Professional Documents
Culture Documents
Fernandes
155
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E OS DISTÚRBIOS ...
de para o trabalho, podendo levar a aposentado- adquiridos pelo trabalhador quando submetido
rias (Marras et al., 2009; EASHW, 2007; NRC/ a determinadas condições de trabalho. Tais qua-
IM, 2001). Além disso, os DME têm como prin- dros clínicos se caracterizam pela ocorrência de
cipal expressão a dor, sintoma que reflete, mais vários sintomas, concomitantes ou não, de apa-
do que qualquer outro, a repercussão física e psí- recimento insidioso, geralmente nos membros
quica de um sofrimento humano. O trabalho superiores, tais como dor, parestesia, sensação
precário é também um trabalho “doloroso”, ou de peso e fadiga (Brasil, 2000, 2006).
seja, penoso, que expropria a saúde, muitas ve- Embora haja uma estreita relação entre o
zes insidiosamente. E é de forma insidiosa que trabalho informatizado e o aparecimento das quei-
os DME se instalam. xas musculoesqueléticas como fenômeno contem-
Datam dos anos 1980 os estudos sobre a porâneo – resultante das mudanças impostas ao
morbidade musculoesquelética, realizados entre trabalhador nos novos postos estruturados para
os australianos, que, desde então, já alertavam o trabalho, realizado, em geral, na posição sen-
para o fato de que tada, com isolamento do corpo e uso excessivo
de alguns segmentos, a exemplo das extremida-
as alterações do sistema musculoesquelético po- des superiores distais (dedos, mãos, punhos) –,
dem se manifestar inicialmente com quadros sin-
tomáticos de dor que ocorrem durante a jornada esse adoecer não é prerrogativa da revolução de
de trabalho, desaparecendo com o repouso e, as- base eletrônica, embora venha na sua esteira. Essa
sim, mantendo a capacidade para o trabalho. Es-
ses sintomas dolorosos são potencialmente re- forma de adoecimento no trabalho guarda estrei-
versíveis. No entanto, podem evoluir, atingindo ta relação com as diferentes modalidades de ges-
estágios clínicos que são incompatíveis com o tão do trabalho e gestão da produção também na
desempenho das tarefas, obrigando ao afastamen-
to do trabalho (Browne et al., 1984). indústria, particularmente durante e após as mu-
danças introduzidas pela reestruturação produti-
No Brasil, o Ministério da Previdência Social va. As demandas sobre o corpo, sobre as capaci-
(MPS) informa que os Distúrbios Osteomusculares dades cognitivas e psíquicas, em um ambiente de
Relacionados ao Trabalho (ou Lesões por Esfor- trabalho transformado para responder às novas
ços Repetitivos) representam as doenças exigências de um mercado competitivo, podem
ocupacionais mais frequentes no país (Brasil, se expressar nas queixas musculoesqueléticas.
2010). Esses quadros, como é amplamente sabi- Evidências acumuladas de estudos
do, incluem diferentes entidades nosológicas do epidemiológicos indicam a associação entre os
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
156
Rita de Cássia P. Fernandes
157
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E OS DISTÚRBIOS ...
nicamente identificada com o estudo de condi- sões apresentadas neste texto, é composta por tra-
ções fisiológicas e biomecânicas do trabalho físi- balhadores inseridos em indústrias produtoras de
co, na qual se reserva um importante capítulo material plástico da Região Metropolitana de Sal-
para a antropometria e para o estudo e adequa- vador (RMS). A opção metodológica de selecio-
ção de mobiliários dos postos de trabalho. Esse nar empresas de um mesmo ramo industrial, o
modelo se distancia dos propósitos da AET, que ramo plástico, ao invés da seleção de diversas
tem como objeto de estudo a atividade de traba- empresas de ramos industriais distintos, foi ado-
lho, produzindo conhecimentos relacionados tada com base na compreensão de que o acesso às
com a ação e cognição situadas. Recusa o estudo fábricas, o desenvolvimento dos estudos, bem
da situação de trabalho através dos modelos como a interlocução dos pesquisadores com os
laboratoriais e das simulações em condições ide- atores sociais organizados e interessados na con-
ais. Para os autores da AET, por exemplo, a pos- dução da pesquisa – especialmente para adoção
tura de trabalho não resulta apenas de decisões de medidas de controle e prevenção que fossem
e hábitos pessoais; ao contrário, é determinada recomendadas –, são etapas que devem envolver
pela inter-relação complexa dos múltiplos fato- empregadores e trabalhadores identificados a par-
res constituintes da situação de trabalho (Lima, tir de suas organizações representativas. Portan-
2000). Essa perspectiva – da análise situada do to, a opção pelo ramo plástico orientou-se por
trabalho – é o essencial nessa escola. Não há pa- pressupostos epidemiológicos, tecnológicos e so-
drões antropométricos ou situações ideais: há ciais. Ou seja, definiu-se pela realização de estu-
contextos de trabalho e sujeitos em atividade, dos com uma população possivelmente exposta
em relação dinâmica. aos fatores de risco para DME, o que delimitou o
A AET compartilha os princípios gerais contexto epidemiológico, considerando, no entan-
da abordagem etnográfica como estratégia do to, além disso, o processo produtivo com caracte-
estudo da atividade, e utiliza como técnica de rísticas tecnológicas próprias no qual se insere essa
estudo a observação participante, com a parti- população e a demanda social dos atores princi-
cularidade de incluir a entrevista em pais envolvidos (Pinheiro, 1996; Machado, 1996).
