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O Riso Castiga os Costumes

Paulo Santilli
Universidade Estadual Paulista

Abstract

This article presents a discussion on the humour as constitutive of the Makuxi political practices. The
discussion is proposed in the context of the debate focusing classical anthropological concepts
produced in Africa as joking relationships, apprehended beyond the formalized canons of hierarchy
and reciprocity and extended to the multiple domains of the social life.

I. Introdução

Este artigo trata da produção do humor referenciada às práticas políticas Makuxi manifestas
sob a perspectiva da mordacidade, da ironia e da paródia, reiterando seu valor explicativo para a
estrutura social.
Tal temática foi consagrada na literatura antropológica sob o rótulo abrangente de "relações
jocosas" (joking relationships)1 , estudada notadamente no terreno africano por A.R.Radcliffe-Brown
(1973). A definição de Radcliffe-Brown, como se sabe, referia-se às relações específicas entre pares
de posições diádicas, que comportavam o sarcasmo e a mordacidade ostensivos; relações
institucionalizadas, contrastavam com outras relações sociais, em particular com seu oposto

1
Os artigos de Radcliffe-Brown "On Joking relationships" (África, 13:195-210) e "A further note on joking
relationships" (África, 19:133-140) foram editados em português com os títulos: "Parentescos por Brincadeira"
e "Nota Adicional sobre os Parentescos por Brincadeira" (Ed. Vozes, Petrópolis, 1973) e "Apontamentos sobre
a Relação de Brincadeira" e "Nota Adicional sobre as Relações de Brincadeira" (Edições 70, Lisboa, 1989).
Manuela Carneiro da Cunha traduz "joking relationships" por relações prazenteiras e esclarece que, entre os
Krahó não se distingue "parceria jocosa" (joking patnership), relação entre grupos, e "relação prazenteira"
entre indivíduos posicionados em determinada categoria de parentesco. "O caso Krahó, como o Xavante e o
Bororo, necessitaria, mas não nos parece de grande valia continuar classificando, uma terceira categoria onde
a cláusula do parentesco estivesse ausente." (1978:82).
simétrico, que seriam as relações de evitação vigentes, via de regra, entre posições sociais
hierarquizadas.
Apesar do rendimento obtido nos estudos africanos - entre os quais se destacam aqueles
tributários da posição de Radcliffe-Brown, como os de F.S.Pedler, H.Laboutet, D.Paulme, Junot,
M.Griaule, R.Moreau, I.Schapera, R. Horton, T. Mary, J. Vansina, J. Wescott, A.I. Richards e P. Rigby
publicados na Revista "Africa" -, e mesmo, no campo americanista – em que se destacam as
iniciativas pioneiras, como as de R. Lowie, P. Radin, M.J. Herskovits, e E. Colson -, como também
nos estudos de caráter mais teórico - empreendidos já nos anos 60, como os de M. Glukman, V.
Turner e M. Douglas -, parece-me que a análise das relações jocosas tem sido negligenciada na
etnografia das terras baixas sul-americanas. Exceção seja feita às páginas instigantes que Manuela
Carneiro da Cunha (1978:82-94) dedica ao assunto no contexto da análise da amizade formal entre os
Krahó, bem como não deixou de notar Eduardo Viveiros de Castro sua relevância para a sociologia
Araweté (1986:352;422ss.), e mesmo Catherine Howard entre os Waiwai
Sobre o riso, de modo mais amplo, destacam-se no campo da etnologia sul-americana, entre
outros os trabalhos pioneiros, “De que riem os Índios” de Pierre Clastres (1974) e “Os velhos nas
sociedades tribais” de Anthony Seeger (1980). Porém, devo ressaltar, ainda não se fez entre os povos
sul-americanos qualquer estudo comparativo sobre o humor, ou mesmo sobre as relações jocosas em
diversas sociedades, como se empreendeu na África, e mais particularmente, como o que Peter Rigby
(1968) realizou entre os Gogo ou Beidelman (1966) entre os Kaguru. Embora sejam substanciais as
diferenças interpretativas existentes nos trabalhos destes autores (Douglas 1968:371), ambos
inventariam os repertórios de brincadeiras que entre os Gogo e os Kaguru permeiam notadamente as
relações interclânicas, entre afins, entre avós e netos, primos cruzados, com os tios maternos e os
filhos das irmãs. A cada uma destas relações sociais corresponde uma modalidade específica de
brincadeiras, pautadas em critérios próprios de adequação. E mais que inventariar, os estudos
realizados entre os Gogo e os Kaguru permitem evidenciar como, a partir do universo do parentesco
ego-centrado, estes povos construíram concepções cosmológicas próprias valendo-se de brincadeiras
como elos mediadores entre distintos domínios estruturados nas respectivas culturas.
Proponho aqui a retomada da conceituação das relações jocosas que considero altamente
operativa para uma compreensão global do sistema político Makuxi. Digo retomada porque sua
aplicação ao caso estudado requer, a meu ver, um alargamento da sua definição, posto que não caberia
limitá-la às relações diádicas mas, ao contrário, dever-se-ia entendê-la como um valor pervasivo à
prática política.
II. Da afinidade e terminologias de parentesco amazônicas

