transformações corporais e os desejos. No entanto, uma Não é pouca coisa. A pomba-gira, bastante cultuada no candomblé
pessoa consagrada a Iansã, Iemanjá ou Oxum pode ter de rodar-no-santo e na umbanda, é personagem popular no Brasil. As populações pobres
paramentado com roupas e acessórios femininos, mas isso independe de urbanas valem-se dela em busca de resolução de aflições vinculadas a
sua orientação sexual. ~ando alerta para a necessidade de "respeitar a desejos e à sexualidade. 8 As narrativas relacionadas à pomba-gira revelam
casa'; Cláudio está sublinhando a prioridade da esfera sagrada e da lógica algo "das aspirações e frustrações de largas parcelas da população que
religiosa (com seus rituais, códigos e mitos). Ele está afirmando que a estão muito distantes de um código de ética e moralidade embasado em
tradição religiosa é mais complexa e não permite traduções apressadas e valores da tradição ocidental cristã" (Prandi, 1996, p. 140). Não há como
coladas à linguagem hegemônica de sexualidade e de gênero e ao dimor- desvencilhar esses corpos de suas histórias locais.
fismo. Com isso, o babalorixá disserta sobre a lógica do mito, sobre modos Essas histórias locais constroem corpos diferentes, já que se valem
de conhecimento que operam em níveis diferentes do desejo das travestis de mediadores diferentes, como se vê no artigo de Patrícia Birman
em adequar a linguagem mítica à aspiração de transformação corporal.- (2005), em que procurou considerar a agência dos entes sobrenaturais,
Cláudio sustenta que, embora não sejam espúrios os anseios das travestis, não tornando irreais os efeitos e produtos de possessão, mas aceitando a
a perspectiva religiosa é mais intricada e desliza com mais imensidade. condição de agentes de santos e entidades. Esse procedimento valoriza o
As travestis anseiam por nova linguagem que ofereça condições ponto de vista dos médiuns e pais-de-santo e possibilita observar a prática
para que se vejam por outras lemes e por outros ângulos. Sair dos espaços da possessão que entrelaça humanos, deuses e espíritos "em tramas que
onde seus corpos são abjetos para outros nos quais seus corpos são belos envolvem desejos sexuais, elos afetivos e papéis de gênero com os diferen-
e seus desejos se mostram legítimos. Nesses espaços (nas casas-de-santo, ciais de poder que atravessam rodas essas inter-relações" (Birman, 2005, p.
em ruas sem asfalto de bairros afastados e precários), podem dançar em 404). Se Birman estiver correta, então os entes sobrenaturais seriam para
transe, incorporando pomba-gira, ao som do batuque. Nesse momento as travestis de Santa Maria tão mediadores quanto a biotecnologia. As
escutam e entoam a música: travestis se definiriam por atos, gestos corporais e discursos; por próteses
cibernéticas e substâncias químicas, mas também por santos e entidades.
- f\ possessáo. cemral nas religiões afro"brasileiras, é um fenômeno riw,1l que permire aproximar onm e âi(. Os corpos das travestis seriam diferentes, por serem produzidos por outros
a mor,l\.h dos orixás e a dos homens. Duranre a possessão. um orixá (ou um exu) "desce~ c passa a rertlizar
pn:fi.lrrwmas com um conjunto de gestos e passos ao som do baruque. A
mediadores e conformados (e conformando) por outras subjetividades
de aheridades. Cláudio esrá .llerrando para uma utiliz-ação da

José Jorge de Carvalho ( 1994, p. 94-99) narrou um serviço ritual dedicado à pomba-gira em Recítê. em 1980,
evidenciando su.:t relevância. O artigo de Carvalho demonstra também as imensas relações entre violencia,
esrabelecem com pomba-gira. sexualidade. obscenidade e experiência religiosa, pensando no conrexm do Xangó e da Jurema.
De corpos c rraYessias Pedro Paulo Gomes Pereira !51
!50

- os corpos harmonizados e siliconados precisam ser "trabalhados no são outras. 5) Descontextualizar esses corpos e almas seria proceder um
batuque", como já havia me ensinado Cida. tipo de violência epistemológica que atua retirando aquilo que é mais
A religião oferece, assim, gramática e léxico alternativos para a caro para os sujeitos envolvidos, desprezando suas invenções e formas de
expressão das travestis, pois encontraram na religião um modo de co- agir, o que nos conduz de volta às perguntas formuladas no início deste
nhecimento (Velho, 201 O) e, tomando emprestado aqui os'ermos de capítulo, sobre a potencialidade e a adequabilidade do queer nos trópicos.
Segara (2007, p. 289), uma estrutura capaz de abrigar suas experiências
de trânsito e fluxo, um léxico conveniente para sua circulação e desliza- Traduzir o queer?
mento entre opções de sexo e gênero. As travestis de Santa Maria, assim
como Cida num refúgio para portadores de aids em Brasília, pessoas das A potência da teoria queere seu não congelamento em teorias prévias
margens, procuram um vocabulário no qual o desejo possa encontrar e sem conexões com as histórias locais dependerá de sua capacidade de
expressão e buscam signos para representar sua diferença (Segara, 1997, absorver essas experiências outras e alterar-se. As reticências sobre o termo
p. 289). Na experiência religiosa, as travestis envolvem-se em mitos que queer que, como se sabe, não possui tradução fácil, poderiam se arrefecer.
as possibilitam expandir seu universo de crença e de interpretação, e com Como disse no início deste capítulo, alguns autores comentaram que o
ritos que intensificam e diversificam as experiências individuais (Carvalho, termo queet~ por si, assinalaria certa assimetria, pois sempre evocaria um
contexto inglês e ocidental para o mundo. No entanto, se a teoria queer
1994, p. 116).
Da forma como as vejo, as personagens dessa história seriam mais puder, ao contrário, abrir-se para essas outras experiências e saberes (como
bem compreendidas se pensássemos em pessoas acessando sofisticados as narradas neste capítulo, nas quais se assinala a diferença de corpos,
aparatos míticos; em corpos siliconados e harmonizados que perfizessem formas de agência, mediadores, subjetividades), deixando-se afetar, nesse
belíssimas pnj'ormances em rituais na quimbanda; em sujeitos em trânsito caso haveria a possibilidade de - em vez de o termo em inglês assinalar a
que se valessem de códices religiosos de modo a refletir sobre suas opções assimetria consubstanciada num eurocentrismo avassalado r- a expressão
e desejos ou que buscassem espaços para aquilo que anseiam. Não designar a resistência a traduções fáceis.
num quadro como o que descrevi neste artigo, como aplicar uma proposta Investigando a etimologia do termo, Sedgwick ( 1993, p. xii) concluiu:
como a de Preciado, não só porque o biopoder é algo aberto que precisa "A palavra queer em si significa através - provém do étimo indo-europeu
ser cartografado (inclusive em suas variantes, como o farmacopornopoder twerkw, que dá também o alemão qun· (transversal), o latino torquere, o
aventado pela autora), mas porque os corpos são diversos. Afinal, os me- inglês athwart': O queer poderia ser traduzido para o português como
diadores são outros e a biotecnologia se mescla com entidades e deuses que estranho, ridículo, excêntrico, raro, extraordinário; a expressão é também
conformam outro corpo. E, ademais, a forma de agir (a agência) não é nem usada de forma pejorativa para designar os corpos dissidentes (Louro, 2001 ).
a mesma em rodos os contextos, nem independentes das histórias locais. Houve quem propusesse expressões para designar a teoria queer: "teoria
Dessa maneira podemos concluir que: 1) O gesto político queer rarità; "estudos transviados'; "teoria vadia': O incômodo com o termo em
parece ser diverso da agência dos adeptos das religiões afro-brasileiras. 2) inglês é notório. Essas dificuldades de tradução me fizeram lembrar um
As travestis de Santa Maria buscam novas gramáticas para se expressar. notável texto de Jaques Derrida (2005), no qual ele responde à solicitação
3) Não há como pensar esses corpos descontextualizados dos intricados de seu amigo japonês, que buscava traduzir o termo "desconstrução': Der-
contextos que os produziram. 4) Não há também como aplicar simples- rida sinaliza então a impossibilidade de traduzir no mesmo instante em que
mente teorias alhures formuladas porque as formas de subjetivação aqui traduz o vocábulo "desconstrução'; evidenciando assim como essa palavra
1'52 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
153

é substituível por outra numa mesma língua ou entre línguas diferentes estrangeiro que resiste, dos corpos ex-cêntricos, das práticas diversas), e
(Ottoni, 2005 ). Nessa tentativa, Derr~a mostra como o tradutor se envolve essas experiências nos trópicos inventariam uma abertura a outras gramá-
e se compromete com a língua que traduz, e afirma: ticas e outras formas de agir, como nos ensinam as travestis "trabalhando
os corpos" nas casas-de-santo em Santa Maria.
A possibilidade para desconstrução seria que uma outra palavra
(a mesma e uma outra) se encontmsse ou se invenliiSse em japonês
para dizer a mesma coisa (a mesma e uma outra), para falar de
desconstrução c pmn conduzi-la pam um outro lugm; escreuê-la e
tmnscrwê-la. (Derrida, 2005, p. 27)

Proponho que mais importante que procurar equivalentes diretos


para o termo queer numa ou noutra língua seria a necessidade de conduzir
a outro lugar; seria o "encontro" e a "invenção". Ou seja, a tradução como
transformação, que implica envolvimento e comprometimento.
Se os estudos queer estão paralisados, como salientam alguns, talvez
seja porque se petrificaram em teorias universais do norte global, que
são exportadas para os trópicos para serem aplicadas. E provavelmente
qualquer promessa de rejuvenescimento esteja vinculada às possibilidades
de escapar dessas armadilhas, em distorções e deslocamentos que as ex-
periências outras podem provocar. Assim, aqui do lado de cá da linha do
Equador, há que se pensar em afetos e afecções que possam deslocar essas
teorias universalizantes e alheias às histórias locais. A teoria queer seria
afetada e reconfigurada em traduções propiciadas por essas experiências
outras. O termo queer, nesse caso, sinalizaria para um sempiterno movi-
mento no qual o desejo de traduzir seria tanto um abrir-se para o outro
como a descoberta das potencialidades das línguas maternas, alargando
os horizontes de perspectivas. Acolher esse termo estrangeiro - simul-
taneamente de tradução impossível e que necessita de tradução - pode
produzir, se assim for, uma reconfiguração das línguas e perspectivas,
nesse instável deslocamento da "construção do comparável" (Ricoeur,
2004). 9 O queer forçaria a língua a lastrear-se de estranheza (do termo

9
7 - Limites, traduções e afetos

Michel Taussig analisou, num artigo de grande repercussão na área


de antropologia da saúde (1992), o denominado "processo de reifica-
ção da enfermidade': Reificação designa a coisificação do mundo, das
pessoas e da experiência e assinala o movimento pelo qual as relações
entre pessoas se transformam em coisas. Nas sociedades contemporâneas
tudo funciona de forma a negar as relações humanas encarnadas nos
sintomas, signos e terapias. As doenças e as técnicas de cura, no entanto,
não são só naturais, mas signos de relações sociais disfarçados em coisas
naturais. Eis o dilema moderno: sustentar exaustivamente- e por todos
os meios- que os órgãos corporais são apenas coisas; ao mesmo tempo,
insistir sobre o significado social do mal-estar. A doença como símbolo e
o médico como alguém que interpreta esses símbolos são denegados por
uma ideologia que considera a enfermidade como coisa e substância em
si mesma. A prática médica é uma maneira singularmente importante
de manter a negação das relações sociais e de operar a coisificação sob
a égide da ciência. 1 Essa negação produz inevitavelmente "grotescas
confusões" que transformam as relações sociais em coisas e retiram o
caráter histórico e humano da enfermidade.

procura demonstrar que, como ser social rmal, <l reificaç;1o e J


entermidade. A objerividade ilusória (Luk<ks, 1974) conduz ao apropriar
se fossem coisas, como se fossem realidades exclusivamente ftsico-bíológicas.
exemplos de reific~_ção c de agência das consciérH
seu corpo e de sua doença) e dos outros homens.
Dt corpo~ e uavcssi,1s Pedro Paulo Gomes Pereira !59
!58

Analisando a situação de uma mulher branca de 49 anos, pobre, ências e debater sobre seu papel e sua atuação na saúde indígena. Resolvi
com uma história de múltiplas internações hospitalares com diagnóstico levar a sério o que tinham para me dizer e, alterando o foco inicial da
de polimiosite (doença crônica do tecido conjuntivo caracterizada por pesquisa, concentrei meus esforços em compreender as suas indagações
inflamação com dor e degenerescência dos músculos), Taussig discorre e os seus problemas (Pereira 20 12). Passei a registrar as narrativas- mui-
sobre o sofrimento dessa paciente, a leitura objetificadora dos medicos tas em extensas entrevistas e depoimentos que foram se sucedendo em
distintos locais, como Ambulatório do Índio, dependências do Projeto
e dos demais profissionais de saúde, a incomunicabilidade originada da
Xingu, Departamentos da Universidade, polos de formação em saúde
não percepção dos enunciados, o isolamento e a perda da autonomia
indígena, entre outros. Participei tambem de vários eventos: palestras,
da paciente. A internação hospitalar torna-se uma zona de combate em
oficinas e um curso de Especialização em Saúde Indígena, organizado pelo
que se desenrolam disputas de poder e definições sobre a doença, e que
conduz à alienação do enfermo. A organização clínica canibaliza o po- Projeto Xingu. Realizei a pesquisa do início de 2008 ao final de 2011,
tencial curativo que reside na intersubjetividade de paciente e curador. por meio de observação participante, entrevistas e acompanhamento da
vida cotidiana dos profissionais de saúde.
A realidade clínica mostra, enfim, a construção e a reconstrução clínica
de uma realidade convertida em mercadoria. A medicina humanística e, Logo no início das investigações, um medico me disse algo que eu
iria escutar repetidas vezes ao longo da pesquisa: "a sensação e que neste
portanto, um oximoro.
Não obstante a força da poderosa narrativa de Taussig- que descreve tipo de discurso ora somos opressores, ora não existimos". Um dia distribuí
de forma comovente a moderna coisificação e fetichização medica do o mencionado artigo de Taussig para um grupo composto por médicos
sanitaristas, nutricionistas, psicólogas, enfermeiras, que se mostraram
corpo da mulher tomado como signo social - e apesar do apelo de seus
animados com a discussão. Se houve algum consenso sobre as críticas à
argumentos, principalmente por apresentar uma explicação geral para o
processo saúde-doença, no decorrer de uma pesquisa sobre tecnologias medicina e à "objetivação da doença", fui alertado para a completa ausên-
cia, no referido texto, de profissionais de saúde "como atores do processo
biomédicas, que venho desenvolvendo desde 2008, deparei-me com um
insistente questionamento em relação a uma determinada visão que com- de saúde': Segundo eles, médicos e enfermeiras, quando apareciam no
preende os profissionais de saúde unicamente como opressores. A univer- artigo de Taussig, estavam sempre sob suspeita. O artigo construía uma
sidade da qual tàço parte, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp ), paciente envolta numa multiplicidade de participações e de interpretações
colabora na assistência à saúde dos povos indígenas do Parque Indígena sobre o adoecimento e sobre a vida, enquanto a imagem dos profissionais
do Xingu (PIX) desde 1965, reunindo profissionais de diversas áreas no de saúde permanecia estática e vinculada a uma atitude autoritária que
Projeto Xingu. Desde essa epoca, equipes multidisciplinares- integradas aborrecia meus interlocutores. Eles não se enxergavam na narrativa de
por medicos, enfermeiras, nutricionistas, dentistas- promovem ações de Taussig nem nas ações dos profissionais de saúde nela descritas. 2
saúde, tais como: enviar profissionais ao PIX com o objetivo de realizar Esse questionamento era recorrente. Fui interpelado pelas inda-
vacinações e atender a ocorrências clínicas; estreitar vínculos com o gações de meus interlocutores que se recusavam a pensar suas atuações
Hospital São Paulo (HSP) na busca de suporte aos casos que necessitam
2 se refere à realidade médico~hospitalar. [vias, mesmo noutros rrabalhos, como em
de cuidados clínicos ou cirúrgicos especializados; administrar o "Ambu- sua ana1Ise do terror e cura na área do Putumayo. os profissionais de saúde aparecen
da reificaçáo: médicos que prescreviam receitas de fármacos caros para miseráveis,
latório do Índio" em São Paulo, entre outras. água poluída e à falra de comida; medicamentos produzidos por nwltinacionais qualJhcadas
Os profissionais de saúde ligados ao Projeto Xingue ao Ambulatório se alimentam de lixo e uipas" (p. 273). Existe. pois. uma persistência na forma de descrever os
saúde, já que a narrativa sequer insinua a existência de dilemas, dificuldades, limites ou ambiguidades nesses
do Índio passaram a me procurar com o objetivo de narrar suas experi- personagens, sempre vinculados a atitudes autoritárias.
160 De corpos c travessias Pedro Paulo Gomes Pereíra
161