autoconfrontação (Lima, 2000a; Wisner, 1996).
Toma como pressuposto que, dentro dos limites
impostos pela organização do trabalho e pela di- Métodos e técnicas da pesquisa
visão social do trabalho, específicas em cada caso,
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
158
Rita de Cássia P. Fernandes
159
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E OS DISTÚRBIOS ...
(JCQ), cujas questões permitiram a obtenção dos Várias unidades fabris instaladas desde a dé-
escores para demanda psicológica, controle e su- cada de 1980 foram encontradas, de pequeno ou mé-
porte social (Karasek, 1985; Araújo; Karasek, 2008). dio porte, e empresas com implantação mais recente
A análise incluiu uma etapa descritiva dos procedentes do sudeste do país. A capacidade de pro-
dados e uma análise multivariada para verificar dução das unidades mais novas, em geral, superava a
os fatores associados aos DME, conduzida através das empresas previamente instaladas no Estado
de regressão logística (RL) não-condicional (des- (Figuras 1, 2). Esse diferencial na capacidade de pro-
crição detalhada dos métodos, técnicas e instru- dução determinou alterações no panorama de
mentos em Fernandes et al., 2010a). competitividade, com mudanças na gestão dos negó-
O último componente da investigação foi cios e, consequentemente, na gestão da produção e na
desenvolvido através da AET, baseada no mode- gestão de pessoal, com novas tarefas e novas exigênci-
lo proposto por Guérin et al. (2001), em uma as postas aos trabalhadores.
das unidades fabris, no setor de acaba-
mento de embalagens plásticas.
Realizou-se uma análise do pro-
cesso técnico e das tarefas com observa-
ções globais da atividade. Uma vez feito
um pré-diagnóstico, foi definida a situa-
ção para análise, e então conduzida a
observação sistemática a partir de um
plano de observação.
Buscou-se estabelecer relações en-
tre variáveis do contexto físico e social e a
atividade situada do trabalhador, consi-
derando sua dinâmica própria, isto é, pre-
servando a organização temporal e espa-
cial (Suchman, 1994; Guérin et al., 2001).
Assumiu-se que os DME podem re-
sultar de modos operatórios adotados em
decorrência dos limites rígidos da orga-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
160
Rita de Cássia P. Fernandes
sões de trabalhadores em geral, e das trabalha- deu através da hipersolicitação dos trabalhado-
doras em especial, que tinham uma inserção res, que passaram a acelerar seu ritmo durante a
maior nesse ramo industrial do que em outros jornada de trabalho, ao tempo em que realizavam
(uma fábrica de embalagens que realizava exclu- tarefas com exigência de força, repetitividade e
sivamente as etapas de acabamento de embala- adoção de posturas anômalas. Essas posturas fo-
gem chegou a ter uma presença feminina de 84% ram resultantes de uma situação restritiva, em
no quadro de pessoal) (Figura 3). A reabertura de que o uso confortável do corpo, produzindo
novas unidades fabris em áreas urbanas de muni- mudanças no arranjo corporal, não era compatí-
cípios menores da RMS, com a fragmentação do vel com a execução da tarefa, conforme discute
ciclo da produção (antes realizado em uma única Lima (2000).
