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RESUMO: A comunicação entre os seres humanos é o processo pelo qual uma sociedade existe. No
mundo contemporâneo certos procedimentos de comunicação são impróprios para a obtenção de um
propósito moral ou são até destruidores da moralidade. Há três tipos de comunicação. A comunicação
substantiva é fundamental para a ordem do homem e da sociedade. A pragmática preocupa-se apenas
com a ordem do comportamento e da ação, insensível à sorte da ordem substantiva. A comunicação
intoxicante serve para afogar a ansiedade de uma vida sem sentido. A sociedade moderna reflete e
sedimenta movimentos políticos e intelectuais ocorridos desde o final da Idade Média. Três
movimentos políticos e respectivos contra-movimentos sacudiram a civilização ocidental neste
período: a Reforma Protestante, a Revolução Francesa e o Comunismo. Em reforço a eles, os
movimentos intelectuais produziram uma redução ontológica. A substância da ordem (individual e
social) resvalou pela escala ontológica abaixo, de Deus aos impulsos biológicos. Com a redução
ontológica, perdeu-se a racionalidade substantiva desta ordem. Como a moralidade é inseparável da
racionalidade no sentido substantivo de veracidade, a comunicação torna-se deformativa, ao induzir,
por sua ação pragmática e intoxicante, as pessoas e a sociedade apenas a estados mentais de
conformismo e a comportamentos de conformidade biológica.
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(*) VOEGELIN, Eric. Necessary moral bases for communication in a democracy. In: Problems of
communication in a pluralistic society. (Papers delivered at a conference on Communication, the fourth in a
series of Anniversary Celebrations, March 20, 21, 22 and 23, 1956). Milwaukee (Wis.): The Marquette
University Press, 1956. pp. 53-68. Resumo: Antônio Raimundo dos Santos. Tradução e compilações: Francisco
G. Heidemann. Comentário: Antônio Celso Mendes.
(**) Ver nota biobibliográfica, no final do texto.
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Introdução
A comunicação entre seres humanos é o modus procedendi por meio do qual uma
sociedade existe. O fato de as “bases morais da comunicação numa democracia” pelo menos
serem postas em questionamento e, com boa razão, poderem constar como tópico de uma
palestra já indica a gravidade da confusão moral reinante em nosso tempo. Pois se nós
sentimos a necessidade de debater a comunicação na democracia contemporânea, estamos
reconhecendo, ainda que de forma não voluntária, que há algo de problemático em nossos
procedimentos de comunicação. Além disso, quanto à substância da sociedade, supõe-se que
ela é sempre moral. E se levantamos a questão da moralidade em relação à nossa democracia,
estamos traindo nossa consciência de que alguma coisa está errada na substância moral que
flui pelos canais de comunicação. Se, finalmente, estabelecemos uma conexão entre os dois
problemas – entre a substância moral e o procedimento de comunicação empregado – como
indica o título da presente palestra, então estamos sugerindo que certos procedimentos de
comunicação em nosso tempo são impróprios para a obtenção de um propósito moral ou são
até destrutivos da moralidade.
satisfação se volta seu uso de massa – é a de intoxicação. Falaremos, portanto, das funções
substantivas, pragmáticas e intoxicantes da comunicação.
Basta elaborar algumas poucas palavras, para que fique clara a relevância dos três
tipos de comunicação para o nosso tópico:
(3) A comunicação como intoxicante faz parte dos fenômenos que Pascal tratou
sob o nome de divertissements. Em suas Pensées, Pascal explorou as ansiedades da vida, o
noirceur, a escuridão que invade a alma, o vazio que resulta em tédio e finalmente em
desespero, quando a alma não é ordenada pela fé. Para fugir a esses estados de alma, o
homem desenvolve divertissements – dispersões que objetivam superar o vazio pela atividade.
As dispersões específicas tratadas por Pascal – as atividades sociais da sociedade cortesã do
século 17 – não nos interessam aqui. No entanto, este problema persiste ainda hoje, quando
existem instrumentos industriais desenvolvidos para superar a ansiedade e o tédio de uma
sociedade de massa. A prática excessiva de freqüentar cinema, ouvir rádio e, mais
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as opiniões da massa seriam formadas por vários tipos de ação governamental. Admite-se que
a sociedade pluralista é o tipo de sociedade que facilita o embate pacífico de opiniões, com a
verdade prevalecendo no fim (apesar de este fim parecer estar sempre iminente), ao passo que
uma sociedade unitária é obviamente uma coisa ruim.