apenas como forma de operacionalizar a reificação da enfermidade. Notei


lação de Daniela com a temática indígena é uma constante, já sinalizada
que grande parte deles era formada por profissionais que trabalhavam com
pela contínua procura de explicações para seu "desejo de se dedicar à causa
saúde indígena. Esse tipo de experiência com a alteridade proporcionava
indígena': Os "sinais" já estavam presentes desde criança. Com mais ou
uma modificação em seus modos de pensar e de agir, principalmente se
menos 11 anos, em plena época da ditadura militar, na escola municipal
comparados aos encontrados nos hospitais. E eles insistiam nessa diferen-
onde estudava, os professores de história subitamente desapareciam. Esses
ça. Distante da paisagem desenhada por Taussig, pouco a pouco f-oram
professores entraram na imaginação de Daniela de forma fantasiosa e in-
surgindo diante de mim: um médico que, acometido por enf-ermidade
citante. E foi um deles- na realidade, uma professora- quem comentou
grave e tendo de se submeter à intervenção cirúrgica, só aceitou o pro-
mais detidamente sobre os dilemas dos índios no Brasil. "Lembro-me
cedimento com a presença de Encantados Pankararu; enfermeiras que
de ter que sair da sala com um grande mal-estar quando [a professora]
dedicaram toda sua vida profissional e pessoal à tarefa de atuar em socie-
abordou o tema da questão indígena'; asseverou Daniela. Absorta por
dades indígenas; médicos que realizavam curas espirituais e outros que
sentimentos como esse, suas narrativas tecem uma história na qual o
seguiram eles próprios terapias propostas por xamãs; e assim por diante.
vínculo com a temática indígena a acompanhou desde a infância. Daí
Esse quadro me conduziu às seguintes perguntas: o que acontece
as constantes tentativas de elucidar esse vínculo: a memória busca uma
com profissionais de saúde que se veem diretamente relacionados a con-
explicação que remete a um momento anterior às mencionadas aulas.
cepções diferenciadas de corpo, saúde e doença? O que sucede quando as
práticas de saúde se dão num processo de tradução da própria conceituação
De fàmília grande, mesmo pobre, eu viajava muito para a casa de tios,
do que seja saúde? De que forma esses profissionais são afetados por essa
irmãos de minha mãe. Um deles, muito querido, morava no :Mato
experiência com a "alteridade radical" (Peirano, 1999)?
Grosso e passei muitas férias com nove primos numa casa de madeira
Sem qualquer intenção de ser exaustivo ou de abordar todas as
de poucos cômodos, sem forro. Apesar de estar na capital, naquele
nuances dessas indagações, e assumindo antecipadamente a parcialidade
tempo o i\1ato Grosso era "terra de ninguém"... Lembro-me de ouvir
da empreitada, este capítulo busca refletir sobre essas perguntas, voltando-
alguns vizinhos do meu tio contarem que matavam jacarés com
-se simetricamente (Latour, 1997) àqueles que, presentes na paisagem
quatro palmos de olho a olho e, ao mesmo tempo, diziam quantos
geral da saúde indígena, por vezes desaparecem em nossos relatos ou são
bugres tinham alvejado. Só mais tarde eu atinaria que "bugre" não
enquadrados de forma homogênea, sem o cuidado com suas especifici- era um tipo de peixe, mas índios.
dades. A esperança é que esse movimento permita apresentar um pouco
da complexidade dos profissionais de saúde, dos problemas que abarcam
Os momentos reconstruídos pela memória associam índios e neces-
suas atuações em sociedades indígenas e de suas concepções do próprio
sidade, e estão repletos de imagens de violência como as acima descritas.
trabalho a ser efetuado.
As imagens indicam situações de vulnerabilidade nas quais urge intervir.
É na intervenção que surge a medicina. Se desde a juventude Daniela
Daniela e os limites da biomedicina afirmava o desejo de "trabalhar com índios'; em algum momento de sua
história acaba por achar que "se fosse médica poderia contribuir melhor
Daniela nasceu em 1967, na cidade de São Paulo. Médica, formada já que os índios estavam 'morrendo:" A medicina é, assim, posterior à
no Câmpus de Botucatu da Universidade Estadual PaulistaJúlio Mesquita decisão de se voltar à temática indígena. E vinculada à ideia de resgate e
Filho (Unesp ), optou pela especialização em Saúde da Família. A vincu- com certo tom de missão.
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 163
162

Lembro-me do momento exato da decisão. Eu era muito, muito Nessa época, Daniela, com 26 anos, estava trabalhando com os
nova ... O pensamento se encaixou com perfeição [... ].Algumas Caiapó, na aldeia Kapoto. Uma noite, ela dormia nas ocas devido ao medo
outras influências também contribuíram: minha mãe era espírita e dos alojamentos distantes das aldeias sempre sujeitos a ataques de onça.
fizemos muitas visitas a instituições de assistência. Cresci com grande Acordou sonolenta, sem conseguir compreender a cena que via: uma
interesse sobre a questão indígena e tudo sobre o assunto me atraía. jovem adolescente se debatia na rede, cercada de várias pessoas. Daniela
Provavelmente me fujam outros fatores que fizeram a medicina e se questionou se estavam batendo na jovem ou a segurando. Viu-se impe-
a questão indígena entrarem na minha vida, mas durante toda a lida a levantar, já que a cena não dava sinal de terminar. Pensou de início
faculdade mantive a intenção. ser uma crise epiléptica ou de alguma enfermidade por ela conhecida, e
perguntou se poderia ajudar.
Essas narrativas, de tom marcadamente soteriológico, constroem Soergueu-se para enxergar melhor. Percebeu que a moça se debatia
firme decisão e moldam a vida profissional de Daniela: uma semana e muitas pessoas tentavam comê-la com dificuldade. Nesse momento, um
após receber o diploma pela Unesp já estava no Acre e, desde essa época, homem mais velho disse à Daniela que não se preocupasse, porque era "do-
envolvida com saúde indígena. Depois do Acre, iniciou um trabalho no ença de índio". "Essa categoria 'doença de índio' trata das coisas", afirmou
Xingu. Permaneceu também algum tempo trabalhando na formação Daniela, "que nós médicos não conseguimos entender nem resolver': 3
de agentes indígenas. Presrou exame para residência em Saúde Pública Mas, ainda assim, a médica buscou entender por que estavam tentando
em Botucatu, mas acabou se dirigindo a Rondônia para trabalhar num comer aquela moça. A explicação recebida ampliou a curiosidade, já que
projero com os Suruí e os Cinta Larga. Ao voltar a São Paulo, chegou à só afirmava que, "se não a contivessem, [a jovem caiapó] iria para o mato
Aldeia Guarani do Jaraguá, onde está trabalhando até hoje. Esse tour de e não voltaria mais, e seria perigoso para ela".
force nem de longe dá conta de uma rica trajetória. De qualquer forma, a Como a situação perdurara por mais algum tempo, Daniela retor-
opinião dela é clara: "sempre estive vinculada à saúde indígena, mesmo nou à rede, mas não conseguiu mais dormir preocupada. No dia seguinte
quando não estava". examinou a jovem caiapó, que não falava português. O tradutor indígena
Pensando nesse envolvimento, nas narrativas que insistem em alçar dizia que, na realidade, ela não sentia absolutamente nada e não conseguia
na memória um vínculo com a temática indígena, e com a intenção de contar sobre o que acontecera à noite. Aquilo intrigou Daniela.
indagar como o contato com a alteridade radical se manifestaria num Seu trabalho era prioritariamente voltado à detecção de tuberculo-
profissional de saúde, solicitei a Daniela que me contasse um evento que se, pois havia muitos casos na aldeia naquela época. Daniela era a única
considerasse significativo na sua experiência com sociedades indígenas. médica ali, e os agentes indígenas falavam pouco o português - situação
Ela narrou a seguinte história: que a levava a depender de tradução para a realização dos afàzeres. Era
uma época conturbada. Muitos aviões de garimpeiros assediavam as
Para mim, é difícil escolher dentre tantas histórias vivenciadas a que lideranças com o objetivo de procurar ouro na região. Traziam pilhas,
melhor exemplificasse as crenças como aspecto relevante para inter- carne de frango e outros produtos de escambo. Diante da situação, o
venção, pois minha vivência em comunidades indígenas me ensinou trabalho na área de saúde era tão intenso que Daniela dormia em função
muito sobre a importância de conhecê-las e experimentar um olhar a do cansaço. Despertou, no meio da noite subsequente ao ocorrido com
partir delas. No momento gostaria de compartilhar um episódio que
começou numa fàmília e acabou por se disseminar pela aldeia roda.
3 Sobre as caregorias "doença de índio., e "doença de br,mco': ver Galloís ( 1991) e Barcelos Neto (2006).
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 165
164

a jovem caiapó, com a mesma cena envolvendo a adolescente. Nesse o avião e trazer os pajés necessários para resolver a situação na aldeia se o
instante, porém, deixaram-na examinar a "enferma". Daniela constatou pedido fosse dela, a médica responsável. A decisão era difícil. De um lado,
que a jovem estava sem liberação de esHncter, sem febre, com semblante a Funai fornecia apoio com a condição de tirar as decisões das mãos dos
assustado, mexendo-se muito. lv1ais um dia se passou e, com o correr das Caiapó, num misto de desconfiança e autoritarismo. Do outro, Daniela
horas, novo exame, nova conversa com o intérprete e, outra vez, nenhuma não conseguia desenvolver seu trabalho e via o quadro se complicar, saben-
resposta. Na terceira noite, a situação se repetiu. Passaram-se dois dias e do que seu chefe não aprovaria tal procedimento por não ter percepção
outra adolescente apresentou quadro idêntico. Mais alguns dias e já se da gravidade daquela ocorrência. Pedir a pajés um auxílio sobre questões
contabilizavam "cinco adolescentes com o mesmo sintoma". Daniela co- de enfermidade poderia ser considerado como incompetência, temia a
meçou a formular hipóteses: arbovirose? encefalite? Mas não encontrou médica. Apesar do dilema de se encontrar com o dever de mediar dois
algo sustentável. Uma questão a intrigava naquele momento: "por que de universos diferentes, com implicações diretas na sua imagem profissional,
dia rodos estavam bem e não apresentavam nenhum sintoma?". Daniela escreveu um radiograma para quem liberava o recurso com um
As noites se repetiam até que numa ocasião os "sintomas" atingiram discurso nos moldes dos pensados para os altos funcionários da Funai.
alguns homens jovens." Se para segurar uma moça eram necessários mais O radiograma continha a seguinte mensagem:
ou menos cinco adultos, imagine um homem!", ponderou Daniela. A
Estamos enfrentando uma situação que foge da minha competência
aldeia estava paralisada.
c que as lideranças e comunidade definem como doença de índio.
A comunidade pede a presença de pajés que, tenho certeza, saberão
Fiquei com medo de que eles decidissem fugir todos para o mato.
conduzir o problema e amenizar o sofrimento da aldeia.
Com certeza cu não conseguiria acompanhá-los. Não dormimos a
noite toda, e a velha que cuidava de mim me alertou para não chegar
Com esse documento, o avião foi liberado. Mas, sem sucesso, pois
muito perto, pois um dos homens havia tentado atirar no grupo
que o segurava. No dia seguinte, a mesma tentativa de examinar e
rusgas antigas impediram a ida dos pajés à aldeia caiapó. A situação se
conversar. Então o homem da espingarda que falava bem o português
prolongou por mais alguns dias, mas foi controlada localmente. Da
me explicou: "Na hora a gente não vê os parentes, doutora; na hora
mesma forma como surgira abruptamente, assim desaparecera. A única
o que cu vi foi muita coisa teia e eles queriam levar meu espírito, por
explicação que Daniela recebeu sobre a resolução foi que outros pajés
haviam intercedido a distância, e que eles haviam "curado a rodos". Daniela
isso dá vontade de fugir ou atirar".
costuma contar essa história quando instada a falar de seu trabalho em
Foi nesse momento que "lideranças indígenas" disseram à Daniela saúde indígena. ~em sabe seja esta uma história, como irei argumentar
que pretendiam pedir o amdlio de um pajé de outra etnia. A assistência, adiante, que nos come algo sobre zonas de opacidade e limites da própria
parecia significar tal solicitação, não deveria vir de médicos, dispensáveis compreensão.
nesse caso. Enquanto isso, a situação de saúde da aldeia se agravava e
fazia com que se interrompesse o trabalho de tuberculose anteriormente Carla e a "máquina da vida"

planejado.
Nesse meio-tempo, as lideranças indígenas chamaram novamente Carla nasceu em São Paulo, capital, em 1977. Formou-se em enfer-
Daniela. Afirmaram dessa vez que a Funai só liberaria recursos para fretar magem pela Faculdade do Hospital Albert Einstein. O desejo de infância
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira l67
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de ser médica direcionou-se à enfermagem. Essa mudança deveu-se ao difícil consistia em aprender a lidar com os valores próprios, como "pessoa
"acaso" e à possibilidade de que o curso oferecia uma maior aproximação ocidental, católica e profissional de saúde': O assumo que mais incomo-
com o "cuidar". A propensão juvenil para atuar na área da saúde se somou dava era a compatibilização da "história da valorização da vida a todo
à curiosidade com "culturas exóticas", uma curiosidade atribuída a "uma custo, o salvar a vida a todo custo" com os valores indígenas sobre a vida:
insatisfação com o meio urbano, com as relações cotidianas daqui".
Na faculdade, ela se preocupava com o papel social do profissional, É a tal da velha história de salvar a vida da pessoa. A gente acaba
com o propósito de extrapolar a assistência. Os estudos universitários carregando isso. Acho que isso é o que mais a gente tem que traba-

desenvolvidos propiciaram um conteúdo mais voltado para a técnica e lhar, porque a gente é formada pra salvar, formado pra que o sopro

com um espaço pequeno para os conteúdos de saúde coletiva, de política, de vida [permaneça], o coração continue batendo e a pessoa conti-

de sociologia, de antropologia, das ciências sociais de uma forma geral. As nue respirando. Aquela coisa, quase uma máquina que temos que

pessoas eram educadas para atuar direta e tecnicamente num ambiente manter funcionando. Eu me lembro de ressuscitar uma criança num

hospitalar. Carla fez estágios no Hospital Albert Einstein e no Emílio barco. Eu estava completamente cnsandecida, porque não queria

Ribas, o que a levou à certeza de que não queria trabalhar naqueles am- que aquela criança morresse na minha mão, como se cu tivesse a

bientes. A ide ia era atuar com saúde coletiva e "conhecer outras culturas". responsabilidade e com todo o poder na minha mão. Isso cu acho

Começou a procurar instituições, como Médicos Sem Fronteiras, a Cruz que foi o que mais eu precisei trabalhar o tempo todo. Eu não
chegava a intervir com as pessoas e dizer "faça isso'; "faça aquilo':
Vermelha, mas foi no Projeto Xingu que ela se encontrou.
Ao fazer uma capacitação na Universidade Federal de São Paulo "não pode." Mas, eu sofria por dentro!

