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Introdução
Muitos são os tipos de arcos existentes (vamos ignorar aqueles compostos com
roldanas, nada tradicionais, feios, apesar de também atirarem flechas), dentre os
tradicionais, talvez o longbow inglês seja o mais conhecido e admirado no mundo
ocidental, também o mais simples deles. Vamos mostrar aqui como fazer um arco
semelhante ao longbow, algo mais próxomo do chamado flatbow, de maneira simples
(apesar de ainda assim complexa para leigos, pois a arte da construção de arcos não é
algo fácil). Nosso objetivo é que se consiga um arco com a potência desejada pelo
arqueiro que irá usá-lo e com ótima precisão, desde que usado com as flechas corretas
(ver “A flecha e o arco”) e atirado por alguém que pratique bastante o tiro com este tipo
de arco.
Já alertamos o leitor que construir um arco não é algo fácil, exigirá tempo e dedicação.
Dificilmente o primeiro arco feito por alguém será um bom arco, não quebrará. Mas não
desanime, aprenda com seus erros, tire suas dúvidas com alguém mais experiente e o
próximo provavelmente não falhará.
Ferramentas
A Madeira
A maneira mais artesanal e eficiente de construir um arco começa pela árvore ainda
viva. Ela é cortada, o tronco rachado radialmente em algumas partes, deixa-se secar por
mais ou menos dois anos na sombra, e começa-se a trabalhar lentamente a peça de
madeira seguindo os anéis de crescimento....etc... Mas como esta é uma maneira muito
complicada e demorada nós vamos construir o nosso arco a partir de uma peça de
madeira comprada em madeireiras, um caibro.
Como não foi escolhida a região do tronco a ser usada, e por não ser uma peça que siga
os anéis de crescimento, nosso arco teria grande chance de quebrar se não usássemos
um revestimento nas costas do arco, o backing, ( Em posição de tiro as costas do arco
está voltada para o alvo, e o ventre ou barriga voltada para o arqueiro) mais adiante
falaremos mais sobre o revestimento das costas de um arco.
Deve-se escolher a peça de madeira mais bonita existente no comércio onde esta for
adquirida. Aquela com a cor mais uniforme, com o menor número de fibras saltando
para fora da peça, sem irregularidades, sem sinais de empenamento, rachaduras, ou
envergação deve ser a escolhida. Não compre qualquer peça de madeira, uma má
escolha pode ser o motivo do fracasso de um arco.
Mas o ipê não é o único, arcos feitos de Jatobá, Pau Roxo(ou Roxinho), Aroeira (ou
Gonçalo Alvez), Pau Brasil, Pati ( uma palmeira muito utilizada pelos índios da
Amazônia em seus arcos, não há notícias de que alguém, senão os índios, tenham feito
um arco desta madeira) também tiveram sucesso. Dentre estas citadas pode-se escolher
aquela que você possa conseguir com mais facilidade, o Ipê, Jatobá e Aroeira são
aqueles que já foram mais largamente utilizados com bons resultados.
O Projeto
Muitos são os projetos possíveis para uma arco. Aqui vamos mostrar um projeto de
simples execução e que resultará em um arco com o mínimo de possibilidades de
quebrar-se.
Antes de decidir pelo tamanho de seu arco deve-se conhecer o comprimento da puxada
do arqueiro ao qual o arco está destinado. Lembre-se, um arco deste tipo é um
instrumento quase tão pessoal quanto uma escova de dente. Para conhecer o
comprimento de sua puxada sem ter um arco deve-se estender totalmente o braço
esquerdo com o punho fechado em posição de soco, segure uma haste qualquer com a
mão direita entre o dedo indicador e o “dedo do meio”, como uma flecha, apoie a outra
extremidade da haste no punho fechado esquerdo e encoste o dedo indicador direito no
canto direito de sua boca, até onde a maioria dos arqueiros tradicionais puxam a flecha,
então meça a distância da haste de indicador a indicador. Esta será em polegadas o seu
draw length ou comprimento de puxada aproximado. Geralmente os arcos comprados
são feitos para uma puxada de 28 polegadas, mais ou menos a puxada de um homem de
1,80 m de altura, é neste comprimento de puxada também que é medida a potência de
um arco em libras.
Suponhamos que o retângulo abaixo seja sua peça de madeira, ela deve ter, no
mínimo 1 ¾’’ X 1 ½’’ X tamanho do comprimento do seu arco. Os nossos
retângulos deste projeto terá estas medidas mínimas.