A distinção entre os dois tipos de sociedade é tida em tão alta conta que, sem
dúvida, ela deve ter algum mérito. No entanto, ela dificilmente fará justiça à estrutura corrente
das sociedades pluralistas, na forma em que estas são representadas pelos estados nacionais da
Civilização Ocidental. O embate de opiniões pelo domínio das mentes humanas é nada
pacífico na realidade histórica. É tão pouco pacífico que, de fato, os períodos de paz são
apenas intervalos na guerra sangrenta de opiniões que já aflige o mundo ocidental por mais de
400 anos, e que continua ainda a nos envolver. Voltar-me-ei agora para o segundo tópico
desta preleção, para a estrutura real da opinião na sociedade contemporânea, para aquele
pluralismo de opinião que é supostamente a garantia dos avanços pacíficos rumo à verdade.
e não se vislumbra ainda um acordo de paz no horizonte. (Nota do Tradutor: Esta preleção foi
proferida em março de 1956, conforme registra a nota (*) no rodapé da página de rosto).
com os cristãos. Este padrão de realinhamento, no entanto, sofre das mesmas complicações de
que sofre o próprio padrão dos movimentos. Sob a pressão do perigo Nacional Socialista,
aqueles que haviam sido inimigos na terceira onda agora reuniram-se numa frente comum sob
a égide da política do Front Popular inaugurada por Stalin em 1934 e continuada nos
movimentos de Resistência da Segunda Guerra Mundial. E, na medida em que se rompia essa
aliança artificial, com o fim do perigo Nacional Socialista, ela deixava em sua esteira a
batalha pela alma de grandes setores das democracias ocidentais, a qual se expressa,
especialmente na França e na Itália, pela discrepância entre a filiação estagnante, senão
decrescente, ao Partido Comunista, e o vigor do voto comunista.
Estes são fatos objetivos sobre o caráter da opinião nas sociedades democráticas
contemporâneas. Não estamos lidando com seres humanos que têm esta ou aquela opinião
enquanto indivíduos, mas com cristãos e secularistas; não com cristãos, mas com católicos e
protestantes; não com simples liberais seculares, mas com os liberais da livre iniciativa, de
velha cepa, e com os liberais modernos de estilo socialista; e assim por diante. É a esta rica
diversificação de opinião socialmente entrincheirada e violentamente estridente que damos o
nome de sociedade pluralista. Ela recebeu sua estrutura em função de guerras, e estas guerras
continuam acontecendo. A nobre e bela imagem de uma busca da verdade, em que a
humanidade está engajada, com os meios de persuasão pacífica, em dignificada comunicação
e correção de opiniões, está em total desacordo com os fatos. E é no meio dessa grave
situação, em que as diferenças de opinião causam guerra, em vez de levar a entendimentos de
paz, que encontramos o nosso problema da comunicação.
Se, por um lado, a remoção do papado da ordem pública do Ocidente mal foi
reconhecida como o primeiro dos grandes atos de revolta, por outro, é bem compreendida a
ligação que existiu entre o regicídio e o deicídio como atos simbólicos de revolta contra Deus.
Recomendo-lhes que se reportem a um admirável estudo recente sobre o assunto, a L´homme
revolté, de Albert Camus. A execução de Carlos I não foi uma manifestação violenta de
republicanismo contra um tirano, mas um ataque contra o “reino divino”, contra o rei
enquanto representante da ordem transcendental na comunidade, e sua substituição como
fonte de autoridade pela comunidade dos santos no sentido puritano. E quanto ao sentido da
comunidade dos santos, de novo encareço-os a pesquisarem a literatura sobre o assunto,
especialmente Hooker e Hobbes. A decapitação do rei foi, então, seguida pela decapitação de
Deus, no culto da Revolução Francesa, na declaração da morte de Deus na Fenomenologia de
Hegel, na substituição de Deus pelo super-homem levada a termo por Marx e Nietzsche.
Os atos simbólicos de revolta não podiam ser tomados sem desculpas, não podiam
fazer sentido se não fossem precedidos pelo florescimento de um novo clima intelectual. E os
termos de sua justificação tornaram-se os símbolos da linguagem no embate de opiniões em
nossa sociedade pluralista. Vou insistir brevemente sobre esta questão, pois a moralidade da
comunicação está intimamente ligada à verdade de seus conteúdos. A moralidade é
inseparável da racionalidade do discurso – a racionalidade entendida no sentido substantivo
de veracidade. Se a linguagem empregada na comunicação é irracional, a moralidade da
própria comunicação fica prejudicada na proporção direta de sua irracionalidade. Desta seara
sem fim de problemas, vou abordar apenas o movimento da redução ontológica quanto à fonte
aceita de ordem no homem e na sociedade. Por este movimento entende-se a transformação de
nossa concepção de sociedade pelo rebaixamento da substância de ordem do logos, na
hierarquia ontológica, para o nível das substâncias orgânicas e dos impulsos.
