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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

RODRIGO EMANOEL FERNANDES

O PUNCTUM NA SARJETA:
as redes sociais digitais e
as histórias em quadrinhos

CAMPINAS
2017
RODRIGO EMANOEL FERNANDES

O PUNCTUM NA SARJETA:
as redes sociais digitais e
as histórias em quadrinhos

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Doutor em
Educação, na área de concentração
Educação, Conhecimento, Linguagem e
Arte.

Supervisor/Orientador: Antonio Carlos Rodrigues de Amorim.

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO


FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO RODRIGO
EMANOEL FERNANDES, E ORIENTADA PELO PROF.
DR. ANTONIO CARLOS RODRIGUES DE AMORIM

CAMPINAS
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE/INSTITUTO

TESE DE DOUTORADO

O PUNCTUM NA SARJETA:
as redes sociais digitais e
as histórias em quadrinhos

Autor : Rodrigo Emanoel Fernandes

COMISSÃO JULGADORA:

Prof. Dr. Antônio Carlos Rodrigues de Amorim

Profa. Dra. Ludmila de Almeida Castanheira

Profa. Dra. Valéria Cazetta

Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Júnior.

Profa. Dra. Alik Wunder

2017
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Antônio Carlos Rodrigues de Amorim,


pela paciência com minhas crises e por seguir firme e forte até o fim.

Agradeço aos meus colegas do Grupo de Pesquisa Humor Aquoso pelas trocas
e debates no decorrer do desenvolvimento desse trabalho.

Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior) pela concessão da bolsa durante todo o período de realização deste
doutorado.

Agradeço à banca, formada pela Prof. Dra. Ludmila Castanheira (companheira


da vida inteira), Prof. Dra. Valéria Cazetta (que pra mim sempre será a Billy
velha de guerra), Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Jr. (que já estava
lá quando toda essa jornada começou) e Prof. Dra. Alik Wunder (que foi a
melhor orientadora de PED que eu poderia querer).
RESUMO

As redes sociais digitais nos tomam de assalto com uma avalanche constante

de imagens e palavras, num processo que pode ser descrito, num sentido

deleuziano, como um esgotamento das potências da imagem, estancando a

criação de novos possíveis. Ao combinar o conceito de punctum, de Roland

Barthes – entendido como uma forma de re-apropriação da imagem pela

subjetividade do observador – com o conceito de sarjeta – o espaço entre os

quadros nas Histórias em Quadrinhos, onde efetivamente se dá o movimento

e a criação de sentidos pelo leitor – a tese se propõe e explorar a potência do

invisível, do “espaço-entre” não afirmativo na experiência do dia a dia nas

redes sociais, onde se (re)encontrariam os possíveis não-pensados, as

insinuações de mundos que se criam e se descriam, para além do imperativo

permanente por afirmações na dinâmica das redes.


ABSTRACT

The digital social networks assault us with a constant barrage of images and

words, in a process that could be described, in Deleuze's terms, as an

exhaustion of image potency, stopping the creation of new possibilities. By

combining the concept of "punctum", as described by Roland Barthes -

understood as a way of reposessing imagery through the observer's

subjectivity - with the concept of the "gutter" - the spaces between images in

comic books, where the movement and meaning are created by the reader -

the objective of this thesis is to explore the potency of the invisible, non-

affirmative "in-between-spaces" in the experience of daily life in social

networks, where any possible unthoughts would be found (again), any

insinuations of worlds that are done and undone, and beyond the permanent

imperative through affirmations in the network dynamics.


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SUMÁRIO:
9

INTRODUÇÃO:
O PROJETO DE AUGGIE
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Anoitecia quando Paul Benjamin, o escritor, se deu conta que seus charutos
schimmelpennincks haviam acabado.

Ele correu até a única tabacaria do Brooklin que vendia esse tipo de charuto
e chegou no exato instante em que Auggie Wren, o tabaqueiro, fechava as
portas. “Acabaram os schimmelpennincks?”, perguntou o mais que experiente
vendedor com um sorriso divertido, antes de, gentilmente, reabrir a loja. E
dessa venda, que as circunstâncias deslocaram ligeiramente da rotina,
seguiu-se uma conversa entre amigos esticada até o pequeno apartamento do
vendedor. Entre cervejas e (mais) charutos, falaram especialmente sobre a
máquina fotográfica de Auggie que atraiu a atenção de Paul. O escritor não
conseguia colar a expressão de buldogue velho do amigo com a imagem de
alguém habituado a tirar fotografias. Auggie era amável, mas duro, um
homem de natureza metódica e prática, amante da rotina, alguém que parecia
indistinguível do balcão da tabacaria na qual trabalhava a tantos anos, ponto
de encontro para uma heterogênea fauna de moradores do Brooklin que mal
pareciam ter algo mais em comum senão o vício no tabaco e a predisposição
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para gastar horas em conversas cíclicas sobre a mais ampla variedade de


assuntos, relevantes e/ou vazios. Conversas que o tabaqueiro
simultaneamente apreciava, aturava, mediava ou sumariamente encerrava
quando era hora de baixar as portas e voltar para casa.

Auggie, com um sorriso no canto dos lábios oposto ao do charuto, colocou


diante de Paul uma série de álbuns. Páginas quadradas, quatro fotos por
página, frente e verso, com legendas indicando as datas de cada foto. “O que
acha disso?”, perguntou. O escritor deixou a cerveja de lado e, educadamente,
folheou o primeiro álbum.
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“São todas iguais”, disse o escritor. Uma gigantesca quantidade de fotografias,


preenchendo inúmeros álbuns de capa a capa, todas registrando a mesma
esquina, pelo mesmo ângulo. “É o meu projeto”, diz Auggie, orgulhosamente.
“Mais de 4 mil retratos do mesmo lugar. A esquina da Terceira com a Sétima
Avenida, às oito horas da manhã. 4 mil dias corridos em todos os tipos de clima.
Aí está porque eu nunca tiro férias. Tenho que estar na minha posição todas as
manhãs. Toda manhã, na mesma posição, no mesmo horário.”

Paul não procurou disfarçar a perplexidade, ainda que, por um interesse


polido, continuasse manuseando os álbuns. “Não sei se entendo”, comentou
enquanto as páginas, que lhe pareciam tão homogêneas, se sucediam. “Nunca
vai entender se não for mais devagar, meu amigo”, responde Auggie.

“Mas... são todas iguais!”

Auggie arqueou as sobrancelhas e suspirou, paciente: “Elas são iguais, mas


cada uma tem algo diferente da outra. Você verá manhãs brilhantes e manhãs
escuras. Verá a luz do verão e a luz do outono. Você verá dias da semana e os
fins de semana. Verá pessoas com casacos e galochas, e em outras pessoas de
camiseta e shorts. Às vezes são as mesmas pessoas, outras vezes são pessoas
diferentes. E algumas vezes aquelas que eram as diferentes se tornam as
mesmas, e as mesmas de antes desaparecem. A Terra gira em torno do sol, e
todo dia a luz ilumina a Terra por um ângulo diferente.”

Paul, caracteristicamente uma pessoa de natureza meditativa, sereno, do tipo


que seria até difícil imaginar alterando a voz, encarou Auggie por um tempo,
tragou, recostou-se melhor na cadeira, olhando pra página aberta na sua
frente com um interesse renovado, mesmo que ainda perplexo.

“Mais devagar, então?”, perguntou.

“É o que eu recomendo.”
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A cozinha de Auggie ficou em silêncio. Sentado ao lado de Paul, o vendedor


observava o amigo enquanto este observava as fotografias. Agora demorando-
se senão em cada fotografia, ao menos em cada página. A fumaça dos cigarros
espalhava-se preguiçosamente, enquanto Paul procurava agora notar as
particularidades de cada foto, os detalhes, as diferenças em meio à repetição
de cenário. Seu olhar movia-se pela profundidade de campo simulada
percebendo o menino que joga bola ali, a rapaz do caminhão de lixo aqui, a
mesma perua estacionada ora numa esquina, ora em outra. Entretido,
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respirando devagar, a voz interior aparentemente calada, em suspenso,


perdida em algum lugar do tempo do Brooklin.

Auggie alternava seu olhar entre Paul e as fotografias que conhecia tão bem,
embora, claro, jamais tivesse sequer cogitado a possibilidade de esgota-las
seja de que forma fosse. Como alguém que revive as emoções de um filme
favorito ao lado de alguém que o assiste pela primeira vez, seu rosto
brutalmente amável emanava serenidade e os goles de cerveja entre as
tragadas de charutos schimmelpennincks quase chegavam a parecer
reverentes. Seria essa a primeira vez que mostrava seu projeto a alguém? Não
sabemos. Paul vira uma página.

Os álbuns de Auggie, cartesianamente organizados, sugeriam fortemente uma


leitura em ordem cronológica. As legendas informando que cada foto desejava
representar um dia na vida daquela esquina, daquela tabacaria, daquelas
pessoas, de Auggie. E Paul se via inclinado a respeitar essa ordem implícita.
Seus olhos seguiam de uma foto para a imediatamente ao lado, com vagar, as
imagens adjacentes flutuando, etéreas, no limiar da visão, bem como a
reminiscência das fotografias das páginas anteriores. Não falava. Estaria
imaginando que aquelas fotos lhe pareciam janelas? Pequenas janelas no
tempo? 02/08, uma jovem fazendo cooper passara diante da tabacaria as 8
horas da manhã. Quem era ela? Para onde foi? Voltaria a aparecer? Ou talvez
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Paul prestasse mais atenção nas mudanças na luz, na tonalidade. 23/12,


uma névoa pairava entre a Terceira e a Sétima e a tabacaria mal era
distinguível. Auggie, curiosamente, optou pelo preto e branco, talvez cooptado
pelo senso comum que reconhece nessa estética uma forma de aproximação
maior com uma realidade que se acredita existir além-foto, mas de algum
modo Paul podia intuir cores: o azulado da névoa, o dourado do verão, o
cinzento do outono. Ou talvez fosse apenas o adestramento do olhar pela
publicidade, ou pelo cinema, ou pelo mero hábito de ver fotografias. O ar ia
se tornando cada vez mais denso de fumaça e Paul, o escritor, parecia
hipnotizado. Havia um mistério ali, algo além da simples explicação das
intencionalidades de um projeto ou de uma apreciação estética, filosófica ou
artística, algo que a princípio lhe escapara, mas agora o compelia a virar as
páginas, uma depois da outra, álbum depois de álbum, não mais por mera
polidez.
16
17

E foi então que a flecha o atingiu.

Auggie percebeu quando Paul focou o olhar numa foto em particular com mais
intensidade do que as outras. O escritor, debruçado sobre a mesa, reclinou-
se mais, sua respiração se alterou. Auggie, sentado ao lado, ligeiramente
afastado da mesa, o observava com atenção, tentando entender o que havia
acontecido. Paul sussurrou: “É Ellen”, então levantou o álbum para mostra-
lo a Auggie. “É Ellen”. “Sim”, respondeu o vendedor, “Ela apareceu várias vezes
no decorrer desse mês, imagino que era o caminho para o trabalho”. Mas Paul
não o ouvia mais. “É Ellen”, repetiu. Sua expressão era quase indecifrável,
havia algo de pesar sem dúvida, mas também de incompreensão,
descompasso, descontrole. Apoiou-se na mesa, olhos fixos na fotografia – não,
na imagem de Ellen – não… em Ellen. Tentou respirar e resfolegou, a
compostura desmoronando, completamente despreparado e desarmado para
lidar com o impacto bruto e cego que o atingiu tão inesperadamente. Não
podia lidar com isso, controlar, racionalizar, a flecha veio cega, repentina,
profunda, irracional. “Olhe pra ela”, disse, com a voz já embargada, patético
e indefeso, “Olhe para minha querida”. Cobriu o rosto com as mãos e chorou
como uma criança, enquanto Auggie apenas lhe tocava os ombros com uma
palma de mão compreensiva, sem palavras. Os charutos schimmelpennincks,
que motivaram toda aquela quebra de rotina, completamente esquecidos.

Roland Barthes chamou de “punctum” (BARTHES; 1984, pg. 47) a experiência


vivida pelo spectator (aquele que vê a foto) de ser “trespassado” por algo
presente numa fotografia que, de algum modo, lhe fere, lhe atinge, lhe afeta.
Algo, um elemento, que não era o objetivo do operator (aquele que fotografa),
mas estava lá no momento em que o dedo pressionou o botão do obturador,
algo que se torna spectrum (aquele/aquilo que é fotografado) quase
inadvertidamente. Barthes define o punctum como algo de muito pessoal, algo
que desloca uma foto em particular da generalidade das imagens fotográficas
que nos bombardeiam diariamente e pelas quais temos um interesse polido,
um “gosto” ou “não-gosto” indiferente (o chamado studium) da instância de
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um mero to like, para um to love. Algo que, ainda que presente na foto,
também está presente no spectator e, talvez, especialmente nele. Ser tomado
pela experiência do pungir é sofrer uma ferida, se mortificar, submeter, mas
ainda assim, paradoxalmente (ou não) é uma forma de poder: o poder do
spectator de tornar a foto “sua”, em seus próprios termos, desvencilhar-se dos
sentidos do operator e da generalidade do studium e criar seus próprios
sentidos para a imagem, duelar com a imposição da suposta realidade pré-
existente que toda fotografia parece almejar e/ou afirmar. Há algo no punctum
de semelhante ao fetiche sexual: um detalhe, um elemento, que não tem
absolutamente nenhum significado para uma pessoa, mas representa
(provoca) o máximo de excitação para outra. Insignificante para uns,
indispensável para outros, e em grande medida, inexplicável, ainda que
explicações abundem. E, talvez, o receio do julgamento social que muitos
fetichistas sintam, não seja pela possibilidade de ojeriza que o objeto de seu
desejo porventura desperte na sensibilidade sexual da maioria, mas o
intolerável patético de uma completa indiferença, um mero “dar de ombros”.
O que te fere, o que te excita, o que te rasga, o que te determina, o faz apenas
para você e essa experiência incomunicável parece além da possibilidade de
compartilhamento. Não pode ser transmitida a não ser no nível de uma
explanação intelectual que não traduz sua dor. “Minhas dores são maiores,
pois são minhas”.
19

Um detalhe... um elemento... um ponto. Mas no que constitui um “detalhe”?


Quais as fronteiras de um “elemento”? O que, onde, como, quando, pode
tornar-se o que Barthes chamava de “punctum”? Em suas pesquisas sobre e
para processos de criação cênica, FERRACINI (2011) deslocou o punctum de
uma condição de imagem externa que se contempla para uma “imagem
interna”, uma sensação localizada no corpo, o músculo que pulsa, o suor que
escorre, o frigir da pele, algo que te afeta fisicamente na sala de ensaio e cuja
memória e evocação a posteriori pode servir de alavanca para resgatar, no
momento do espetáculo, um estado alterado exaustivamente obtido através
de horas de ensaio e trabalho corporal. O punctum ao mesmo tempo como
algo no corpo e como uma imagem mental, algo de extremamente pessoal e
intraduzível. Quão pequeno pode ser esse detalhe? Quão descomunal? A
“mulher com a sombrinha” (quão fácil seria dar esse título se tal foto fosse
selecionada para uma exposição) assoma, em primeiro plano, grande como a
vida, focada, enquadrada, imortalizada. Em sua pequena janela ela reina,
tudo o mais é fundo, desfoque, atmosfera, ambientação. Quem poderia
duvidar que o obturador fora aberto especificamente para registra-la? Não
poderia ser outra coisa senão o tema do operator, para qualquer observador
que fitasse a foto. Não poderia passar despercebida, sua poética se impõe,
como deslocar tal imagem da generalidade do studium, para a particularidade
do punctum? Como senti-la no corpo? Como identifica-la como um tendão que
vibra? Um nervo que salta, por vontade própria?

Tal foto sozinha, autocontida, teria ferido Paul Benjamin da mesma forma?
Ele que tem um retrato de Ellen na parede de seu escritório, função clara e
definida de foto-memória, foto-pesar, foto-para-se-chorar-sobre. Tal foto não
fere, não mortifica, por demais domesticada em sua moldura, justaposta às
naturezas mortas, janelas e objetos do cotidiano. Tal foto não toma de assalto,
ajuizada demais para tanto, encaixada (enquadrada) em suas funções.
Fantasmas não assombram através de imagens assim, apaziguados,
exorcizados, a moldura como um pentagrama desenhado no chão, permitindo
invocar os demônios mas mantendo-os sob controle, submetidos a um
sistema pré-definido, regras, lógica. Mas dentro do “sistema” elaborado por
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Auggie o fantasma encontrou uma brecha para ressurgir, atravessar defesas,


atingir Paul com tal força crua e direta a ponto de abolir as inibições, o auto-
julgamento, o pudor do ridículo. Pois Paul sabia que a “mulher com a
sombrinha” meramente estava diante da lente as oito da manhã numa data
qualquer no Brooklin. Qualquer um que folheasse os álbuns de Auggie
também teria condições de sabe-lo, pois o próprio arranjo das fotos insinua
essa leitura: quatro fotos por página, através de muitas e muitas páginas, a
tabacaria sempre ali como elemento recorrente, as legendas que afirmam: “um
dia”, “outro dia”, “outro dia”. A foto da “mulher com a sombrinha” é uma
dentre centenas. Vê-la é ver também as fotos vizinhas no limiar da visão, é ter
na memória recente a experiência de navegar por tantas outras imagens.
Nenhuma das fotos, sozinha, sustenta a poética do projeto de Auggie, seu
sentido está em sua justaposição. De fato, não fazia diferença para o operator
o que estava diante do obturador a cada 24 horas, o que importava era que o
botão fosse pressionado e o obturador aberto registrasse seja o que fosse. O
objetivo do operator era capturar regularmente um instante do tempo por vez
em um determinado espaço, quaisquer elementos individuais capturados
seriam puramente incidentais. Centenas de spectators diferentes poderiam
percorrer aquelas imagens, sendo afetados de diferentes formas, mas apenas
Paul Benjamin, por ser Paul Benjamin, poderia ser fulminado por aquela
única e especifica imagem entre tantas, pela imagem em primeiro plano
naquela foto específica, mas não mais que um detalhe no contexto do álbum
como um todo, afetando-o não apenas por sua presença, mas especialmente
por todas as suas inúmeras ausências.

Quando Paul pergunta de onde Auggie tirou a ideia, o vendedor comenta:


“Esse é um registro do meu cantinho, é só uma pequena porção do mundo, mas
coisas acontecem nela, como em qualquer outra parte” (SMOKE; 1995). Auggie
intuiu que capturar uma única imagem da tabacaria não lhe seria o bastante,
mas tampouco poderia capturar a vida e o tempo que passam e se vão. Seu
método, ainda que talvez não conscientemente enunciado, foi lógico e
racional: seu projeto é uma cartografia do tempo. Seus álbuns são mapas
através dos quais o navegante pode percorrer o tempo ao invés do espaço. Da
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esquerda para a direita, da primeira à última página, seguimos adiante no


tempo, da direita para a esquerda, recuamos. E, sendo uma cartografia, há a
necessidade de generalizações, amostragens, codificações. No caso um
instante dentre cada 24 horas, adensa todos os demais instantes que
compõem horas, dias, meses e anos. Legendas para identificar os instantes,
justaposição espacial em ordem cronológica, para orientação. Um mapa
composto de imagens, no caso fotografias que trazem para essa cartografia
suas próprias potencialidades, diversas dos traços de desenhos, linhas e
formas. Trazendo para o mapa a possibilidade de não apenas orientar o
navegador, mas feri-lo, na experiência do pungir.