O primeiro passo é traçar o centro do arco ( obs.: as medidas deste projeto não estão
em escala, considere que o retângulo a baixo meça 1 ¾’’ x comprimrnto do arco) :
A seguir traça-se uma linha 1 ½’’ acima do centro e outra 3’’ abaixo dele, assim
delimitamos a empunhadura:
Então traça-se uma linha 2 ½’’ acima da empunhadura e outra 2 ½’’ abaixo dela:
Nosso arco terá 1 ¾’’ em sua área mais larga e ½’’ nas extremidades, sua empunhadura
terá 1 ¼’’ de largura, sendo que todas as variações nas larguras serão unidas por retas
diagonais. A configuração final desta face do projeto ficará assim, de modo que a
lâmina superior é representada pelo lado direito de nosso desenho:
Como você já deve ter observado e achado estranho, vou explicar: a lâmina de cima é
ligeiramente maior por ser esta a que sofre maior estresse durante o uso.
Face-1
Bem, vivemos num mundo de, pelo menos, 3 dimensões, vamos continuar...
Aqui temos a face lateral de nossa peça de madeira já com o centro e os outros traços
marcados como na outra face do projeto(obs.: estes desenhos não estão em escala,
considere que o retângulo abaixo meça 1 ½’’ x comprimento do arco):
Não dá para dizer a potência de um arco a partir de suas medidas devido a infinidade de
variações que encontramos nas propriedades dos diferentes tipos e peças de madeiras.
Portanto indicarei uma espessura inicial de lâmina de ½’’, esta medida permitirá
conseguir desde arcos bem potentes até aqueles menos fortes durante a finalização da
arma. Tracemos então o desenho de nossa lâmina:
Face-2
Pronto, agora que você já tem um projeto para seguir, basta só executá-lo!
Execução
Não é fundamental que já se tenha experiência com o trabalho manual de madeira para
se construir um arco com relativa qualidade. No entanto não é aconselhável que seu
primeiro trabalho em madeira já seja em uma peça selecionada e destinada a um arco.
Recomendo que se pegue retalhos de madeira e treine nestes com as ferramentas
adquiridas. Assim você poderá regular aquelas que necessitam de regulagens, como a
plaina por exemplo (siga as orientações do fabricante), e conhecer o poder de desbaste
delas.
A ajuda de alguém com certa experiência no trabalho com a madeira também é de
extrema valia. Muitos avôs são ótimos instrutores. Lembre-se, temos muito a aprender
com os mais velhos, especialmente os realmente velhos. Um marceneiro do bairro
também não negará algumas dicas, um dia ele também aprendeu com alguém.
O que um homem que trabalha com madeira deve sempre ter em mente é que você
sempre poderá desbastar, lixar, retirar um pouco mais de madeira, mas nunca será
possível colocar madeira novamente. Portanto tenha paciência. Trabalhe aos poucos.
Sem preça. E sempre com muita atenção.
Agora que você já sabe trabalhar com as ferramentas que tem, vamos ao nosso arco.
O primeiro a fazer é decidir qual dos dois lados será as costas do arco. Quase a
totalidade das quebras de arcos acontecem pelo desprendimento das fibras da madeira
localizadas nas costas do arco. Então, temos que dar maior atenção para esta parte de
nossa arma. O lado com menos irregularidades, menos fibras aparentes deve ser o
escolhido para as costas do arco.
Uma vez definida, as costas do arco deve ser muito bem lixada. Começando com a lixa
mais grossa (60 já está bom) lixe até você ter certeza que outras passadas seriam
desnecessárias, não mudariam nada. Então lixe um pouquinho mais. Só então passe para
a lixa 80. Após lixar bem como com a lixa 80, passe para a 100. Depois de bem lixada
com a lixa 100 pode dar um pouco de descanso às lixas. Como esta face receberá um
revestimento posteriormente ela não necessita estar mais lisa do que estará após a lixa
100.
Agora é hora de traçar os riscos como indicados no projeto. Com um bom lápis, trace-os
nas costas do arco até chegar ao desenho Face-1 do projeto.
Agora você deverá tomar uma decisão, algo pessoal. Se você decidir começar a
desbastar a madeira para chegar primeiro ao traço vermelho de Face-1, pode começar.
Só depois de pronto esta fase você riscará o desenho Face-2. Se preferir começar
desbastando com o objetivo de chegar primeiro ao desenho do traço vermelho de Face-
2, risque todos os traços agora e comece o serviço.
Você deverá tomar cuidado com as costas do arco, esta não deve ser mais mexida(no
interior do traço vermelho, é claro). Comece usando a plaina, esta deverá estar bem
afiada. Alguns se dão bem com as facas e/ou canivetes, se você é um deles, vá em frente
com suas lâminas. Quando já estiver chegando bem perto do traço vermelho, aconselho
por as lâminas e plainas de lado e começar a usar a grosa, é bem difícil fazer uma
besteira com esta ferramenta. Sempre fixe sua peça de madeira para trabalhá-la, assim
você terá suas duas mãos sempre livres.