unidade, de maiores dimensões e maior quantida- As jornadas de trabalho também foram
de de empregos, situada em polo industrial), visou objeto de mudanças. Além do caráter sazonal
à redução do custo de produção e redução de cus- de algumas fábricas – o que implicava períodos
tos, entre outros, com a desobrigação da alimenta- de extensão de jornada para atender à demanda
ção e transporte de trabalhadores. de produção e os prazos para escoamento dos
produtos para o mercado (como é o caso
do Dia das Crianças e do Natal para a
produção de brinquedos e bonecas) –, ob-
servou-se a utilização da modalidade de
banco de horas. Nas palavras do gestor
de uma das unidades fabris, “... este sis-
tema compensa as jornadas mais longas
no período de maior produção, com féri-
as e folgas coletivas no período de menor
atividade”. Mas essa afirmação não foi
compatível com o observado: no período
que seria de baixa produção e suposta-
mente destinado às compensações, a jor-
nada nessa unidade chegou, em alguns
As mudanças constatadas neste estudo setores, a cinquenta horas por semana. Além dis-
configuram um cenário no qual, embora os tra- so, 85,4% dos trabalhadores dessa fábrica, nesse
balhadores sejam contratados formalmente pela período, trabalhavam em horas extras. A con- CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
empresa, as características do emprego permiti- tradição entre o informado durante as entrevis-
ram identificá-lo com o que a literatura traz tas com gestores, acerca da possibilidade de com-
como emprego precário, com limitados benefí- pensação com férias e folgas, e o constatado nas
cios sociais, profunda insegurança no trabalho, observações, estava no fato de essa empresa ter
curto tempo de manutenção do emprego e bai- assumido novos contratos para a fabricação de
xos salários (Lewchuk et al., 2003, 2005) . itens no período que seria de baixa produção.
Nesse panorama da indústria de material Analisando os efeitos da precarização do traba-
plástico na RMS, o aumento de produtividade lho, Franco e colaboradoras (2010, p.232) cha-
ocorreu com a intensificação do trabalho. O rit- mam a atenção para o fato de que “os tempos
mo de produção com máquinas novas chegou a sociais do trabalho (ritmos, intensidade, regimes
aumentar em mais de 50%, ultrapassando, mui- de turnos, hora extra, bancos de horas) encon-
tas vezes, a capacidade prevista para o maquinário. tram-se em contradição com os biorritmos dos
Constatou-se que a intensificação do trabalho se indivíduos, gerando acidentes e adoecimento”.
161
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E OS DISTÚRBIOS ...
Esse modelo de regulação tem sido ade- de de se fazer pausas devido à pressão temporal
para atender às exigências de produção.
162
Rita de Cássia P. Fernandes
frequência mínima de uma vez por mês, o que tema de Informação de Agravos de Notificação),
causou alguma mudança na capacidade para o não há informação consolidada para morbidade
trabalho ou procura de médico, com gravidade ocupacional no país, incluindo os dados sobre a
três ou mais, em escala de zero a cinco. Estimar ocorrência de DME entre os trabalhadores, in-
essa prevalência trouxe como consequência a re- dependentemente de sua vinculação securitária.
flexão acerca do que ela representa, consideran- O que há disponível é constituído por dados da
do tratar-se de trabalhadores em plena ativida- Previdência Social, que se restringem à popula-
de de trabalho, com jornadas longas, e 71% de- ção com vínculo formal de emprego, beneficiária
les realizando horas extras. O achado de dor com do auxílio-acidentário. Considerando que mais
duração de mais de uma semana, ou que se re- de metade dos trabalhadores está fora desse se-
petia todo mês, determinando a busca de aten- guro social, os dados da Previdência revelam
ção médica para o problema, ou redução da ca- apenas uma parte do problema.