Imagens e palavras justapostas em sequencia deliberada para produzir uma


resposta no leitor. Mapas para representar o tempo através da disposição no
espaço.

Quadrinhos.
22

AQUILO QUE (ME) PUNGE


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sarjeta s.f. Escoadouro para águas das chuvas que, nas ruas e praças, beira o meio-fio das calçadas.
Fig. Condição ignominiosa de decadência e humilhação; estado de indigência moral; lama: seus
vícios levaram-no à sarjeta.

Houve uma vez uma dissertação de mestrado com o título de “Políticas


e poéticas das fotografias do Festival de Apartamento: entre evidências e
devires” (FERNANDES; 2011). Começou como uma pesquisa sobre uma
mostra/festa artística underground, voltada para a linguagem da arte da
performance, até se tornar um trabalho sobre as fotografias dessas
performances que, no limite, davam sustentação ao evento em si.
Simultaneamente pesquisador e um dos organizadores da proposta, acabei
me vendo enredado num processo que tinha um quê de auto-análise,
revisitando antigas opções, estratégias e objetivos com uma outra ótica, não
mais do organizador, mas acima de tudo de um leitor. Um processo
tumultuado, mais árduo do que me permitia acreditar.
Inspirado nos movimentos de vanguarda do século XX e na ação de
coletivos de arte-ativismo, a proposta do Festival de Apartamento era, de certa
forma, provar ser possível gerar um evento artístico recorrente sem a
necessidade de recursos e/ou autenticação de instituições reconhecidas da
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área, verbas de patrocinadores ou mesmo o aval de coletivos já renomados e


dotados de prestígio e influência. Realizado em residências cedidas por
simpatizantes e tendo como base um discurso de colaboração mútua, a
proposta vingou a ponto de ter alcançado sua décima quinta edição em pouco
menos de cinco anos de atividades, tendo se estabelecido como uma das
referências na área de performance no cenário nacional de eventos
alternativos, com edições progressivamente maiores em número de
participantes (incluindo performers, público e colaboradores). Mas o que
acabou se mostrando interessante a ponto de se tornar o foco da dissertação
não foi o festival em si, o acontecimento numa casa insuspeita, numa
madrugada, que se desfaz no dia seguinte, mas sim os resíduos que se
oferecem a permanecer: as fotografias.
No blog do Festival de Apartamento, seu único “endereço fixo”
(http://festivaldeapartamento.blogspot.com/), os arranjos de fotos eram
apresentados como sendo o próprio Festival de Apartamento. Deixando-se
levar, sem resistência, pelo lugar social mais comum da fotografia na nossa
cultura, o blog exibia os “resíduos” das performances cartesianamente
organizados segundo a lógica burocrática da autoria, cronologia, evidência.
As fotos como “provas” não apenas de que os festivais realmente acontecem,
mas de que voltarão a acontecer, seduzindo assim novas adesões, alianças,
contágios, realimentando-se contínua e sazonalmente. Se, de certo modo, até
pode-se dizer que o festival provou (ou, mais corretamente, ajudou a provar)
que um evento alternativo pode se estabelecer sem o aval de autoridades, ao
mesmo tempo reafirmou uma das mais incontestáveis autoridades na nossa
cultura: a imagem fotográfica como evidência de algo vivido.
O desenvolvimento da pesquisa e a escrita da dissertação acabaram
mesclando-se com o processo do próprio autor de (tentativa de)
desvencilhamento dessa lógica que, embora tenha sido (e, em muitos
aspectos, continue sendo) conveniente para a organização do festival e todos
os seus envolvidos, barrava as possibilidades de devir das fotografias e
reforçava processos de subjetivação dominantes na (tecno/ciber)cultura
ocidental que poderiam (e deveriam) ser colocados em questão, especialmente
25

no contexto de uma pesquisa acadêmica num ambiente voltado aos estudos


da imagem.
Desse desconcerto, amalgamou-se uma base teórica na qual os escritos
de Susan Sontag sobre fotografia (SONTAG; 2004) e textos escolhidos de Sueli
Rolnik (ROLNIK; 1987, 1995, 2002, 2006), sobre a expressão artística e os
processos de subjetivação capitalísticos, formaram uma atmosfera apropriada
para uma pesquisa que encontrou nos conceitos de studium e punctum
(BARTHES; 1984, p.44-47) uma forma de dizer sobre a inquietação do
organizador/pesquisador debatendo-se entre as evidências e devires. Na
busca de BARTHES de encontrar aquilo que se poderia chamar de uma
essência da fotografia para além do reconhecimento dos referentes, o
organizador do Festival de Apartamento encontrava uma correspondência
com sua própria incapacidade de dizer das fotografias de performances (ou
fotografias performáticas?) sem retornar às memórias da experiência vivida
como testemunho e, muitas vezes, participante, ancorando a escrita num
impossível retorno ao momento irrecuperável. Para quebrar essa âncora e
derivar livre (e arriscadamente) pelas imagens, tentei combinar os conceitos
de BARTHES a outro conceito, oriundo não dos estudos sobre fotografias,
mais sim sobre as Histórias em Quadrinhos (HQs).
Na terminologia das HQs, a palavra “sarjeta” se refere ao espaço que
separa os quadros no interior de uma página. Segundo McCLOUD (1995,
p.65-122), um dos autores mais significativos nos estudos de HQs como
linguagem (em três volumes nos quais disseca a gramática das HQs utilizando
a própria linguagem das HQs como suporte), mais do que um mero espaço
em branco, a sarjeta é onde efetivamente se dá o “movimento” nas HQs, onde
“a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma numa
única idéia” (McCLOUD, 1995, p.71), através de um fenômeno da percepção
que o autor chama de “conclusão”. Ou seja, a capacidade de intuir a existência
de elementos além dos imediatamente percebidos pelos sentidos, construindo
(dando existência) a realidade a partir dos fragmentos percebidos, atribuindo
significação com base na experiência anterior.
26

(McCLOUD; 1995, p. 67)

(McCLOUD; 1995, p. 72)

Segundo McCLOUD, a naturalização da conclusão seria a raiz da nossa


compreensão cotidiana do mundo. Desde as ações corriqueiras como “saber”
que existem móveis e pessoas na casa do vizinho mesmo sem nunca ter
entrado lá, até compartilhar uma imagem mental da Antártica, constituída
27

através de dados veiculados pela mídia. A própria atribuição de sentido a


formas elementares, como transformar um círculo, uma linha curva e dois
pontos em um rosto sorridente, seria uma forma de conclusão, ou
compreender uma fotografia a partir da visão conjunta de minúsculos grãos
impressos que, juntos, dão sensação de uniformidade. O mesmo pode ser dito
da sensação de movimento causada pela persistência na retina das imagens
reproduzidas em alta velocidade no cinema e na TV.
McCLOUD define quadrinhos como “imagens pictóricas e outras1
justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou
a produzir uma resposta no espectador” (McCLOUD; 1995, p.9). Os
quadrinhos podem ser entendidos, assim, como um processo de fabulação
que se origina numa coleção de imagens dispostas intencionalmente para
desencadeá-lo. Desse modo, a seleção das imagens que devem ser retratadas
numa HQ, obedece a critérios estético/narrativos pensados de modo a
potencializar e influenciar essa fabulação de acordo com as intenções de um
autor. Será a partir dessas imagens eleitas e de sua justaposição que todo um
universo de imagens ganhará existência nos processos de subjetivação do
leitor. Esse adensamento não acontece em uma ou mais imagens específicas,
nem mesmo em seu conjunto, mas sim nesse espaço “vazio” que lhe serve de
cola, estrutura e suporte.
Retornar às fotografias do festival armado com esses conceitos permitia
algumas constatações. Uma delas era que os arranjos das fotografias para
(re)apresentação no blog já guardavam correspondências com a linguagem
das HQs mesmo sem terem sido propriamente pensadas dessa forma. As
imagens são organizadas segundo a cronologia, em sequências que se
desejam ser lidas da esquerda para a direita, de cima para baixo, ou em slides,
supostamente permitindo ao visitante ler a “narrativa” proposta por aquela
performance em particular “tal qual teria acontecido”, completando, no fluir
da sarjeta, os momentos que as fotos não capturaram. E é com
desconcertante “naturalidade” que adotamos cada foto como um momento do
tempo que se segue ao anterior e antecede o posterior, ainda que nem sempre

1 “Outras” inclui fotografias.


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existam indicações suficientes nas fotos para que se chegue à conclusão de


que essa interpretação corresponde a uma suposta realidade do momento em
que foram tiradas. Porém, tanto para o leitor, quanto para o organizador, tal
arranjo surge como “natural”: eis a performance, é o que o blog está dizendo,
aqui está ela, (re)apresentada, uma
sequência de ações no tempo. Nos
espaços “vazios” da sarjeta, criamos
ligações e continuidades.
“Compreendemos” o que o performer fez,
qual foi sua poética, sem necessidade de
tomar consciência de nossa própria
participação no processo de criação
desse sentido.
Em tempo, sempre foi
característico da fotografia, é claro,
adensar em si todo um contexto que não
está, necessariamente, na imagem
capturada, mas que pode ser
intuído/criado a partir de uma única
foto; porém o Festival de Apartamento
(ou, mais corretamente, seu blog) se
insere em dinâmicas determinadas pela
lógica das novas tecnologias digitais de
criação, manipulação e distribuição de
imagens fotográficas, as quais colocam
em questão os conceitos de BARTHES,
propostos no contexto de outra lógica.
BARTHES propõe os conceitos de
studium e punctum, bem como as
categorias de spectrum, operator e
spectator (BARTHES; 1984, p.20-34),
Recorte de (re)apresentação de uma performance no
debruçando-se sobre a fotografia blog do Festival de Apartamento

analógica, limitada pelas características


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dessa tecnologia. Nesse contexto, a fotografia não só é uma imagem, mas


também um objeto, que pode ser tocado, guardado, carregado, pode
envelhecer e se deteriorar, mas guarda em si a aura benjaminiana de um
objeto artístico único (ainda que reproduzível), cujo processo de produção
passa pela quantidade limitada de poses num rolo de filme, pela necessidade
de conhecimento das funções da câmera fotográfica, por todo um “rito” técnico
de arranjo da pose, escolha da abertura, tipo de filme, captação da luz, etc. O
advento da fotografia digital ampliou os tipos de equipamentos capacitados a
capturar imagens, automatizou enormemente suas funções e ampliou, de
uma forma sem precedentes, a quantidade possível de fotografias que podem
ser tiradas e distribuídas num período de tempo cada vez mais curto,
tendendo ao imediato. No meio digital a fotografia remete menos à lógica de
uma pintura (que pede uma leitura do particular, do individual e do detalhe)
e mais a lógica dos quadrinhos (onde a leitura é voltada para o conjunto, não
para cada imagem individualmente). Como isso afeta conceitos como o
studium e o punctum?
O blog do festival se insere no mesmo tipo de dinâmica com que as
fotografias são apropriadas para os mais diversos agenciamentos do desejo
no ambiente digital internáltico. Apresenta-se como nas redes sociais em
geral, onde os álbuns são caracterizados pela quantidade de fotos tendendo
ao ilimitado e pela multiplicidade e velocidade de meios de renovação e
ressignificação, quase literalmente ao sabor dos caprichos de cada instante.
Nesse contexto, a lógica do festival em usar a (re)apresentação de suas
“fotos/registro” como uma forma de “autenticação” per si de sua proposta não
difere nem de outros processos de construção de redes no ciberespaço – nos
quais coletivos se formam e desfazem, a partir de iniciativas individuais ou
não, sob um princípio de prazer comum que não se coaduna com
tranquilidade com os processos de subjetivação capitalísticos – nem das
“simples” (no sentido de corriqueiras, tanto que passam quase despercebidas)
tentativas de criação/apresentação de identidades pessoais a partir dos
bancos mutantes de fotografias de cada perfil particular (ou coletivo) de
qualquer uma das inúmeras (e crescentes) redes sociais disponíveis.
30

Embora a pós-produção de fotografias digitais já tenha se tornado, há


muito, prática habitual ao alcance de praticamente qualquer um que poste
fotografias online, a presença/ausência e estética dessas imagens ainda
funcionam como uma comprovação de um real que se deseja existir além-foto.
Sua potência como autenticação não diminuiu, por mais que se tenha
consciência das possibilidades quase ilimitadas de manipulação das imagens.
Ao contrário, o papel da fotografia como documento que atesta identidades
parece ganhar ainda mais força num contexto tecnológico onde programas
“reconhecem” automaticamente os rostos e “marcam” (ou permitem que
usuários marquem) identidades a cada figura humana que aparece numa
foto, como um carimbo de autenticação digital. E, vale lembrar, tal “marca”
geralmente não é tomada como um problema ou causa algum tipo de
desconforto, normalmente é algo desejado e apreciado, representa
sociabilização, aceitação em um ou mais grupos, mobiliza afetos, desafetos,
projetos. Quando o que está em jogo é o desejo de criação de uma rede, como
no caso do Festival de Apartamento, essa dinâmica acaba ganhando ares por
demais vitais para ser colocada em questão, confundindo-se com a
culminação dos propósitos do projeto em si. A “narrativa” fotográfica (ou,
poderíamos dizer, a “história em quadrinhos” formada pelos arranjos de
álbuns e pelo pulsar dos links de foto para foto) ganha, em seu conjunto, a
potência (ou a aparência de potência?) de autenticar o sucesso ou fracasso de
todo um empreendimento (E, no limite, de toda uma tentativa de construção
de uma identidade social e/ou íntima?)
Na dinâmica do digital, o “pungir” descrito por BARTHES ainda seria
possível? “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge, mas
também me mortifica, me fere” (BARTHES; 1984, pg. 47). A flecha que
trespassa saindo do interior da foto, de algo que já estava lá quando o
fotógrafo apertou o botão, mas que só existe enquanto punctum para mim. Tal
fenômeno parece necessitar de tempo, de atenção aos detalhes, derivar pelas
minúcias, passar a imagem da instância do to like para o to love. Mais do que
isso, o pungir se refere a uma experiência do particular: “essa foto”, não outra.
A foto que se destaca, o objeto que se torna único. Porém, mesmo numa
amostragem delimitada como as “fotografias do Festival de Apartamento” o
31

organizador/pesquisador se vê mergulhado em mais de 3000 fotos (sendo que


algumas performances sozinhas chegam a somar algumas dezenas de
imagens). O número de fotos existente (e disponível online) cresce em escala
geométrica, inunda até mesmo o olhar mais treinado. Como se deixar afetar
pela experiência do pungir quando a rapidez com que as imagens desfilam
por nossos olhos mal permite a descoberta de qualquer coisa de único, de
particular, de criação a partir do que já está dado, de deriva da imaginação?
A não ser, claro, o pungir(?) permanentemente reiterado da autenticação
digital/mecânica: “aí estou eu”, “aí está meu pai”, “aí está onde fui”, “aí estão
meus amigos”, “aí está minha felicidade/tristeza/prazer/dor”, “aí está o
Festival de Apartamento... eu estava lá”.
No processo de escrita da dissertação o pesquisador/organizador se viu
incapaz de se deixar pungir pelo particular, pelo detalhe em fotos específicas.
Isso me chamou a atenção para a potência com que vivenciava a experiência
do conjunto, do acúmulo. O pungir em blocos de imagens inter-relacionadas,
independentes dos seus referentes? Ligadas por “algo” que já estava lá quando
o(s) fotógrafos(s) apertaram o(s) botão(ões), mas que só se torna punctum(?)
quando eu (automática ou intencionalmente?) o tomo (ou o torno) como
elemento em comum entre elas? A flecha que trespassa poderia brotar não de
uma foto em particular, mas de algum “espaço” entre elas?
A sarjeta é onde tudo escoa. No seu sentido comum, a sarjeta permite
que a água das chuvas encontre caminhos que preservarão as cidades de sua
potência destruidora. Leva a água às bocas de lobo, mergulhando-a sob a
terra, escondendo-a dos olhos e ouvidos dos que vivem na superfície. Com ela
fluem os dejetos, os esquecimentos, tudo aquilo que poderia ter tido seu lugar,
mas agora se tornou resíduo, sem utilidade clara para a lógica em uso. Mas
continuará fluindo sob a superfície, gerando movimento, devir, potência. No
processo de fabulação desejado pelo blog do Festival de Apartamento, espera-
se que as performances sejam compreendidas linearmente, que as sequências
de ações sejam recuperadas, que as autorias sejam inequívocas, toda uma
política o atravessa. Mas as sarjetas variam de largura e profundidade. Por
vezes são muito estreitas para que a imaginação escoe sem uma
intencionalidade, um esforço consciente do leitor que rompa com o
32

automatismo da naturalização do discurso e do tempo cronológico. A


combinação fotos/texto é forte, carregada da credibilidade dos discursos
estabelecidos, mesmo (ou talvez até mais) para o próprio autor dessas
histórias em quadrinhos em forma de blog. Mas as possibilidades de escoar e
navegar estarão sempre presentes.
E se os arranjos fossem mudados? O tempo linear desconsiderado (ou
distorcido)? E se dois ou mais festivais se combinarem independente do
tempo/espaço em que aconteceram? E se entre as fotos infiltrarem-se
imagens outras? As sarjetas podem ser desviadas, bloqueadas, represadas,
para onde a água fluirá então? Invadirá as calçadas? Provocará enchentes?
Punctuns poderiam funcionar como recém-escavadas bocas de lobo? Talvez
largas o bastante para que alguém caia nelas, deixe-se levar pelas correntes
subterrâneas, para os rios, para o oceano?
Na dissertação foram realizados experimentos nos quais as fotografias
foram extraídas das “narrativas em quadrinhos” comprometidas com os
referentes e a cronologia e inseridas em narrativas-outras. Novas histórias em
quadrinhos, dessa vez pensadas como tais desde o início, formadas por
fragmentos de imagens, arranjos que tentavam tomar as figuras/situações
como pura ficção, matéria prima na qual o “sentido” pudesse ser descoberto
nas fotografias em si, não nos referentes. Tentativas de criação imaginativa
sobre o que, até então, era tomado como registro e, assim, ancorado às
instâncias além-foto. É provável que essas experiências não tenham ido muito
longe em suas potencialidades, mas arejaram o lidar com essas fotografias,
levantando perguntas e possibilidades.
Poderia essa “combinação de ferramentas” conceituais, que se mostrou
útil no processo específico daquela dissertação sobre as fotografias do Festival
de Apartamento, ser extrapolado para lidar com as avalanches de fotografias
digitais através das redes sociais do ciberespaço? Em outras palavras: os
conceitos de sarjeta, studium e punctum poderiam ser harmonizados numa
“técnica” (ou, talvez mais acertadamente, uma estratégia) de ação criativa (e
afirmativa, e imaginativa) para, ao menos, afrouxar/questionar/arejar às
âncoras referenciais que nos mantém reféns das (infinitas?) imagens
fotográficas como mecanismos autenticadores/mediadores de nossa
33

experiência com o real através das novas tecnologias digitais de


sociabilização? Uma estratégia na qual a experiência do “pungir” que separava
uma fotografia analógica da generalidade do studium, tornando-a parte da
experiência pessoal e criativa de uma pessoa entre todas, possa ser
(re)encontrada não mais numa foto em particular, mas sim no vasto espaço
“vazio” da sarjeta que separa (e une) as incontáveis imagens digitais?
Ou, talvez, uma estratégia para evidenciar algo que possivelmente já
está muito presente no nosso lidar cotidiano com as fotografias digitais, tanto
quanto estava no blog do Festival de Apartamento: nossa (contínua?) ação
como quadrinistas, tecendo narrativas (inconscientes?) sobre nós mesmos e
mundo, criando ficções que se acreditam (desejam) reais? “Imagens pictóricas
e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir
informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”?
34

AFOGAMENTO E ESGOTAMENTO
35

A metáfora da cachoeira nos vem fácil. Talvez fácil demais. Parece mesmo uma
cachoeira, não é? As postagens se precipitando numa cascata infinita, do topo
da tela perdendo-se para muito, muito além da barra de rodagem. Incessante,
contínua, inesgotável. Inquestionável seta do tempo: o presente atualizando-
se (aqui a palavra tem múltiplos sentidos) a cada visualização no topo da tela,
o passado acessível ao movimento de rolagem/caminhada rio abaixo, ao sabor
das águas que já rolaram, já passaram, já fluíram e que se perdem nas
corredeiras além, o futuro ainda por aflorar do manancial de possibilidades
não visíveis além do topo da cachoeira. Metáfora tentadora, sem dúvida.

