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A TEOLOGIA DO DESCANSO NO PENTATEUCO

Érica Guedes Rebouças

Introdução

O assunto do descanso é encontrado em abundância na literatura teológica. Apesar


disso, as diferentes opiniões, algumas sendo motivos de divisões, tem despertado o
interesse para uma contínua investigação, com o fim de minimizar as divergências de
interpretação.

Essa questão perpassa toda a Bíblia e por isso exige um estudo detalhado de um
grande volume de passagens dos dois Testamentos. Por esse motivo, a proposta desse
trabalho é focalizar o estudo principalmente no Pentateuco, o qual é para o judaísmo o
escrito de maior autoridade e santidade, em que há os principais fatos da revelação divina.

A orientação dos textos do Pentateuco que serão utilizados no estudo se dará pelas
citações e/ou alusões dos capítulos 3 e 4 da epistola aos Hebreus. O objetivo desse
trabalho é discutir, especificamente, o significado da palavra “descanso”. Primeiramente,
será analisado a teologia do descanso na criação, e posteriormente, com relação a terra
prometida. O estudo teológico será complementado com algumas aplicações do assunto
para os cristãos hoje.

O descanso em Hebreus 3 e 4

O presente artigo é o ponto de partida para um trabalho maior que tratará da


intertextualidade na epístola aos Hebreus, especificamente nos capítulos 3 e 4, com
relação ao assunto do descanso. O autor da epistola cita e/ou faz alusões a passagens de
Gênesis, Êxodo, Números, Josué e Salmos. A proposta aqui é analisar algum tema
teológico dentro do Pentateuco, e por isso o estudo será restringido de forma que seja
possível discutir o significado do “descanso”, em seu contexto primário, compreendido
em duas situações especificas abordadas em Hebreus: o descanso na criação e na terra
prometida.

O descanso na criação

Em Hebreus 4:4 há uma citação do texto de Gênesis 2:2, que descreve o dia em
que foi terminada a criação. Nesse dia, Deus descansou da obra que havia feito e, além
disso, o santificou. (Gn 2:3).

Antes de discutir sobre o significado dessas ações praticadas por Deus, que são de
extrema importância nesse texto, é necessário entender o contexto em que essa passagem
se encontra. O livro de Gênesis é iniciado com uma narrativa sobre como foram criadas
todas as coisas. Ao longo do capítulo primeiro, é possível extrair algumas informações:
Deus foi o criador de todas as coisas (Gn 1:1), Ele era o único ser existente no princípio
(Gn 1:2) e com a Sua palavra tudo veio a existir (Gn 1:3, 6, 9, 14, 20, 24, 26). Além disso,
pode-se afirmar que toda a criação se deu em seis dias (Gn 1:31; 2:1), e que no sexto dia,
Deus criou algo muito diferente das demais coisas, o homem. Essa afirmação pode ser
sustentada pois o homem foi feito por Deus (e não só existiu a partir de Sua palavra), ele
é a imagem e semelhança de Deus (Gn 1:26) e nele o próprio Deus soprou o fôlego de
vida (Gn 2:7). Uma última informação relevante para o presente estudo é que não havia
mal em toda a criação, pelo contrário, tudo era muito bom (Gn 1:31), não havia pecado.
Esse foi o período antes da queda.

Nesse período, Deus já havia instituído o trabalho ao homem. Desde a sua criação,
o homem teria domínio sobre a terra e todos os animais (Gn16), e a ele foi também dado
a atividade de lavrar o solo (Gn 2:5), pois era de onde ele e os animais teriam seu
mantimento (Gn 1:29-30).