Revestimento
Como já foi dito anteriormente, o desprendimento das fibras das costas de um arco é a
causa de quase todas as quebras de arcos. O revestimento ou backing é um artifício
usado para segurar essas fibras evitando a quebra. No entanto um arco revestido não
significa um arco inquebrável. Revestir um arco significa colar em suas costas algum
material tal como uma lâmina de madeira, bambu, seda, couro de diversos tipos, sinew
que é o tendão de boi, búfalo, cervo, fibra de vidro ou carbono, entre outros. Vamos
tratar aqui apenas da madeira, do bambu e do couro, os mais simples de conseguir e
aplicar e também muito eficientes.
O revestimento com madeira pode ser feito com uma lâmina de, em média, três
milímetros de espessura, não pode ser nem muito maior nem muito menor do que isto.
A madeira usada deve ser de peso e dureza medianos e de boa qualidade. A peça deve
estar em perfeitas condições. É importante que a madeira utilizada para este fim não
seja demasiadamente fibrosa.
No caso do bambu, este deve ser do tipo gigante ou bambu-açú, com pelo menos 10 cm
de diâmetro. Ele deve ser cortado maduro e após seco, rachado. As tiras devem ter o seu
lado externo preservado a não ser por leves desbastes que podem ser feitos nos nós, mas
isto não é necessário. O lado interno deverá ser desbastado até se tornar plano e atingir a
espessura esperada, esta não deverá ser inferior a 3 milímetros, e poderá ser maior de
acordo com a sua vontade, lembrando que o bambu irá aumentar a potência de seu arco,
portanto não exagere na espessura deste, você pode acabar tendo que desbastar muito a
madeira de seu arco posteriormente.
Se você optar pelo couro você terá de escolher qual o tipo de couro que irá usar. Uma
vez cortado no tamanho certo passe bem a cola de madeira a base de resina vinílica nas
costas do arco e prenda o couro ao arco usando faixas hospitalares (encontradas em
farmácias para enfaixar pés torcidos etc...), as faixas devem ser enroladas sobre todo o
arco bem apertada.
Para colar o revestimento no seu arco este deve estar já em sua forma final, após
alcançar ambos os desenhos Face-1 e Face-2. Limpe ambas as superfícies a serem
coladas isentando-as de qualquer partícula de poeira.
Alguns Detalhes...
Agora que você já tem um arco revestido, é hora de preparar alguns detalhes antes de
começar a enverga-lo. Vamos desbastar os sulcos nas pontas do arco onde a corda será
encaixada. Imagine que o retângulo abaixo seja a face lateral da ponta de seu arco. O
traço em azul deverá ser traçado ¾’’ abaixo da ponta e o verde ½’’ abaixo do azul.
Sobre a diagonal em vermelho deverá ser feito o sulco. A espessura e profundidade
deste depende do tipo de corda que será usado e de sua preferência. A ferramenta mais
eficiente para este desbaste é uma pequena grosa cilíndrica.
No caso de você ter escolhido a madeira para revestir seu arco esta deverá ser lixada
desde a lixa mais grossa até a mais fina possível (mínimo 220) passando por todas as
intermediárias, isto antes de iniciar a tileração. O bambu e o couro não necessitam de
serem lixados.
Agora que seu arco está quase pronto é hora de começar a enverga-lo. Precisamos
agora ter paciência e trabalhar com mais cuidado do que nunca. Devido a não
uniformidade da madeira, do bambu, interferências da camada de cola entre o
revestimento, o arco poderá estar envergando mais em certos pontos da lâmina do que
em outros. Desse modo o estresse não será distribuído igualmente entre todos os pontos
reduzindo assim a vida útil do arco. Pode haver também uma lâmina mais fraca do que a
outra, o que também pode ser um problema.
É nesta fase que iremos trabalhar essas irregularidades na envergadura de nosso arco. É
agora também que iremos diminuir a potência de nosso arco até aquela que queremos.
Para este processo, talvez o mais importante para que tenhamos um arco bem sucedido,
teremos que montar um suporte no qual prenderemos nosso arco pela empunhadura e
possamos enverga-lo progressivamente e observar como as lâminas estão envergando
até chegarmos ao tamanho de puxada que se busca.