Devemos nos apegar a ela mais um pouco? Pelo hábito, senão por mais nada?
A metáfora das redes sócias enquanto cachoeiras não deixa de nos apresentar
desdobramentos e meandros. É possível banhar-se numa cachoeira. É
possível mergulhar nela, até perder-se. Pode-se, ora vejam, afogar-se numa
cachoeira! O imaginário da internet sempre teve um certo apego por
correspondências náuticas. Falamos em navegar na web (o que sempre me
chamou a atenção: navegar numa teia?), falamos em “deep web”
relacionando-a aos abismos marinhos muito além das áreas de superfície
36

onde navegadores comuns podem se aventurar, ao menos sem risco de


acordar os monstros marinhos. Nossa modesta cachoeira estaria tão distante,
pensando assim, não? Ela flui para o mar, ela alimenta os abismos marinhos,
mas nós, pescadores com água pelos joelhos, nem precisamos pensar neles,
satisfeitos e complacentes com o aconchego da cascata indiferente sobre nós,
satisfeitos em atirar coisinhas na água turbulenta apenas para ver o fluxo
leva-las. Aqueles pequenos pedacinhos de nós onde nos projetamos, torcendo
intimamente para que cheguem ao mar, para que não encalhem na primeira
curva do rio.

Mas seria só isso? Esse desejo de perder-se no fluxo para que água leve
consigo nossas coisas, nossos fragmentos, partículas de pele, de suor, de
saliva, talvez nosso sangue? Deixar o eu se perder no indiferenciado, o
romântico e mítico regresso ao oceano? A metáfora começa a se fragmentar,
por mais que sua imagem poética continue a demonstrar certa potência, no
mínimo de evidenciação do hábito.

Começa pelo hábito de considerar a rede social como algo que nos passa,
como o rio a fluir, como se ela não fosse em si um acontecimento composto
pela amalgama de graus de potência de seus usuários, o poder de afetar e ser
afetado estendido e acelerado pela instantaneidade do suporte digital. Ao
falamos em cachoeiras e rios, é interessante evidenciar quão facilmente
traduzimos a metáfora como “nós e o rio”, não como “nós sendo o rio”. Quão
facilmente esquecemos (ou desconsideramos) nosso poder de afetar a rede. O
rio nos passa, indomável, do futuro para o passado, enquanto nós, ponto fixo,
indivíduos, permanecemos. Quando muito arrastados, quando muito
afogados. Quão difícil é nos pensar como água, como fluido, des-
individualizados, nós fluindo. Ora, se nos apegamos à metáfora deveríamos
nos perguntar porque é tão fácil identificar o facebook, o twitter, o tumblr, o
instagram, enfim, todas essas marcas/signos/empresas como “o rio” que nos
flui, que nos passa, que nos orienta, sendo tão mais difícil que nos ocorra
dobrar um tanto a metáfora e pensa-los como, quem sabe, leitos rochosos?
Represas? Comportas? Dispositivos de suporte/controle, sem dúvida,
37

empreendimentos interessados em capitalizar a energia gerada pelo jorro feroz


que lhes gira as turbinas, mas seriam eles a rede social em si?

Nem a sociedade, nem a economia, nem a filosofia, nem a religião,


nem a língua, nem mesmo a ciência ou a técnica são forças reais,
elas são, repetimos, dimensões de análise, quer dizer, abstrações.
(…) Os agentes efetivos são indivíduos situados no tempo e no
espaço. Abandonam-se aos jogos de paixões e embriaguez, às
artimanhas do poder e da sedução, aos refinamentos complicados
das alianças e das reviravoltas nas alianças. Transmitem uns aos
outros, por um sem número de metas, uma infinidade de
mensagens que eles se obrigam a truncar, falsear, esquecer e
reinterpretar de seu próprio jeito. Trocam entre si um número
infinito de dispositivos materiais e objetos (eis a técnica!) que
transformam e desviam perpetuamente. (LEVY; 1995, pg.8)

As redes sociais não estão na internet (no sistema técnico informacional da


world wide web administrado por corporações transnacionais e políticas
comunicacionais, etc, etc.). A rede social é o tecido da vida em si, o rizoma da
interação humana em contínua e múltipla retroalimentação, encontrando na
estrutura do ciberespaço um suporte para a expansão das possibilidades e
alcance do poder de afetar das singularidades que lhe compõem numa
velocidade que ainda estamos ensaiando aprender a lidar. Ações “simples”
como tirar uma foto, um ato em si já carregado com um extenso histórico de
significações e desdobramentos desde a invenção da fotografia, parece
transfigurar-se quando o clicar confunde-se com o postar e o momento
capturado torna-se instantaneamente acessível mesmo a um continente de
distância. Em algum lugar, um fotógrafo de ocasião compõe um quadro com
o visor de sua câmera/celular/ipod/etc, tornando algo “digno de se ver,
portanto digno de fotografar postar” (SONTAG; 2004, pg.12 – grifo meu), não
raro legendando/manipulando a imagem criada associando-a a uma
significação previamente pretendida. Imediatamente a imagem é vista em
outro país e catalisa uma ação que altera os rumos de uma caminhada, ou a
escolha de uma compra, ou de um filme a assistir, ou de ideal político a
38

defender. Novas legendas são criadas, novas manipulações feitas, a imagem


ressurge em outros contextos, associada a outras imagens e palavras,
passando a “defender” outras ideias, outras posturas, catalisando novas
ações, novas decisões ou, meramente, qualidades diferentes de indiferença.
Em algum lugar, uma criança dá uma declaração espontânea diante de uma
mãe orgulhosa com um celular e, três dias depois, um ator de Hollywood grava
um vídeo em resposta a essa imagem, fechando um circuito de engajamento
político/ativista. Aparentes fronteiras entre foro íntimo e arena pública
parecem desmoronar. Fotos de família? Fotos jornalísticas? Ativistas?
Artísticas? Políticas? Classificações que parecem fazer cada vez menos sentido
em meio ao manancial incessante de imagens.

Postagem de um perfil particular no facebook. A imagem teve milhares de compartilhamentos em questão de três
dias, sendo apropriada especialmente por movimentos ativistas militantes de questões raciais (e adversários). O ator
do filme, cuja imagem fora reproduzida no boneco, enviou uma mensagem pessoal (porém aberta) em vídeo para o
menino, realimentando o debate sobre representatividade de minorias.

Usei a palavra “manancial”? As metáforas líquidas são persistentes. Mundo


líquido, muito fluido, cascatas e corredeiras, navegação. Micro-
acontecimentos como o descrito acima não são raros, mas praticamente
diários. Ainda assim o murmurinho que atravessa o próprio suporte das redes
39

sociais, confluindo por afluentes em direção a blogs, sites, ilhas, ecoa alertas
de uma armadilha: as redes são perigosas, as redes nos controlam, mais e
mais pessoas perdidas nas redes sociais. Independente das orientações
políticas e/ou valores defendidos, múltiplos grupos reproduzem alertas
semelhantes. Expressões como “ativismo de sofá”, “mundo real” em
contraposição a “mundo virtual”, convocatórias para que as pessoas “saiam”
da internet e vivam a vida “real”, tudo isso perpassa as próprias redes com
insistência, uma parte contundente de seu próprio imaginário, evidenciando
ainda mais a dicotomia básica: a de que existe a rede e de que existimos nós,
entidades separadas, contrapostas. Fala-se em “sair da rede” para o “mundo
real” e me ponho a imaginar como isso funcionaria. Sair? Mas onde estou? De
onde exatamente deveria sair? Em seus celulares, tablets, ipods e outros
dispositivo as pessoas carregam as redes sociais consigo através do dito
“mundo real”. Persiste o imaginário da fixidez do usuário de computador,
instalado diante de uma tela numa sala fechada, gastando todas as suas
horas naquilo que, para todos os efeitos é uma grande simulação interativa,
apartado do mundo, fisicamente isolado. Tal imagem insistente resiste ao uso
cotidiano e estratégico da rede para promover encontros, planejar trajetórias,
organizar manifestações, criar acontecimentos cujas ondas repercutem não
do “mundo real” para as redes e vice-versa, mas em uníssono, parte de um
mesmo processo, de uma mesma dinâmica.

As redes sociais são vivenciadas pela lógica da representação, herdando as


problemáticas históricas trazidas pelos elementos que compõem sua própria
gramática: letras, símbolos, imagens estáticas e imagens em movimento,
fotografias, vídeos e sons. Elementos que fluem, combinando-se e
recombinando-se em dinâmicas caprichosas que facilmente podem ser, se não
compreendidas, ao menos sentidas como espontâneas, perdendo-se não
apenas a noção de autorias (o que provavelmente é desejável) mas a noção da
própria autoria, das ações pessoais que ajudam a manter a corredeira fluindo,
nosso próprio fluir. Não estamos habituados a nos reconhecer como criadores
de discursos, criadores de possíveis, continuamos a experienciar a rede como
“telespectadores” e “comentaristas” de acontecimentos além, acontecimentos
“fora da rede”. Pressupomos que todas aquelas letras e imagens jorrando
40

sobre nós representam um “real” que lhes preexiste, um real além da rede
social, fora, no mundo, por mais habitual que tenha se tornado o ato de
manipular, pessoalmente, essas mesmas letras e imagens resignificando-as
de acordo com nosso próprios discursos e desejos. Os críticos denunciam
constantemente a facilidade da rede em falsear acontecimentos, o ato de
manipulação automaticamente colado a ideia de impostura, de afronta à
verdadeira realidade. Um constante alerta contra a irrealidade da rede, aos
malefícios dos usuários estarem falseando-se com representações
idealizadas/desejadas de si mesmos, mas que não correspondem ao “real”.
Fala-se em perfis verdadeiros X perfis fakes. Celebra-se a suposta integridade
de quem bem corresponde sua “persona real” e sua “persona virtual”,
enquanto denunciam-se discrepâncias e incoerências.

Não que a rede não seja pródiga em profissionais do discurso, especialmente


aqueles com alguma ligação com as técnicas das mídias unilaterais
tradicionais, atuando na criação deliberada de realidades de acordo com
interesses específicos de grupos e indivíduos, mas a noção de “manipulação
da opinião pública” transfigura-se quando termos como receptores e
emissores começam a se confundir. Quando o âncora de um telejornal pode
ter seu discurso resignificado instantes depois de emitido, mais do que um
processo de convencimento, a representação torna-se um duelo disputado em
tempo real, cada vez mais acirrado quanto mais os dispositivos que mediam
a participação na rede se popularizam e se disseminam.

Talvez seja na combinação do hábito em encarar os elementos das redes


sociais segundo essa lógica e o atordoamento provocado pela velocidade da
disseminação de discursos que esteja a base para a sensação de afogamento
(se continuarmos com as metáforas líquidas) não raro descrita no uso
cotidiano das redes. Uma dificuldade em lidar com uma quantidade
esmagadora de imagens/textos exigindo atenção/interação. Um fluxo
constante perante o qual nos sentimos intimados a nos posicionar, a aderir
ou repelir, a endossar ou refutar, disseminar ou barrar, tomar posição, ter
algo a dizer/fazer/ser, a separar o real do fake, a manipulação do fato, o joio
do trigo, aquilo que corresponde à suposta verdade do mundo e aquilo que
41

tenta falseá-lo. A tensão constante embutida na suposição de que existe a


rede social, existe o mundo além dela e existimos nós, indivíduos isolados
sempre em risco de perder-se do “mundo real” e nos afogarmos num mundo
virtual ilusório, a la Matrix.

Afogados, arrastados corredeira abaixo, sensação reforçada pelo aparente viés


cronológico na estrutura de apresentação dos dados nas redes sociais,
herdeiras dos blogs pessoais que, de início, tinham como principal inspiração
a ideia de emular - digital e publicamente - o hábito de escrever diários
pessoais, seguindo o pressuposto de postagens estruturadas
cronologicamente, num formato de marcações por datas e horários. As redes
sociais, de fato, podem ser entendidas como uma amálgama de milhões dos
antigos blogs pessoais funcionando em uníssono, cada timeline uma
assemblage2 coletiva, diferente para cada usuário, mas submetida a um fluxo
comum. Postagens organizadas por data e hora, distribuídas em linhas do
tempo que parecem se desejar mapas das próprias vidas dos usuários,
acessíveis num movimento de deslizar da tela cronologicamente do presente
para o passado, o futuro atualizando-se a cada minuto no topo da página. A
metáfora da vida que passa diante dos olhos parece curiosamente fazer parte
de algum tipo de ideal nessa estruturação. A vida que passa, o tempo que se
perde, irrecuperável, a urgência de não haver tempo a perder. Essa é uma
impressão comum num olhar desatento à dinâmica das postagens que nos
deslizam nessa corredeiras digitais, olhar que já espera pela lógica da
cronologia como forma de mensurar o tempo, a ponto de não se dar conta de
que as redes sociais mais populares, em especial o facebook e o twitter,
curiosamente, parecem se aproximar mais de uma concepção de tempo e
memória evocativa do pensamento de Deleuze e Bergman.

Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem ou subsistem


no tempo. Em lugar de um presente que absorve o passado e o
futuro, um futuro e um passado que dividem a cada instante o

2
Assemblage é um termo usado em artes plásticas para definir colagens com objetos e materiais
tridimensionais. A assemblage é baseada no princípio que todo e qualquer material pode ser incorporado a
uma obra de arte, criando um novo conjunto sem que esta perca o seu sentido original. É uma junção de
elementos em um conjunto maior, onde sempre é possível identificar que cada peça é compatível e
considerado obra.
42

presente, que o subdividem ao infinito em passado e futuro, nos


dois sentidos ao mesmo tempo. Ou antes, é o instante sem
espessura e sem extensão que subdivide cada presente em
passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos que
compreendem, uns em relação aos outros, o futuro e o passado
(DELEUZE; 2003, p. 169).

Se as redes sociais equivalem a cachoeiras, então suas águas tanto descem


quanto sobem encostas. Algoritmos calculam e recalculam incessantemente
fatores como visualizações, curtidas, interesses, os históricos pessoais e
coletivos com os quais a rede é alimentada pelos próprios usuários. Postagens
“voltam no tempo”, apareçem e reapareçem de acordo com estímulos
coletivos, ainda que pelo hábito da cronologia (reforçado por termos como
“atualizações”) são tomadas por erupções do futuro para o presente no sentido
do senso comum. Na verdade a dinâmica que se estabelece nas redes emula
em vários aspectos o processo de experienciação do tempo num sentido mais
profundo: não a costumeira visão de segmentaridade e linearidade, localizar-
se num ponto do presente que rememora o passado e antecipa o futuro, a
flecha do tempo que nos habituamos a tomar como irreversível e implacável,
infinitamente medido nos onipresentes relógios visíveis nos cantos de cada
uma das telas nas quais interagimos nas redes por mais que seu sistema
algorítmico coloque tal noção de temporalidade em permanente tensão.

Nunca perdendo de vista que todo veículo de comunicação precisa de algum


modo atentar para o que seja verossímil e rapidamente compreensível mesmo
(e especialmente) quando intenciona condicionar, manipular ou capitalizar
sobre os processos de construção de consensos e formação de opiniões e
mantendo sempre em mente que, antes de constituir-se seja como fenômeno
social, empreendimento comercial ou mecanismo de controle, as redes sociais
– como nos lembra LEVY - são um processo técnico levado a cabo por
indivíduos, tão submetidos quantos quaisquer outros aos hábitos e
pressupostos enraizados na cultura, sejam esses indivíduos responsáveis
pela manutenção e criação das técnicas por trás do funcionamento das redes
ou meramente usuários, tornar-se-a evidente o quão surpreendente seria se
43

as redes sociais não fossem, antes de tudo, um manancial de contradições.


Há, de fato, uma curiosa esquizofrenia no fluir do tempo nas redes, esse
estranho jogo entre formatos que evocam a compreensão do tempo segundo o
senso comum (a linha do tempo, o sistema de “atualizações”, as marcações
de datas e horários exatos) enquanto paralelamente tensiona a cronologia
algoritmicamente. É possível flagar no próprio dia a dia nas redes as
tentativas mais comuns de conciliar essa tensão. É corriqueiro que
informações antigas ou já desmentidas reapareçam como “fatos do dia”, quase
sempre prontamente desmentidas e mesmo criticadas na interação com
outros usuários que, não raro, apontam as informações de data e horário para
provar seu ponto (o eterno duelo entre o “real” e o “fake”). No entanto, foi o
próprio sistema algorítmico intrínseco ao funcionamento da rede que trouxe
certas imagens e textos de volta às timelines dos usuários como “atualizações”
num movimento automatizado movido pela própria dinâmica de uso coletivo
da rede. Deveríamos simplesmente desconsiderar isso como mero “ruído”?

Semelhante às rugosidades com que Milton Santos descrevia a contínua


sobreposição do passado e do presente no espaço geográfico (SANTOS; 1980,
p.138), tanto em aspectos físicos quanto, especialmente, em aspectos
simbólicos, as redes sociais também são plenas de rugosidades que evocam
todas as etapas tanto técnicas quanto culturais que as precederam. Inúmeras
experimentações já atravessaram o ciberespaço nesse período relativamente
curto no qual a internet se tornou parte da cultura e, enquanto muitas dessas
experiências caíram em desuso, permaneceram as que, de alguma forma,
acharam um ponto de equilíbrio entre novos possíveis propiciados pelas
tecnologias e os hábitos arraigados na mesma cultura que gesta essas
tecnologias, o que obviamente vai muito além da tensão entre o que
poderíamos chamar de “tempo cronológico” e “tempo algorítimico”.