Após instituir todas as coisas, Deus descansou de toda obra que havia feito. Esse
descanso, certamente, não foi algo físico, pois a Bíblia diz que Deus não dormita (Salmo
121:4), ou seja, não foi por Ele estar cansado. A maioria dos estudiosos sustentam a ideia
de que o significado dessa palavra é “cessar” ou “fazer uma pausa”. Uma das
interpretações possíveis para esse termo é de que Deus finalizou sua criação no dia sétimo,
e nada mais depois disso foi criado. Segundo MacArthur (2010), o descanso de Deus foi
para estabelecimento de um padrão para o ciclo de trabalho do homem, o qual tinha
necessidade de descanso. Em Êxodo 20:11, através da conjunção explicativa “porque” há
a explicação de que a instituição do descanso foi baseada no descanso de Deus no dia
sétimo da criação. No Evangelho de Marcos, o próprio Jesus, autor da criação (João 1:1-
3), afirma que o sábado (o sétimo dia na semana judaica) foi estabelecido por causa do
homem, em seu benefício. Ainda sobre essa discussão é importante notar que este é o
único relato sobre o descanso em todo o livro de Gênesis. Não há outros relatos sobre
como os patriarcas trataram esse dia da semana.

Além de haver descansado, Deus santificou esse dia. O significado do verbo


“santificar” é separar ou colocar a parte. Segundo MacArthur (2010), esse era um dia
diferente dos outros e por isso deveria ser um dia não só de descanso físico, mas de adorar
Aquele que havia criado todas as coisas. Mais tarde, na lei mosaica, o sétimo dia da
semana foi separado como forma de culto a Deus não só por causa do episódio da criação,
mas também com relação a saída do povo de Israel do Egito. Segundo Wilhelm (2014), o
sétimo dia deveria ser uma lembrança de que Deus havia libertado e separado o povo de
Israel para ser Seu povo santo (Êx 31:13, Dt 5:32-36). Por isso, Israel deveria dedicar esse
dia a Deus, lembrando de Sua misericórdia e graça. Segundo o autor, o sábado não era
visto como sendo uma lei, mas como uma regra de conduta, pois expressava, assim como
o restante do decálogo, a vontade de Deus. É interessante notar que qualquer pessoa que
desprezasse esse dia era passivo de um castigo extremo (Êx 31:14-15; Nm 15.32-36).

O descanso na terra prometida

Em Hebreus 3:7-11, o autor faz uma citação direta do Salmo 95:7-11, no qual há
uma referência ao povo de Israel no deserto, especificamente em Meribá. Além dessa
citação, algumas alusões também estão presentes na epístola, as quais surgem como
explicação para a não entrada do povo na terra prometida. Segundo Deuteronômio 3:20 e
12:9-12, Deus havia falado sobre um descanso a Israel, que se referia a herança que o
povo receberia na terra prometida, Canaã. Diante disso, faz-se necessário analisar o
motivo da entrada, ou não, no descanso (terra prometida), e se há algum significado
espiritual especificamente.

Antes de analisar, separadamente, algumas situações que foram chave durante a


peregrinação do povo no deserto, é importante definir o contexto de toda aquela situação.
No tempo que Jose foi governador no Egito, por causa da fome que assolava a cidade de
Canaã (os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó), a sua família desceu para o Egito.
Após a morte de José, levantou um rei (que não conheceu a José) que decidiu fazer do
povo hebreu escravo, por causa do seu grande número, por medo de se rebelarem contra
o seu governo (Êx 1:8-14). Por causa da escravidão do povo que Deus havia separado
para ser dEle, Moises foi escolhido para libertar o povo das mãos de Faraó. Para que Deus
fosse conhecido por sua mão poderosa, Ele permitiu que dez pragas assolassem os
egípcios, enquanto os hebreus eram mantidos sem danos. Após isso, Deus, por meio de
Moisés, libertou o povo da escravidão e este passou a peregrinar pelo deserto rumo a terra
que Deus havia determinado, na qual teriam descanso. Durante o tempo que andaram pelo
deserto, houve incredulidade, e por isso algumas consequências.