(Unifesp), Carla viu um cartaz sobre as comemorações dos 35 anos do


Projeto Xingu. Durante o evento, encontrou os dirigentes do Projeto e Essa vontade de lutar pela vida- "essa máquina de manter funcio-
lideranças indígenas, identificando-se com a concepção de política de nando [o corpo humano]" - transformou-se num dos maiores dilemas
saúde ali proposta. Escutou atentamente os indígenas presentes blarem de Carla. Como lutar pela saúde e pela vida se muitas vezes não se com-
como viam a medicina e sobre "a mudança do contato, as doenças, aquela preende o que é saúde e o que é vida na concepção daqueles para quem
dizimação toda, e atualmente essa mudança do índio querer saber as coisas as práticas de saúde são direcionadas? Solicitei à Carla que falasse um
do branco pra poder se defender, pra poder lutar". A empatia foi imediata, pouco mais sobre esse dilema. Ela me contou uma história "bem ilustra-
e Carla se deixou "enfeitiçar". "Eu me encamei': repetiu diversas vezes a tiva dos problemas que enfrentamos [os profissionais de saúde] quando
enfermeira. Esse encantamento a conduziu ao início de suas atividades no trabalhamos com populações indígenas. Foi um processo de luto, numa
Projeto Xingu. A partir daí, tudo seria novo para a enfermeira formada morte de um bebezinho, muito pequenininho':
no Einstein. Assuntos como "doença de índio, feitiço, xamanismo" eram ~ando Carla chegou à aldeia Tanguro, dos Kalapalo, o bebê deve-

constantes nas pautas das discussões preparatórias para as atividades de ria ter uns quinze dias de vida. Naquela época, ela contabilizava somente
"seis meses de [trabalho no] Xingu". Ao adentrar na aldeia, percebeu que
campo.
Apesar dessa preparação, Carla considerou sua primeira viagem as pessoas estavam de luto. Já dentro da oca, notou um choro constante,
ao Xingu especialmente "dura'', pois nela se avaliaram as propensões do ao que associou imediatamente à dor extrema. Os Kalapalo pranteavam
noviço para o trabalho, colocando-o física e emocionalmente à prova. a criança. Somente depois Carla entendeu que os pais do bebê eram
Carla percebeu, à medida que convivia e trabalhava no Xingu, que o mais bem jovens e haviam quebrado uma regra importante de quarentena.
168 De corpos c travessias Pedro Paulo Gomes Pereira
169

Pelos seus cálculos, o casal teria entre 13 e 14 anos de idade. Não soube nenezinho, está vendo ó, está respirando. Olha aqui, eu posso levar,
exatamente o que havia acontecido, mas ouviu rumores sobre o casal ser tem médico no posto, tem médico~ E ele disse "Não vai, minha @h a,
jovem demais, sobre atividades interditas, mas realizadas, que acabaram você vai perder tempo".
por desembocar naquele episódio.
Ela soubera da situação pelo agente de saúde indígena, que lhe Não se conformando, Carla passou a noite em trabalho de convenci-
solicitara ajuda. A criança, no diagnóstico de Carla, contraíra meningite mento. Percorreu o que classificou como a "hierarquia dos pajés" e chegou
e apresentava a cabeça visivelmente inchada, com febre alta, convulsões. ao que considerou o de maior prestígio. Demorou a conseguir falar com
Foi uma cena chocante para Carla, pois era a primeira vez que se deparava ele. ~ando finalmente se aproximou, com respeito e brandura, contou
com a morte no Xingu. Ao lado da enfermeira colocavam-se três pajés, sua versão, argumentando que havia vida naquela criança. Ao que o pajé
chamados para acompanhar o velório. retrucou: "Minha filha, está bom. Você já trabalhou (rindo). Agora não
O "avô da criança'; segundo Carla, "era o cacique'; e chorava copio- dá mais, pode descansar, vai dormir, amanhã você trabalha, vê outro ...
samente. Ao fundo da cena- descrita como "muito bonita, triste e forte, Esse aqui não; esse já foi. Menina [apontou para mãe da criança enftmttz]
todo mundo pintado"-, uma ladainha das mulheres. Carla chegou ao fim ainda não sabe ter filho. Mamaé levou embora':
da tarde e passou a noite acordada, tentando "ràzer alguma coisa". Só ràzia, A conversa sobre o tema com o primeiro pajé foi realizada com o
no entanto, o que lhe permitiam: "dava um remedinho pra febre, tentei auxílio do agente de saúde indígena, que traduzia para o português o que
dar um sorinho [... ],aí perdeu a veia". Nesse exato momento, um pajé Carla perguntava e, em seguida, repassava as formulações do pajé. Poste-
cochichou para o agente de saúde (e Carla pediu para que ele traduzisse): riormente, a enfermeira passou a efetuar conversações em português, em
"está vendo como a alma da criança já foi, não adianta a enfermeira querer frases bem resumidas e sempre perguntando: "Por que a criança morre?
botar no sangue dela, não tem mais, se ela furar vai sair de novo". Carla, Por que não posso tentar salvá-la?': As respostas, também em português,
noviça no Xingu, ficou "completamente desesperada". Não conseguia insistiam em que a criança já não tinha vida, que o "espírito" havia partido:
lidar com a morte daquela criança. Todos na aldeia já estavam de luto, "l\lfamaé levou embora': O quadro poderia ser telegraficamente caracte-
mas Carla percebia "vida" naquela criança e achava que devia "ràzer algo': rizado da seguinte forma: traduções entre línguas; busca sistemática de
Ela passou a conversar com os pajés sobre o assunto, indagando sempre comunicação; interlocuções difíceis, auxiliadas por gestos e expressões;
sobre sua possibilidade de intervenção: gramáticas culturais diferentes em conexão.
A imagem impressionava Carla: os dois meninos- o casal de pais
Eu fui ao pajé considerado assistente. Cheguei nele devagarzinho do pequeno enfermo- de cabeça baixa, a ladainha, as pinturas corporais,
assim e disse pra ele o que eu pensava daquela doença e da possibili- o choro insistente, a paciência dos pajés, o bebê de cabeça inchada, febril
dade que cu podia oferecer da criança ir logo cedo para o posto. Lá e com convulsões. Ela não se conteve e pela manhã procurou o avô da
havia um médico, e de lá eu podia pedir um avião pra aquela criança criança. Tanto fez que conseguiu convencê-lo a levar o doente ao Posto de
ir direto pra cidade. Ele olhou pra mim assim com uma cara de, tipo Saúde Leonardo Villas Boas. No barco surge outra imagem de que jamais
assim, tora de cogitação. Assim: "não ... deixa pra lá, vocé já fez o seu esqueceu. O avô, dirigindo o barco a motor, chorava. A mãe, ao lado de
trabalho ... este aqui ... - e botou a mão no peito - este aqui não tem Carla, com o bebê no colo. O pajé na freme, de meia em meia hora, virava-
mais alma, falou outro nome lá, espírito, ó, foi, acabou, morreu': -se e f:1.lava: "E aí, minha filha, já morreu?': Ao que Carla retrucava com
Imagina se eu entendia aquilo Falei: "Não, pajé, mas olha, veja, o surpresa: "Não, ainda não': Carla olhava o bebê, que já estava entrando
Pedro Paulo Gomes Pereira 171
De corpos e travessias
1"70

que se repetem na composição geral da forma de perceber a intervenção


em morte cerebral, contorcendo-se, virando o braço. 1Vlais meia hora e o
e de lidar com concepções de saúde diferenciadas.
pajé se virou novamente e perguntou com naturalidade: "Então, minha
Nas narrativas de Daniela e Carla, a escolha pela profissão deu-
filha, já morreu?". Carla, o avô e a mãe da criança choravam.
-se segundo o desígnio de "fazer algo para mudar a sociedade': Daniela
O barco descia o rio Kuluene. Estavam na época de seca e é sempre
descreve imagens de sua infância nas quais a temática indígena aparece
perigoso conduzir a embarcação nesse período. Depois de três horas nas
sempre vinculada à situação de vulnerabilidade. Ser médica surge como
grandes águas do rio Kuluene, o barco teve que serpentear pelos tortuo-
opção de intervenção em "populações necessitadas': Carla manifesta-se
sos igarapés do Tuatuari, estreito e cheio de curvas. Seria mais uma hora
crítica das relações no "meio urbano" e busca na profissão uma "forma
nos labirintos do igarapé, mas o avô, que conduzia o barco, perdeu-se,
de cuidar". Às imagens das "populações indígenas" consideradas como
atrasando a viagem. Ainda nos igarapés, faltando pouco para chegar ao
"vulneráveis", necessitando de ações para amenizar os problemas e a
Posto de Saúde Leonardo Villas Boas, o pajé voltou-se e repetiu a mesma
penúria, soma-se a ideia da biomedicina como instrumento eficaz de
pergunta:" E aí, minha filha, já morreu?". Carla respondeu: "Não, mas vai
intervenção. 4 Medicina e enfermagem são compreendidas como meios
morrer, vai morrer. O senhor estava certo". A criança morreu ali, antes de
disciplinares que possibilitam agir. Não há como se desviar aqui da relação
chegar ao posto de saúde, no centro sinuoso do Tuatuari.
direta entre vulnerabilidade e salvação, entre "crenças" indígenas e uma
soteriologia racionalizada de uma salvação técnica, nem como se esqui-
Cheguei ao posto e desabei! Desabei tanto por tervivenciado aquela
var da percepção da profissão como lócus de batalha entre "populações"
morte, como por ter vivenciado aquela morte no lugar errado, do
que sofrem e profissionais que cuidam - a profissão idealizada como um
jeito errado. E aí eu me acabei de chorar por ter tirado ela [a criança]
combate apaixonado em nome dos que sofrem. Esse tom soteriológico
do processo mais importante pra ela naquele momento. Era a coisa
configura-se em motivo habitual nas narrativas dos profissionais de saúde
mais importante pra ela e pra [unília dela: morrer, dentro da casa
com os quais mantive contato. 5 Porém, minhas pesquisas indicam que
dela, com aquele luto, com aquela cena bonita, com aquela coisa toda
acontece alguma coisa no meio do caminho que provoca uma "torção"
do povo dela, e não num barco, correndo. Enfim, naquele momento
nas narrativas, assinalando a existência de outros motivos.
eu percebi que só eu não tinha me dado conta. Não tinha entendido.
Essa torção pode ser observada no movimento das próprias narra-
Só eu não me conformava com a morte.
tivas, que vão de um discurso de "salvação médica de populações vulne-
Carla ainda ama no Projeto Xingu. Essa história vem servindo ráveis" para outras que abordam as limitações da biomedicina. Estamos
diante de discursos que realçam as limitações e apresentam situações em
para orientar sua conduta com comunidades indígenas. Em situa-
alguma medida refratárias às intervenções dos profissionais de saúde.
ções semelhantes, como veremos mais à frente, a ela teve atitudes
Talvez Daniela seja a mais incisiva em mostrar uma história da limitação.
diferentes.
Ela fala de zonas obscuras nas quais seus saberes são incapazes de alçar
os saberes indígenas. Os limites de sua ação indicam que não há uma
Limitações, limites e práticas de tradução
equação na qual médico e biomedicina são igualados. Sua atuação não