pacidade para o trabalho, mostrou a importân- A incidência de DME incapacitantes e que
cia dessa morbidade e o comprometimento da geraram afastamento do trabalho e benefício
saúde desses trabalhadores, que, ademais, reali- previdenciário foi de 15 casos/10.000 trabalha-
zavam tarefas com altas exigências sobre esses dores no ano de 2008 no município de Salvador,
corpos que doíam. Além da gravidade da dor segundo Souza (2010), que realizou importante
experimentada nos últimos doze meses de tra- estudo de incidência. Essa autora comparou tal
balho, mais achados corroboraram a importân- incidência àquela encontrada para casos
cia dessa morbidade no que se refere à sua si- incapacitantes da doença nos Estados Unidos
multaneidade com o exercício das tarefas: 20,6% (EUA), de 3,2 casos/10.000. Portanto, a incidên-
dos trabalhadores relataram dor em região de cia em Salvador é mais de 4 vezes maior que a
pescoço, ombro ou parte alta das costas nos últi- incidência americana. Considerando que, no Bra-
mos doze meses; essa dor tinha duração de mais sil, o benefício previdenciário apenas é recebido
de uma semana ou frequência mínima mensal, após 15 dias de afastamento e que os dados para
com redução da capacidade para o trabalho ou os EUA se referem a casos de um dia ou mais,
busca de atenção médica, ou com média a alta constata-se que a diferença acima pode ser mui-
intensidade (três a cinco). Desses trabalhadores, to maior se feita uma comparação com casos de
cerca de 65% apresentaram dor nessa região cor- incapacidade de um dia ou mais no Brasil.
poral nos últimos sete dias, e mais da metade dos Os resultados do presente estudo com tra-
que se referiram a dor em extremidades superio- balhadores industriais do ramo plástico da RMS,
res distais (punhos, mãos ou dedos) também dis- que se encontravam no seu labor diário, ou seja, CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
seram que ela havia ocorrido nos últimos sete dias não estavam afastados do trabalho, permitem afir-
(Fernandes et al., 2011). Mascarenhas (2010), uti- mar que os dados de adoecimento por DME das
lizando o mesmo banco de dados, analisou espe- estatísticas oficiais da Previdência Social, como as
cificamente os DME em pescoço, ombro e parte referidas acima (Souza, 2010), não revelam o enor-
alta das costas, observando que, entre os traba- me contingente de homens e mulheres que se en-
lhadores expostos às demandas físicas no traba- contra trabalhando com dor músculo-esquelética.
lho, a prevalência de dor passou de 20,6% Essa pode ser a face mais perversa do fenômeno: o
(prevalência geral) para 36,7%. sujeito com dor é obrigado a seguir trabalhando
Os quadros clínicos incapacitantes de DME sob as mesmas condições geradoras da dor. Esse
em trabalhadores da indústria constituem par- quadro pode ser compreendido como expressão
cela relevante da demanda aos Serviços de Saú- da precarização da saúde dos trabalhadores e está
de do Trabalhador do Sistema Único de Saúde. diretamente ligado à precarização da organização e
Devido à incipiente estruturação do SINAN (Sis- das condições de trabalho (Franco et al., 2010).
163
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E OS DISTÚRBIOS ...
Para compreender a origem do problema: um dade. Observar apenas a linha de produção, ad-
olhar mais de perto mitindo-a estável ao longo do tempo, não permiti-
rá identificar perturbações que podem ser estrutu-
A dor pode ser a expressão do desequilíbrio rais em determinados cenários do mundo do tra-
entre as capacidades humanas de produção e balho e acarretarão sobrecarga para quem trabalha.