Pelas redes sociais atravessam as problemáticas intrínsecas a todas as formas


de linguagem possíveis de serem apropriadas pelo meio digital. A fotografia, o
texto verbal, o cinema, a televisão, o jornalismo, a arte, etc, etc. E,
obviamente, essa mescla coloca em xeque os modos de pensar de cada uma
dessas áreas de conhecimento, bem como os possíveis relativos à potência
44

particular de cada uma das formas de expressão que fluem pela rede. Um
século de estudos sobre o cinema nos preparam para o fenômeno do filme
recontextualizado para fluição em hipertexto? Os processo de criação coletiva
problematizados pela arte conceitual e pela performance nos ajudam a nos
aproximar conceitualmente da assemblage das timelines? Todo o debate que
marcou o século XX sobre a questão da fotografia como forma de expressão
artística e/ou meio de registro técnico resiste ao fenômeno dos memes e gifs
animados como forma de expressão política, ou identitária, ou artística?

De certo modo, tudo o que compõe a rede social e a internet em si torna-se


imagem, estando assim dentro dos pressupostos dos estudos das imagens em
geral. Mas, a dificuldade de estabelecer recortes, amostragens, fronteiras ao
mesmo tempo em que jorramos no fluxo acima e abaixo da corredeira, coloca
tanto pesquisadores como usuários comuns num estado semelhante de
desconcerto que, não raro, leva a apatia. A desorientação resultando do abalo
de todas as formas de orientação. Com suas diferentes e compartimentadas
formações, cada usuário procura se apegar aos sinais relativos a seu metiê,
isolando o restante como ruído. Mas, o fluxo caprichoso da rede não diminui
a velocidade e as ferramentas conceituais; não raro, tornam-se anacrônicas
em nossas mãos.

A filosofia da diferença e o método cartográfico, em seus pressupostos, tendem


a se mostrar ao menos tão fluidos quanto a rede para ajudar a pensá-la. Para
identificar e criar os possíveis sem o desespero da tarefa impossível de
estancar e recortar elementos isolados, tornados objeto de estudo apartados
do fluxo, não mais fluindo junto com ele. Ainda assim, a velocidade incessante
dos caprichos coletivos da rede tende a fragmentar até mesmo concepções
mais fluidas de tempo, podemos dizer, por amor à ironia. Como se a
velocidade da rede extrapolasse o pensamento e não nos permitisse mais do
que uma contemplação indolente, apática, um mero exercício de
posicionamentos inócuos, curtidas, re-compartilhamentos para marcar uma
posição, para atrair os algorítimos de acordo com nossos desejos prévios sem
nenhuma aparente criação real de novos possíveis.
45

O que experimentamos num nível mais imediato, apesar de todas


as possibilidades alentadoras que as tecnologias inventam sem
cessar, é justamente isso: uma espécie de poluição do invisível.
Como diz Deleuze, estamos cercados por todos os lados de uma
quantidade demente de palavras e imagens, e seria preciso formar
como que vacúolos (a expressão é de Guattari, se não me engano),
vacúolos de silêncio para que algo merecesse enfim ser dito; ou,
por extensão, vacúolos de imagens, como de fato alguns cineastas
e videomakers souberam cavar no interior de suas próprias
criações, para que algo merecesse enfim ser visto. Técnicas de
despoluição do invisível, não num sentido asséptico de
preservação, mas de possibilitação. Como quando Deleuze mesmo
conta que não se desloca muito para não espantar os devires: não
é assepsia, mas possibilitação. (PELBART, 1993, pg 54)

É fácil confundir a necessidade de criar tais vacúolos com a crítica mais


corriqueira às redes sociais e que, ironicamente, encontra nas redes sua mais
abrangente forma de reprodução e difusão: devemos ficar menos tempo na
rede e mais tempo no mundo real. A dicotomia insiste e a questão de o que
significa, afinal de contas, estar dentro ou fora da rede, passa ao largo. O
alerta contra a simples assepsia é salutar. Escapar das redes sociais
(supondo-se ainda possível) nos valeria de quê, exatamente? Particularmente
parece-me um esquivar-se do problema, um adiamento, talvez até uma
desistência. Tomar a sensação esmagadora do uso diário das redes como um
esgotamento dos possíveis. Perder-se como parte da rede que flui, não mais
fluir, estancar numa apática contemplação de estímulos que se tornam
indiferentes, ou na assepsia de quem se nega e fluir temendo o “ser não sendo”
da coletividade fluida. Quando o que se há para ver é demasiado, esgota-se a
potência do invisível.

O esgotado é aquele que, tendo esgotado seu objeto, se esgota ele


mesmo, de modo que essa dissolução do sujeito corresponde à
abolição do mundo. Se o cansado tem sua ação comprometida
temporariamente, prestes a retomá-la, o esgotado, em
46

contrapartida, é pura inação, testemunho. Sua postura típica não


é a do homem deitado, mas do insone sentado, cabeça entre as
mãos, a testemunha (...) O esgotado pode até combinar ou
recombinar as variáveis, percorrê-las exaustivamente, e os termos
disjuntos até podem subsistir, mas já não servem para nada. A
permutabilidade total, mesmo quando obedece a um extremo rigor,
vai de par com a evacuação do interesse - é "para nada" e é a morte
do eu. (PELBART, 2013, pg 39-40)

A imagem fácil, na fácil metáfora: o afogado arrastado pelas corredeiras


online. O sempre retorno de um imaginário que coloca o usuário das redes
como o apático, o que não age, ou o que se ilude em relação as potências de
agir. Um imaginário que permeia em maior ou menor grau o uso das redes,
comumente tomadas ora como vitrine, ora como mero sistema de
comunicação, a representação de algo que lhe preexiste, muitas vezes o
falseamento de algo que supostamente pré-existiria. E nós usuários, nunca
somos fluido, nunca somos parte da rio, indistinguíveis do rio em si: sempre
banhistas tentando nadar, nos equilibrar, respirar, debatendo-nos,
repostando alertas: “é preciso sair do rio”, “a realidade está fora do rio”.
Pequenos indivíduos tragados pela correnteza.

Muitas fotos, infelizmente, permanecem inertes diante de meu


olhar. Mas mesmo entre as que têm alguma existência a meus
olhos, a maioria provoca em mim apenas um interesse geral e, se
assim posso dizer, polido: (…) agradam-me ou desagradam-me
sem me pungir: estão investidas somente do studium. O studium é
o campo muito vasto do desejo indolente, do interesse
diversificado, do gosto inconseqüente: gosto/não gosto, I like/I
don't. O studium é da ordem do to like, e não do to love; mobiliza
um meio-desejo, um meio-querer; é a mesma espécie de interesse
vago, uniforme, irresponsável, que temos por pessoas, espetáculos,
roupas, livros que consideramos "distintos". (BARTHES; 1984, pg.
47)
47

BARTHES falava de fotografia, numa relação com os meios de difusão de


fotografia que lhe eram familiares. Mas o que ele descreveu como studium
parece atravessar e permear as redes sociais, que talvez não seja exagero
afirmar que sejam nosso principal meio de difundir (e confundir) fotografias
atualmente. Studium: interesse vago e uniforme; clicar no botão curtir ou não
clicar, comentar, tomar posição, ter opinião. Interagir com o visível, um meio-
desejo apaixonado, uma fúria indolente. Imagens que nos passam, imagens
que não tocamos como Barthes tocava suas fotografias fisicamente,
descrevendo-as tanto em termos de visão como tato. Nossas fotografias não
tem bordas tão definidas para sentirmos com os dedos, não é tão fácil isola-
las das palavras, das intervenções, dos contextos. Imagens que aparecem e
reaparecem, que vão e voltam no tempo, que se recombinam e mudam de
sentido mais rápido do que podemos disseca-las. Se é que devemos disseca-
las, se é que devemos isola-las, se é que devemos tentar delimitar-lhes as
bordas. No entanto seguimos tentando, por hábito se por nada mais,
respondendo a imperativos que talvez não mais se apliquem, constantemente
reforçados até pelos pressupostos dos mecanimos técnico-cronológicos-
classificatórios-identidátirios das próprias redes sociais. Perseguindo o
suposto real além, o real por trás do que se dá a ver, do visível nas redes, esse
visível que parece exigir posições, adesões, afetos por vezes violentos,
agressivos, selvagens e ainda assim indolentes. Intensa não-ação. Atividade
febril que revela o esgotamento diante desse visível que não deixa brechas, ou
da impotência de reconhecer as possibilidades de criação no invisível, no
entre-visíveis.

(…) talvez a informática seja ainda mais exemplar para pensar o


que está em jogo neste ideal de abolição do tempo. Seu anseio é a
informação total, a memória absoluta que pudesse não só prever
um acontecimento, mas reagir a ele antecipando-se a seu advento,
neutralizando-o. É evidente: o que já é conhecido de antemão não
pode ser experimentado como acontecimento. O futuro aí está
completamente predeterminado. A tal ponto que, no limite, o que
vem depois do ponto de vista de uma cronologia linear, já vem
antes, antes mesmo do presente, do ponto de vista tecnológico. O
48

futuro antecede o próprio presente, na medida em que está


estocado na memória do computador. O futuro está presente e já
não se apresenta como um desconhecido, uma abertura. Todas as
companhias de seguro, as garantias, as previsões são modos de
prevenir-se contra o devir, contra o advir. Até mesmo o capital é um
futuro estocado em forma de dinheiro, que pode diluir pela sua
força o advento do adverso. (PELBART, 1993, pg 34)

Resistência no contexto das redes sociais não é exatamente resistência às


redes em si, a esse acontecimento novo que ainda estamos procurando
compreender, mas resistir a lógicas, pressupostos, ideologias, hábitos que
não nasceram com as redes, mas as atravessam na mesma medida em que
nos atravessam, nós que construímos as redes dia a dia, que fluímos nelas
ainda que nos entendamos como separados delas, afogados pelo seu fluxo
supostamente externo a nós. Sobreposições de camadas nas quais os novos
possíveis mesclam-se a velhos formatos, como a experimentação não-linear
do tempo presente na lógica algorítmica confundindo-se com apego técnico-
social à cronologia, a livre criação de personas e o aferro às identidades fixas
constantemente frisado na possibilidade técnica de marcar identidades nas
fotos e postagens. O arraigado hábito de procurar o referente das fotografias
e tomá-las como representações de um real além foto ao mesmo tempo que
manipulamos corriqueiramente nossas próprias fotos antes de postar, como
criadores inconscientes. Algo de irônico e ao mesmo tempo fascinante: que
possíveis se abririam se encarássemos toda combinação de imagens
manipuladas a partir de fotografias e textos como criações de possíveis,
identidades fluidas que se criam e recriam por si mesmas, não pré-
determinadas. Mas, ao mesmo tempo, que satisfação tal reconhecimento
traria se a base do nosso desejo ainda está na aceitação tático/social de que
as imagens que crio e apresento ao mundo representam um eu “real”? Uma
identidade “verdadeira” que acredito evidenciar ao bem manipular meu
perfil/fotos/posts, não uma ativa e constante criação dessa singularidade a
qual tanto eu quanto todos que compomos a rede somos co-autores?
49

Provavelmente faz sentido esperar que dentro de uma mesma irrupção de


possíveis deseje-se meramente reencontrar um possível previamente dado,
recriar-se a partir das ferramentas para esculpir identidades apenas para ter
essa identidade reconhecida como algo pré-existente, perdendo-se aí a
potência da criação em si. As identidades fluidas reduzidas a um jogo de
separação entre perfis “reais” e “fakes”, disputado na arena do studium, do
bem ou mal entender as intenções dos operators manipulando suas
fotos/textos/signos. A potência do pungir soterrada pela abundância do
visível.

Faz-se necessário nesse ponto definir melhor ao que tento me referir ao trazer
conceitos como studium e punctum para o contexto das redes sociais.
BARTHES explicava o punctum como “o elemento que vem quebrar (ou
escandir) o studium. Dessa vez, não sou eu que vou buscá-lo (como invisto com
minha consciência soberana o campo do studium), é ele que parte da cena,
como uma flecha, e vem me transpassar. (…) O punctum de uma foto é esse
acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere). (BARTHES;
1984, pg. 47). Ou seja, um detalhe presente na fotografia – que não
necessariamente fazia parte das intenções do operator (fotógrafo) – que, de
algum modo, atinge o spectador de forma pessoal, tornando aquela fotografia
única, deslocando-a da instância do “to like” (que se refere ao studium) para
o “to love”.

Essa conceituação tem sido alvo de críticas e releituras. RANCIÈRE comenta


a ironia de “A Câmara Clara” ter se tornado “o breviário dos que querem pensar
sobre a arte fotográfica, quando ela pretende justamente demonstrar que a
fotografia não é uma arte.” (RANCIÈRE; 2012, pg.18), uma vez que antes de
qualquer especulação sobre suas condições poéticas ou artísticas, a foto deve
sua existência à emanação de um objeto concreto que esteve diante do
obturador, a natureza indicial quase mística da fotografia como mecanismo
de captura do real.

Barthes quer fazer valer, contra o múltiplo dispersivo das


operações da arte e dos jogos da significação, a imediata
alteridade da Imagem, isto é, stricto sensu, a alteridade do Um. Ele
50

quer estabelecer uma relação direta entre a natureza indiciai da


imagem fotográfica e o modo sensível por meio do qual ela nos
afeta: esse punctum, o efeito pático, que ele opõe ao studium, ou
seja, às informações que a fotografia transmite e às significações
que ela acolhe. O studium faz da fotografia um material a ser
decifrado e explicado. Já o punctum nos atinge de imediato com a
força efetiva do isso-foi:' isso, quer dizer, este ser que
indiscutivelmente esteve diante do buraco da câmera escura, cujo
corpo emitiu as radiações, captadas e impressas por ela, que vêm
me tocar aqui e agora pelo "meio carnal" da luz, "como os raios
retardados de uma estrela". (RANCIÈRE; 2012, pg.18-19)

Evidentemente, o simples fato de estar usando os termos studium e punctum


para falar de fotografias digitais já desloca os conceitos de alguma forma, uma
vez que BARTHES (1984) se referia à fotografia analógica, esse objeto de papel
impresso que capturava em si um instantâneo do tempo a partir da luz. Por
mais que as fotografias digitais continuem partindo de um princípio
semelhante, pensá-las no contexto das redes sociais torna-se muito mais
imprevisível. A foto passa a ser uma imagem em constante transformação até
o limite de seus referentes, mesclando-se com todas as demais categorias de
criação de imagens de uma forma que ainda buscamos assimilar.
Reproduzidas ao infinito, manipuladas e transformadas em velocidades
estonteantes, recortadas, remontadas, mescladas, associadas a textos, a
outras fotos, a ilustrações, a animações. No limite, ainda podemos falar de
fotografias nas redes sociais? Sim, podemos destacar as fotografias, extraí-las
do fluxo da infinita cachoeira digital e nos debruçar sobre ela numa relação a
la BARTHES, mas não estaríamos perdendo o ponto ao trabalhar dessa
forma?

Acredito que, no contexto das redes sociais, qualquer separação entre


categorias de imagem torna-se arbitrária, uma vez que é na justaposição que
os sentidos fluidos dos elementos da rede atingem o
observador/usuário/criador. Separar, por exemplo, fotografias de ilustrações,
ainda que possível, pouco nos ajuda. A dinâmica coletiva da rede apropria-se
51

de tudo, fotos, textos, cinema, pintura, animações, quadrinhos, numa relação


de justaposição em constante fluxo e é nessa própria justaposição que o
acontecimento se dá. Sempre podemos tentar desmembrar os inúmeros
elementos que compõem a rede, isolar a origem e versão integral de um filme,
rastrear o ensaio de onde uma fotografia específica surgiu, fazer a genealogia
de um gif animado; mas, ao destacar um elemento isolado estamos optando
por uma categoria de análise que abre mão das significações que se dão na
justaposição em fluxo onde tudo é imagem.

Assim, ao falar em studium e punctum no contexto das redes sociais, procuro


intencionalmente desloca-los do universo específico da fotografia analógica
sobre a qual se debruçava BARTHES, extrapolando-os para as imagens em
geral que compõem esse acontecimento que, afinal, só se dá a ver através de
telas, onde cada elemento é visto/experienciado sempre em justaposição,
nunca isoladamente. Essa extrapolação me parece salutar para descrever o
esgotamento do usuário perante as redes sociais no cotidiano, ao interagir de
forma inconsciente em relação a seu papel de co-autor da rede e seus
desdobramentos.

Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do


fotógrafo usuário/criador, entrar em harmonia com elas, aprová-
las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-las em
mim mesmo, pois a cultura (com que tem a ver o studium) é um
contrato feito entre os criadores e os consumidores. O studium é
uma espécie de educação (saber e polidez) que me permite
encontrar o Operator, viver os intentos que fundam e animam suas
práticas, mas vivê-las de certo modo ao contrário, segundo meu
querer de Spectator. Isso ocorre um pouco como se eu tivesse de ler
na Fotografia imagem os mitos do Fotógrafo usuário/criador,
fraternizando com eles, sem acreditar inteiramente neles. Esses
mitos visam evidentemente (é para isso que serve o mito) a
reconciliar a Fotografia imagem e a sociedade (é necessário? —
Pois bem, é: a Foto cada postagem é perigosa), dotando-a de
funções, que são para o Fotógrafo usuário/criador outros álibis.
52

Essas funções são: informar, representar, surpreender, fazer


significar, dar vontade. E eu, Spectator, eu as reconheço com mais
ou menos prazer: nelas invisto meu studium (que jamais é meu
gozo ou minha dor). (BARTHES; 1984, pg. 48-49 – grifos meus)

O que me interessa especificamente no conceito de punctum não é seu suposto


atrelamento a um objeto que pré-existiu à foto; me interessa que a experiência
de pungir é um ponto de escape do usuário em relação à generalidade do
studium. É o elemento-ponto-detalhe através do qual o espectador torna-se
criador, deslocando o informar, representar, surpreender, fazer significar, dar
vontade que atravessam fotografias e/ou postagens das redes sociais para um
processo de apropriação no qual a imagem torna-se sua, independente de
referentes, deixando de representar para simplesmente ser. O detalhe-ponto-
elemento não previsto na emissão da “mensagem”, o elemento que transfigura
o “curtir” para o “criar”. O “aleph” que irrompe os novos possíveis.

Minha abordagem segue um princípio semelhante ao que, nas artes cênicas,


norteou a apropriação do conceito de punctum como um método para
processos de criação em expressão corporal, doravante referenciado como
“punctum físico”.