Neste artigo acabei por me concentrar nas narrativas de Daniela e


Carla porque, além da maior proximidade estabelecida entre nós no de-
correr da pesquisa, elas deixam claros alguns "motivos" (Deleuze, 1997)
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 173
]72

se circunscreve aos ditames de uma ciência que supostamente englobaria Projeto Xingu. Essa experiência me colocou diante de múltiplas histórias
toda sua ação. A linguagem de Daniela permanece tributária do vocabu- de limitação. Por exemplo: num encontro casual com profissionais en-
lário composto por termos como "crença" e "intervenção". Entretanto, volvidos com saúde indígena não se tardou a mencionar a história de um
nem a descrição de crenças nem a potência da intervenção se destacam em médico que se transformara num dos melhores especialistas de sua área.
sua narrativa, que aborda, sobretudo, a incapacidade de intervir ou uma Num dia, no Xingu, tal médico se deparou com um caso de "feitiçaria".
ação que só obtém algum êxito descolando-se da biomedicina. No caso Com uma reputação nacional, que ele imaginou em jogo naquela ocasião,
de Daniela, o médico atua em face do enfermo sancionado pela ciência, prontificou-se a acompanhar o paciente indígena. Não parecia segredo
para ninguém que, na concepção desse médico, ali se debatiam "ciência" e
mas a atuação não se ancora na ciência.
Carla fala de si como alguém profundamente abalada pela resistência "crenças locais" (só por condescendência não denominada "superstição").
de outro tipo de concepção de vida. Ressente-se pela ação de uma "máqui- Depois de três dias de vigília, com o médico acompanhando o enfermo,
na da vida" que aprendera com seu ofício, mas que, ao mesmo tempo em o índio faleceu, sem que a intervenção surtisse efeitos e sem qualquer
que a impele a agir, obsta a capacidade de perceber outras formas de vida. explicação plausível do ponto de vista biomédico. Não importa que a
~ando estimulada a discorrer sobre sua profissão, é com um "equívoco" história seja ou não verdadeira ou que não tenha ocorrido tal qual me
que resolve exemplificar. 6 Seu limite, portanto, se localiza naquilo que contaram, até porque ela está envolta num tom de mistério e é sempre
acreditava ser a potência de sua intervenção. É a "máquina da vida" que contada numa generalidade que a assemelha às "histórias exemplares". E
sua história dilacera. Sua narrativa indica que o limite da atuação deve como uma história exemplar, e é isto que me interessa mais particular-
se pautar na radical diferença sobre a concepção da própria vida. Aquele mente, findava sempre com a seguinte exclamação: "isso acontece com
bebê e o funeral kalapalo sugeriram a existência de uma percepção sobre todos nós!". Tudo se passa como se, para falar sobre a potência de sua
vida e enfermidade que Carla não conseguiu entender. Foi preciso se intervenção, fosse necessário apresentar os limites do empreendimento
aventurar pelo rio Kuluene e se adentrar nos igarapés do Tuatuari para e assinalar seus equívocos. .
enfim compreender seu próprio limite de compreensão. Esse espaço de Estranhos profissionais estes que, quando instados a falar sobre seu
passagem, esse limbo em que vivenciou com o avô da criança, com um pajé ofício, acabam por discorrer não sobre seu alcance e sua potência, mas
insistindo no que já sabia desde o início daquela história e com a tÍmida sobre seus limites. Daniela não consegue compreender nem intervir nos
mãe do bebê, foi revelando a enfermeira algo impressionante: todo mundo casos de "convulsão" nos Caiapó. Sequer soube o que havia acontecido
já sabia o que iria acontecer, exceto ela. Sua incapacidade de escutar o que ou como foi resolvido. Apenas repete, sem compreender, a história da
diziam os pajés na noite anterior à descida do rio assinalava os limites da intervenção de outros pajés que teriam solucionado os distúrbios na
atuação de profissionais de saúde com comunidades indígenas. aldeia. Sua tentativa por identificar a enfermidade revelou-se inócua. Em-
Por mais de dois anos venho escutando médicos e enfermeiros brenhada numa cosmo política ameríndia, na qual o medo dos "espíritos",
que trabalharam com saúde indígena, principalmente os vinculados ao somado a manifestações corporais identificadas (mal traduzidas) como
convulsões, em meio a rituais de cura, conflitos entre etnias, presença de
garimpeiros, a médica - que sonhava com índios antes da medicina e
6 pensava a medicina como forma de ação - descobre a fragilidade tanto
para compreender como para encontrar equivalência em sua gramática
de s;t! e açúcar "deteriorando' a saúde indígena, demem:os esrressorcs etc.). ~amo maís experientes, mais os
,1spcctos se voltam para o que venho denominando "limites": o que não ~e consegue implementar, o que n.i.o cultural. Chegou a um ponto em que a medicina a abandonou.
se compreende. os equívocos, o incomensurâvel.
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Carla, por sua vez, deparou-se com novas formas de vida. A enfermei- vivenciadas: Carla fala com a ajuda de tradutores, especialmente agentes
ra, crítica das relações urbanas, que projetava seu ofício como uma forma de saúde indígena, e com pajés que dominam apenas algumas frases em
nobre de cuidar, aprendeu com os Kalapalo os limites de sua própria con- português; Daniela está na mesma situação e necessita de auxílio de
dição de compreender e os efeitos pouco nobres que o cuidar pode tomar. tradutores para compreender o quadro. No entanto, a conjuntura seria
~ala razão de Daniela e Carla terem narrado precisamente aqueles mais bem caracterizada se pensássemos em imaginações conceituais,
momentos nos quais suas formações profissionais não puderam ajudá-las? convenções, formas de percepção de saúde e doença em contato. 8 A
Ou por que selecionar num universo tão grande de experiências com a médica procura, na sua gramática cultural, no seu vocabulário, perceber
alteridade (que incluem práticas educativas, controle de epidemias, cres- doenças, interpretando determinadas experiências corporais dentro do
cimento populacional do Parque do Xingu, etc.), exatamente os pomos quadro nosológico biomédico. A classificação apresentada pelos Caiapó
onde não conseguiram ultrapassar? E qual o motivo de eleger histórias como "doença de índio" é, nesse caso, uma tentativa caiapó de traduzir
exemplares de atuação em saúde indígena selecionando experiências nas suas próprias concepções dentro de um léxico mais ou menos compreen-
dido pela médica, um tipo de comunicação instrumental. O que estava
quais sequer entenderam?
Para tentar responder a essas indagações talvez seja necessário am- em jogo ali eram formas diferenciadas de percepção de corpo e doença,
pliar o conceito de limite. Há a possibilidade de compreender limite como além de terapêuticas distintas, numa linguagem possível. Já, para Carla,
linde ou limiar, como algo que acontece entre dois universos e como aquilo o que estava em jogo naquela zona-limite entre concepções diferenciadas
que ocorre entre dois mundos (Das, 2007). Nesse sentido, limite implica de vida era o próprio conceito de vida. Os sofisticados conceitos kala-
necessariamente tradução entre universos. E esse é o terceiro motivo das palo de corpo, a linguagem dos rituais (dos quais Carla só conseguiu
narrativas: a tradução. Toda atuação da médica e da enfermeira está cen- perceber a beleza e a solenidade), as percepções e as relações entre vida
trada numa busca de traduzir concepções, palavras, ações. - O paradoxo e morte, constituíram-se numa experiência pouco compreendida e mal
da intervenção desses personagens é que ela só consegue se efetivar num traduzida, mas que instigaram a enfermeira a ponto de ela perceber sua
relativo afastar-se da biomedicina. Esses profissionais são chamados a atuar não percepção.
em nome de um conjunto de concepções e tecnologias (a biomedicina), O idioma e o vocabulário técnico fornecido pela biomedicina
mas suas ações só podem se efetivar se mantiverem distância relativa que não operam a contento naquelas situações. Termos como "epilepsia",
"convulsão': "ataques" são tentativas dúbias de tradução. As expressões
permita processos de tradução.
A questão não é, portanto, só a dificuldade de estabelecer con- utilizadas nas narrativas da enfermeira e da médica já são produtos de
versações, embora seja também um aspecto pungente nas experiências tradução: "pajé", "chefe': "pai': "mãe" e "avô': Configurações de parentesco,
instituições, sensações são imediatamente transcritas para a realidade dos
profissionais de saúde. No entanto, as traduções se revelaram equívocas
e ressaltaram seus limites.
Há muito se reconhece a impossibilidade de uma tradução integral.
Persiste na tradução algo de intraduzível- persistência que evoca termos

da tradução. é o de iJberr & Gomez (1997), que elaboraram um manual ernolineuístico


complexas formulaçóes yanomami de corpo, doenças. dor.
1~6 De corpos e rrave.ssia.c; Pedro Paulo Gomes Pereira
177

como "indecibilidade~ "resto", "equivocacidade", donde a máxima italiana encontros, alterando-se e modificando o próprio sentido dos encontros.
tmduttore traítore. E se traduzir é trair, uma boa tradução seria aquela que Surgem nesses encontros imprevisíveis ocasiões em que a biomedicina
trai a língua de chegada e não a de partida. Uma boa tradução consegue já não é mais suficiente, como vimos nos casos narrados por Daniela e
fàzer com que os conceitos estrangeiros subvertam os dispositivos con- Carla. Essa insuficiência- na qual o profissional de saúde é parcialmente
ceituais do tradutor (Viveiros de Castro, 2009, p. 54). Algo subsiste de privado daquilo que seria, em tese, sua estrutura de pensar- possibilita que
intraduzível que interpela os tradutores, existindo a possibilidade (e o esses encontros possam produzir mais do que uma tradução etnocêntrica.
risco) de as traduções seguirem o fluxo: tradução, traição, transformação. É certo que, nesses encontros, os profissionais de saúde vêm pro-
A agência da "estrangeiridade", no trabalhar contínuo das traduções, pode duzindo sistematicamente traduções etnocêntricas, como muito já se
provocar transformações nos conceitos, nas perspectivas e nas formas de 9
alertou. Ivfas, na experiência com a alteridade não se pode controlar
percepção. Contudo, o processo de tradução não é algo apenas conceitual. tudo - e as histórias de Daniela e Carla apontam para essa instabilidade.
Como afirmei logo na apresentação deste livro, conceito comporta Algo afeta os profissionais que se veem na presença de um "isto" sem
duas outras dimensões: as do afeto e do percepto, indispensáveis para o nome, sem precedentes no vocabulário e na sintaxe, um "isto" que se
movimento, parao devir (Deleuze, 2007, p. 171 ). Apesar de conceito ser impõe justamente no momento da atuação. Acaba-se aqui a suficiência
"algo diferente" não tem "nem sentido nem necessidade sem um 'afeto' que diz: "na biomedicina 'isto' seria explicado de tal forma", deixando
e um 'percepto' correspondentes" (Zourabichvili, 2004, p. 4). Se as tra- de funcionar a simples evocação: "em minha língua 'isto' se diria assim"
duções mobilizam as "outras dimensões" do conceito, elas podem alterar (Moraes, 2008, p. 234). Não encontrando traduções equivalentes sufi-
os afetos e os perceptos. E, ainda que não abalem totalmente esse "algo cientemente fàmiliares, já que o repertório conceitual "deles" não pode
diferente" que é conceito, podem implicar um profundo movimentar ser revelado como isomórfico em relação ao "nosso" (Holbraad, 2003, p.
de afetos e perceptos. O que estou tentando argumentar aqui é que essas 43 ), aparecem as hesitações, os equívocos, os gaguejos, as limitações que
limitações e limites, esses equívocos e necessárias e incompletas traduções afetam os profissionais de saúde. A proposta aqui, portanto, é pensar os
(que se deslizam de simples traduções linguísticas a zonas de incomensu- afetos dos processos de tradução, naquilo que possibilitam e nas torções
rabilidade) podem afetar os profissionais de saúde. que provocam.
O limite é instância do devir incessante de sentido e de sua suspen-
são, local de passagem e de conflitos, de afirmações e reafirmações de Afetos e afecções
sentidos prévios, e de hesitações constantes. O profissional de saúde se
sente pressionado pela urgência da tradução, bem como por Outros que Ao assinalar um problema de tradução, Deleuze iniciou sua leitura
se lhe impõem como condição mesma de realizar aquilo que acredita ser de Espinosa, num de seus cursos em Vicennes, em 1978. Ele alertava para
seu ofício. Sente-se atormentado por sua própria linguagem e por seus a "catástrofe" de traduzir ajjéctio e afjéctus para afecção, lembrando que
próprios textos, dos quais não consegue se despregar fàcilmente, e com em francês há os termos a:ffoct (afeto) e a:ffoction (afecção), mais próximos
os quais tem de trabalhar para conferir sentido às experiências. Por não da forma utilizada por Espinosa. 10 Há uma distinção entre afeto e afecção
encontrar equivalentes, e muitas vezes por sentir-se despreparado para esse
encontro e essas traduções, ora é levado a traduções etnocêntricas (aquela 9

que nega sistematicamente a estranheza da obra estrangeira - Berman, indígenas, fundamentada em preceiros sanitaristas e biomédicos incompadveis com as formas tradicionais de
organização. bem como com as concepções indígenas saúde, doença e terapemicas.
2001, p. 18), ora é afetado pelo Outro. Deixa-se, nesse caso, levar por esses 10 Perpassando boa parte da obra de Ddeuze ( 1978. 1987. 1992, 1995 e
é cemral na composição geral da sua filosofia. Para uma aproximação ao tema, ver i\.üchado ( 1990 e 2009).
De corpos e uavessías Pedro Paulo Gomes Pereira 179
178

que o emprego de um só termo acaba por olvidar. Deleuze destacou essas nossas dores e prazeres; afecção é tudo aquilo que o corpo absorve no
diferenças em diversos lugares de sua obra. Tentarei esboçar a discussão. encontro com outros corpos.
Afeto estaria relacionado ao efeito de um corpo sobre outro, um Essa discussão sobre afetos e afêcções está relacionada aos limites e
corpo sofrendo ações de outro. Afecção seria uma mistura de dois cor- aos processos de tradução, ao interstício, aos encontros (bons e maus). A
pos, um corpo que age sobre outro, que, por sua vez, recolhe traços do indagação que venho apresentando é em que medida essas experiências
primeiro. Ajféctio assinala um estado do corpo afetado, implicando a (essas misturas, essas afecções) com a alreridade radical, como as narradas
presença do corpo afetante; afféctus indica a passagem de um estado a por Daniela e Carla, possibilitam um afetar-se, permitem um devir outro.
outro, tendo em conta a variação correlativa dos corpos afetantes. Cada Esses profissionais de saúde podem ser afetados? De que maneira? ~I é a
afecção é como uma interrupção na continuidade da potência de um possibilidade de uma atitude de escuta do outro? Para prosseguir nessa refle-
modo, tal como o que se produz em nós a partir de um encontro que xão, podemos, por um instante, colocar as experiências de Daniela e Carla
aumenta ou diminui nossa força de existir. O afeto não se reduz a uma "sobreimpressas" (Almeida, 2007) às comumente associadas à biomedicina.
comparação intelectual das ideias, é antes constituído pela transição As verdades e os conceitos da biomedicina possuem força normativa
vivida de um grau de perfeição a outro. A afecção, definida como uma que incide sobre as convicções e os estilos de vida das pessoas. 11 A medicina
mistura de corpos, indica a natureza do corpo modificado, a natureza lida com momentos cruciais como vida, morte, nascimento, enfermidade,
do corpo afeccionado e afetado. impondo-se como definidora das formas ponderadas do bem viver. As
Afetos também não são sentimentos, são torças que nos atraves- narrativas médicas operam da seguinte maneira: supõe-se um consenso
sam, ultrapassando a distinção entre sujeito e objeto, já que o homem se da saúde como um valor fundamental e primário e que as enfermidades
j são nocivas e devem ser "combatidas" (Sontag, 1984), desejando que delas
transforma noutra coisa em virtude de uma fusão, de um entrelaçamento.
Aferos são devires não humanos do homem; e devires são encontros, rodos escapem. Estabelecem-se imediatamente, determinadas condutas
in diferenciações; trata-se, portanto, de uma zona de indeterminação, de como condições originárias das doenças e, assim, conclui-se normativa-
indiscernibilidade, como se coisas, animais e pessoas atingissem um ponto mente que essas condutas devem ser evitadas, combatidas ou extintas.
(embora no infinito) que precede imediatamente sua diferenciação. Afetos Não é necessário muitO para se detectar essas pretensões normativas nos
não são, ainda, interiores: estão no interstício, no "entre", nas intercessões; discursos biomédicos que se estendem por múltiplos campos- dietética,
são vibrações ou intensidades e justamente por isso não se confundem sexualidade, higiene, terapêutica. Os pesquisadores da área salientam
com o que é vivido numa interioridade subjetiva. O sentimento só pode essas características e alertam para a dimensão normativa e prescritiva
ser percebido a partir da dimensão afetiva, construído por múltiplos laços das narrativas dos profissionais de saúde, sustentando reiteradamente que
e encontros, mas unificados numa significação, de forma que sentimento etiologia e normatização andam juntas na biomedicina. E que o poder
é aquilo que move, e afeto é o próprio movimento, num contínuo diferir. normativo da biomedicina cresce com seus êxitos e sua eficácia como tec-
Para resumir: as afecções, embora aconteçam de uma só vez, são nologia. Como ciência do normal e do patológico, a biomedicina torna-se
efeitos de um corpo sobre outro no espaço; os afetos são os efeitos de um dominante entre as ciências, determinando os padrões de razoabilidade
determinado corpo sobre uma duração - variações de potência. Afeto dos comportamentos ( Canguilhem, 1984).
cOtTesponde, portanto, ao modo como problematizamos nossas afecções,
ll Exisre uma bibliografia extensa sobre o assunro. Sobre biomedicina, ver Foucaulr ( 1963. I 979 e 2004), C!avreul
Kleínman (1983), Canguilhem (1984), Turner(1987),Luz
Beyssade ( 1999). Schrijvers (1999), Davidson (1999).Jaquet (2004). (1988), Good ( 1994), Boner (2004). Redlield (2005). Sobre narrarívas médicas, verGood ( 1994), Arkinson
(1999). Coker Elizaberh (2003), Wilce (2009).
Silva (200~). Rocha (2007) e Viv·ciros de Camo (2000).
180 De corpos e uavessias Pedro Paulo Gomes Pereira
181