determinadas modalidades de organização do As perturbações podem ser mais facilmente
trabalho. A dor que a cada dia maltrata e que, na evidenciáveis, como no caso das insuficiências
precariedade daquela vida, já é uma velha conheci- relativas ao mobiliário e instalações físicas. Em
da, varia em intensidade, segundo as variabilida- função do mau estado de conservação das máqui-
des do sistema de trabalho. No curso da AET, hou- nas, foram frequentes seus problemas de funcio-
ve referência a uma dor habitual, aquela que inco- namento, ocorrendo, muitas vezes, interrupções
modava ao final da jornada, que melhorava com dos ciclos de trabalho, com a consequente neces-
uso de analgésico, mas reincidia (frequentemente sidade de os operários acelerarem o ritmo para
com maior intensidade) em função de perturbações compensar o tempo perdido e não comprome-
no sistema de trabalho. Um exemplo de perturba- ter as metas. Nessa situação de variabilidade do
ção evidenciada foi a presença do “saco duro”. O processo, à repetitividade de movimentos e à
“saco duro” era uma referência ao filme plástico com adoção de posturas anômalas se associava a pres-
o qual se fabrica a embalagem plástica. Quando esse são temporal para viabilizar o desenvolvimento
filme resulta de um processo industrial de extrusão das tarefas, em ciclos cuja duração variava de
plástica, no qual se misturam grânulos de 4,9 a 14 segundos. De acordo com Kilbom (1994),
polipropileno sem uso prévio (resina virgem) com trabalho cíclico é aquele que implica ciclos que
grânulos de material plástico reciclado, ocorre re- se repetem durante a realização de uma tarefa,
dução do custo de produção. Tal filme plástico é de com duração inferior a 30 segundos, ou aquele
difícil manuseio, pois não permite o livre deslizar cujo componente essencial do ciclo ocupa mais
das faces da embalagem. Essa variabilidade do sis- do que 50% do ciclo total. Assim, no trabalho
tema (relativa à matéria-prima) determinava mudan- cíclico na indústria, conjugavam-se exigências
ças no modo operatório das trabalhadoras, a fim de sobre o corpo e exigências cognitivas. Uma
lidar com uma perturbação e garantir a conclusão regulação adotada deve ser acomodada no tem-
da tarefa: em um trabalho manual cíclico, cujos ci- po mínimo possível, a fim de não comprometer
clos podiam durar menos de cinco segundos, pro- a duração dos ciclos seguintes. Se a duração to-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
movia-se um enorme esforço de repetitividade com tal de um ciclo era de cinco segundos, uma
resistência. Assim, decisões da gestão visando à re- regulação para ajuste de perturbação nesse ciclo
dução do custo de produção podiam produzir, à não podia representar uma proporção significa-
jusante – no setor de acabamento da embalagem –, tiva do tempo total. Delineou-se, assim, o con-
sobrecarga física, representada pela atividade que texto favorável para instalação da dor.
demandava mais força com as mãos para superar a A noção de variabilidade é central para
resistência para separação das faces da embalagem, entender que, embora o trabalho seja repetitivo,
associada à repetitividade de movimentos com algu- ele muda (Assunção, 2002). Essa variação, em
ma precisão. Essa reunião de demandas físicas no contexto repleto de restrições e estreita margem
exercício da tarefa, sob pressão de tempo, promoveu de manobra, impõe ao trabalhador a necessidade
condições ideais para instalação da fadiga das estru- de lidar com o que varia e regular aquilo que varia
turas corporais envolvidas e surgimento de dor. (no sentido de superar as dificuldades e concluir
Situações como a que é descrita acima ape- a tarefa), sem a garantia de que isso não repercu-
nas serão evidenciadas através de uma abordagem tirá negativamente, por exemplo, em termos de
que privilegie a análise do trabalho em profundi- prejuízo de tempo na execução da tarefa.
164
Rita de Cássia P. Fernandes
165
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E OS DISTÚRBIOS ...
res para mulheres em vários grupos ocupacionais. extras, mais frequentes entre as mulheres. A exi-
Entretanto, a explicação para essas diferenças gência de horas extras para as mulheres pode
entre os sexos ainda é controversa (Strazdius; indicar também a submissão da força de traba-
Bammer, 2004; De Zwart et al., 2001; Kelsh; Sahl, lho feminina às imposições do empregador.
1996; Silverstein et al., 1986, 1987). É importante ressaltar que a maior
A despeito da segregação de homens e mu- morbidade entre as mulheres, encontrada em
lheres no trabalho, com tarefas diferentes, embora uma população que estava em plena atividade
sob títulos de ocupação iguais, resultando em ex- nas fábricas de plástico, foi também encontrada
posição distinta para as demandas físicas no tra- entre os casos de incapacidade que geraram be-
balho, os resultados epidemiológicos mostraram nefício, segundo estudo de Souza (2010), que
que a maior ocorrência de DME em extremidades mostra três vezes mais doença entre mulheres
superiores distais entre as mulheres não foi do que entre os homens que receberam benefí-
explicada apenas pela sua maior exposição à cio por DME. Entre as mulheres com renda men-
repetitividade. sal de um salário mínimo, a incidência de DME
Quando Almeida (2010), utilizando o sobe para 123 casos/10.000 (de uma incidência
mesmo banco de dados epidemiológicos, testou geral de 15/10.000) (Souza, 2010); esses núme-
a hipótese de associação entre sexo feminino e ros já ajudam a evidenciar parte do problema e
DME nessa região corporal, após análise de constatar a desigualdade no adoecer, na depen-
interação estatística e de confundimento (análi- dência da posição socioeconômica, e a desigual-
se para controlar ou ajustar o efeito de outras dade de gênero.