O que chamo de Punctum físico é, muitas vezes, um conjunto de


pequenos detalhes da ação, mas são esses detalhes que
interessam enquanto caráter potencialmente expansivo e
metonímico do Punctum na ação física a ser recriada a posteriori.
Metonímico no sentido de que esse detalhe muscular contém, em
potência e em estado virtual, o todo da ação e que esse detalhe
pode mobilizar esse mesmo todo, em um processo de atualização,
ou seja, de recriação da ação. (FERRACINI, 2011, pg 3-4)

Nessa apropriação do conceito, o punctum desloca-se da categoria do visível


para um elemento localizado no corpo do ator, sentido muscularmente,
fisicamente, não visto, não ancorado a um elemento pré-existente, mas como
o ponto focal que evoca todo um processo de criação. O punctum em si como
criação. Se é fato que, no limite, a argumentação de Barthes nega a fotografia
como arte ancorando o punctum a algo que precisou existir antes da foto, tal
53

não invalida que o punctum, pensado a partir do (no) observador, possa ser
entendido como um elemento que catalisa um empoderamento em relação à
imagem. Eu me apodero da imagem a partir de algo que nela me punge, algo
para além de uma intecionalidade de emissor, algo que coloca em questão
quaisquer que sejam os propósitos prévios da imagem que não me dão mais
opções senão concordar/discordar, curtir/não-curtir, compartilhar/ignorar.
Aquilo que me punge, na imagem e no corpo, que não representa, que é.

(…) devemos esclarecer que o ator não se coloca no lugar de algo,


não representa algo. Ele não é uma imagem imperfeita colocada no
lugar de uma outra imagem. Ele não é, portanto, uma segunda
presença que está no lugar de uma primeira presença que não está
ali, seja de uma suposta personagem, seja de uma imagem, seja
de uma estado emotivo. Na verdade, o ator cria uma ação poética
recriada a cada instante no momento em que atua, age em cena.
Ele não se coloca no lugar de, mas cria um espaço único, uma ação
única que gera um acontecimento também único. (FERRACINI,
2011, pg 1)

Num meio sobrecarregado pelo visível, onde – no limite – tudo é imagem, faz
sentido procurar pela experiência, pelo reencontro das potências da vida para
criação de novos possíveis, não no visível já dado e carregado de pressupostos
que talvez a simples reflexão não seja capaz de se desvencilhar, mas no
invisível, no “espaço” entre as avalanches de imagens cujos sentidos não são
intrínsecos, mas sim dados por uma relação de justaposição. Não procurar
pela experiência do pungir em fotos, postagens, textos ou quaisquer visíveis,
mas na justaposição em si da qual nada nas redes sociais pode prescindir.
Sempre haverá uma moldura, uma janela, com múltiplos elementos em
relação, onde o video de uma performance não será visto isoladamente, mas
justaposto à timeline que lhe serve de suporte e veículo, onde uma
fotomontagem é indifenreciável de uma suposta foto-autêntica, onde um
artigo não se resume a sua bibliografia mas a todos os atravessamentos
formados por hipelinks, ilustrações, gifs e intervenções. Nas bordas invisíveis
entre as justaposições é que encontramos os vacúolos que pulsam com as
54

possibilidades ainda não pensadas, os punctuns que estouram as bolhas do


esgotamento.

(…) não há em Deleuze sequer uma ponta de piedade ou


lamentação ao descrever o personagem do esgotado. Como se o
esgotamento do possível (dado de antemão) fosse a condição para
alcançar outra modalidade de possível (o ainda não dado) - em
outros termos, não a realização eventual de um possível
previamente dado, mas a criação necessária de um possível sob
um fundo de impossibilidade. O possível deixa de ficar confinado
ao domínio da imaginação, ou do sonho, ou da idealidade,
tornando-se coextensivo à realidade na sua produtividade própria.
O possível se alarga em direção a um campo de possíveis.
(PELBART, 2013, pg 45)
55

TIMELINES OU MAPAS DO TEMPO?


56
57
58

(McCLOUD; 1995, pg.70-72)


59

No seu segundo livro, “Reinventando os Quadrinhos”, McCLOUD (2006)


dedica o último capítulo a uma reflexão sobre as possibilidades dos
quadrinhos criados especificamente para o (então nascente) meio digital. O
livro foi escrito antes da difusão de internet banda larga, mas o tempo parece
ter endossado suas especulações no que se refere ao encadeamento de
experimentações de criadores ao se verem livres das limitações do formato
impresso. O que não significa necessariamente avanços na linguagem, mas
principalmente crises de identidade, retrocessos, equívocos e alguns avanços.
McCLOUD apontava, entre outras coisas, que a falta de praticidade para
leitura de quadrinhos em grandes e desajeitados monitores atravancaria até
mesmo as mais engenhosas experimentações de diagramação e
interatividade. Mais do que isso, o advento de equipamentos portáteis, como
tablets e outros aparelhos que combinam celulares com plataformas
específicas para leitura digital, poderia ter um efeito negativo ao permitirem a
emulação (e, consequentemente, o reforço do apego) do formato “revista/livro”
oriundo da imprensa, perpetuando uma noção limitadora de que a unidade
fundamental dos quadrinhos é a “página”, que continuaria sendo lida de
forma idêntica a dos artefatos da imprensa física, atrasando a exploração de
potencialidades outras para arranjos de justaposição de imagens que
caracterizam os quadrinhos. Em grande medida é o cenário que temos hoje,
onde há uma grande oferta de quadrinhos em formato digital virtualmente
idênticos às suas contrapartidas físicas, variando apenas os suportes para
leitura. Para superar esse cenário, o autor tentava aprofundar sua busca por
uma melhor compreensão da essência da forma quadrinhos para além da
definição adotada no primeiro volume:
60

(McCLOUD; 2006, pg.206)


61

Quadrinhos como mapas do tempo. O cinema e as mídias audiovisuais


expressam o tempo através do tempo, filmes duram, transmitem informações
e/ou educam através da reprodução sequencial de fragmentos de tempo
extraídos do real. A diferença fundamental dos quadrinhos seria expressar o
tempo através do espaço. A justaposição de imagens em sequência deliberada,
entendida como arranjos espaciais de tempo. Tal noção ressoa fortemente em
minha formação como geógrafo e me leva a identificar ainda mais
correspondências entre a dinâmica com que nos habituamos nas redes sociais
e as justaposições de tempo das histórias em quadrinhos. As redes sociais se
organizam como “linhas do tempo”, com postagens identificadas por
marcadores de tempo passíveis de serem lidas em justaposição espacial em
telas que se prolongam infinitamente em barras de rodagem pelas quais é
possível “viajar” no tempo de cada perfil, sendo que cada timeline pessoal é
composta por uma justaposição coletiva de uma infinidade de perfis
diferentes, de acordo com os contatos específicos de cada usuário.

(McCLOUD; 2006, pg.216)


62

(…)
63
64

(McCLOUD; 2006, pg.220-223)


65

Assim, McCLOUD não vê os quadrinhos no meio digital propriamente como


uma adaptação para uma nova mídia, mas como uma oportunidade de dar
plena expressão da essência dessa forma artística como mapas do tempo, sem
as limitações impostas pelos suportes impressos. É irônico constatar que a
grande maioria das expressões artísticas online que se auto-classificam como
quadrinhos raramente tem explorado essas possibilidades. Ora reproduzem a
“unidade página”, ora caem na transformação dos quadrinhos online em
pastiches da linguagem audiovisual, meramente adicionando animações e
áudio nas imagens que passariam a ser experienciadas de forma pouco
diferente das narrações no tempo audiovisuais. Não que não fosse concebível
o uso de animações ou mesmo imagens filmadas e áudio como parte da
concepção de uma HQ online, desde que seja mantida sua lógica essencial de
justaposição de elementos a serem lidos espacialmente.

Entretanto, ao dirigir o olhar para as abarrotadas estruturas das redes sociais


desfilando infinitamente diante das “janelas” que utilizamos para manipulá-
las, é possível identificar não apenas esses pressupostos, mas até mesmo as
“formas” especuladas por McCLOUD por mais que as intenções dos
autores/usuários não cheguem nem perto de escrita de quadrinhos, nem ao
menos como um processo de criação artística de qualquer espécie.

Voltemos rapidamente à já citada definição de quadrinhos proposta por


McCLOUD, mas agora complementada:

Imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada


destinadas a transmitir informações e/ou provocar uma resposta
no espectador, distribuídas espacialmente e passíveis de
serem cartografadas como mapas temporais. (McCLOUD;
1995, p.9 – grifos meus)

Parece-me concebível tomar minha linha do tempo pessoal no meu perfil do


facebook (ou twitter, ou tumblr, ou instagram ou outras possíveis redes visual
e funcionalmente semelhantes) como uma narrativa em quadrinhos que
expressa meu dia a dia, minha identidade desejada, minha política, meus
valores e que poderia, através de uma mudança de perspectiva, tornar-se um
66

processo consciente e intencional de criação do meu estar no mundo, por


mais incongruente e inverossímil que fosse.

Indo adiante: para cada perfil há uma linha do tempo pessoal formada pela
sequência de postagens de todos os contatos, formando uma narrativa
contínua e infinita, como o discurso televisivo, porém coletiva, justaposta
espacialmente e passível de intervenção. Poderíamos, também, escolher
encarar essa linha do tempo como uma HQ. Como uma obra de criação
quadrinística (um mapa do tempo) coletiva e, paradoxalmente, também
pessoal e única. Como essa escolha afetaria (ou não) a experiência como
usuário de redes sociais? A linha do tempo, do facebook, do twitter, etc, em
sua estrutura vertical contínua com seus desvios e atalhos, já por si se
assemelha às estruturas de diagramação que McCLOUD especulava para os
quadrinhos online, porém suas postagens são encaradas pela maioria dos
usuários como “unidades” sem relação direta umas com as outras, ainda que
cada uma dessas unidades comumente seja composta de justaposições de
imagens e palavras. Se ampliarmos o campo de visão – como numa página de
HQ – para além de cada unidade, o que muda em nossas possibilidades de
leitura? Justapostas nessas “telas infinitas”, podem mesmo tais
postagens/unidades/palavras/imagens serem encaradas como
independentes umas das outras, afinal?

O olho, ainda que foque num elemento, capta o conjunto, a tela infinita
desliza, de baixo para cima, de cima para baixo, enquanto as imagens e
palavras fluem continuamente e, em sua justaposição, afetam umas as
outras. O “significado”, a “mensagem”, a “política”, a “subjetividade” de cada
postagem variando conforme o fluxo randômico que irá justapô-la em arranjos
diversos a cada timeline diferente de cada usuário/cartógrafo/quadrinista
que a visualiza, manipula, interfere. Sentidos múltiplos onde se espera
encontrar objetividades e onde se apropria e age no mundo de acordo com a
pretensão de objetividade. No aparente non-sequitur das redes sociais
tentamos nos orientar, apreender, tecer opiniões, quando talvez deveríamos
estar cartografando? Quadrinizando?
67

As timelines passam, fluem, através da tela infinita, puro studium, apenas


passam por nós, convidando-nos (exigindo?) a ter posições, opiniões, a agir
no mundo “bem” informados, soterrados de informações e opiniões alheias
justapostas em fluxo ilimitado e constante da eterna cachoeira virtual. Nada
nos punge, nada nos afeta, nada nos toca, apenas passa. Mas se é na sarjeta
que o “movimento” de uma HQ acontece, se escolheremos encarar esse fluxo
como quadrinhos, como mapas de tempo, veremos que as sarjetas são ainda
mais fluidas, mais profundas, mais difíceis de delimitar. E nessas brechas,
nesses “vazios significativos” que ao mesmo tempo escapam e dão
sustentação ao non-sequitur infinito de informação e opinião poderemos
reencontrar a experiência do pungir, não no que as postagens mostram, mas
no que não mostram, no “entre” fluido e indelimitável.

Não mais fotografias como objetos físicos completos em si mesmos.


Fotografias, como tudo nos fluxos de dados que passam por telas infinitas em
monitores, celulares, televisores e tablets não podem ser tocadas ou
manuseadas diretamente, só podemos tocar os suportes através dos quais as
imagens se dão a ver. Não (re)encontraremos mais fotografias guardadas em
gavetas ou caixas sob estantes, nem as organizaremos em álbuns de forma
auto-contida e com uma lógica própria e inequívoca.

Só podemos ver fotografias digitais através de janelas: a janela do monitor, a


janela do celular, a janela da rede social, a janela do sistema operacional. A
foto nunca está só, sempre estará justaposta a tantos outros elementos que
pairam sobre ela através das janelas: timelines, curtidas, textos, navegadores,
sistemas, fluxos de dados, relógios, ícones, mensageiros eletrônicos, etc, etc,
etc... e a cada atualização, a cada apropriação, a cada janela diferente por
onde cada fotografia passa, uma nova justaposição, variação fluída e infinita
de sentidos em non-sequitur.

O punctum, nos diz BARTHES, está na foto, ainda que não tenha sido o
objetivo do fotógrafo, mas está presente. É o detalhe que nos fere, que nos
toca, que desloca a foto do studium e a torna “nossa”. Nossa experiência. Mas
não tocamos mais nossas fotos, não as vemos mais em si, mas sim sempre
68

em justaposição com outros elementos através de uma janela. O que temos


são as janelas? São elas que carregamos no bolso, que viajam conosco, que
se desgastam com o tempo, que se justapõem a outras janelas e ao mundo?
Bonecas russas.

O punctum não é a intenção do operator, e a criação/apropriação do leitor


que, se não mais podemos isolar as imagens para identifica-lo/cria-lo, o
faremos no entre, na justaposição fluida, na “vazio” dos possíveis não
pensados, não cristalizados, para além do esgotamento dos possíveis
previamente orientados.

Desorientemo-nos.
69

INTERLÚDIO:
UM CESTO SOB A ESTANTE
70

Sob a estante, havia um cesto de palha trançada, surrado, frágil, cheio de


pequenos buracos. Dentro: fotos. Dezenas de fotos. Preto e brancas,
esmaecidas, corroídas nas bordas, algumas com pequenos buracos de traças
no papel, a maioria naquele antigo formato de revelação quadrado, cantos
arredondados, por vezes molduras. Quase todas retratavam pessoas, muitas
em close, a maioria fotografadas de corpo inteiro, sozinhas ou em grupos.
Famílias, ambientes rurais, muitos pés descalços e um tanto quanto
deformados, roupas simples, sorrisos constrangidos nas crianças, taciturna
seriedade nos adultos posando com enxadas e outros instrumentos de
trabalho pesado no campo. Algumas retratam ocasiões formais, casamentos,
batizados, arranjos de poses em estúdios de fotografia reconhecíveis, com
roupas mais elegantes ou simplesmente não tão despojadas, talvez
emprestadas, cenários com motivos florais, maridos de pé, esposas sentadas,
crianças espalhadas ao redor, ainda que mantidas bem próximas, sob a
vigilância das feições severas dos pais.

Não há álbuns, apenas as fotos amontoadas dentro do cesto. Uma massa


quase compacta de pequenos retângulos e quadrados de papel. Nenhuma
ordem pressuposta para manusea-las, qualquer tentativa de organização ou
71

agrupamento seria um exercício meramente arbitrário: Fotos de famílias? De


pescarias? De crianças? Uma organização por datas, talvez, rendendo-se ao
hábito da cronologia? Mas muitas não tem data impressa, seja pelo
apagamento do tempo ou talvez por nunca terem tido, a única coisa certa é
que todas as fotos são mais velhas do que eu sou hoje.

O cesto pertencia aos meus avós. Mais especificamente à minha avó paterna.
Meu avô não era um homem dado a mexer em velhas fotografias, rígido como
era em sua rotina diária. Minha avó, entretanto, tinha uma natureza
melancólica, expressa no hábito compulsivo de armazenar até os mais antigos
e minúsculos objetos, numa assemblage randômica sem método ou mesmo
objetivo, a não ser a necessidade de acúmulo e de apego. Junto com as fotos,
no cesto, havia um monóculo, um pequeno recipiente cônico, levemente
afunilado, com uma foto em miniatura para ser visualizada através de uma
lente, por um dos olhos. Recordo-me que havia mais desses monóculos
quando eu era criança. Não sei onde estarão os outros. Trata-se da foto de
um cachorro, olhando para a câmera com aquele ar bobo-alegre típico dos
vira-latas. É a única foto que reconheço dentre o amontoado do cesto, embora
ele pareça pouco mais que um filhote, enquanto que eu, criança, o conheci já
velho e rabugento. Seu nome era Julie, morto a mais de 30 anos.

O cesto de fotos dos meus falecidos avós se revelou um pequeno mistério para
a família. Durante o período de disposição de pertences e adaptação da velha
casa para novos usos, era sem dúvida inevitável gastar ao menos uma tarde
(re)encontrando fotos antigas guardadas em inúmeras gavetas e armários. As
fotos coloridas (nas quais, via de regra, os vivos podiam reconhecer a si
mesmos) estavam organizadas em álbuns, em geral aqueles livretinhos
simples de folhas plásticas, sem requinte, porém práticos e funcionais, mas
também havia aqueles álbuns-livros tipo mostruário, com páginas unidas por
espirais de fita plástica, onde as fotos mais antigas eram coladas e recobertas
com uma película protetora. Nesses o próprio suporte sutilmente ditava uma
ordem pré-estabelecida para leitura e fruição das fotografias, uma previsível
ordem cronológica que tornava cada álbum o registro de uma época específica
da, poderíamos dizer, história da família, e a própria justaposição iluminava
72

mutuamente o sentido de cada foto numa relação com as adjacentes.


Podíamos acompanhar o crescimento de meu pai, o envelhecimento dos meus
avós, a ascensão e queda dos vivos e dos mortos que passaram pela família.
Folhear esses álbuns podia ser uma experiência melancólica, mas
tranquilizadora, dificilmente perturbadora. Lá as memórias jaziam
devidamente guardadas, organizadas, seguras e à disposição dos vivos.

O cesto sob a estante, todavia, revelou-se um tanto quanto desconcertante,


conforme meus pais e outros parentes se davam conta de que não conseguiam
reconhecer as pessoas retratadas naquelas fotografias. Tinham uma noção
razoavelmente clara de quais figuras representavam meus avós, na maioria
das vezes, mas ainda assim não sempre. Passavam longos minutos sobre uma
foto, incertos se a jovem retratada era mesmo minha avó, ou minha tia-avó,
ou mesmo alguma outra moça qualquer de suas relações. Já os inúmeros
outros rostos eram um enigma quase completo. Seria razoável esperar que
fossem todos parentes, ou ao menos relacionados à família. Muitos nomes
quase esquecidos eram mencionados, sem convicção. Horas e horas gastas
num exercício perplexo de reconhecimento frustrado. A menina de cachinhos
posando numa aparente foto de formatura de pré-primário seria a tia X? Ou
a prima Y? O rapaz sorridente ao lado de meu avô seria seu irmão? Mas não
se parecia com o tio Z… ou parecia? As fotos iam se espalhando pela mesa,
ao redor do cesto, enigmáticas com seus rostos desconhecidos que quase
chegavam a parecer zombeteiros. Uma organização espontânea começou mais
ou menos a se formar: o grupo dos “identificados”, dos “não-identificados”,
dos “provisoriamente identificados”, mas a taxa de intercâmbio entre os
grupos acabou se revelando grande demais para que a classificação pudesse
ser considerada confiável. A perplexidade era ainda maior nas fotos onde
posavam grupos de crianças: “Essa é a vovó”, apontava um dedo convicto,
para em seguida “Não, espera… é essa!”. Debates terminavam inconclusivos
diante daquela quantidade de rostos com expressões tão parecidas e poses
tão equivalentes. A tarde ia avançando e as atividades previstas para aquele
domingo foram sendo deixadas de lado em prol desse inesperado jogo de
“quem é quem”, o quebra-cabeças das identidades desaparecidas. Algo estava
73

acontecendo a partir desse insólito estranhamento diante do que se esperaria


ser tão familiar: as fotos que supostamente deveriam nos retornar informação
precisa sobre o passado e a memória, transubstanciavam-se numa
experiência surpreendentemente mais intensa. O tom bem humorado das
conversas que acompanhavam o mistério foi pouco a pouco dando lugar a
uma dissimulada melancolia, conforme o cerne da questão se tornava claro:
as últimas pessoas no mundo capazes de identificar os rostos naquelas fotos
agora também estavam mortos.