O encontro de profissionais de saúde e comunidades indígenas normativa da biomedicina. Algo se transformou com as experiências vi-
coloca a força das narrativas biomédicas, com seu poder e sua eficácia, vidas. O contato com formas diferenciadas de perceber saúde e doença, a
ao lado de outras formas de perceber a saúde e doença, além de outras necessidade da tradução para poder atuar e os limites das ações alteram as
terapêuticas, proporcionando conflitos e disjunções já bastante e apropria- práticas posteriores de Daniela e Carla. Esta última nos coma um episódio
damente comentados (Langdon, 2001; Fóller, 2004). Nesse encontro, as que resume bem o que venho argumentando:
relações entre profissionais de saúde e índios são eminentemente hierar-
quizadas, colocando, de um lado, a biomedicina e os saberes ocidentais no Aconteceu outra situação. Tínhamos uma criança ik:peng num hospital
polo valorado; do outro, num polo desvalorizado, os saberes indígenas, local com uma doença congênita. Sabíamos que, se ela fosse encami-
considerados como manifestação do desconhecimento e da ignorância nhada à Brasília, poderia sobreviver fazendo uma cirurgia. Mas, os
ou como crenças ineficazes. Q::_em trabalha na área percebe amiúde pajés pediram pra voltar pra aldeia. Aí, nesse caso, eu estava na cidade,
profissionais de saúde classificando índios de ignorantes sobre saúde e trabalhando nesse meio de campo entre aldeia e hospitais da região. Isso
doença; pacientes indígenas que não "acatam" as medidas terapêuticas aconteceu quando eu tinham ais tempo de Xingu. Os pajés pediram pra
propostas são denominados desobedientes. essa criança voltar. O pai decidiu. Eu esclareci minha posição. Disse pra
As histórias de Daniela e Carla, no entanto, nos contam algo mais. ele que a criança poderia morrer. E a criança morreu lá na aldeia.
Os motivos que compõem suas narrativas em suas experiências em saúde
indígena demonstram um afetar. Daniela e Carla se direcionam, lentamen- Dessa vez, Carla, que já havia experienciado aquele dramático en-
te, com o trabalho do tempo (Das, 2007), para uma distância relativa de contro com os Kalapalo, agiu de forma diferente. Algo daquele encontro
um tipo de saber. Seja verificando seus limites, seja questionando a própria se incorporou na enfermeira, algo daquela afecção restou. Acompanhemos
"máquina da vida", esses encontros, essas afecções, alteram a potência de um pouco mais o desenrolar de sua história:
agir desses profissionais de saúde que, antes de se anularem ame o saber
biomédico, acabam por se mobilizar. O mais curioso foi lidar com a raiva, com a indignação do médico
De alguma forma, as narrativas que poderiam se voltar para a po- que trabalhava no hospital, que tinha indicado a criança pra Brasília.
tência da intervenção (daqueles t}Ue mudam quadros epidemiológicos), Ele me olhou depois que eu disse pra ele que a família tinha decidido
para seu caráter heroico e exitoso (daqueles que trazem soluções técnicas que a criança ia voltar e que não ia ter mais negociação. Disse que a
e terapêuticas para salvar os "vulneráveis") ou "humanitário" (que buscam gente já tinha esclarecido, tinha colocado tudo na mesa e que eles
salvar vidas), acabam por se centrar nos equívocos e nas dificuldades. Essa falaram: "Não, se to r pra morrer, vai morrer lá na aldeia!". Aí, ele [o
torção produz- e é produto de - novas subjetividades e novas formas de médico da cidade] falou com zombaria assim: "É impressionante
olhar. Dito sem rodeios: limitações, limites e processos de tradução não como em pleno século )(,'{I vocês ainda deem corda pra essas cren-
só dizem algo sobre os profissionais, como podem ser produtos e produ- dices! Essa criança vai morrer!': E eu falei: "Pois é, pelo menos que
tores performáticos de novas formas de agir e pensar a saúde indígena. A morra no lugar dela, na terra dela, com o povo dela, do que morrer
experiência contínua e persistente de traduções como as aqui descritas num corredor de hospital". E é isso!
pode implicar esse afetar.
Esses afetos e afecções vão além do reconhecimento dos limites e Entre o rio Tanguro e o hospital houve uma mudança. O afeto é essa
das dificuldades de tradução, o que por si já é uma torção daquela força modificação. O afetar pode indicar que talvez os exercícios e as práticas
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 183
182

dos profissionais de saúde possam ser compreendidos para além daquele Antropologia dos afetos
quadro descrito por Taussig de reificação ou para além das malhas de um
poder em que tudo é controle por parte da biomedicina e dos profissionais A bibliografia sobre saúde indígena no Brasil vem apontando, por
de saúde. Por mais precários que sejam esses encontros há a probabilidade diversos caminhos, as dificuldades enfrentadas e os limites do encontro
de se insinuarem afecções e afetos que mudam a potência de agir. entre profissionais de saúde e comunidades indígenas, mas também vem
De forma similar ao acontecido com Carla, algo daquele encontro com indicando as possibilidades de comunicação (Langdon 1991, 200 I, 2004,
os Caiapó- daqueles corpos agitados, daquelas manifestações corporais que 2005; Fóller, 2004). As análises se voltam para as concepções de saúde,
questionaram a biomedicina - restou em Daniela. A médica atualmente doença e terapêuticas indígenas (Lagdon 2001,2004, 2005); para perce-
trabalha com os Guarani de São Paulo. Na última vez em que conversamos ber como as sociedades indígenas constroem o contato (Buchillet 1991;
sobre o assunto, ela estava preocupada com a "violência contra a Garnelo 2003; Garnelo & \'Vright 2001; Perez Gil2007); para quadros
que vem se tornando prática recorrente entre os Guarani. Num primeiro de intermedicalidade (Fóller 2004). O contexto geral de intermedicali-
momento, a médica vinculou violência à "pobreza daquela população': Em dade aponta mesmo para a convivência de sistemas médicos distintos,
seguida, seu discurso passou a colocar indagações sobre as especificidades originando sistemas médicos híbridos- um espaço de medicinas híbridas
de gênero, sobre como se pode entender a violência, contexrualizando-a, e onde os agentes interagem na prática e na teoria. Como dito anterior-
sobre as dificuldades de uma atuação sem um entendimento dessas especi- mente, não raro a interação ocorre numa conjuntura de conflitos, na
ficidades. Suas indagações terminam por solicitar alLxílio de antropólogos qual os conhecimentos indígenas são considerados menos valiosos que a
para entender aquele quadro: "É que ficamos sozinhos! Se pudéssemos biomedicina e concebidos como obstáculo ao "desenvolvimento': Neste
pensar juntos, iríamos mais longe e cometeríamos menos erros". Talvez os caso, a biomedicina é percebida como ativadora de uma etnomedicina
Caiapó tenham lhe ensinado exatamente isso: os limites do conhecimento destituída de sua própria agência.
próprio e a necessidade de abertura para saberes outros. As análises supracitadas, não obstante, sustentam que os povos
Esse quadro permite ainda algumas perguntas. Podemos nos ques- indígenas estão longe da passividade; ao contrário, num contexto de si-
tionar até que ponto esse afetar incidiria sobre o próprio saber biomédico, multaneidade de tradições epistemológicas, incorporam artefatos e ideias
transformando-o. Se nessas experiências narradas, Daniela e Carla tiveram e exercem agência social, construindo algo novo. O conhecimento indí-
de se afastar da biomedicina para alçar minimamente outros saberes, gena é dinâmico, criativo e sujeito às influências, perfazendo negociações
podemos então interrogar: como esses outros saberes e essas afecções e e renegociações constantes entre as diferentes formas de saber médico. O
afetos interrogariam a própria biomedicina? E, assim, pensando nalgum que busquei sublinhar aqui é que a agência indígena e os encontros em
ponto no futuro, será que a saúde indígena poderá transformar o próprio situações de intermedicalidade, como as descritas neste artigo, podem
t:'lzer biomédico e a forma de conceber e organizar a assistência à saúde propiciar que os profissionais de saúde sejam também eles afetados na
indígena no Brasil? Evidentemente, não tenho condições de responder própria (re)negociação e tradução que a intermedicalidade enseja.
a essas indagações. Mas, parece claro que uma abordagem que apenas Num quadro como este, a simples crítica à objetividade médica, à
caracterize os profissionais de saúde como implementadores da reificação diferença de linguagem entre profissionais de saúde e pacientes, ao exer-
desconsidera as fissuras e as disjunções características das experiências cício do poder médico não consegue- parecem dizer as experiências aqui
aqui narradas. E nos leva a refletir sobre uma antropologia dos afetos. analisadas - abarcar todas as dimensões nas quais profissionais de saúde
se relacionam com cosmopolíticas ameríndias. Mesmo para contextos
184 De corpos e i:r<wcs.sías Pedro Paulo Gomes Pereira
185

urbanos e médico-hospitalares, essa crítica forma um quadro estático


Este artigo tentou seguir um caminho diferente, argumentando na
e geral demais para dar conta daquilo que se passa nos dramas sociais
direção de uma antropologia dos afetos 12 - uma antropologia que possa ir
que são as enfermidades (ver Mol, 1998, 1999, 2002). Levar a sério a
além da reificação e do poder. Se as relações podem capturar e assujeitar
possibilidade de os profissionais de saúde serem afetados em situações
pessoas, inserindo-as em mecanismos de controle e coerção, os afetos
de alterirlarle mrliwl é uma tentativa de pensá-los como agentes sociais,
podem também mostrar disjunções, hesitações, lapsos e movimentar de-
como seres históricos, capazes de serem afetados pelo outro.
vires centrados em- para falar como Espinosa (2007), usando expressão
Um enfoque exclusivo nas relações de poder ou na reificação acaba
cara a Deleuze ( 1968; ver Sévérac 2005 e Hardt 1996) - "alegrias ativas':
por impedir uma aproximação com a complexidade da própria experi-
Em vez de uma focalização exclusiva em campos rígidos e reificados,
ência vivenciada. Admitir que a experiência com alteridade radical nada
uma antropologia dos afetos que permita assinalar algo das realidades
provoca em profissionais de saúde - principalmente aqueles por um
que fluem e escapam, compostas por linhas de fuga, e que se volte para
período razoável de tempo interpelados por diferentes concepções de subjetividades que excedem, resistem e esquivam (Deleuze 1986), não se
saúde, de doença e de terapêuticas, e que só podem atuar em processos de
configurando exclusivamente como instâncias reificadoras. Uma antro-
tradução, como nos casos de intermedicalidade- seria atribuir um poder
pologia dos afetos que ocorrem nesses encontros complexos - com seus
desmesurável à biomedicina, além de uma homogeneidade aos sujeitos e limites, traduções, hesitações.
uma extrema debilidade indígena. Se acolhermos esta hipótese, a imagem
seria mais ou menos esta: dois blocos homogêneos, um empoderado e
com potência para agir e transformar o outro - ainda que seja idêntico
a si mesmo do início ao fim; outro, receptor, em perigo, em necessidade,
vulnerável, sem qualquer capacidade de interação e sem afetar o outro, e
igualmente sempre idêntico a si.
Nos dois casos, blocos anistóricos. Mas, se os contextos de inter-
medicalidade demonstram como as comunidades indígenas são extre-
mamente criativas na negociação com a biomedicina, e se, como vimos,
são caracterizados por intricadas traduções - que expõem também a
sensibilidade do profissional de saúde às dificuldades e às armadilhas
das passagens entre códigos que não são inteiramente equivalentes
(Carneiro da Cunha 1998: 14) - não me parece estranho aventar a
probabilidade de essas formas criativas de pensar e agir e os processos
de tradução afetarem os profissionais de saúde. Daí a necessidade de 12 Apresemo
desenvolver a dJscussáo noutro lugar. Se sentimento
se afastar de uma postura que homogeneíza a variedade de pessoas,
susrem:a Deleuze. só em parte uma antropologia dos
desenha suas estratégias como meros exercícios de poder e controle, como elaborada por Lurz c \Vhire (1986) e por Rosaldo (1984). Similaridades mais
pretendo explorar noutro esoaco. poderiam ser traçadas com a ideia de
privilegiando apenas a vinculação com a biomedicina (considerada
2005). Acredíro que, de uma forma geral, uma antropologia
também como discurso homogêneo), ignorando-se a complexidade e Viveiros de Castro (2002b, 2004. 2009) vem propondo: a antropologia seria um
uma dimensão de ficção, e que assume para si a tarefã de tomar as ideias indígenas
a historicidade dos agentes. ressah:ado. conceíto comporta duas outras dimensões, as do ü{eto e do
2007). .
8 - Variações em torno d'água

"Ajudemos a hidra a esvaziar seu nevoeiro:'


(Mallarmé)