Desde a fundação de uma Antropologia Política, o parentesco foi considerado, certeiramente,


linguagem, por excelência, para a política. Sugiro, no entanto, que o debate guianense focaliza
prioritariamente o que se poderia designar, por analogia à análise do parentesco, como uma
terminologia do sistema político. A compreensão do sistema político como um todo, a meu ver, não se
esgotaria em sua terminologia, tanto quanto um sistema de parentesco não se esgota, mas requer
forçosamente a consideração matizada de um sistema de atitudes.
As práticas políticas - que comparamos a um sistema de atitudes - encontram-se, entre os
Makuxi, vazadas por uma crítica política, onde a mordacidade, a ironia e a paródia são estilos
valorizados e amplamente utilizados. É esta atitude crítica que, a meu ver, impede a cristalização da
hierarquia latente na relação de afinidade, bem como impede sua disseminação pelo campo mais
amplo da política aldeã.
A aldeia Makuxi, constituída morfologicamente por diversos conjuntos residenciais
correspondentes a parentelas, pode ser vista como modelo ampliado ou composto do padrão aldeão
guianense. Importa, porém, perceber que não necessariamente tais parentelas estão interligadas por
relações de parentesco, assim se afastando, de um lado, da equação entre parentesco e co-residência e,
de outro, da política construída estritamente sobre relações de afinidade. Se algo da política escapa à
linguagem do parentesco, há que se perguntar sobre o código mais amplo de que aquela se serve.
O domínio da afinidade é algo complexo no panorama etnográfico da Amazônia dravidiana,
conforme já demonstrou Eduardo Viveiros de Castro (1993:148ss.); tal domínio abrange desde
relações de aliança por casamento articuladas endogamicamente nos pequenos grupos locais -
passíveis, por sua vez, de distinção analítica nos planos da afinidade virtual cognática (como por
exemplo entre primos cruzados) e da afinidade efetiva ou real (vigente entre cunhados) - como
também relações articuladas em dimensões outras, políticas, bélicas e rituais (envolvendo os cognatos
distantes, os não-parentes), interligando unidades não necessariamente conectadas por casamentos, o
que se convencionou chamar de afinidade potencial ou "sócio-política" (Viveiros de Castro &
Fausto1993:6)
A expressão analítica da afinidade encontra na Amazônia dravidiana um amplo espectro de
variações quanto à presença de termos distintos para afins reais, desde as terminologias consideradas
clássicas de "duas seções", até aquelas que contêm conjuntos completos de termos de afinidade sem
conotação consangüínea. Tais variações contrastam, por sua vez, com os sistemas que favorecem o
casamento com representantes distantes de categorias prescritas, bastante difundidos no Brasil
central: "Esta distinção entre o próximo e o distante pode atingir uma eminência que neutraliza a
dicotomia dravidiana, particularmente na geração de Ego - o que seria o caso daqueles sistemas com
traços "havaianos", que consangüinizam os parentes desta geração (Thomas, 1977). A concepção de
que a consangüinidade engloba a afinidade (um englobamento local, que inverte a ordem superior do
valor) encontraria aqui - no caso dos Pemon, dos Makuxi - sua expressão completa. Nos sistemas que
favorecem o casamento com representantes distantes das categorias prescritas em detrimento dos
próximos, estes últimos, afins virtuais, podem receber os valores de ambigüidade ou hostilidade ritual
característicos da afinidade potencial. Em lugar de os afins efetivos serem assimilados a cognatos
(primos cruzados), como é o caso da Guiana, são os primos cruzados com quem não se estabeleceram
trocas matrimoniais que se vêem assimilados a afins potenciais, inimigos rituais. Assim, no Alto
Xingu, o afim real é objeto de uma evitação que é uma atitude de "super-parentesco" - recordemos
que o célebre ifutisu dos Kalapalo (Basso, 1975) caracteriza a afinidade, mas é ao mesmo tempo a
atitude geral da cognação próxima - , ao passo que o afim virtual/potencial é objeto de relações
jocosas e de confronto cerimonial." (Viveiros de Castro & Fausto 1993:7).
Como já foi exaustivamente trabalhado na literatura etnológica sobre as Guianas (Arvelo-
Jimenez 1971; Thomas 1982; Overing Kaplan 1975; Rivière 1984), a afinidade aglutina relações sociais
das quais depende, em tese, a existência de um núcleo de aldeias. Um líder apóia-se em seus afins, mas
esta relação é ambígua, potencialmente conflituosa. Além disso, como ocorre entre os outros grupos
Pemon (Thomas 1982:60ss.), para os Makuxi, a relação entre afins da mesma geração, isto é, cunhados -
yakó -, é marcada por grande liberdade e igualitarismo, enquanto, inversamente, a relação sogro-genro -
pái-to -, pressupõe evitação, subordinação e, efeito correlato, consideráveis obrigações materiais do
genro para com o sogro. Assim sendo, de um lado, um indivíduo goza de grande liberdade em relação a
seus consangüíneos e afins da mesma geração (e para o cálculo genealógico que define este conjunto); de
outro, o forte componente hierárquico da relação sogro-genro cerceia esta liberdade e, o que é mais
importante, permanece como foco estruturador das relações políticas intra e inter-aldeias. O componente
hierárquico da relação de afinidade varia, porém, com distância social existente entre sogro e genro:
neste sentido, o casamento com a prima cruzada bilateral ou, como quer Rivière (1984:72), a relação
entre afins aparentados, seria um meio de atenuar a hierarquia da relação. Inversamente, tal componente