variáveis, ditas de confusão, a exemplo da expo-
sição ocupacional), manteve-se a associação en-
tre sexo feminino e DME e ainda observou-se ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
que, entre os indivíduos que referiam estar com
melhor condicionamento físico, após ajuste para O processo de precarização social e do tra-
demandas psicossociais, as mulheres apresenta- balho tem engendrado um cenário determinante
ram 3,4 vezes o valor de DME para os homens. dos DME, com a intensificação do trabalho. Nesse
Outros resultados epidemiológicos obti- cenário, tomam lugar os fatores de risco, como o
dos neste estudo no ramo plástico permitem dis- aumento das demandas físicas (repetitividade,
cutir o papel das mulheres frente ao trabalho trabalho com força e em posturas anômalas) e
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
doméstico, que é admitido, muitas vezes, como das demandas psicossociais (ritmo acelerado, fal-
traço da cultura nacional, mas que, nesse caso, ta de controle dos trabalhadores sobre seu fazer
chamou a atenção especialmente por elas terem cotidiano, baixo suporte social). A análise
jornada de trabalho nas empresas um pouco mais ergonômica do trabalho permitiu compreender
longa do que a dos homens. Portanto, não se como são gerados os fatores de risco nas situa-
tratava da dedicação diferenciada ao trabalho ções restritivas de trabalho. A repetitividade ou
doméstico entre mulheres sem atividade de tra- a postura anômala, como fatores de risco, so-
balho externa à sua casa e homens inseridos no mente se expressam no quadro de pressão tem-
mercado de trabalho. Nesse caso, além de traba- poral, em que a pausa, a interrupção do traba-
lharem em média 45,5 horas semanais na em- lho, a recuperação das estruturas corporais em
presa (contra 43,1 horas dos homens), as mu- uso não podem acontecer. Advêm daí o uso ex-
lheres trabalhavam, em média, 17 horas sema- cessivo do corpo e a instalação dos efeitos sobre
nais em casa (contra 5,0 horas dos homens) o sistema músculo-esquelético, cuja principal
(Fernandes et al., 2010a). À jornada regular de expressão é a dor.
trabalho na empresa eram acrescidas as horas Considerando o cenário difícil de precarização
166
Rita de Cássia P. Fernandes
ASSUNÇÃO, A. A. Gesto repetitivo, trabalho variável. In: FONSECA, N.R.; FERNANDES, R. C. P. Factors related to
NETO, A. C.; SALIM, C. A. Novos desafios em saúde e musculoskeletal disorders in nursing workers. Revista La-
segurança no trabalho. Belo Horizonte: IRT/ tino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v.18, n.6,
FUNDACENTRO, 2002. p.1076-1083, nov./dez., 2010.
ALMEIDA, C.S. T. G. Gênero e distúrbios músculo- FRANCO, T. M.; DRUCK, G.; SELIGMANN-SILVA, E. As
esqueléticos. 2010. TCC (Especialização Residência em novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador
Medicina do Trabalho) – Faculdade de Medicina da UFBA, e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Revista
Salvador, 2010. Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v.35, n.122,
p.229-248, 2010.
167
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E OS DISTÚRBIOS ...
GUÉRIN, F.; LAVILLE, A.; DANIELLOU, F.; and social sciences and education. Washington, DC: National
DURAFFOURG, J.; KERGUELEN. Compreender o trabalho Academy Press, 2001.
para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Ed
Edgard Blücher Ltda, 2001. PINHEIRO, T. M. M. Vigilância em saúde do trabalhador
no Sistema Único de Saúde: a vigilância do conflito e o con-
HUANG, G.D.; FEUERSTEIN, M.; SAUTER, S.L. flito da vigilância. 1996. Tese (Doutorado em Saúde Coleti-
Occupational stress and work-related upper extremity va) – Faculdade de Ciências Médicas/ UNICAMP. Campi-
disorders: concepts and models. American Journal of Indus- nas: 1996.
trial Medicine, Washington,DC, v.41, n.5, p. 298-314, 2002.