Um suporte para “tilerar” um arco pode ser facilmente feito como o da foto abaixo:
A “tileração” deve-se iniciar com uma corda maior do que a que se encordoará o arco
posteriormente. Prende-se as extremidades da corda nas pontas do arco sem enverga-lo
ainda. Ponha-o em seu suporte e verifique se as costas do arco está no nível (um nível
de pedreiro é bem útil). Então comece a envergar o arco. Com umas 8’’ já deverá ser
possível observar a envergadura dele. O primeiro ponto a observar é se as duas lâminas
estão envergando igualmente. Daquela que estiver envergando menos deverá ser
retirada o mínimo de madeira de toda a lâmina uniformemente (recomenda-se o uso da
grosa). Vá sempre trabalhando aos poucos. Marque a região a ser desbastada e desbaste
bem pouco, não esqueça que você não conseguirá devolver madeira ao arco! Ponha o
arco novamente no suporte e verifique o resultado. Retire madeira aos poucos e
verifique o resultado quantas vezes forem necessárias. Se você conseguir que as duas
lâminas enverguem exatamente o mesmo tanto, tudo bem. A lâmina superior deve, no
entanto, ser sutilmente (eu digo muito sutilmente) mais flexível que a inferior. O que
não deve ocorrer de maneira alguma é a lâmina de baixo ser mais flexível do que a
lâmina de cima.
Agora que temos as duas lâminas envergando corretamente uma em relação à outra,
vamos nos preocupar em como elas estão envergando. Um arco deste tipo não deve se
parecer com uma semi-circunferência, como muitos leigos acham. O ideal é que ele seja
semelhante a uma semi-elipse. Ou seja, nosso arco deve envergar mais a medida que
nos aproximamos das pontas, o mesmo que dizer ser menos flexível a medida que nos
aproximamos da empunhadura. Mas nada muito brusco, esta deve ser mais uma
diferença sutil. Veja algumas fotos de como seu arco envergado deve se parecer:
Chegando no comprimento de puxada que se busca com esta corda grande, reduza o
tamanho dela ou utilize a própria corda destinada ao arco. Desse modo, você deverá
encordoar o arco de maneira que a corda esticada mantenha o arco um pouco
envergado. Então recomece o processo de tileração. Ponha novamente o arco no
suporte, tire-o, desbaste, retorne o arco no suporte, observe... Faça isso quantas vezes
forem necessárias até alcançar o comprimento de puxada que se quer com as duas
lâminas envergando corretamente e da mesma maneira. Se você chegar no comprimento
de puxada que se buscava com o arco ainda inteiro... Você se sentirá verdadeiramente
aliviado, a obra de suas mãos não quebrou, alegre-se, você fez um arco!!!
Acabamento
Quando você chegar nesta fase, Parabéns, seu arco está quase pronto e já sabemos que
deu certo. Agora é hora de trabalhar a empunhadura. Como neste projeto a
empunhadura não enverga, você está livre para trabalha-la como quiser desde que não a
enfraqueça muito. Vá trabalhando a madeira de maneira que a empunhadura se encaixe
confortavelmente na mão do arqueiro.
Agora você terá de tomar mais uma decisão, você poderá colar uma pecinha de madeira
logo acima de sua mão ao segurar o arco para apoiar a flecha durante o tiro ou usar sua
própria mão como apoio para a flecha(era assim que a maioria dos arqueiros dos séculos
passados atiravam inclusive os ingleses da idade média). No caso de atirar usando a
mão como apoio, recomenda-se o uso de algum tipo de luva para evitar possíveis
ferimentos. Veja exemplos de empunhaduras:
É também recomendável que se cole um protetor nas pontas do arco afim de proteger o
arco de ser desbastado pelo atrito da corda diretamente com a lâmina. Este protetor pode
ser de chifre, osso ou casco de animais, madeira ou algum material sintético. Veja
alguns exemplos:
Com a empunhadura pronta é hora de lixar. A madeira possui uma beleza tímida, a lixa
bem usada é quem ajudará a beleza da madeira a vencer sua timidez e mostrar-se em
público. Comece com a lixa mais grossa e vá até a mais fina possível passando por
todas as intermediárias. Quanto mais fina for a última lixa mais refinado será o
acabamento e mais bela se apresentará a madeira. Lixe todo o arco (menos o bambu e o
couro se for o caso) com muita dedicação. O bambu pode ser lixado levemente com
uma lixa bem fina somente.
De pois de lixado é hora de envernizar. A envernização é necessária para que nosso arco
se proteja da umidade, dos raios solares e ainda evita que a madeira resseque, além de
realçar a beleza da madeira. Os vernizes mais indicados são aqueles a base de
poliuretano ou a base de resina epóxi, os mais resistentes. Temos no comércio um
verniz chamado de marítimo com excelentes propriedades para este fim, sendo este a
base de poliuretano. Siga sempre as orientações do fabricante do verniz para extrair o
melhor resultado do produto que compraste.
Parabéns pelo seu sadio interesse nos arcos tradicionais. Boa sorte em sua empreitada!
Para aprender como atirar, qual a flecha correta e outros detalhes sobre um arco deste
tipo veja nossas outras sessões neste site.