“Se ao menos os nomes tivessem sido escritos no verso das fotos enquanto eles
ainda estavam vivos”, disse alguém. Uma possibilidade remota… não apenas
porque o alzheimer já havia comprometido a ideia muito antes da morte em
si, mas também porque, antes, tal precaução teria soado desnecessária,
exagerada até. Tiramos fotos para nos preservar do esquecimento, tiramos
fotos para que pessoas, momentos e afetos não se percam no tempo. Tiramos
fotos justamente porque nos parece mais perene do que nós mesmos.
Morreremos, mas deixaremos nossas imagens nas fotos guardadas em
gavetas e cômodas, para que nos reencontrem. Escrever nossos nomes no
verso das fotos pareceria redundante. Mas, diante daqueles rostos com nomes
esquecidos e identidades perdidas, pude observar meus pais e parentes, eles
próprios já idosos, serem confrontados com a mortalidade de uma forma mais
extrema do que poderiam esperar no contexto de uma tarde ensolarada de
domingo. As doenças prolongadas dos meus avós e a necessidade pragmática
de dar conta de obrigações relacionadas a funerais e às demais burocracias
da morte tiveram um forte papel no filtro emocional que prevenia que tais
momentos os atingissem em toda a sua força, mas a constatação do mistério
do cesto ao menos trincou essa blindagem. Era mais do que a perda das
testemunhas da história da família, era a constatação do vazio na promessa
intrínseca de imortalidade com a qual o ato cotidiano de tirar fotografias
parece nos acenar. Ao fim do dia, o cesto voltou ao seu lugar na estante e,
exceto por mim, ninguém mais voltou a abri-lo.
74
75

Borges, ao escrever sobre a imortalidade, refletiu que, dado um tempo infinito,


tudo o que é possível acontecer a uma pessoa, acontecerá. “Ninguém é
alguém, um só homem imortal é todos os homens”. Divago: o tempo, a morte
e o esquecimento, ironicamente parecem ter dotado essas imagens com,
talvez, a única forma de imortalidade que as pessoas fotografadas poderiam
ter: a de ser todos e ninguém. Em nossa perplexidade ao tentar determinar se
minha avó era a criança X, Y ou Z, escapa-nos cogitar que ela seria,
simultaneamente, X, Y e Z. O menino com a vara de pescar - que talvez um
dia tenha sido meu tio-avô - é todos os meninos que já pescaram ou que ainda
irão pescar. O lavrador é todos os lavradores. A cozinheira, todas as
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cozinheiras. Em sua anonimidade herdada, aquelas pessoas que, um dia, se


postaram diante da câmera e refletiram a luz que atingiu o obturador,
finalmente escaparam da existência enquanto posse das memórias dos vivos.
Não mais “meu irmão”, “meu amigo”, “meu avô”, “meu tio”, sem mais
identidades para serem apontadas por dedos ansiosos. Como os elementos
químicos que compõem o corpo humano, retornando depois da morte, através
da decomposição, para o ciclo de combinações e recombinações químicas e
físicas, tais imagens também passam por sua própria forma de
“decomposição”.

O episódio me fascina particularmente pelo fato das fotografias do cesto não


serem resultado de um processo de criação artística deliberado, nem
produzidas dentro de qualquer sistema de pensamento intencional, a não ser
o uso cotidiano mais difundido da fotografia. Meros cliques não de fotógrafos,
mas de pessoas que tiram fotos (hoje tão anônimas quanto os retratados)
tentando capturar momentos do cotidiano, parar o tempo, tomar posse de
pequenos fragmentos da vida. Fotos que não guardam o peso de uma autoria
tanto quanto o de uma identidade, ambos devidamente perdidos pela ação do
próprio tempo. Não pertencem, estritamente falando, a mais ninguém e, em
parte, esse é o estranhamento, suspeito, que levou meus pais a abandona-las
de volta ao cesto, de onde vieram. Não sentem mais essas fotos como algo que
lhes pertence, ao menos não da mesma forma que os demais álbuns bem
organizados, de vínculos claros e indiscutíveis. Entretanto, também não
poderiam se desfazer delas, joga-las no lixo, ou fita-las com o mesmo olhar
com que faríamos com, por exemplo, fotografias históricas que em tudo
seriam semelhantes às fotos do cesto. Pois é nosso cesto, quanto a isso não
há dúvida. Está em nossa casa, na parte de baixo da estante onde minha avó
assistia televisão. Para nossos olhos (para meus olhos) essas imagens existem
num curioso limbo entre o coletivo e o particular, entre a generalidade e o
específico. Para ninguém mais elas teriam essa mesma “aura”. Apenas para
nós. Uma forma espontânea de transfigurar-se arte, teimo em pensar. Algo a
se discutir, algo a se especular. O que é certo, contudo, é que das misteriosas
fotos no cesto partiram flechas que nos atingiram numa tarde de domingo
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(também perdida), flechas cuja origem não nos é localizável em nenhuma foto
em particular, mas de algo “entre” elas, algo que brota de sua justaposição
em um contexto, em um determinado tempo, uma certa relação...

O que BARTHES me diria se lhe perguntasse se o punctum poderia ser um


cesto?
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ESGOTANDO
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Então, você se pergunta, seria nas fendas, rachaduras, nas sarjetas invisíveis
que se encontrariam os possíveis ainda não pensados?

As imagens e palavras o atravessam e afetam com tal velocidade que você mal
se lembra como era não ter um corpo ciborgue (HARAWAY; 2009), esse corpo
que se estende, que se estica, que bota ovos e se reproduz, esse corpo
fantasma composto por combinações de zeros e uns dando forma visível à
imagens e palavras cuidadosamente justapostas de modo a apresentar
/representar/criar a subjetividade de sua existência nas telas digitais ao
escrutínio do grande outro. Um corpo que, num primeiro olhar, parece ter
uma capacidade de afetar tão restrita, tão studium: capaz de “to like”, capaz
de comentar, capaz de repostar (o jogo do gosto/não gosto, aprovo/não
aprovo, o jogo da opinião, do posicionamento, o jogo da apropriação), mas que
reverbera, como ondas, através desse oceano digital cujas palavras parecem
não dar conta.

É o corpo de um político, é o corpo de uma dona de casa, o corpo de um


bombeiro, um professor, um artista, um performer… está lá, discriminado em
sua página pessoal em identificações obrigatórias. Você tem nome, você tem
profissão, você é algo que tem significado imediatamente compreensível. Mas
também é veículo, condução de forças indiferentes à identificação, pois esse
corpo – seja ele cuidadosamente pensado e organizado ou apenas algo que se
deixe organizar pela estruturação do sistema da rede social em si, em
obediência às suas regras – é molécula num caldo primordial vivo de fluxos e
refluxos onde os limites entre os corpos se confundem: o corpo do titâ da
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timeline, a grande hidra: legião. Onde começam e onde terminam os corpos


(individuais?) dos políticos, donas de casa, bombeiros, professores, artistas,
performers que dão forma(s) ao titâ? Imagens molécula, palavras molécula,
trocando de função a cada nova conexão, nas justaposições que lhes criam e
recriam sentidos.

Infinita variabilidade, infinitas combinações. Mais do que um inventário de


imagens que se sucedem incessantes hora a hora, minuto a minuto, nas redes
sociais cada (arquivo de) imagem em si é parte de uma série de variações de
si mesma, variações que se multiplicam, tendem ao infinito e, então, esgotam-
se, por vezes, em questão de dias, questão de horas. Não um esgotamento no
sentido de findar as possibilidades de variação, mas de estancar suas
possibilidades discursivas. Falar em tese, antítese, réplica... soa quase
ingênuo diante da dança enlouquecida dos memes. Uma mesma imagem
serve ao discurso de toda ideologia, toda crença, toda a intenção, todo desejo.
Nas variações de justaposição, tentativas mais ou menos conscientes de
criar/apresentar identidades, representrar subjetividades, construir corpos
ciborgues.

As redes sociais são díspares, mas tendem a estruturas de funcionamento


muito similares: um apego à cronologia (ao menos no que se refere à
apresentação), a interatividade baseada em likes, comentários e
compartilhamentos. Dentre todas o tumblr permite uma aproximação um
tanto mais didática: seu formato é o mais básico, quase uma estilização. O
tumblr é focado em imagens (jpegs, png, gifs) com as palavras comumente
reduzidas à função de legendas, créditos, apontamentos, tags. No tumblr não
há comentários (a estrutura funcional para comentários até pode ser incluída
nos perfis, mas apenas a partir do uso de programas externos ao próprio
tumblr), ainda que existam funções como “Ask me anything” e a possibilidade
de criar postagens a partir de botões como “Citação”, tais funções são, quando
muito, complementares. A razão de ser da interatividade no tumblr é o puro
e simples compartilhamento de imagens. Pode-se “to like” imagens. Pode-se
“re-post” imagens. Pode-se “submit” imagens para outrem. Cada conta pessoal
manifesta-se assim como um inventário e um mostruário, uma perpétua e
81

contínua apresentação de imagens que, em seu conjunto e justaposição,


pressupõem a criação/apresentação de uma singularidade, um corpo
ciborgue. Porém, ao contrário do facebook ou do twitter, que possuem uma
estrutura de “perfis” na qual os dados identitários (registro/apresentação de
nome, data de nascimento, profissão e outros ícones identitários da cultura)
são os elementos menos maleáveis na construção das contas pessoais (o
facebook chega a recusar nomes que não “pareçam” nomes, não permite mais
do que algumas correções na data de nascimento e não permite que se oculte
a informação de uma profissão, ainda que fictícia), no tumblr não há uma
separação clara e muito menos obrigatória entre perfil e página propriamente
dita e a questão relativa à autoria individual de cada conta é de pouca
importância. O que importa na vasta estrutura de páginas/inventários de
imagens do tumblr é a temática (fluida e não necessariamente constante) de
cada conta e as ações de “to like” e de apropriação de imagens de uma conta
para outra. Se extrairmos do fluxo uma imagem aleatória para efeito de
estudo, digamos essa:

Sozinha, destacada, vista como um elemento completo e fechado em si, não é


nada mais que uma fotografia, passível de ser significada, avaliada,
interpretada, criticada, ignorada... artisticamente, cientificamente,
filosoficamente... de acordo com inúmeros e quaisquer critérios cabíveis às
inúmeras áreas do conhecimento que já se debruçaram sobre a fotografia. No
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contexto do tumblr, no entanto, tal imagem dificilmente se apresentará de


forma isolada em condições cotidianas, irá sempre se manifestar nas telas de
seus usuário em justaposições como essa:

Ou, talvez, essa:


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Ou, quem sabe, está:

E, em cada justaposição, em cada página, em cada nova apropriação de cada


usuário que se sentir compelido a tornar essa imagem parte de seu próprio
corpo, há um deslocamento, uma resignificação possível da imagem. Numa
determinada página, pode se tornar a afirmação de um estilo de vida, em
outra a expressão de uma sexualidade, em outra um registro de uma vivência,
uma tirada de humor, um fetiche, uma expressão artística, um registro social,
um comentário político, um non-sequitur.
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(McCLOUD; 1995, pg.73)


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O sentido de cada imagem nas imagens adjacentes. As imagens que o canto


do olho continua a ver mesmo enquanto foca numa foto específica, imagens e
palavras que deslizam juntas através das telas manipuladas por mouses e/ou
pontas dos dedos. Como no senso comum sobre a física quântica, cada
imagem, como um átomo, está em muitos lugares ao mesmo tempo, muitos
corpos, fugidia, com sua localização/valor/significação/sentido fixando-se
apenas no momento em que é observada, para perder-se logo que o olho
desviar e focar em outra imagem/átomo. Aparecendo e reaparecendo,
desprendendo e dissipando energia a cada atualização, energia que catalisa
as potências de ação dos corpos ciborgue pelos quais a imagem atravessa e
que, por sua vez, lhe estimulam e realimentam ao mesmo tempo que a
apagam e deixam para trás: a “curtida” que desvencilha a imagem do tempo
cronológico e a desloca de volta ao topo das timelimes; a “opinião” que se
atrela à imagem e tensiona sua forma e suas fronteiras; a “apropriação” que
reproduz a imagem e dá prosseguimento ao ciclo.

Dir-se-ia, desta vez, que uma imagem, tal como ela se sustenta no
vazio, fora do espaço, mas também à distância das palavras, das
histórias e das lembranças, armazena uma fantástica energia
potencial que ela detona ao se dissipar. O que conta na imagem
não é o conteúdo pobre, mas a louca energia captada, pronta a
explodir, fazendo com que as imagens não durem, nunca, muito
tempo. Elas se confundem com a detonação, a combustão, a
dissipação de sua energia condensada. Como partículas últimas,
elas nunca duram muito tempo, e o Bing desencadeia “imagem
praticamente nenhuma quase nunca um segundo”. Quando o
personagem diz “Basta, basta, as imagens”, não é apenas porque
está enojado delas, mas porque elas não têm outra existência que
a efêmera. “Nenhum azul mais fim do azul”. Não se inventará uma
entidade que seria a Arte, capaz de fazer durar a imagem: a
imagem dura o tempo furtivo de nosso prazer, de nosso olhar.
(DELEUZE in: HENZ, 2015, pg. 244)
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Volta-se aos contos de BORGES, que retomam obsessivamente esse tema tão
caro ao autor: a imortalidade, o imponderável, o infinito. Dada uma
quantidade de tempo infinita, nos diz BORGES, e ocorrerá a um indivíduo
tudo o que é possível acontecer a um ser humano. Mais do que isso: dado
tempo suficiente e um indivíduo terá chance de ser todos os possíveis
indivíduos que o tempo de uma vida reduziria a meramente um. Tempo para
que todas as coisas que possam vir a ser, o sejam, todos os acontecimentos,
todas as variáveis, todas as combinações, todos os possíveis. Mas Borges
preferia tratar não da imortalidade do indivíduo, preferia tratar da
imortalidade desse “corpo” que pertence à coletividade em si, a coletividade
que é una, o conceito de que o que ocorre a uma pessoa, ocorre a todas.

"Como todos os homens da Babilônia, fui pro-cônsul; como todos,


escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. (...)
Heraclides Pôntico conta com admiração que Pitágoras se lembrava
de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda um outro mortal;
para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte,
nem mesmo à impostura." (BORGES; 1995, pg.71).

Corpos se atravessando continuamente pelo tempo e o espaço. Uma vida no


século das luzes desvia a trajetória de uma vida no virada do milênio. Um
encontro casual de poucos segundos reverbera até mudar o destino de
nações. Nesse estranho ambiente online, esse meio no qual a existência se dá
a ver através de telas e os corpos são feitos de imagens e palavras e de
imagens-palavra, os atravessamentos em si ganham forma visível em tela a
cada novo contato, cada nova visualização, ganha ou perde camadas de
subjetivação pela manipulação constante das infinitas mãos desse corpo
coletivo. A rede social como um vasto – e infinito – corpo constituído por
milhões de corpos-perfil através dos quais as imagens deslizam, piscam,
surgem e somem, renascem e afetam.

Nessa “tela infinita” das timelines cada imagem que surge atravessa todas as
suas – infinitas – variações num processo semelhante aos nostálgicos “altere
e passe” do movimento da arte postal, em que cada obra recebida retornava
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ao correio com algo a mais ou a menos, com alguma alteração ou


resignificação até que, no decorrer de meses ou anos, mal fosse reconhecida
como a obra “original”, um processo que, nas redes sociais, acontece em dias
ou horas e a própria noção de “original” perde o sentido, bem como a
delimitação do “objeto artístico”, uma vez que, mais do que na manipulação,
é na própria justaposição com outros elementos mais ou menos randômicos
em cada timeline coletiva/individual que se dá a mutabilidade das séries de
imagens. Tempo acelerado pela instantaneidade/simultaneidade mesclado às
três potências de ação das redes sociais (to like, comment, repost)
transfiguram-se em ferramentas para o esgotamento dos possíveis de cada
imagem que se dá a ver nas redes sociais.

Há, pois, quatro maneiras de esgotar o possível:

– formar séries exaustivas de coisas,

– estancar os fluxos de voz,

– extenuar as potencialidades do espaço,

– dissipar a potência da imagem.

(DELEUZE in: HENZ, 2015, pg. 241)

Você vê, você gosta/desgosta, você opina, você se alia, você reproduz/recria.
Potências individuais, aplicadas coletiva, acelerada e infinitamente. Imagens
reproduzidas em séries contínuas abarcando todas as potencialidades de voz,
de subjetivação, de potências de ação, de coisas a se dizer, até a
indiferenciação. O ato automático de deslizar os dedos pelas telas que se
colocam diante dos olhos. Imagens que passam. Imagens-ideias, imagens-
arte, imagens-pensamento, imagens-ação, imagens-política, imagens-
desejo… abarcando, em suas múltiplas e diversas justaposições simultâneas
em cada timeline de cada perfil pessoal e/ou coletivo, todas as possíveis
ideias, artes, pensamento, ações, políticas, desejos, até o indiferenciamento,
a equivalência de discursos, o estancamento do multiplicidade das vozes que
se perdem no pulsar de imagem à imagem, postagem a postagem, sejam
imagens-texto, imagens fotográficas, imagens em movimento, um pulsar que
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não punge, apenas reage, extenuando as potencialidades desse espaço digital


em que o mundo se dá a ver em justaposições molarmente afirmativas: aqui
estou, isso é, você vai, você é, isso somos, o mundo que aí está, o mundo
apresentado/re-apresentado/re-criado/representado um milhão de vezes por
minuto até a dissipação das imagens na indiferenciação das subjetividades-
usuárias das redes sociais.

As redes sociais como repetições cíclicas e aceleradas de séries de fatos,


memes, tendências, artes, exploradas até o extremo de suas possibilidades de
apropriação, opinião e ação até a exaustão. Até os focos de atenção
transferirem-se para outras séries de imagens, e outras, e ainda que você,
como usuário das redes sociais, possa vir a se fixar numa subjetividade
intransigente potencializada pelos algoritmos que o cercam numa bolha que
seleciona artificialmente frações específicas dessas séries, na escala do
“vocês”, da coletividade extensiva das redes como um todo, as séries de
partículas visíveis esgotam-se até a indiferenciação, a evacuação do interesse,
a permutabilidade total para “o nada”, o aleph de BORGES, a “simultaneidade
sem sobreposição” de todos os possíveis do cosmos, mas que a memória e a
consciência não conseguem abarcar, fechando-se no esquecimento.