hierárquico aumenta, conforme bem demonstrou Thomas para os outros Pemon (1982:98), quando se
trata de casamento entre indivíduos não relacionados genealogicamente, o que representa um máximo de
distância social. Deste modo, em que pesem suas nuances, a sociedade Makuxi certamente corrobora o
modelo etnográfico para as Guianas.
Ao problematizar o valor político da afinidade e da dinâmica de aliança ego-centrada entre os
Makuxi, o presente trabalho procura evidenciar o valor crucial da crítica, exercida através da ironia
tanto pública quanto privada, como um princípio pérvio à prática política aldeã. A partilha da co-
residência e o recurso da tecnonímia são fatores que compõem, em linhas gerais, a tessitura que baliza
a esfera de relações entre os parentes mais próximos, pois, em termos conceituais, os Makuxi
consideram-se todos parentes(uyomba).
Se, como já foi dito, de modo particular para os Makuxi, e também para outros grupos Pemon
(Thomas 1982:60ss.), a relação entre afins da mesma geração é marcada por grande liberdade e
igualitarismo, enquanto, inversamente, a relação sogro-genro, pressupõe evitação, subordinação; no mito
(pandom), em contrapartida, fala-se, sobretudo jocosamente do sogro, ainda que, eventualmente, não
se fale diretamente para o sogro. Nesse sentido, creio eu, não bastaria apenas opor, no domínio do
parentesco, ou mesmo da afinidade, a licenciosidade ao respeito que marcam as relações entre
cunhados e entre sogro e genro, pois nas Guianas poder-se-ia dizer, parafraseando P. Clastres, que os
índios riem do xamã, do jaguar, como também riem, e muito, da figura igualmente temerosa do sogro.
Portanto, a compreensão de tais relações, hierárquicas, e mesmo marcadas pela evitação, remete-nos
para além dos parâmetros diádicos estritos que compõem uma classificação categorial. No caso
Makuxi, mais que inventariar as relações sociais que comportam gracejos e zombaria, parece-me
pertinente buscar entender como a produção do riso (chirún-ba) conforma círculos, circuitos de
sociabilidade envolvendo diferentes âmbitos de prestações entre indivíduos relacionados pelas mais
diversas posições genealógicas e categorias de parentesco.
As formas de sociabilidade doméstica estabelecidas no plano aldeão, como no rito, desde a
formação da parceria conjugal, ao círculo íntimo que freqüenta os terreiros das casas, compartilha as
fainas agrícolas e pescarias, forma os mutirões para derrubada da mata e construção de casas,
constituem redes de relações sociais, não apenas de nexos genealógicos ou de afinidade, mas também
redes de significação, redes de inventividade, de criação, de construção do social que pressupõem um
ethos humorístico. Analogamente ao plano sociológico em que, considerando a tendência uxorilocal
prevalecente em toda a região das Guianas, é possível contrapor, ao longo da trajetória de vida dos
homens, por um lado, os vínculos cognáticos, estabelecidos na aldeia de origem, e, por outro, as
relações de afinidade, construídas junto à parentela da esposa, momentos de intensa comoção do
social, momentos estes fundantes, criadores, produtores de "comunidades" articuladas enquanto redes
de humor, onde a brincadeira é parte constitutiva da modelagem das relações sociais construídas no
dia a dia como no rito.
Um momento privilegiado de produção do humor entre os Waiwai foi descrito por Catherine
Howard no artigo – “Pawana: a farsa dos ‘visitantes’ entre os Waiwai da Amazônia setentrional” -, de
especial importância para a discussão da temática aqui abordada. Ao descrever e analisar o ritual
Pawana, a autora desloca o foco de investigação, tradicionalmente centrado na aldeia, ou grupo local
na etnologia guianense, para a participação dos Waiwai na vasta rede de trocas regional das Guianas,
o que a permite evidenciar toda uma filosofia da alteridade e da identidade entre esse povo, bastante
próximo, lingüística e culturalmente dos Makuxi. A autora demonstra, de modo convincente, como
nas improvisações encenadas no ritual Pawana, nas suas próprias palavras, “em meio ao riso e à
algazarra”, o processo de produção da “alegria” (tahwore) é uma forma de construção da sociedade
(1993:237).
Na farsa Pawana os Waiwai satirizam a chegada dos "visitantes", ou seja, das pessoas de fora
que vêm temporariamente à aldeia, criando personagens caricatos, encenando humoristicamente "os
estranhos" por ocasião das grandes festas anuais de verão (1993:238). A improvisação desse gênero
cômico não se coaduna, porém, com um mero assaque de xingos ou grosserias; mas pelo contrário,
segundo a autora, o tom geral "é notavelmente semelhante à troca carinhosa de insultos entre
parceiros de relações jocosas (cetapoehyem). Esta relação vigora entre pessoas não-aparentadas de
mesmo sexo e status, é mais abertamente carregada de afeto entre todas as relações sociais waiwai;
parceiros de relações jocosas trocam carícias, andam de mãos dadas, chamam-se pelo nome,
insultam-se, trocam presentes e hospitalidade, tudo isto em um clima de galhofa e de alegre
irreverência." 2(1993:255). E não apenas no âmbito da farsa Pawana, entende a autora que "o
processo de produção da 'alegria' (tahwore) é assim uma forma de construir uma experiência da
coletividade e de 'socializar' seus membros. Ele define uma categoria do 'humano'; trazer alguém para
a roda das risadas é incluí-lo neste domínio." (1993:255).
O termo pawana, empregado pelos Waiwai para os visitantes, tem sentido diverso entre os
povos vizinhos de filiação lingüística Carib, que designam com o mesmo termo - pawana, ipawana,