Alguns não entrarem na terra prometida

Apesar de todo o cuidado e orientação, além de todos os prodígios e glória vindos


de Deus, o povo ainda assim colocou o Senhor à prova (Nm 14:21 fala em dez vezes) e
desobedeceu a voz dEle. Segundo MacArthur (2010) se for considerado literalmente, as
dez vezes em que o povo provou a Deus seriam as listadas na Tabela 1.

A partir do estudo de todas essas passagens é possível perceber que o motivo


central da proibição, por Deus, da entrada do povo na terra prometida, ou no descanso,
foi a incredulidade, assim como o próprio autor de Hebreus conclui (Hb 3:19). Esse
argumento pode ser sustentado pelo o motivo que possibilitou a entrada de Calebe e Josué,
os quais advertiram ao povo a confiar no Senhor, pois Ele certamente daria a terra que
Ele havia prometido, e ainda admoestaram ao povo a não serem rebeldes e não temerem
os inimigos, porque o Senhor estava com eles. A interpretação que se pode ter do texto é
que o descanso prometido por Deus se referia a algo terreno. Entretanto, talvez haja
possibilidade de existir uma interpretação que considere também um descanso espiritual
no Senhor, uma vez que Deus desejava que todos pudessem crer nEle.
Tabela 1 – As dez vezes em que o povo pôs Deus à prova, e suas respectivas referências.

O povo de Israel põe Deus à prova Referências

O povo desejou voltar para o Egito, antes


de atravessar o mar vermelho, por medo
Êxodo 14:10-12
de morrer nas mãos dos egípcios que o
perseguia.

O povo murmurou por falta de água. Êxodo 15:22-24

O povo sentiu falta das comidas do Egito,


Êxodo 16:1-3
e reclamou da fome no deserto.

O povo desobedeceu a ordem de Deus


quanto as instruções de como colher o Êxodo 16:19-20
maná.

O povo desobedeceu a ordem de guardar


Êxodo 16:27-30
o sábado, e quis colher o maná nesse dia.

O povo mais uma vez murmurou por


Êxodo 17:1-4
falta de água.

O povo deixou de dar glória a Deus,


Êxodo 32:1-35
construindo um bezerro de ouro.

O povo queixou-se da sorte deles. Números 11:1-3

O povo desejou a comida dos egípcios, e


desprezou a comida providenciada por Números 11:4-34
Deus.

O povo desejou voltar ao Egito com


medo de morrer ao entrar na terra Números 14:3
prometida.
Moises e Arão não entram na terra prometida

Uma outra situação de proibição da entrada na terra prometida, é a de Arão e


Moises por causa da situação em Meribá, em que o povo contende contra eles por água e
Deus, misericordiosamente, providencia água por meio da rocha (Nm 20:2-13). A ordem
do Senhor era que Moisés falassem a rocha, mas ele a feriu, e por causa disso, Deus
acusou tanto Moises quanto Arão de incredulidade, os quais não se comportaram de
maneira santa diante do povo. E o castigo foi que nenhum dos dois conduziria a entrada
do povo na terra.

A problemática de entender o significado do descanso espiritual somente para


aqueles que entraram na terra prometida é a exclusão de Moisés, escolhido diretamente
pelo próprio Deus e que posteriormente, apareceu aos discípulos no Novo Testamento,
quando Jesus foi transfigurado. Por isso, a interpretação mais coerente com relação ao
significado do descanso, com relação a terra prometida, é de que esse era um descanso
somente terreno, entretanto, era sombra do verdadeiro descanso por meio de Jesus Cristo,
na morada celestial.