Este capítulo pretende seguir narrativas sobre água e corpos. Par-


tindo da descrição de Peter Gow sobre o encontro de uma mulher Piro
com uma professora, bem como da análise de Eduardo Viveiros de Castro
(2002b) desse acontecimento, este texto acompanhará as repercussões
dessa cena em médicos e enfermeiras. Por quase dois anos repassei essa
história para profissionais de saúde e registrei suas respostas, sempre
acreditando que esse encontro na Amazônia peruana dizia alguma coisa
sobre saúde indígena. O procedimento buscava convidar os profissionais
de saúde a um exercício de imaginação: o de colocarem-se no lugar daquela
professora - uma "interpelação imaginativa". 1
No exercício dessa interpelação, deparei-me com um insistente
questionamento por parte dos profissionais de saúde sobre a necessidade

subsidiar as discussões com informações e materiais que pudessem ampliar a conversa. Seja
corno tor, os contornos foram extrapolando o conrexto apresentado por Gow, e a história surgiu como uma
.1legoria de um

poética a respeito da água, c a Renato Szrurman, o primeiro a perceber a relevância dessa narrativa de Go\v
para profissionais de saúde. O livro de Srdio Marras, A prvpO::íto de tigtttiJ cirtuosm, foi umbém um grande
incentivo.
188 De corpos e uan:ssids Pedro Paulo Gomes Pereira
189

de compreensão mais densa de suas especificidades e do reconhecimento


nativa daqui, a água fervida dá diarreia. Nossos corpos são diferentes
de sua presença como atores e partes integrantes do contexto da saúde
dos corpos de vocês". (Viveiros de Castro, 2002b, p.l37-138)
indígena no Brasil. Como já adiantei no capítulo anterior, a universidade
da qual faço parte, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp ), cola-
Para Gow, esse episódio performatizaria a divergência "irredutível"
bora na assistência à saúde dos povos indígenas do Parque Indígena do
entre o multiculturalismo e o multinaturalismo. Esse acontecimento
Xingu (PIX). Muitos dos meus interlocutores estavam (ou estiveram)
prosaico expressaria o fundo cultural comum dos ameríndios: o perspec-
vinculados ao denominado Projeto Xingu, e passaram a me procurar
tivismo, um conceito cunhado por Viveiros de Castro/ sobre a noção
com o objetivo de narrar suas experiências. A frequência desse tipo de
de que o mundo é povoado por seres dotados de consciência e cultura. A
abordagem levou-me a pensar na pequena história de Gow como forma
forma manifesta de cada espécie é um envoltório que oculta uma forma
de incitar as discussões. Passei então a anotar as narrativas que advinham
interna humana, aparente tão-somente aos olhos da própria espécie, ou
dessas interpelações - muitas em extensas entrevistas e em depoimentos
aos seres "rransespecíficos", como os xamãs. E cada uma dessas espécies é
que foram se sucedendo em diversos locais (no Ambulatório do Índio, nas
dotada de (e constituída por) um ponto de vista singular. O modo como
dependências do Projeto Xingu, nos departamentos da universidade etc.).
os seres humanos veem os animais - e outras agências que percorrem o
A tentativa deste capítulo é refletir um pouco sobre como os profis-
universo, como espíritos, deuses, morros, artefatos, objetos - é distinto
sionais de saúde, sobretudo os vinculados à saúde indígena, pensam o seu
da maneira como os animais percebem os humanos e a si próprios. Assim,
fazer, delimitando suas indagações, seus incômodos e suas perguntas. Em
cada espécie de ser, incluindo os humanos, enxerga-se como humana.
resumo, este capítulo é uma tentativa de refletir sobre as interpelações de
Os mitos ameríndios nos comam sobre um estado originário de
meus interlocutores, numa busca de problematizar as complexas relações
comunicação imensa emre humanos e animais. Nas narrativas míticas
de profissionais de saúde diante da alreridade radical (Peirano, 1999). As
surgem seres cuja forma, nome e comportamento misturam propriedades
questões norteadoras foram as mesmas do capítulo precedente (Cap. 7)
humanas e não humanas. A comunicação entre os seres, entre humanos
e, com elas em mente, podemos iniciar as variações em torno d'água e de
e animais, entre humanos e não humanos, é similar à relação entre os
corpos, apresentando a história de Gow.
humanos da atualidade. Esse estado de imensa comunicação demonstra
que a condição original compartilhada por humanos e animais é a huma-
Corpos e água fervida nidade e não a animalidade. Os mitos ameríndios narram insistentemente
como os animais perderam os atributos herdados ou conservados pelos
A cena é a seguinte: humanos - os animais são, assim, ex-humanos; os humanos não são ex-
-animais. O pensamento indígena conclui que, tendo antigamente sido
Uma professora da missão [na aldeia de JSanta Clara estava tentando
humanos, os animais e outros seres do cosmos continuam a sê-lo, ainda
convencer uma mulher Piro a preparar a comida de seu filho pequeno que de modo não evidente.
com água fervida. A mulher replicou: "Se bebemos água fervida,
A ideia de um mundo composto por uma multiplicidade de posições
contraímos diarreia': A professora, rindo com zombaria da resposta, subjetivas remeteria à noção de "relativismo cultural" e ao termo "multicul-
explicou que a diarreia infàntil comum é causada justamente pela turalismo': O raciocínio seria mais ou menos o seguinte: os índios seriam
ingestão de água não fervida. Sem se abalar, a mulher Piro respondeu:
"Talvez para o povo de Lima isso seja verdade ..Mas para nós, gente 2 Sobre o assumo é indispensável a leitura de Viveiros de Castro ( 1996. 2002a e 2002b. 2008, 2009) e Lima
(1996 e 1999).
190 De corpos e uavessias Pedro Paulo Gomes Pereira
191

relativistas culturais, só que ampliariam "animisticamente" esse relativismo está falando de afetos e de afecções de cada corpo, ou seja, o que se come,
para outras espécies. Porém, há um equívoco nessa dedução. O relativismo como se movimenta e como se comunica ... A morfologia corporal é um
cultural supõe a equivalência entre uma multiplicidade de representações signo das diferenças de afecção. A definição ameríndia de corpo não é a
sobre o mundo, mas pressupõe um único mundo subjacente a essa mul- fisiologia ou a anatomia, mas os modos de ser que constituem um habi-
tiplicidade. Para os ameríndios, os seres observam o mundo da mesma tus. O corpo é não só um feixe de afecções e capacidades, mas também a
maneira, o que se transforma é o mundo que eles veem; as coisas que eles origem das perspectivas, donde provém a afirmação de Viveiros de Castro
percebem são outras. O perspectivismo não é, dessa maneira, um "mul- (2002a): o perspectivismo é um maneirismo corporal.
ticulturalismo'; mas um "multinaturalismo': No primeiro caso, há uma A mulher piro sustenta, por conseguinte, uma ideia não biológica
natureza e várias culturas ou uma diversidade de representações subjetivas de corpo. Nesse caso, a diarreia infantil não é considerada como objeto de
e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente uma teoria biológica. É essa disjunção que o encontro narrado por Gow
à representação; no segundo, uma cultura, múltiplas naturezas, ou ainda performatiza. Sua asserção sobre a diferença de corpos assinala a existência
uma unidade representativa aplicada indiferentemente a uma diversidade de outro conceito de corpo: o corpo como perspectiva. Ela fala do corpo
real. O perspectivismo é um multinaturalismo, já que a perspectiva não como um conjunto de afecções, modos corporais que podem diferenciar
é uma representação. Isso porque as representações são propriedades do seu corpo do de uma onça. E distingue o corpo dos Piro do das pessoas
espírito; na cosmopolítica ameríndia, entretanto, a perspectiva está no da cidade. Aqui não temos o conceito de corpo como representação de
corpo. A diferença é dada pela especificidade dos corpos. um corpo extraconceitual, "mas o corpo como perspectiva interna do
Ser capaz de ocupar o ponto de vista é uma potência da alma, e os conceito: o corpo como implicado no conceito de perspectiva" (Viveiros
não humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito. de Castro, 2002b, p. 140).
Para os ameríndios, contudo, a diferença entre os pontos de vista não está A inércia constitutiva da linguagem produz na professora uma
na alma. Esta, formalmente idêntica nas espécies, só enxerga a mesma adesão imediata ao significante "corpo'', que a fàz olvidar as diferenças
coisa em roda parte. A diferença deve ser dada pela especificidade dos abrigadas sob o mesmo termo. Essas diferenças foram ressaltadas pela
corpos. Isso responde por que os não humanos, mesmo sendo gente, não mulher Piro que, inclusive, não se espantou com a possibilidade de a
nos consideram como tal. Os animais nos enxergam de forma idêntica, professora ter outra concepção de corpo. A tradução imediata e inques-
mas veem coisas diversas do que vemos, porque seus corpos são diferentes tionada, na qual a homonímia suscita efeito de compreensão e acordo,
dos nossos. enseja certezas naquele que comunica em processos de tradução que
justapõem imaginações conceituais distintas. Tais certezas emperram
Corpos diferentes tanto a comunicação e o entendimento quanto a travessia em áreas de
turbulência. É nessa área arriscada onde se insere o profissional de saúde
"Nossos corpos são diferentes dos corpos de vocês'', afirmou a mulher que trabalha com "povos indígenas':
Piro naquele encontro narrado por Gow. O que estaria em jogo nesse tipo Os "movimentos" subsequentes se agitam em torno de preocupações
de afirmação? Não seriam as diferenças fisiológicas, já que os ameríndios desses profissionais de saúde: a obstinação na intervenção, os dilemas de
reconhecem a uniformidade dos corpos. 3 Na realidade, a mulher piro

Esre capírulo vale-se da obra de Víveiros de Casrro no que se refere à sobre o A l ireratura
sobre o rema já é bJ.stame exrensa. Desde que Seegcr. Da Maua & Viveíros observaram a
De corpos e rravessi,1s Pedro Paulo Gomes Pereira 193
192

água fervida? O que eu faço com a água?': A água fervida parecia uma
tradução, a persistência de uma soteriologia racionalizada, os limites e
variante não negociável.
diferenças no encontro com a alteridade radical (Peirano, 1999), a insu-
A insistência em saber o que deveriam fazer com a água revelou
ficiência da gramática do respeito e a possibilidade mesmo de afetar-se
4
uma dimensão incontornável do universo dos profissionais de saúde, que
nesses encontros precários.
são treinados para intervir. A intervenção é central e perpassa os diversos
momentos e atividades realizadas. Depois de longas conversas sobre as
Soro caseiro concepções de corpo ameríndias, sobre a importância de conhecer o
mínimo da cultura local para poder ter maior eficácia nas propostas tera-
Como já tinha dito, venho discutindo essa história contada por
pêuticas, eu ouvia sempre esse tipo de indagação: "Mas devemos ou não
Gow com profissionais de saúde com a intenção de debater sobre as
ferver a água? E o caso do soro caseiro para pessoas debilitadas, devemos
diferentes concepções de corpo e de problematizar as implicações da
utilizar água possivelmente contaminada ou temos que fervê-la?".
disjunção entre os conceitos de corpo para as práticas de saúde. Se esse
A obstinação de meus interlocutores na intervenção coaduna com a
encontro na Amazônia peruana nos mostra não outra visão do mesmo
definição de Canguilhem ( 1965 e 1984) de medicina: uma técnica situada
corpo, mas outro conceito de corpo, então a própria ação dos profissionais
na confluência de várias ciências. O essencial da medicina é a clínica e
de saúde deveria considerar essa diferença nas suas práticas. Sem sopesar
a terapêutica: ela é uma técnica de instauração e restauração do normal,
sobre essa diferença, as ações nada mais seriam do que uma tentativa de
que não pode ser reduzida ao simples conhecimento - uma técnica im-
"convencimento" daquilo que antecipadamente já se sabe: a universalidade
pulsionada pelo ptzthos e não pelo fogos, e organizada em torno de valores.
do biocorpo, do adoecimento e das terapêuticas ancora-se na supremacia
A medicina moderna surgiu com o objetivo de compreender as leis da
da visão biológica de corpo. vida normal e da vida patológica. O normal, no entanto, não é só o mais
Essas discussões ocorreram em salas de aula, em reuniões com
prevalente, nem o mais constante estatisticamente, mas aquilo que deve
professores de medicina, em encontros, em entrevistas. As respostas
ser. O normal é definido não por fatos, mas por valores.
que obtive foram variadas, mas, especialmente com médicos e enfer-
É essa máquina conceitual que os profissionais de saúde acessam
meiras que trabalham com saúde indígena, houve um reconhecimento
para intervir em povos indígenas. Ou melhor, é ela que os impele a agir
da existência de compreensões divergentes sobre corpo e da urgência
e coloca a intervenção como central. Evidentemente, não existe uma
de conhecer minimamente as concepções das diversas etnias indígenas,
homogeneidade que possa abarcar os profissionais de saúde - em que
sob pena de ineficácia das ações. Os profissionais de saúde repetiram
se pese, inclusive, sua variedade: médicos (sanitaristas, clínicos, epide-
a ideia de "respeito pelo que os índios pensam". O termo "respeito",
miologistas), enfermeiras, nutricionistas, dentistas (ver Cap. 7). Mas,
constante nas políticas públicas, nos manuais, nos documentos e no
pensando nas definições de Canguilhem de medicina como uma técnica
campo de saúde indígena de forma geral, revela, no entanto, uma dis-
de restabelecimento do normal, podemos compreender as indagações
tância denunciada pela frase que sempre finalizava as discussões: "E a
persistentes de meus interlocutores sobre a necessidade de ferver a água:
"Existem conceitos diferentes de corpos. Ok. Mas, e a água? Devo fervê-
:.!- Valéry (2007) distinguiu dois tipos de movimencos: um cujo .tlvo é definido. e ourro cujo alvo 2: o próprio -la ou não?': Essa história de água fervida e corpos acabou revelando a
do está mais próximo do segundo tipo. Por isso. apenas menciono metis interlocutores
O que me importa aqui é o movimento d.1s va.rirtções e no que ele pode produzir. A
·-··:--~~ .• !~ ..... já
centralidade da intervenção nas formas de abordar e perceber a realidade.
Vejamos essas relações entre corpo e intervenção.
Rosa,2005.p. 510).
De corpos e tr.tvessias Pedro Paulo Gomes Pereira 195
19'±