medida em que participam do nous, no sentido clássico, ou do logos, no sentido cristão. Esta
concepção de ordem social predominava ainda em pleno século 17. Foi só então, no Leviatã,
que Hobbes eliminou o summum bonum divino da hierarquia do ser; e como a racionalidade
da ordem desapareceu juntamente com o summum bonum, ele de forma dramática introduziu
o summum malum, o medo da morte, que é uma paixão, como a nova força que injetaria razão
na ordem da sociedade. A questão nunca mais foi reafirmada de maneira tão clara quanto o foi
por ocasião de seu aparecimento inicial em Hobbes. No século 18, a nova situação de uma
sociedade sem a ordem de um summum bonum divino já é aceita de forma inquestionável; e a
busca por sucedâneos ontológicos para a ordem, apenas semi-consciente das implicações do
empreendimento, já se encontra em pleno andamento. As principais fases da busca são bem
conhecidas. A era da razão recebeu seu nome, não porque fosse particularmente razoável, mas
porque os pensadores do século 18 acreditavam ter encontrado na Razão, com R maiúsculo, o
sucedâneo da ordem divina. A construção era instável, porque a razão humana, no sentido
imanentista, isto é, a razão sem participação na ratio aeterna, é desprovida de substância
ordenante. Podia-se falar sobre razão e proclamar que certas verdades eram auto-evidentes,
desde que os conteúdos da ordem ainda encontrassem aceitação social pela força da tradição;
mas a questão da validade não podia ser adiada para sempre. No curso das tentativas de
encontrar uma base mais sólida para o novo credo imanentista, a razão que havia sido
esvaziada de substância foi dotada com o significado de uma racionalidade no sentido
pragmático de coordenação adequada de meios e fins. A redução do significado da razão, no
entanto, apenas tornou mais dolorosamente claro o vácuo criado pela abolição do supremo
bem como fonte de ordem racional. Onde deveria a cadeia infinita dos meios e fins em ação
encontrar seu ancoradouro, se o logos da ordem desaparecera? O utilitarismo parecia ter
encontrado uma resposta no auto-interesse do homem, que cuidaria que suas ações não lhe
fossem prejudiciais, mas úteis. Mas a concepção de ordem pelo maior bem do maior número,
ou pelo equilíbrio do auto-interesse esclarecido, ou pelo equilíbrio mais específico alcançado
com a busca do lucro econômico, revelou-se destoante frente à desordem e ao sofrimento
humano produzidos concretamente nas sociedades que viveram os primórdios da Revolução
Industrial. Como o amor a Deus era tabu, Comte inventou o amor autônomo ao homem, e
cunhou para este sentimento recém-descoberto o termo altruísmo. O auto-interesse do
homem, que agora adquiria a conotação de egoísmo, poderia ser complementado pelo novo
altruísmo como uma força estabilizadora da ordem no utilitarismo de um John Stuart Mill. A
tentativa de substituir a razão pelo útil foi seguida por outras etapas de descensão ontológica –
como, por exemplo, pelo descenso às forças tecnológicas da produção, em Marx; à estrutura
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racial dos grupos humanos, em Gobineau e seus seguidores; e, finalmente, aos impulsos
biológicos, na psicologia do inconsciente. Assim, a substância da ordem desceu, na escala
ontológica, a partir de Deus, resvalando hierarquia abaixo pela razão, a inteligência
pragmática, a utilidade, as forças de produção e determinantes raciais, até chegar aos impulsos
biológicos.
Algumas conclusões
Nota biobibliográfica
Comentário:
Funções substantivas, pragmáticas e intoxicantes da comunicação
Antônio Celso Mendes
PUC-PR/CCJS e Academia Paranaense de Letras
Como se pode concluir, as superações dos atuais dilemas por que passam os
processos de comunicação, acobertados pela maioria da opinião pública como pluralistas e
democráticos, não passam mais pela opção entre “sociedade aberta” e “sociedade fechada”,
mas sim por uma luta moral e de repulsa que faça refluir as formas destorcidas de
comunicação social para um nível de aceitável tolerância coletiva. Habermas, um dos
maiores teóricos contemporâneos, em sua “ética da ação comunicativa”, estabelece quatro
requisitos básicos para um processo de comunicação saudável: 1) que a mensagem seja
inteligível (clara); 2) que seja veraz (confiável); 3) que seja eticamente aceitável; e 4) que
brote de um interesse comum.
ABSTRACT: Communication among human beings is the modus procedendi through which a society
exists. Certain procedures of communication in contemporary world are unfit for the achievement of
moral purpose, or even destructive of morality. There are three types of communication. Substantive
communication is essential for the order of man and society. Communication in its pragmatic sense is
concerned with the order of behavior and action, irrespective of its effects on substantive order.
Intoxicant communication aims at drowning the anxiety of an empty life. Modern society is a
sedimentation of political and intellectual movements unfolded since the end of the Middle Ages.
Three major political movements and their respective counter-movements have shaken Western
civilization during this period, viz.: Reformation, French Revolution and Communism. As a necessary
complement to them, intellectual movements have followed, bringing about an ontological reduction.
The substance of order (individual and social) has moved on the ontological scale from God all the
way down to biological drives. As a consequence, communication has become essentially pragmatic
and intoxicant. As morality is inseparable of rationality in the substantive sense of truthfulness, in the
absence of the latter communication becomes unfit for the achievement of moral purpose by inducing
mostly conformist states of mind and conforming behavior in society.
______
(*) VOEGELIN, Eric. Necessary moral bases for communication in a democracy. In: Problems of
communication in a pluralistic society. (Papers delivered at a conference on Communication, the fourth on a
series of anniversary Celebrations, March 20, 21, 22 and 23, 1956). Milwaukee (Wis.): The Marquette
University Press, 1956. pp. 53-68. Abstract by Antônio Raimundo dos Santos. Translation and compilation by
Francisco G. Heidemann. Commentary by Antônio Celso Mendes.
(**) See biobibliographical note, at the end of the text.