Como abrir um campo de possíveis?


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SINAIS E RUÍDOS
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Eles estão todos subindo a colina, os aldeões, para esperar o fim do mundo. O
fim do mundo que aconteceria na virada do primeiro milêmio, de 999 para 1000,
o fim do mundo que não aconteceu, como não aconteceu o de 1999 para 2000,
ou o de 2012, ou tantos outros. Mas eles não sabem disso, sabem apenas – e
com uma convicção transcendente – que esse é o fim. Não há e não haverá mais
nada. Decerto nunca houve. O momento se aproxima e tudo o que lhes compete
esperar é a espera em si. Movem-se lentamente, alguns se fragelam, outros
rezam, outros apenas fitam o horizonte enquanto a neve cai. Mas a maioria
apenas não faz nada. Como poderia haver mais um dia depois desse? A própria
ideia parece sem sentido. É evidente que não. Tudo acabou, estamos quase lá.

Uma sensação de alívio no ar.

A HQ abre com uma citação de Barthes: “Tudo faz sentido ou nada faz. Em
outras palavras, é possível dizer que na arte não há ruído”, antes de prosseguir
com engenhosas justaposições de palavras, pinturas, fotografias, gráficos e
diversos tipos de imagens para conjurar um registro dos últimos dias de vida
de um diretor de cinema. Ao receber o diagnóstico de câncer, é dada ao diretor
a escolha entre possíveis tratamentos para cultivar esperança ou, ao menos,
dirimir a dor. Sua resposta é a de Bartleby: “Eu prefiro não”. Então recolhe-se
ao seu apartamento para trabalhar mentalmente no projeto do seu próximo
filme que sabe que nunca irá rodar. Um filme sobre o fim do mundo. Não na
virada de 1999 para 2000 (a HQ é de 1992), mas de 999 para 1000. O fim do
mundo que sabemos que não aconteceu.
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Ao filme não existente temos acesso através das imagens estáticas justapostas
dos quadrinhos, os aldeões subindo em direção à montanha, a neve, o vento,
a espera. Desinteressado do mundo exterior ao pequeno apartamento, o
diretor gasta suas últimas horas modelando mentalmente séries de tipos
humanos para compor a multidão, os personagens de seu filme: famílias,
crianças, mendigos, loucos, profissionais, aqueles que choram, aqueles que
negam, aqueles que sentem alívio… mas, acima de tudo, aqueles que
esperam, essa espera sem sentido, essa (não) ação que leva do nada para
coisa alguma, o medo, a dor, a redenção, a expectativa por algo que não
acontecerá. Findando-se na doença, o diretor esgota-se beckettianamente na
experimentação desse espaço-tempo do esgotamento, em seu filme-invisível.

Graficamente, a HQ composta por palavras de Neil Gaiman e imagens de Dave


McKean parece propositalmente ironizar a leitura mais clichê de uma simples
narrativa-metáfora sobre a aceitação da morte. Intercaladas por justaposições
de formas abstratas e textos gerados em programas de composição textual
randômica, as páginas organizadas em grades mais típicas da narrativa em
quadrinhos parecem tensionadas por atravessamentos de pastiches
expressionistas, impressionistas, colagens e um caleidoscópio de técnicas
nem sempre em harmonia, enquanto as palavras de Gaiman quase que
invariavelmente se organizam em séries de máximas, frases-prontas, “filosofia
de velório” sobre a inevitabilidade da morte, a aceitação da finitute: “O mundo
está sempre acabando para alguém.”, “Você só morre de fato quando a última
pessoa que o conheceu estiver morta.”, “Ontem a noite eu pensei em descer
para tomar um café com ele… então eu lembrei.”
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Como se as páginas sobrecarregadas e mesmo aparentemente poluídas de


imagens até a exaustão, com sarjetas muito estreitas ou mesmo invisíveis em
sua maior parte, por vezes cobertas por justaposições que vazam, fluem,
mesclam-se e confundem-se, tentassem esgotar os clichês não só do tema,
mas dos possíveis da imagem. O título “Signal to Noise”, que parece escapar
95

ao suposto tema central da HQ, se revela nessa estranha indeterminação do


que (e de onde) estariam as sarjetas. Onde estão as brechas nessa avalanche
de imagens que mal deixam espaço para o branco, para o não-preenchido? O
título insinua: dos sinais, para o ruído. Buscar o ruído, não o sinal.

Há algo aqui, em algum lugar, você sabe, mas nada é mais arriscado do que
tentar explicar uma ironia, nada mais duvidoso do que afirmar o que é mais
potente quando apenas insinuado, é preciso sempre aproximar-se com
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cuidado, com paciência de artista ou de demente, para não espantar os


devires, para não eclodir prematuramente as bolhas do esgotamento. Como
os parapsicólogos comumente descobriam ao tentar encontrar padrões no
ruído branco dos televisores sem sinal, espíritos tendem a se dissipar e
desaparecer quando seus padrões são evidenciados, quando o ruído se torna
sinal, como se poderia provar então que estiveram lá em primeiro lugar? É
preciso cautela, paciência e arte para sustentar, no limiar da compreensão,
as ressonâncias, a reminiscências, seja dessa estranha melancolia por um fim
do mundo que nunca chegou a acontecer, como do (não) sentido de uma obra
de arte que jamais irá se realizar e que ninguém jamais poderá ver, que não
ganhará likes, nem será compartilhada em infinitas timelines, que não será
resignificada ou memetizada, que não sobreviverá à morte de seu autor. Muito
embora nós tenhamos sim assistido ao filme, não como duração, como seta
do tempo, mas como um mapa do tempo, um mapa dos últimos dias da vida
de um artista que, por sua vez, também nunca morreu, dado que, estricto
senso, nunca existiu. É preciso uma certa delicadeza na escolha de palavras
para não dissipar os espíritos, para que a potência do mistério não se perca,
para não cristalizar em sinal os possíveis que se insinuam no ruído branco de
fundo, naquilo que não pode ser visto, nem ouvido, muito menos capturado
em significações, usos, opiniões, enfim… delicadeza e cuidado para não
perder o ponto (o punctum?) aqui… em algum lugar por aqui…

Sigamos, pois, com cautela…

Fazia algum tempo que Buddy Baker tinha a sensação de que sua vida era
estranhamente desconjuntada. Ativista das causas de proteção animal e anti-
especismo, Baker começa pouco a pouco a perceber estranhos lapsos, fendas,
brechas naquilo que compreendia como “realidade”. Fatos e aspectos comuns
do cotidiano, antes desapercebidos, começam a se mostrar estranhos ou
mesmo grotescos. O habitual fazendo-se sentir como anômalo, o tolerável
tornando-se intolerável. A vida, de repente, ganhando contornos surreais,
nonsense, como um roteiro mal-escrito, uma narrativa inverossímil. No
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mundo de Baker, pessoas dotadas de habilidades sobre-humanas sempre


foram um fato corriqueiro, os céus são repletos de homens e mulheres
voadores ostentando capas majestosas e noções de crime e castigo, bem e
mal, sempre foram simples e diretas, com pouca ou nenhuma margem para
questionamento, no entanto Baker se dá conta de que se sente envergonhado
ao vestir o traje colante do qual já se orgulhara, começa a hesitar,
constrangido, ao ser chamado de “Homem Animal”, passando a usar uma
jaqueta sobre o collant ao finalmente notar (espantado por nunca ter sentido
essa necessidade antes) que precisava ter algum bolso para colocar as chaves
de casa e documentos. E como poderia sustentar a família se uma carreira de
super herói naturalmente não tem fins lucrativos? No entanto, o mais
espantoso não eram esses problemas que o assaltavam, mas a desconcertante
sensação de que ainda que tais questões fossem tão óbvias, não pareciam
constituir problema algum no passado, de fato mal pareciam existir no
passado. E esse desconjuntamento entre o que, cada vez mais lhe parecia,
formas distintas de perceber a realidade, tornava-se cada vez mais impossível
de ignorar. “Por que minha vida é tão desconjuntada? Num minuto estou em
casa, no minuto seguinte estou nas Ilhas Faroe ou em Paris e penso que lembro
como cheguei lá, mas na verdade não sei.”

Por fim, numa viagem de auto-conhecimento ao deserto (apropriadamente


melodramática, caricatural e clichê), Buddy Baker toma alucinógenos e tem
uma visão da realidade para além do véu, além dos limites bidimensionais
dos quadros estáticos justapostos que abrigavam sua existência.
Desconcertado, desterritorializado, Baker se vê “fora”, no não-visível, no
“espaço” fora do espaço-tempo que lhe é natural. Obviamente, não tem meios
de compreender ou descrever a experiência, que não deixa de ter suas
limitações: Baker não pode deixar a página, não pode deixar de ser plano,
bidimendional, chapado em cores primárias, simples e descritivo, mas pôde
dobrar-se por um momento para fora do quadro, ter um vislumbre das
justaposições da existência, experienciar um campo de possíveis antes
imperceptível, invisível. Uma subjetividade que se expande… ou se quebra.
Por um instante ele sabe porque apenas acredita mover-se de um ponto a
98

outro: o movimento está na sarjeta, no não-visível, no fora que sustenta o


dentro.
99

A existência representada/apresentada/criada/conjurada em quadros


justapostos dispostos em planos, em telas deslizantes passíveis de toque.
Representação em molduras, experienciação de imagens apenas acessíveis
como parte de um fluxo, nunca isoladas, nunca objetos em si mesmas,
sempre funcionando em uníssono com os demais elementos da moldura do
tablet, do monitor, da rede, do sistema. O que punge? O que abre campos de
possíveis não-pensados pela
racionalização da informação?

Entre as séries exaustivas de


variações de memes deslizantes,
um acaso aflora: memes vazam
para além das habituais
justaposições em telas,
explodem no espaço urbano
num momento de conflito, de
tensionamento político,
inssurreição na racionalidade
cotidiana. Você se pergunta: A
“guerra de memes” enfim ganhou
as ruas? A variabilidade infinita
das re-significações das imagens
no ambiente das telas digitais
encontrou, afinal, uma brecha?
Ao extenuar as potencialidades
do espaço emoldurado por telas,
os fluxos de voz estancados pela
exaustão das séries contínuas
conseguiram escapar para um
campo-outro? A imagem
dissipada reconfigurando-se
num novo foco diante de uma
realidade que repentinamente se
100

torna intolerável? Como Buddy Baker, os memes escaparam para a sarjeta


além das fronteiras das molduras, das telas, das redes? No limite, eis, enfim,
a sarjeta?

Seja por emanação, seja por projeção: telas. A moldura do computador, o


display do tablet, a janela do celular, a parede de um edifício… diferentes tipos
de telas. As séries de infinitas justaposições prosseguem com ainda mais
variações. O meme agora justaposto ao outdoor, à rua, ao conflito, à cidade
enquanto imagem. O meme re-fotografado, re-filmado, novamente justaposto
à variabilidade infinita de re-significações quase simultaneamente a seu
aparente escape, repostado nas timelines, re-apresentado nas narrativas
101

sujeitadas a likes, comments, reposts antes mesmo de ter algum chance de se


prestar a pergunta: Houve punctum? Houve oportunidade de encontrar algo
de seu na imagem? O imponderável tornou-se possível? Um campo pôde ser
aberto? Encontramos a sarjeta que nos permitiria fluir para além dos mundos
possíveis entre as molduras das telas?

A criação de novos espaços-tempos, distantes deste espaço-tempo


homogéneo que nos é oferecido pelas laminações da tecnociência,
das tecnocidades, das tecnosubjetividades, e que se dá sempre a
partir do intempestivo, das linhas de fuga ativas, pode ocorrer
numa passeata, num grupo psicoterápico ou expressivo, num
laboratório científico, na página em branco que enfrenta um poeta
insone, num mocó de meninos de rua, na percepção alterada de
um drogadito, num surto, num filme, numa batalha, numa brisa,
num ritual, numa paixão, numa crise económica... E no entanto,
quando tudo isso é submetido às formas mais codificadas de
informação, às formas mais serializadas do mercado, às formas
mais universalizantes de subjetivação capitalística, nós o
perdemos de vista, nós o tornamos equivalente, nós o submetemos
a um mesmo modo homogeneizante de temporalização-
102

espacialização, com o que o reterritorializamos. (PELBART, 1993,


pg 83)

A sarjeta onde – talvez, apenas talvez – a experiência do pungir, do tomar


verdadeiramente para si, do criar, ainda seja possível, do abrir possíveis não
previstos e não pensados, não pode estar (como nos quadrinhos onde Buddy
Baker realiza suas experiências caricatas de ampliação da consciência) no
visível, naquilo que pode ser recapturado pelas máquinas de manutenção dos
corpos-imagem. Deve ser necessariamente fugidio, não tocável, não
mensurável. O instante não delimitável em que um ato performático institui
uma diferença que não pode ser imediatamente capturada e enquadrada. O
momento que não está nas fotografias e registros justapostos nas redes
sociais, ainda que seus aspectos visíveis possam ali ser reencontrados em
formas já domesticadas.

Algo que poderia ser emprestado do pensamento mágico, da criação de sigilos


nos princípios da Chaos Magic de Austin Osman Spare, onde um sigilo é um
desejo corporificado num desenho abstrato, que deve ser desenhado de tal
forma que uma vez pronto o mago não se lembre mais do motivo pelo qual o
criou. Um instante insustentável. Um corpo que de desvanece no éter para
não ser fixado numa forma. O punctum invisível.

Isso tudo certamente não é fácil de pensar ou entender, muito


menos de explicar, o que não dizer do praticá-lo, ou suscitá-lo. Mas
importa o seguinte: disse no início que a meu ver uma politização
do invisível estava em curso, e posso acrescentar que o invisível
nosso não está no Céu nem na Terra, nem nas nossas cabeças,
nem na telinha de TV, mas entre isso tudo, assim no meio, meio no
ar, como um campo virtual, o tempo todo em estado de oferecimento
às cristalizações que lhe são propostas. Ele está nos grandes e
minúsculos espaços de intempestivo. Quer dizer, esse invisível não
é uma cópia mental do universo material, nem uma estrutura
linguística ou inconsciente transcendente, nem uma
superestrutura ideológica ou imaginária, representacional. Ele é o
103

grande Interstício, Interstício do Inimaginável, rigorosamente da


ordem da Realidade, da Natureza ou da Cidade. Isto é, o invisível
está entrelaçado aos saberes, poderes e modos de subjetivação
bem como a seus dispositivos, que nos circundam e nos fundam e
também nos afundam. Ele não pode ser programado, mas só
explorado; não está reservado aos poetas nem aos videntes nem
aos futurólogos, muito menos aos analistas ou estadistas. Requer,
digamos assim, uma raça que sempre existiu e sempre há de
existir, embora muitíssimas vezes em estado de invisibilidade total
e de disseminação coletiva, impessoal, inumana: a raça dos
intempestores. (PELBART, 1993, pg 61)

O que resta, senão tornar-se explorador do invisível. Tornemo-nos


quadrinistas.

Quadrinizemos:
104

O HABITANTE DO LIMIAR
105
106
107
108

... e é

então que,

quase sem

notar,

você passa

a deslizar

pelas

frestas,

sem focar, sem aderir,

apenas preferindo não:

não curtir, não opinar,

não compartilhar, você se

deixa fluir, indolente,

pela(s) tela(s) infinita(s)

permitindo-se encontros

imprevisíveis com as HQs

mutáveis e complexas,

com as composições em non-sequitur dos infinitos

artistas inconscientes em permanente conflito, as

tentativas de convencimento, de adesão, de

discordância, o agir, o interferir, o criar, o tecer, o

esgotar os possíveis do suporte, do meio, do

discurso, da narrativa. Você vaza, como Buddy

Baker, para o pleno vazio, você se maravilha e se

aterroriza com os encontros com os padrões do


109

conjunto, da justaposição dinâmica, sem jamais

(como Baker) escapar dos limites da “página” em

que (pré)existe, mas escapando aos quadros, às

unidades, aos sentidos antecipados, às

verossimilhaças, às representações. Você

reconhece nas extensões verticiais das timelines

as “tiras”, aquela formato tão familiar e tão

básico: duas imagens, uma sarjeta entre elas,

três imagens, duas sarjetas, quatro, três, cinco,

quatro, e as imagens começam a se sobrepor,

sarjetas por trás, sarjetas pela frente, acima,

abaixo, as sarjetas invisíveis, o “entre” não-

delimitável, o “entre” que suporta o suporte, que

não pode ser traduzido ou demonstrado, como os

pontos cinzas nos vértices de uma grade de

quadros, desaparecendo quando os olhos os

focam. Esse “entre” onde flui tudo aquilo que o

atravessa enquanto um indivíduo dotado de uma

história, uma trajetória, de tudo o que o compõe,

tudo o que já aprendeu, experienciou, viveu,

sentiu, essa multiplicidade que, ao fluir com a

rede, conecta duas imagens justapostas e as

torna “tira” (uma piada, uma história, uma

ironia, uma ofensa, uma bobagem, uma ideia,

um conceito, uma metodologia, enfim…) não


110

apenas duas imagens por

acaso próximas uma a

outra, mas algo que você

une num sentido que não

poderia existir sem a sua

presença ativa nesse

“entre”, nessa sarjeta. Você

entende que, por mais

automático que seja o

hábito de reconhecer as

imagens como

representações mesmo

estando tão pessoal e

profundamente inserido no

seu processo de criação,

mesmo tão soterrado nas

normatizações declaradas

ou meramente intuidas do

uso cotidiano coletivo das imagens nas redes ou fora delas, o ato de (enfim)

reconhecer/tornar as avalanches de imagens em quadrinhos, no limite nunca

foi nada além de sua própria prerrogativa.

Ao compreender isso, por fim você fica em paz com a afirmação de McLOAD

que sempre o incomodou (ou, ao menos, estranhou), a sua aparente negativa

de que o processo de significação desencadeado pela visão de duas imagens


111

justapostas não pode acontecer sem a intencionalidade do leitor, não pode

acontecer de forma automática e expontanea, que para haver quadrinhos é

preciso antes de qualquer coisa que o leitor faça a sua parte no processo de

criação.

(McCLOUD; 1995, pg.68)


112

Essa noção lhe parecia duvidosa,

quase irreal diante da onipresença

das imagens. Mais de um século

atravessado por imagens pelos

mais diversos meios, imagens

desejantes que o afogavam e

direcionavam, conduzindo-o e

esmagando-o, cristalizando seus

hábitos e presupostos, suas

crenças, o evangelho

sagrado/profano das imagens

convergindo agora céleres para as

redes sociais, preenchendo esse

novo meio com crescente

intensidade e fúria. Em meio à

dança furiosa de posts e memes,

como supor que não mais que sua

mera intencionalidade pudesse

fazer qualquer diferença? Que

diante do esgotamento de todos os

possíveis na atordoante

velocidade das redes, quando o

ato (o poder pré-definido) de

interferir no fluxo parece limitado

a não mais que acrescentar mais


113

imagens, mais palavras, mais

construtos engenhosos de

photoshops, mais geradores

automáticos de gifs, mais

ferramentas de manipulação,

mais problematizações sagazes,

discursos e contra-discursos,

mais elaboradas intervenções

artísticas e performatividades,

nada disso lhe parece fazer mais

do que alimentar a hidra,

expandir a envergadura do titã, o

ruído de fundo ecoando mais alto

que o som dos seus próprios

pensamentos. E, ao fim e ao cabo,

depois de tanto som e fúria, a

única (não)ação que se abre

diante de você como um nova

possibilidade é esse mero

deslocamento. O ato de, ao olhar

para a página, ao olhar para a

tela, ao olhar para a projeção na

parede de um prédio, não ver

imagens lado a lado, mas um

mapa do tempo. Escolher ver o


114

mapa do tempo! Sua prerrogativa, sempre sua, criatura atravessada pelas

redes, você-rede, você-fluxo, você-sarjeta.