SEVALHO, G.; CASTIEL, L. D. Epidemiologia e antropolo-
______; ______; KOP, W. J.; SCHOR, K.; ARROYO, F. Indi- gia médica: a in(ter)disciplinaridade possível. In: ALVES;
vidual and combined impacts of biomechanical and work RABELO (Org.) Antropologia da saúde: traçando identida-
organization factors in work-related musculoskeletal de e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Fiocruz-Relume
symptoms. American Journal of Industrial Medicine, Dumará, 1998.
Washington,DC, v.43, p.495-506, 2003.
SILVERSTEIN, B. A.; FINE, L. J.; ARMSTRONG, T. J. Hand
KARASEK, R., BRISSON, C., KAWAKAMI, N., BONGERS, wrist cumulative trauma disorders in industry. British
P., HOUTMAN, I. The Job Content Questionnaire (JCQ): An Journal of Industrial Medicine, Michigan,USA, v.43, n.11,
instrument for internationally comparative assessments of p.779-784, 1986.
psychosocial job characteristics. Journal of Occupational
Health Psychology, Washington,DC, v.3, n.4, p.322-335, 1998. _______; _______; _______. Occupational factors and carpal
tunnel syndrome. American Journal of Industrial Medicine,
_______. Job Content instrument: questionnaire and user’s Washington,DC, n.11, p.343-58, 1987.
guide. Massachusetts: University of Massachusetts;
Amherst, 1985. SOUZA, N. S. S. Doenças musculoesqueléticas relaciona-
das ao trabalho, seguro social e benefícios por incapacida-
KELSH, M. A.; SAHL, J. D. Sex differences in work-related de. 2010. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Instituto de
injury rates among electric utility workers. American Journal Saúde Coletiva da UFBA. Salvador, 2010.
of Epidemiology, Malden,USA, n.143, p.1050-1058, 1996.
STOCK, S.; FERNANDES, R. C. P.; DELISLE, A.; VÉZINA,
KILBOM, A. Assessment of physical exposure in relation N. Reliability and validity of workers’ self-reports of physical
to work-related musculoskeletal disorders – what work demands. Scandinavian Journal of Work and
information can be obtained from systematic observations? Environmental Health, Helsinki,Fi , v.31, n.6, p.409-437,
Scandinavian Journal of Work and Environmental Health, 2005.
Helsinki,Fi v.20, special issue, p.30-45, 1994.
STRAZDIUS, L.; BAMMER, G. Women, work and
KUORINKA, I.; FORCIER, L. Work related musculoskeletal musculoskeletal health. Social Science & Medicine, New
disorders (WMSDs): a reference book for prevention. London: York, Elsevier, n.58: p. 997-1005, 2004.
Taylor & Francis, 1995.
SUCHMAN, L A. Plans and situated actions: The problem
LEWCHUK, W.; DE WOLFF, A.; KING, A.; POLANYI, M. of human-machine communication. Cambridge: University
From job strain to employment strain: health effects of Press Cambridge, 1994.
precarious employment. Just Labour, Toronto,Ca, v.3, n.24,
p.23-35, 2003. THEORELL, T, HARMS-RINGDAHL, K, AHLBERG-
HULTÉN, G, WESTIN, B. Psychosocial job factors and
_______; _______; _______; _______. The invisible health symptoms from the locomotor system – a multicausal
risks of precarious employment. Association of Industrial analysis. Scandinavian Journal of Rehabilitation and
Relations Academics in Australia and New Zealand, Medicine, Helsinki,Fi , n.23, p.165-173, 1991.
Monitoba,Ca, p.117-124, 2005.
WISNER, A. Atividades humanas previstas, atividades
LIMA, F. P. A. A. Ergonomia como instrumento de seguran- humanas reais nos sistemas automatizados. In: LIMA;
ça e melhoria das condições de trabalho. In: SIMPÓSIO NORMAND (Org.) Qualidade da produção, produção dos
BRASILEIRO SOBRE ERGONOMIA E SEGURANÇA DO homens. Belo Horizonte: DEP/UFMG, 1996. p.1-16.
TRABALHO FLORESTAL E AGRÍCOLA, (ERGOFLOR) 1,
Viçosa,MG. Belo Horizonte/Viçosa: FUNDACENTRO; Uni- _______. A inteligência no trabalho: textos selecionados de
versidade Federal de Viçosa, 2000. p.1-11. ergonomia. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. spe 01, p. 155-170, 2011
168
Rita de Cássia P. Fernandes
169