para um tipo de intervenção que era solicitada pelo próprio grupo?': E,


Um encontro além disso, pairava uma dúvida que, se não era o centro da atividade de
um antropólogo, se constituía na razão do trabalho dos profissionais de
Uma enfermeira estava trabalhando no Amapá, num dos polos-
saúde: "O que fazer afinal?':
-base de uma Terra Indígena (TI). Ao preparar um curso voltado para
~ando estava solicitando a nomeação das partes do corpo, a enfer-
a formação dos agentes indígenas de saúde (AIS), propôs um exercício
meira buscava traduções dos termos da língua indígena para o português.
para apreender as designações indígenas dos órgãos e partes do corpo
Ou, pelo menos, construía conjuntamente analogias que pudessem fazê-la
humano. Pelo fato de, em geral, não dominarem as concepções locais de
entender um pouco da compreensão indígena de corpo para poder atuar.
saúde e doença, os profissionais de saúde necessitam para as intervenções
A antropóloga afirmava que o fato de não haver uma correspondência
(vacinação, administração de antibióticos e outros medicamentos) de
direta entre os termos da biomedicina e os conceitos indígenas de corpo
certo entendimento do léxico usado, para fàcilitar o compartilhar saberes
não permitia traduções diretas. Uma tradução literal fracassaria. Se a
com os AIS, bem como para a posterior amação. A enfermeira pediu que
profissional de saúde se defendia, sustentando ter sido convocada para
os participantes do curso desenhassem o corpo e nominassem cada uma
amar a despeito de imprecisões conceituais, a antropóloga salientava que
de suas panes. Para ela, esse procedimento permitiria o mínimo enten-
o trabalho seria infrudfero, já que procurar equivalentes diretos seria
dimento no momento da atuação mais técnica.
não só empobrecer, mas distanciar-se das concepções indígenas. E, dessa
Preparando-se para deixar a TI após o término do curso, chegou
forma, caberia a indagação: "~e atuação seria razoável se baseada em
ao polo-base uma antropóloga que trabalha há mais de trinta anos com
'
eqmvocos ?"
..
o grupo indígena e logo iniciou uma conversa com a enfermeira. Esta
Embora caindo numa armadilha epistemológica, dadas a centra-
lhe contou sobre a técnica que desenvolvera e apresentou-lhe os cartazes
lidade e a complexidade do corpo nas cosmopolíticas ameríndias, a en-
com os desenhos de partes do corpo elaborados pelos alunos. A antro-
fermeira, numa situação profissional anódina, apenas desejava conhecer
póloga, ao olhar os cartazes, interveio enfaticamente, explicando que a
minimamente os nomes das partes do corpo para poder formular per-
concepção de corpo para tal grupo indígena só poderia ser alcançada se
guntas prosaicas, tais como: "Posso aplicar um remédio em seu braço?". A
compreendida sua cosmologia. O corpo, de forma alguma, deveria ser
antropóloga, por sua vez, alertava para a violência epistemológica daquilo
fragmentado daquele modo, já que as concepções e distinções entre corpo
que seria trivial na atuação da enfermeira. Enquanto esta, ancorada na
humano e não humano eram temas filosóficos e matéria essencial para
teoria biológica de corpo e suas terapêuticas, referia-se ao corpo biológico,
os ameríndios. Aquele exercício afetava concepções fundamentais para
a antropóloga advertia que as teorias ameríndias eram mais complexas,
aquela comunidade. E finalizou com a seguinte frase: "Vocês, profissio-
uma vez que havia outro conceito de corpo. O problema está, como no
nais de saúde, sempre simplificam as concepções dos outros". Pelo fàto
encontro descrito por Gow, na homonímia, o que suscita dificuldades de
de a enfermeira estar de saída da TI, a conversa não teve continuidade.
tradução e encontros de comunicação precária. Esse encontro apresenta
Apesar de compreender os perigos da simplificação, ela permaneceu com
os dilemas dos profissionais de saúde que se inserem, no desejo de inter-
um incômodo, que pode ser resumido na lacônica pergunta que elaborou
vir, numa complexa busca de traduções: um encontro de convenções e
ao me relatar o acontecido: "Como amar?".
cosmopolíticas, numa profusão de equívocos e ruídos. Essa busca pode
Na nossa conversa, a enfermeira reiterou seu desconhecimento da
indicar que alguma coisa acontece quando se lida com esses processos
cosmologia da etnia em debate e de suas concepções de corpo: "~e mal
equívocos de traduções. Voltemos à cena da água fervida.
fària impulsionar os próprios indígenas a traduzir dimensões importantes
De corpos e rr,wessias Pedro Paulo Gome.s Pneira !97
196

Depois de mais de uma hora com essa recorrente discussão, outra


Os caminhos da água
enfermeira colocou um novo ponto de vista: a opção não era cair numa
insolúvel discussão sobre a veracidade de concepções, afinal, "podia tanto
Muitas das respostas às interpelações imaginativas foram bem
estar falando de coisas completamente diferentes (índios e brancos), como
diretas e ríspidas. Numa das ocasiões, depois de eu narrar mais uma vez
interpretando equivocadamente o que os índios dizem': Na realidade,
a história de Gow, uma médica, em sala de aula para alunos do primeiro
a discussão havia, até aquele momento, evitado o ponto nevrálgico da
ano de medicina, afirmou peremptoriamente que não seria função do
comenda: as pessoas não bebem água apenas em casa. De nada adiantaria
profissional de saúde pensar nessas concepções "mirabolantes" de corpos
aquela mulher Piro ferver a água para si e para seus próximos, já que as
que não necessitam de água tratada (fervida). Muito já se havia acumula-
pessoas circulavam por diversos lugares de água não fervida (ou contami-
do na "ciência" para que se "desse corda" para esse tipo de "confusão". O
nada, não filtrada). Do rio às ocas, tudo deveria passar por discussão para
essencial era lembrar que os conhecimentos de assepsia são fundamentais
conhecer as possíveis fontes de contaminação. Circunscrever a atuação
na prática médica e de qualquer profissional de saúde, cabendo apenas
a poucas pessoas era esquivar-se do debate mais sério, que implicava me-
a tarefa de explicá-los. A "missão" do médico era expandir as noções de
didas educativas, noções de assepsia, práticas sanitárias. Pouco adiantaria
higiene o mais amplamente possível, ainda que sob atitudes autoritárias
se aquela mulher índia fervesse água, se não pensássemos coletivamente.
do Estado, inclusive em "populações indígenas".
Alguns se lembraram de propostas diretas de distribuição de filtros para
Nesse caso, a resposta não foi zombeteira (como de alguém que se
roda uma aldeia e da construção de lugares de armazenamento de água
espanta diante da ingenuidade da resposta do outro) como na história de
potável. O que se insinuava na formulação dessa enfermeira era uma
Gow, mas um comprometimento austero e missionário diante da ciência,
ampliação da cena narrada por Gow. O debate sobre se a água deveria
da biomedicina: uma soteriologia racionalizada de uma salvação técnica
ser fervida estendeu-se para a necessidade de pensar os caminhos e as
- a biomedicina entendida como verdade que possibilita intervir racio-
formas de consumo de água - uma proposta diretamente relacionada às
nalmente e "salvar populações inteiras". O termo "missão" não é casual:
discussões da saúde pública.
revela a concepção da medicina como conjunto de ideias e práticas a que
A enfermeira estava pensando aqui em John Snow, autor de Sobre a
se precisa aderir fielmente, com o fervor no credo de seu poder e eficácia.
numeim de transmissão da cólem ( 1990 ), que conseguiu registrar a distri-
Dentro dessa concepção, não há dúvidas, a água deve ser fervida, a despeito
buição geográfica da cólera em Londres, trinta anos ames de se conhecer
do que pensem os Piro, a despeito do que pense qualquer um, ainda que,
sua etiologia - somente em 1883 Robert Koch concluiu que o vibrio
para tal, "medidas antipáticas" tenham de ser tomadas.
choleme era o responsável pela cólera. Snow mostrou que a cólera seguia
Esse não foi o único tipo resposta que obtive. Num debate com en-
o caminho da água. No intervalo de dois períodos epidêmicos houve
fermeiras, li a cena narrada por Gow e comentei a discussão sobre corpo
uma mudança na distribuição de água de Londres. Uma das empresas
e sobre a necessidade de estar atento às especificidades. Fui interrompido
optou por bombear a água do rio Tâmisa ames de ele entrar na cidade e
com a recorrente discussão sobre o imperativo da intervenção. No meio
se contaminar. Outras duas empresas preferiram colher água do Tâmisa
da discussão, uma enfermeira descreveu as dificuldades de atuar com "po-
dentro do perímetro urbano. Snow mostrou que a mortalidade por
pulações indígenas, no meio do mato [ou seja, sem tecnologia biomédica
cólera foi menor na empresa que preferiu colher água fora do perímetro
que pensava ser necessária], por solicitação dos próprios índios". Contou
urbano. Cruzando os caminhos da água com os dados de mortalidade, ele
que a experiência instava o profissional de saúde a conceber sua profissão
apresentou um mapa da distribuição da cólera. A doença fora vinculada
distante do que aprendera a ser a forma adequada de atuar.
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 199
198

à água, e as autoridades na época exigiram o tratamento da água pelas viam distantes dos olhares vigilantes, jogavam fora o soro e utilizavam os
recipientes de formas inusitadas e criativas. Enfim, uma multiplicidade
companhias fornecedoras.
Em consonância com essa abordagem de Snow, a enfermeira ressal- de respostas diante de uma panóplia de medidas de "promoção à saúde"
tou que o interessante seria seguir os caminhos da água e ver como e onde (para usar aqui o jargão de profissionais de saúde).
as pessoas bebem água. O problema não poderia se resumir na obrigação Certo dia, no entanto, diante de um médico com mais de vinte anos
autoritária e individualizada de "ferver a água'' (como metáfora da obriga- de trabalhos em saúde indígena, escutei a seguinte frase: "Mas índio bebe
ção do consumo de água tratada), devendo-se ames verificar as intricadas água?': Esse médico passou a dissertar sobre o assumo: "Pelo menos no
relações entre o social e o biológico. A enfermeira, num só movimento, Xingu, os índios bebem água em último caso; eles preferem uma espécie
alçava uma das narrativas fundadoras da saúde pública moderna e tornava de mingau feito de água e beiju': Durante toda sua experiência no PIX, ele
complexa a cena inicial com a qual eu trabalhava: o encontro da mulher só havia visto índios bebendo água em casos de dificuldade de se obter esse
Piro e da professora na Amazônia peruana. Tudo isso com a autoridade "mingau". A "hidratação" se daria, pois, com essa bebida e não com água.
de quem já "trabalhou com populações indígenas". Aquela interpelação Para aquela mulher Piro, asseverou o médico, a proposta da professo-
inicial sobre formas de conhecimento e disjunções conceituais acabou ra de ferver água era inadequada. Possivelmente, "a água não seria bebida
se direcionando da necessidade de atuação e dos problemas de tradução dessa maneira e quando se adoece a primeira coisa que os índios fazem é
para o imperativo de pensar práticas sanitárias para as comunidades. "A suspender a água''. Ou seja, o que estava em jogo não era só a ação Hsica
de ebulição, mas o paladar e as formas pensadas para terapias - pomos
questão era política sanitária" foi o que escutei naquele momento.
em íntima conexão. Naquele evento, portanto, mesclavam-se opções
culturais diferenciadas, numa complexa elaboração que incidia sobre as
u• Ind'10 b ebe agua?
' "
formas terapêuticas. Claro, tudo pensado por esse médico, em hipóteses
dedutivas de sua experiência em saúde indígena, prioritariamente no PIX.
"Mas os índios fazem troça das medidas sanitárias", escutei noutra
A conclusão que ele próprio tirou dessa conversa foi a de que a professora
ocasião. "Por mais que tentemos, parece que o que falamos não pega",
não devia conhecer nem os hábitos dos Piro (eles bebem água? como?
disse-me um médico certa vez. Os faros aconteciam como se as "expli-
onde?), nem suas terapêuticas, tampouco suas concepções de corpo. Ou
cações" fossem compreendidas por homens e mulheres ávidos pelos
seja, o que o médico sustentou foi a necessidade de se conhecerem os
conhecimentos que os profissionais de saúde tinham a oferecer e, simul-
afetos e afecções (o que se come, como se movimenta e se comunica ... )
taneamente, esses conhecimentos eram ignorados. "O que faz com que
dos Piro, sem a qual as medidas sanitárias estariam fadadas ao fracasso.
os índios queiram nossa intervenção e nossas explicações, mas ao mesmo
"Como pensar em medidas sanitárias gerais sem conhecer o mínimo da
tempo as ignorem?", era uma indagação comum.
especificidade de um povo?': indagou, noutra ocasião, uma estudante do
As histórias dessa "inconstância da alma selvagem" são muitas.
segundo ano de enfermagem diante dessa discussão.
Filtros foram adquiridos, racionalmente distribuídos, mas depois aca-
O "desconhecimento" das concepções indígenas era habitual,
bavam sendo utilizados para diversas finalidades - como abrigo de ani-
asseverou-me uma médica com grande experiência no PIX. Não fora
mais, cultivo de plantas, brinquedo de crianças-, menos em sua função
nem uma nem duas vezes que vira profissionais de saúde dissertarem
considerada como precípua pelos profissionais de saúde. As enfermeiras
sobre a necessidade de beber água (pelo menos dois litros por dia!) para
dedicadas, diante de surto de diarreia na aldeia, preparavam soro caseiro
uma plateia que não apreciava "aquele tipo de hidratação': Aquilo que
em belos recipientes, distribuindo-os para os índios. Estes, assim que se
De corpos e uavessias Pedro Paulo Gomes Pereira 201
200

fora ensinado nas universidades não fazia sentido no contexto do PIX, e manifestados com sintomas de diarreia aguda e vômitos violentos. Ela
os tropeços eram comuns. Contudo, se a situação fosse deixada de lado conta que, em 1998, a doença abalou a região do Acre, com várias víti-
- afinal, os "índios têm formas alternativas para hidratar-se" e não estão mas. Na aldeia Yawanawa, onde a antropóloga fazia sua etnografia, uma
morrendo de sede -, tornar-se-ia uma zona de turbulência quando em pessoa morreu. Entretanto, a ação das AIS e das lideranças controlaram
situações-limite os profissionais de saúde se vissem impelidos a intervir. a epidemia. A antropóloga concluiu que esses exemplos evidenciam que
Se, quando adoecem, os índios não bebem água, isso dificulta o um uso adequado das técnicas da biomedicina contribui para a melhora
trabalho dos profissionais de saúde, pois a desidratação é fator de risco da saúde da população. Para os Yawanawa, um maior e mais adequado
em quadros diarreicos. Nesse caso, o ideal do ponto de vista biomédico é a acesso aos recursos da biomedicina é necessário para diminuir a alta taxa
administração de "soro caseiro", celebrado como uma tecnologia de saúde de mortalidade infantil no grupo (Pérez Gil, 2007, p. 58).
extremanente.simples e eficaz para prevenir casos de desidratação provo- A tecnologia, porém, se esbarra na opção dos indígenas do Xingu de
cados por vômitos e diarreias. O soro é uma solução aquosa composta por "interromperem a hidratação no exato momento que percebem a enfer-
açúcar e sal de cozinha, para recompor a perda de água e de sais minerais midade': O que fazer nesse quadro? Como pensar numa atuação que não
nos quadros diarreicos. De acordo com prescrições médicas consensuadas, seja nem zombeteira e ineficaz, nem autoritária e impositiva (e igualmente
o soro deve ser administrado a cada vinte minutos ou a cada evacuação. ineficaz), tampouco medidas educativas que desconsiderem o contexto local
A terapia de reidratação oral (TRO) é considerada eficaz e de baixo e os conceitos ameríndios em que se fundamentam as terapias?
custo, a ponto de ter-se tornado, desde 1987, um programa do governo
brasileiro, com campanhas nos meios de comunicação, patrocinadas pela A gramática do respeito
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ( CNBB), Unicef, Sociedade
Brasileira de Pediatria (SBP) e Ministério da Saúde (MS), com o objetivo A diarreia é uma das principais causas de morte em povos indíge-
de orientar as formas de lidar com desidratação por diarreia. Os estudos nas. Não há uma tecnologia direta de prevenção da diarreia, mas a TRO
epidemiológicos mostraram como essa terapia reduziu sensivelmente os é eficaz. São diversos os agentes etiológicos, sendo os mais comuns os
índices de mortalidade infantil em diversos estados do Brasil, inclusive protozoários e as bactérias. O rotavírus está também entre os principais
em populações mais carentes. A redução da mortalidade com a adoção agentes que provocam diarreia. Diversos autores vêm salientando que a
da TRO é considerada uma evidência do "potencial da intervenção sa- precariedade de saneamento nas comunidades indígenas tàvorece a alta
nitária sobre os riscos no controle de problemas de saúde" (Guimarães incidência de infecções gastrintestinais. Além disso, aponta-se a falta
et al., 2001, p. 477). de estrutura adequada no abastecimento de água potável, de forma que
O soro caseiro é fulcral para um profissional de saúde. A TRO tanto a necessidade de água potável como a importância da TRO como
está relacionada às concepções mais caras, seja da clínica, seja da saúde terapêutica são essenciais na saúde indígena. 5
pública. Nela se resumem as técnicas biomédicas e medidas sanitárias, Esse quadro se choca com as práticas indígenas de interromper o
com tecnologia simples, que se propõem como universais. Não há con- consumo d'água em caso de enfermidade. 6 E ferver água adquire aqui uma
testação da TRO. Mesmo autores críticos à atuação dos profissionais
de saúde reconhecem o grande valor de tais técnicas em determinados Ver Coimbra & Mello (1981), Linhares eo aL (1981), Santos, Linhares & CoimbraJr. (1991). Coimbra/r. er
as dificuldades de implementação da TRO em quadros de exDosic.í.c
quadros de enfermidade. Laura Pérez Gil (2007), por exemplo, relata
surtos de infecção intestinal provocados pela contaminação da água, 6
não é difereme. Aliás, a presunção de que as "populações indígenas" são despossuídas de fOrmas de lidar com
as enfen11idades e esrariam em "risco" (ou gue seriam vulneráveis) é um argumemo habirualmenre usado por
profissionais que rrabalham com saúde indígena.
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 203
202