Aplicação Teológica

Um estudo teológico meramente interpretativo, não é teologia. A hermenêutica


deve está diretamente ligada a prática. Por isso, faz-se necessário aplicar os textos
analisados, considerando a intenção do autor aos primeiros leitores, e de que forma pode
ser aplicado para a igreja hoje. (Zuck, 1994)
Com relação ao descanso na criação, foi visto que esse dia tinha um significado
não só físico, mas espiritual. No caso de Israel, eles deveriam lembrar e adorar o Criador
de todas as coisas, bem como lembrar de Sua misericórdia e graça ao libertar o povo da
escravidão do Egito. Além disso, a separação desse dia não deveria ser algo como uma
lei, mas sim como uma conduta, pois essa era a vontade de Deus. Para os cristãos hoje,
apesar dessa separação ser feita em um dia diferente (domingo, devido a ressurreição de
Cristo), as implicações são as mesmas. Deve ser um dia dedicado ao Senhor, em que o
nome dEle seja louvado e engradecido, além de lembrarmos da excelsa graça de Deus em
ter-nos libertado do império das trevas e transportado para o reino o Filho do seu amor
(Cl 1:13). Lembrar também das misericórdias de Deus que se renovam a cada manhã,
sendo essa a causa de não sermos consumidos. Uma outra aplicação importante é quando
levamos em consideração o descanso físico, expressando nossa limitação e pequenez
diante de um Deus que não dorme. Isso deve redundar um caráter de dependência nEle.

Com relação ao descanso na terra prometida, foi visto que se tratava apenas de um
descanso terreno, mas que isso seria sombra do verdadeiro descanso, por meio de Jesus.
Diante dessa interpretação, os cristãos devem refletir sobre como deve ser a vida de
peregrinação, aqui na terra (assim como o povo de Israel no deserto), para que seja
conhecido diante dos homens que já entramos no verdadeiro descanso. O apóstolo Paulo
em I Coríntios 10, adverte os cristãos para não desejarem coisas más como idolatria,
imoralidade ou murmuração, pondo Deus a prova. Antes tivessem cuidado com o excesso
de confiança quanto ao cair em algum pecado, tomando como exemplo os crentes do
Antigo Testamento. (Tabela 1). Uma outra aplicação dentro dessa parte do estudo pode
ser extraída do próprio autor aos Hebreus, que admoestou os cristãos, nos capítulos 3 e 4,
a serem fiéis a Cristo, com fé, obediência e perseverança.

Conclusão

O estudo foi baseado no tema teológico do descanso no Pentateuco, orientado


pelas passagens que o autor da epistola aos Hebreus (capítulos 3 e 4) fez citações ou
alusões sobre esse assunto.
Primeiramente, foi analisada a teologia do descanso na criação, e posteriormente,
com relação a terra prometida, buscando o verdadeiro significado do termo “descanso”
em ambos os contextos. O estudo foi complementado com algumas aplicações do assunto
para os cristãos hoje.
Diante disso, pode-se concluir que a proposta do trabalho foi atingida
satisfatoriamente, e que com relação a criação o descanso significou um padrão instituído
por Deus, dentro do ciclo de trabalho do homem. Esse padrão teve um caráter tanto físico
(descansar o corpo) quanto espiritual (dedicar o dia para adoração), uma vez que Deus
não somente descansou, mas santificou o sétimo dia. Com relação ao descanso na terra
prometida, foi visto que tratava somente de um descanso terreno, uma vez que lideres
escolhidos pelo próprio Deus não puderam entrar em Canaã. Apesar disso, esse descanso
na terra pode ser considerado sombra do verdadeiro descanso por meio de Jesus, o qual
trouxe libertação ao povo da escravidão do pecado, permitindo a entrada na morada
celestial.
Referências

MACARTHUR, J. Bíblia de Estudo MacArthur. São Paulo: Sociedade Bíblica do


Brasil, 2010.

WILHELM, F. O sábado no Antigo Testamento e na perspectiva de Jesus. Escola


Superior de Teologia, São Leopodo, pp.69, 2014.

ZUCK, R. B. A Interpretação Bíblica. Tradução: Cesar de F. A. Bueno Vieira. 1ª edição.


São Paulo: Vida Nova, 1994.

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