E então, e só então, a timeline de fato se torna quadrinhos. A tira infinita.

Você é um fotógrafo (não um fotógrafo profissional, mas um fotógrafo) fictício

(que diferença faz?) que uma vez capturou o tempo nas sarjetas de uma

história em quadrinhos na qual trabalhou por muitos e muitos anos. O

fotógrafo não tinha facebook, mas tinha uma tabacaria na qual pessoas se

atravessavam e falavam e debatiam e fabulavam e apresentavam argumentos

e se contradiziam e (possivelmente) supunham passar pelas próprias vidas

mais do que criavam suas próprias vidas (e não é isso que é viver?). O fotógrafo

tentou registrar aquele continuum vital fotografando um instante por dia e

postand... perdão... colando cada momento congelado lado a lado em infinitas

timelin... digo... álbuns de fotografias. Páginas e páginas e páginas de

fotografias justapostas que encarava como um registro de seu canto no

mundo, sua vida, o tempo que passa, o tempo que lhe acontece.

E você é um escritor que visualiza... perdão... folheia os álbuns do fotógrafo,

experienciando esse tempo que se foi. Ou assim supõe. Você curte algumas

fotos mais que outras, você tece comentários sobre a álbum como um todo ou

sobre as fotos que te chamam mais a atenção e acredita estar revivendo, ou

ao menos tomando ciência de uma história em andamento, uma história que

lhe pré-existe, que ocorreu com alguém em algum lugar e foi considerada

digna de ser registrada, digna de ser mostrada para seus contatos amigos,

destacada do fluxo do tempo para se tornar em si uma afirmação de vida.


115

Vocês, fotógrafo e escritor, sabem que estão olhando para o tempo,

capturados pelo seu mistério, sua imponderabilidade.

O que lhes escapa(va) é a compreensão de que não é o tempo efetiva(suposta)

mente vivido que flui nas sarjetas entre as fotos. Não é o tempo que passou,

o tempo irrecuperável, nem

mesmo o tempo presente ou

ainda por vir. É o tempo que

trouxeram consigo, o tempo

criado simultaneamente ao

deslizar os dedos pela tela

folhear as páginas do álbum, o

tempo (fictício?) com que

preenchem e conectam cada

fotografia postagem. Esse é o

tempo cartografado pelo mapa

conjurado pelo projeto de

Auggie independente de sua

intenção original. Ambos,

escritor e fotógrafo

cartografam segundo crenças

em comum, crenças que preenchem as sarjetas: a fotografia como registro e

autenticação do efetivamente vivido, um atestado do real; vazando para a

presuposição de que a interatividade da rede (na qual, por um momento, um

fotógrafo é um emissor e um escritor é um receptor) calca-se na apresentação


116

de registros, registros de fatos, de vivências, de ideias, de pensamentos, de

tolices, de dores, de intensidades, de frivolidades, de profundidades, o que

seja. Registros passíveis de serem autenticados ou falseados, de serem mais

ou menos importantes e/ou significativos de acordo com variadas gradações

e critérios, até esgotar os possíveis dados de antemão. Uma crença tão

determinante que a experiência do pungir que atinge o escritor parte não do

invisível entre as imagens que se dão a ver, desse invisível onde o escritor

efetivamente conectou as inúmeras fotografias no seu próprio mapa pessoal,

único e mutável, mas de uma foto em particular na qual reencontra o demônio

conhecido, a dor familiar, o possível já esgotado. Uma ilha no rio que corre,

onde o fluxo pode ser estancado, onde a experiência do real pode ser, uma vez

mais, cristalizada num possível já dado de antemão. E a dor e as lágrimas

talvez sejam até tranquilizadoras, pois familiares. Nelas você se reencontra e

se re-estabiliza na identidade que o define, reveste sua própria pele, reafirma

suas dores tão maiores por serem suas. E a vertigem passa: não há nada de

novo sob o sol.

Manter a perspectiva da tira infinita é um exercício, uma forma de atenção,

uma disciplina, um rigor constante e, talvez acima de tudo, uma intenção. O

deslocamento é frágil, facilmente recapturado. O você-sarjeta se desvanece a

cada re-afirmação da dicotomia real-fake, a cada recaída na crença arraigada

de que os perfis e postagens representam algo para além de sua própria

expressão, remetendo a um possível já dado ao invés de uma possibilidade

ainda a ser criada/pensada. A cada reconfiguração da atenção para um

elemento em particular que te desloca do plano da criação-cartografia para o


117

plano da representação, do reconhecimento: uma foto, um gif, um texto, um

comentário, uma afirmação, uma possibilidade. A cada firmar as pernas,

escapando do vácuo sem gravidade no qual você flutua na sarjeta, imerso e

atento ao invisível. Sem dúvida não poderia ser um estado permanente, ainda

que a perspectiva o possa e, possivelmente, deva, para fazer frente à pressão

do imaginário coletivo das realidades pré-dadas, a flecha do tempo concreta:

ontem, hoje, amanhã, timeline: “Você nasceu em 1974”, “Você casou em

1995”, “Você doutorou em 2017”. Fatos, contra-fatos. Afirmações, negações.

Mas você não casou em 1995! (Ou casou?) 2017 ainda não aconteceu! (Ou

aconteceu?) Você não nasceu em 1974! (Você nasceu?) E é tão fácil escorregar

de volta ao familiar, se perder no jogo sem fim de “verdades” e “mentiras” que


118

se equivalem dentro da lógica do

registro e do pré-existente. O

realismo que fronteiriça, o

território que precede o mapa. A

verossimilhança atuando como

parâmetro implícito para apontar

discrepâncias entre o território e

o mapa, para supostamente

diferenciar o real do fake, mas

que efetivamente apenas nubla a

compreensão da rede como

espaço de criação: de

identidades, de posturas, de

ideias, de sexualidades, de

políticas, de verdades, de

possíveis, ancorando os

acontecimentos em possíveis

esgotados, variações do mesmo.

Estabelecer-se na sarjeta, no

espaço-entre, talvez não

propriamente para despoluir o

invisível (se é que é possível) mas

para comungar com os

fenômenos de borda, com as


119

multiplicidades em permanente mutação, suspender as cristalizações, auto-

declarar-se feiticeiro: Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala, na

fronteira dos campos ou dos bosques. Eles assombram as fronteiras. Eles se

encontram na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos. O importante é sua

afinidade com a aliança, com o pacto, que lhes dá um estatuto oposto ao da

filiação. Com o anômalo, a relação é de aliança (DELEUZE; 1997, pg.28).

A sarjeta como o “lugar” de poder do feiticeiro, a posição de borda, a não-

filiação, onde potencialidades outras podem ser pensadas-criadas-conjuradas

para então eclodir em exóticas intervenções do anômalo, tensionando as

fronteiras do concebível, do tolerável, do desejável, erupções do

intencionalmente inverossímil, do orgulhosamente incongruente, do

disforme, do monstruoso, do

informe, as estratégias exóticas

que burlam os mecanismos de

controle das redes, tensionam

seus padrões pré-definidos e

fazem surgir, em rompantes, as

imagens tabu, as imagens

proibidas e/ou não-desejadas,

manifestando-se nas brechas

que o olho da máquina não

pode ver, que os algoritmos

(ainda) não foram

programados para prever.


120

Corpos-ciborgue auto-conscientes não só de sua própria extensão anômala

através do meio digital, como também da indeterminação de seus limites em

relação a toda a amálgama de corpos com que compartilham esse estranho

meio e você compreende que esse auto-criar-se nunca poderá ter fim ou

começo, mas sim um processo performático permanente de atenção e

imaginação. A potência de um corpo que se deseja como ficção-viva, ficção

que deseja, que dança, para fazer frente às “realidades” pré-dadas, não para

substituí-las num processo de novas cristalizações no visível, o que se

revelaria não mais que parte de um ciclo infinito de esgotamento, mas sim a

tentativa intencional de manter-se num estado (precário e instável, que seja)

de criação. Performers e artistas reconhecem ou intuem essa dança, mas a

própria marca/alcunha de “arte” arrisca ancorar a criação em formas pré-

determinadas no visível, numa certa lógica de filiação com seus próprios

padrões de verossimilhança, autenticação, um “lugar” definido entre os

possíveis algoritcamente marcados. O risco de recaptura permanece intenso,

tão forte quanto o de qualquer outro corpo que não se auto-reconheça como

artista. A dança na sarjeta não pode ser garantida por nenhum tipo de

filiação, seja política ou artística. Acalentar o informe, o invisível, pressupõe

a suspensão de quaisquer filiações, não para uma negação niilista de todas

as contradições, um dar de ombros para a disputa enlouquecida de versões

do real que desfilam pelas timelines, mas para manter-se num estado-outro

em que os reais e os possíveis esgotados que pré-existem e urgem por atenção


121

não sufoquem a

erupção do não-

previsto, da criação

que se reconhece e

se aceita como

criação em pleno

ato de se realizar,

não como suposta

evidência para além de si mesma, sem vínculo com quaisquer regras pré-

dadas, ainda que capture do visível a música com a qual evoluirão seus

movimentos, flutuando no ilógico, no inverossímil, na sagrada incongurência

dos deuses. A dança do feiticeiro no limiar entre os mundos, esperando pelo

fim do mundo que não acontecerá, o fim do mundo inverossímil numa data

que já passou, mas ainda assim expresso como acontecimento em seu perfil

“pessoal”. Não mais procurando punctuns seja no visível ou no invisível, como

um cão perseguindo

a própria cauda. O

feiticeiro que

finalmente se dá

conta que não

existem punctuns

na sarjeta… até que

você os conjure…
122

ESPERANDO O FIM DO MUNDO


123

Embora o Sigilo deva ser criado sob a influência de um ardente

desejo, e deva ser visualizado e meditado enquanto a obsessão

persistir, pode não ter efeito mágico até que tenha-se esgotado o

desejo, esquecido o significado do Sigilo, e tornando-se

completamente indiferente ao desejo e ao símbolo que ele

representa. Para Spare, a meditação significa manter o Sigilo na

imaginação até que ele gradualmente exclua todos os outros

pensamentos e, então desbotar-se da consciência, deixando a

mente vazia - o polo oposto para fixar-se a mente sobre um símbolo,

avaliando seu significado, repelindo outras idéias, e focando toda

sua vontade concentrada em sua realização. (SAVAGE; 2011,

pg.6)
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pontos focais e ferramenas de poder através das quais o feiticeiro


reencontra/cria/recria os possíveis esgotados, transcende a dicotomia
real/fake, reencontra o orgulho e a potência de ser ficção. Nada é real, tudo
é permitido, eu-sarjeta, eu-punctum, eu-feiticeiro, o ser-ficção
aliviando a pressão das realidades pré-dadas, permitindo respirar,
encher os pulmões digitais, expandir.

Não para meramente recuperar fôlego para injetar mais imagens e

mais palavras na torrente infinita, nem tampouco para deixar de

injetar mais palavras e mais imagens nas redes: o punctum – o

reencontro/criação da potência do feiticeiro para criar possíveis – está,

como tudo nesse trabalho, no “entre”: nem aqui e nem lá, nem real e

nem fake, nem antes e nem depois, nem no cesto e nem nas fotos,
129

entre as linhas do mapa, entre as postagens da rede, entre as

metodologias, entre as linhas da página, nas entrelinhas. Sempre nas

entrelinhas. No que é insinuado, sugerido pela pose, pela bolha, pelos

punctuns liberados para reluzir, existir, desaparecer e reaparecer, e ao

contrário. Histórias narradas por mestres-zoeria, cheias de som e

fúria, sem significado. Vidas e identidades inventadas mais reais do

que qualquer certificado. Livros de milhares de palavras criados por

geradores de textos randônicos onde se pode aprender verdades

assombrados, segredos do oculto, o sentido do universo no ruído

branco de aparelhos de TV fora do ar. Glossolália, língua dos anjos, a

escrita que se perde deseja perder na sarjeta para enfim ter algo a

dizer para além da escrita, basta, basta, as imagens, eu prefiro não…

eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu

prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu

prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu

prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu

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prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu

prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu

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prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu

prefiro não… eu prefiro não… eu prefiro não… eu prefir


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Post-Script:

O FIM ESTÁ NO COMEÇO… E AINDA ASSIM,

CONTINUA-SE…
135

… e foi então que, um dia depois do fim do mundo, ele se recostou no sofá
com o volume impresso ainda cheirando a tinta nas mãos e tentou
reconstituir o caminho que o levara até ali e se a jornada fez algum sentido,
afinal.

Lembrou de como tudo começara com um senso de urgência e uma sensação


difusa e constante de afogamento. De afogar-se em imagens. De não dar
conta.

Folheava as páginas coloridas e, surpreso, descobria nas intrincadas


montagens e sobreposições de textos/imagens de suas apelidadas “timelines
fictícias” (um termo que cada vez mais lhe parecia redundante) associações
não-pretendidas. Ideias que se insinuavam a despeito das suas intenções
originais, nos momentos em que se debruçara sobre os fragmentos de
imagens, textos e tempo forçando-os à sua própria poética. Insinuações que,
não raro, contradiziam o que ele mesmo afirmava em outras páginas, em
outras associações.

Queria acreditar estar em paz com isso. Aceitar aquele quê de impodenrável
que, afinal, fazia parte das redes. A convicção de que jamais as alcançaria de
fato, que sua dinâmica o deixaria sempre para trás, perseguindo as sombras
que desaparecem a cada nova esquina, os pontos pretos entre os quadros,
desaparecendo quando focados…

Mas sabia que se paz houvesse, certamente seria uma paz tensa, por mais
contraditório que fosse. O permanente receio de girar e girar sobre o próprio
eixo e nada dizer, não ser entendido, não ser nem mesmo devidamente lido.
Mas esse é o jogo da arte, afinal: saber que sua escrita não é sua, que a criação
lhe extrapola, que a obra só existe de fato fora de si: resistir à filiação, resistir
ao jogo não-declarado das redes, o jogo das identidades, das afirmações, das
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comprovações, das verdades, o jogo que injeta continuamente combustível


nas redes enquanto, simultanemente, as esgota.

Sabia que as redes zombariam sempre de quaisquer débeis tentativas de sua


parte de afirmar formas concretas e definidas de estancar o esgotamento.
Que, justamente como acontece nos quadrinhos, descrever o que acontece
entre os quadros nada mais faria que estancar os possíveis. O processo não
pode ser congelado, exposto, cientificamente recriado ou se prestar a
conclusões. Antes mesmo do cheiro de tinta dissipar-se das páginas, as redes
terão deixado qualquer conclusão alcançada para trás… ou, talvez mais
precisamente, terão decomposto a conclusão em milhares de variações
mutuamente contraditórias, infinitas (re)afirmações em conflito, dissipando
sua potência em um sem número de possibilidades a la carte para serem
curtidas, compatilhadas, memetizadas, etc, etc, etc…

Sua aposta fora sustentar o equilíbrio precário da insinuação, sustentar-se (e


ao leitor) o máximo possível no “entre” que não poderia prescindir da própria
forma de apresentação da escrita em si. Uma aposta num leitor que aceitasse
perder-se (e encontrar-se) nesse “entre”; que se dispussesse a explorar
minúcias que aparentassem – numa primeira olhada, menos cuidadosa –
serem meramente ilustrativas; uma demonstração prática (talvez?) de uma
possível forma de apropriação das redes que fosse além da afirmação (de
identidades, de políticas, de fatos, de desmentidos, de realidades) para a
insinuação de possíveis que permancessem potentes pela sua própria não-
delimitação, abstendo-se do imperativo esmagador de convencer
interlocutores, de afirmar suas verdades, de atestar sua existência… compor
ferozmente de seus próprios mapas do tempo mutuamente intercambiáveis:
mitologias de fronteira nas sarjetas profundas entre as postagens das redes.

Um autor feiticeiro apostando na aliança com leitores feiticeiros para formar


afetos de matilha, dispostos a deslizar pelas sarjetas e se entregar a um
processo de ficcionalização radical como uma estratégia (fatal?) para resistir
ao esgotamento. A criação no dia a dia de timelines que não mais se
ancorassem aos ícones da verossimilhança para se justificar, para provar seu
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ponto, para atestar sua realidade, mas ao contrário abraçassem o


inverossimel, o absurdo, o nonsense, forçassem a impossibilidade radical de
separar o real do fake como forma de resistência irônica permanente.
Timelines/HQs/mapas temporais em que homens mortos ainda narrem
histórias. Em que Gilles Deleuze, após uma noite ébria, atualize seu perfil
com declarações de amor bregas. Em que o uso dos advérbios de gênero e os
tempos verbais fluíssem mutantes no decorrer de uma mesma frase, em que
a tese, a antítese, o contraponto e refutação escapassem ao controle e às
autoridades e fossem irmanamente incongruentes entre si. A pós-verdade
(termo que o volume cheirando a tinta em suas mãos chegou tarde demais
para abarcar) não como o pesadelo supremo dos caçadores/coletores da
realidade com R maiúsculo, mas como a suprema ironia que nos libertaria do
ciclo de esgotamento dos possíveis cristalizados na variabilidade infinita da
rede…

… mas com cuidado, com cautela… para não espantar os possíveis, para não
cair novamente no velho ciclo das (re)afirmações. Aceitar o risco de que as
interpretação sugerida pelos mapas ao leitor/navegador o levem para rotas
não previstas, talvez até não desejáveis, não cair no delírio comum de
acreditar poder decepar, uma por uma, as cabeças da hidra. A rede
inexoravelmente deixará esse volume cheirando a tinta para trás, mas, talvez,
uma sugestão, uma insinuação, possa atravessá-la assim como ela foi,
continuamente, atravessada, unindo-se a possíveis similares já
(evidentemente) em desenvolvimento ao meio ao seu fluxo contínuo…

Insinuar uma diferença… talvez já seja muito a se almejar…

Refletindo sobre todos esses pontos, ele fecha o volume e o coloca de lado,
pega o tablet e abre o facebook. Subindo a timeline ergue a sobrolho
espantado ao constatar a quantidade de postagens sendo compartilhadas
hoje, em sua timeline, oriundas de uma página nova chamada “Historical
footage Made In Brazil”:
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139

… e se pergunta, com um sorriso tenso: quanto tempo, afinal o cheiro de tinta


fresca demorará para dissipar?
140
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