dramaticidade que o encontro da 1mJher Piro com a professora não parece que esse tipo de afetação ocorre sempre. Sustento apenas que a distância
revelar. O profissional de saúde não pode rir com zombaria, mas precisa não resolve, e a implicação é uma possibilidade. E que tais situações im-
negociar formas para fazer aquilo para o qual está preparado. Práticas de pelem o profissional de saúde a sair do lugar seguro e confortável de seu
cima para baixo não conseguem ser ef-etivas. Até ações bem-intencionadas saber para uma relativa afetação por conhecimentos outros - condição
de distribuição de soro caseiro são estéreis. Estamos aqui num daqueles mesma da razoabilidade de sua atuação.
pomos no qual as práticas só são razoáveis num compartilhar saberes, os Na medida em que minhas interpelações progrediam, percebi
da biomedicina e das comunidades locais. Se a intervenção, como vimos, que, quanto mais o profissional de saúde estabelecia contatos e relações
é condição primeira de médicos e enfermeiras, nessa circunstância ela mais próximas com comunidades indígenas, mais deslocava os dilemas
se dá em situações agônicas, em dramas sociais imensos, e as ações só e perguntas. A intervenção se mantinha, mas devagar surgiam outras
conseguem se reproduzir em processos de tradução. propostas, outras ideias. ~anto maior a experiência em campo e o tem-
A gramática do "respeito", da forma como anunciada pelas políticas po de trabalho com saúde indígena, mais as questões saíam da arena da
públicas, também não é adequada. O respeito, como já dito, implica dis- certeza e convicção e passavam para problemas e dúvidas, tornando-se
tância.' A cena seria mais ou menos esta: alguém se depara com "opiniões" pontos a ser resolvidos (como sugeri no capítulo antecedente). No caso
ou "costumes" outros e, apesar de presumir o "equívoco" do diferente, o dos profissionais do PIX, foi com muito tempo de experiência que eles
"respeito" o impele a "aceitar" ou a não se pronunciar. São pelo menos aprenderam que nos quadros de diarreia crônica não basta prescrever
dois os problemas: 1) Respeito ou tolerância são termos advindos do a TRO, tampouco distribuir potes com soros caseiros como medida
"relativismo cultural" e mantém estável e inalterável aquilo que deveria educativa e preventiva. Para lidar com a situação, eles optaram por fazer
entrar - e se transformar - no jogo: a natureza (como a natureza dos a TRO assistida ou intravenosa. Na forma assistida, demanda-se do pro-
corpos). 2) A distância possibilita um não envolvimento rranquilizador, fissional de saúde uma atenção redobrada e trabalhos continuados, que
já que o "aceitar" ou o "não se pronunciar" não implica alteração ou podem chegar a três dias; na forma intravenosa, as ações também têm de
movimento por parte daquele que respeita. A gramática do "respeito" ser desenvolvidas com atenção especial e determinada tecnologia, já que
é, por conseguinte, uma política da não afecção e da não afetação, e sua implica risco para o enfermo.
aplicação, sempre mediada por um exotismo distanciador, acaba por se O que se buscou com essas opções e medidas foi uma solução ne-
mover entre quadros estáticos sem o entretecimento de conhecimentos. gociada. Nessa situação complexa se desenha a seguinte conjuntura: os
A gramática do "respeito" (e o não envolvimento que enseja) não é profissionais de saúde não deixaram de acreditar na urgência de ferver a
possível numa situação como a do soro caseiro. O profissional de saúde água; os índios do Xingu, no dizer de meus interlocutores, continuam
vê-se implicado, afeccionado na própria atuação. A necessidade de inter- a interromper o consumo d'água assim que adoecem. Todavia, médicos
vir, e de intervir eficazmente, pode produzir um deito de imersão nos e enfermeiras, compreendendo que, na forma assistida ou intravenosa,
problemas a tal ponto que o faz deslizar de atitudes bem-intencionadas comunidades indígenas do Xingu percebem o soro como terapêutica
(daquele que sabe, e sabe que o outro não sabe) a ações negociadas- fruto adequada, dedicam-se a essa tarefa que demanda atenção redobrada,
de observações sistemáticas. num afetar-se contínuo. Não estou afirmando obtendo, porém, maior efetividade. Essa mudança na forma de atuar
não é apenas uma alteração técnica e operacional, mas representa uma
- "Respeitar" desliza amiúde para o sentido de "mlerar". ?vtas., mesmo em s.eu sentido positivo, ,1qude que nos tentativa de "escutar" o outro. O que está em jogo não é só o respeito ao
coloca de freme com a dHúença e possibiliu a construção de \·alores éticos díscimos dos existentes. alguns
autores vêm alertando para seus limites (CabraL 2003). Esses limites podem ser observados quando corpos distante e exótico, mas uma ação de envolvimento com os dilemas do
qllea s.usremam: "não queremos ser apenas respeitados,
De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereira 205
20-l

de iniciar a conversa, ele fez questão de sublinhar: "saúde mental entre


outro, mesmo que precária e até sem um acordo sobre se a água deve ou
aspas, bem entre aspas!". E continuou: no Xingu, o médico responsável,
não ser fervida. 8 Os profissionais com envolvimento efetivo com saúde
naquele período, acompanhou uma "junta de pajés kLiilclro'; cuja discussão
indígena não conseguem solução para os dilemas da água fervida, mas
versava sobre os distúrbios que o garoto apresentava. Nessa reunião, os
produzem respostas provisórias. Essas respostas incertas permitem que
pajés acabaram por concluir que "não estavam dando coma': O médico
os dilemas se tornem produtivos, conduzindo, às vezes, o trabalho do
entrou com medicação, ali no Xingu, mas o fármaco não surtiu efeito.
pensamento no registro do atuar e do afeto.
Dada a gravidade do quadro, e com a aquiescência dos pajés, o jovem
Se a confusão de corpos e "corpos" é ainda um imbróglio persisten-
kuikLiro foi trazido de avião a São Paulo. Ele não fàlava português, faro que
te, e se o pensamento ameríndio ainda parece ser uma incógnita para os
preocupou o homeopata, que foi esperar o doente no aeroporto, de onde
profissionais de saúde, como vimos naquele encontro da enfermeira com
se dirigiram para o pronto-socorro. E mais uma vez as ações biomédicas
a antropóloga no Amapá, essas práticas desenvolvidas depois de anos de
desenvolvidas não funcionaram. O jovem indígena não conseguia dormir
experiência no PIX parecem se mover em torno de afetos e afecções cons-
e se tornou agressivo, atacando as moças com as quais se deparava. A si-
tituidoras dos corpos ameríndios. E se o corpo é um conjunto de afetos
tuação se agravava. O homeopata recorreu a um psiquiatra conceituado,
e afecções, mesmo não conseguindo delimitar bem as diferenças entre
que prescreveu uma medicação que fez com que o garoto conseguisse
corpos e "corpos" nem traduzir esses conceitos ambíguos que a homo-
adormecer. E, dormindo, pôde sonhar. O sonho mudou o rapaz, que
nímia obscurece, há certa aproximação entre as partes. Algo na tradução
começou inesperadamente a conversar. O irmão dele, que também estava
escapa e flui; algo no processo de tradução movimenta, produzindo esse
em São Paulo e tàlava português, passou a traduzir as conversas. O garoto
aproximar, inclusive em encontros precários.
enfermo descreveu naquele momento seu sonho ao irmão. O sonho foi
comunicado aos pajés e se tornou chave para que eles pudessem concluir
Encontros precários o processo de cura, eliminando de vez o sofrimento do enfermo. Os pa-
jés descobriram que o sofrimento do jovem fora causado por aventuras
Numa tarde, depois de sair de uma reunião na qual discuti mais uma
amorosas, mas para ele proibidas, quando da competição esportiva nos
vez a cena da mulher Piro, um médico homeopata veio conversar comigo
eventos em torno dos 500 anos, em 2000. O médico homeopata disse
sobre suas "experiências em saúde indígena". Esse médico contabilizava
por final: "Uma história lindíssima, de dupla interpretação, em que seu
mais de dez anos envolvido com a função de intermediar as ações de
desconhecimento e o faro de você assumir esse desconhecimento fizeram
campo no Xingue os serviços de saúde em São Paulo. Sua voz calma e sua
com que se compreendesse a enfermidade':
tranquilidade contrastavam com a profusão de histórias que ele descrevia
A segunda história é a de um transplante de rim realizado com
como "maravilhosas". Dentre elas vou me deter em duas.
a intermediação do Ambulatório do Índio. Para fazer o transplante,
A primeira história foi a de um garoto Kuikuro, único caso de
um homem suyá necessitou ficar em São Paulo por um tempo longo, e
"saúde mental" com o qual se deparou em roda sua experiência. Antes
acabou se tornando amigo do homeopata. ~ando faleceu, cinco anos
depois da cirurgia, devido a complicações outras que não as decorrentes
8 Há também uma alteraçáo na forma de percepçáo e de relacion,lmemo das comunidades indigen,lS com a do transplante, a esposa e o filho dele estavam na Casa de Saúde Indígena
biomedicína. Follér (2004) narra como os Shipibo-Conibo misturam os artefatos dos discursos médicos às
formas locais de adminisrr.1ção de oráricas de saúde. ELl fala de uma epidemia de cólen, em 1991, na (Casai) de Parelheiros. O médico foi se despedir, pois em breve partiriam
para o Xingu. A cena foi descrita mais ou menos assim: o médico, a viúva
206 De corpos e travessias Pedro Paulo Gomes Pereíra
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e seu filho juntos na Casai. A viúva falando em sua língua; o médico sem
Demorei algum tempo para perceber que ele não queria discorrer sobre
entender; o filho fazendo intervenções pontuais, traduzindo pedaços do
as especificidades indígenas nem fàlar de situações concretas. Ele buscava
que sua mãe dizia e chorando. Essa cena tocou o homeopata, produzindo
conversar sobre os encontros e sobre sua possibilidade ou precariedade. Se ele
nele a sensação de existir, inclusive em quadros babélicos como o viven-
concluía a respeito da dificuldade dos encontros (nos quais o desconhecimen-
ciado, cerra comunicação e entendimento. Ele me disse:
to talvez fosse elemento central), também apostava num nível de interação
e numa possibilidade de comunicação. Ele estava falando sobre práticas de
Para mim, a grande viagem desse tempo todo era ver o que nos une
tradução não facilmente resolvidas, mas que se insinuam no próprio fazer, nos
na direrença. E isso não foi uma coisa que eu entrei já com essa. Foi
erros, na prática cotidiana de lidar com a alteridade. O homeopata apostava
fazendo, consultando, indo atrás aqui para encaminhar cada caso.
que esses encontros precários possibilital1l un1 transformar.
Não tendo a quem recorrer, tendo que criar uma solução para cada
caso. E cada caso é sempre um caso. Cada caso é uma pessoa e uma Afetos possíveis
cultura que você tem lJUe entender, além de intermediar com a nossa,
com os hospitais, com os médicos daqui.
Essas variações em torno da água sugerem que as traduções (que
se deslocam de simples traduções linguísticas a zonas de aparente inco-
Essas histórias fizeram-me descobrir mais sobre os personagens e
mensurabilidade) podem afetar os profissionais de saúde- da médica que
situações narrados. Como, nesses encontros, se manifestavam as sofisticadas
nunca teve contato com saúde indígena e disserta com doura sapiência
concepções de cura kuikuro e suyá? A tentação inicial é criticar a abstração
sobre a microbiologia da água ao médico inseguro que se assombra com o
dessas histórias em suas profusões nebulosas de acontecimentos e personagens
fato de haver "índios que não bebem água"; de profissionais de saúde que
sem configurações definidas, situações sem dimensões nítidas. Ressalvas sobre
se espantam com a resistência indígena em adorar "medidas sanitárias"
a inexistência da versão do jovem hükt.lro sobre sua enfermidade; a ausência
à enfermeira que busca traduções na tentativa de atuar mais eficazmente
da interpretação do próprio grupo; a falta de informação sobre como os pajés
ou ao homeopata que coma histórias maravilhosas sobre a possibilidade
chegaram à conclusão de que não "davam conta"; a analogia direta, na narrativa
de comunicação em encontros precários; da insensibilidade de verdades
do homeopata, entre pajé e médico poderiam ser efetuadas (Rosalen, 2013 ). A
pré-produzidas a profissionais instáveis em buscas incertas de terapêuticas
crítica, entretanto, já havia sido elaborada pelo próprio homeopata, que não se
compatíveis com conceitos-afecções locais. Esses deslizamentos sugerem
cansava de alertar para a precariedade da comunicação e dos encontros, e para
que algo se moveu e se alterou: o afeto é essa mudança. Essas interpelações
a dificuldade que ele próprio tinha em compreender o que havia vivenciado.
imaginativas sinalizam que quanto mais densas são as experiências dos
Há por certo o desejo aqui de explorar com mais detalhes essas
profissionais em saúde indígena, quanto mais tempo se dedicam e quanto
histórias, ciente de que o "solo conceitual do perspectivismo" seria fértil.
mais se expõem, mais podem ser afetados e inventam formas de lidar com
Detenho-me aqui, no entanto, pois o que estou tentando compreender é questões cruciais como água e corpos.
como essas experiências afetam os profissionais de saúde. O que me inte-
Acompanhar essas variações talvez possa nos permitir passar de uma
ressa saber é: qual é a formulação que esse homeopata faz dos encontros?
sociologia crítica para uma antropologia simétrica. E, ao nos voltarmos
Como um encontro de comunicação precária pode ser "maravilhoso"?
para os profissionais de saúde, perceberemos a multiplicidade de formas
Afinal, o que tornava esses encontros precários em algo maravilhoso? O
de relacionamento e negociação com a própria biomedicina. ~em
que esse médico estava tentando me dizer?
sabe assim encontraremos profissionais mais ambíguos, mais propensos
De corpos e travessias
208

a negociações e menos vinculados à biomedicina do que cremos. Afinal,


talvez devêssemos entender que tanto para o profissional de saúde como
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/\NN~LUME
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