2
A autora observa na seqüência que a relação de "parceria jocosa" (cetapoehyem), marcada pela troca de
afeição e irreverência, "(...) contrasta com aquela entre parceiros de relação de evitação ( tîhyapamyahyem),
que se falam sempre respeitosamente ou evitam qualquer conversação" (Howard, 1993:255).
- ver paralelos da relação apìhi-pihã "convívio de camaradagem jocosa" Araweté, cuja marca principal é a
alegria tori - (Viveiros de Castro, 1986:435 - nota 86).
pavanauma - uma relação específica de parceria comercial, baseada na reciprocidade entre indivíduos
de aldeias distantes e de modo geral não relacionados genealogicamente (Colson, 1973:16-18;
Thomas, 1982:123ss.). A instituição da parceria comercial pawana - chamada pelos Waiwai
warawan -, caracterizada pelo endividamento mútuo de longo prazo, parece revestir-se de múltiplas
formas, permeadas por relações sociais diversas entre os povos guianenses; invariavelmente, contudo,
tais relações moldam-se, ou de alguma forma são modeladas às relações de afinidade (1993:240).
Ainda que seja possível inscrever a priori a órbita das relações jocosas no universo da afinidade, não
se trata aqui de circunstanciar o riso entre os Makuxi a relações ritualizadas, ou forma ritual, nem a
preponderância do parentesco ou de um gênero oral/discursivo; trata-se, antes, de tentar apreender na
produção mesma da "alegria" (mori), cuja expressão maior é o riso (chiráne), um princípio de
sociabilidade que perpassa o conjunto das relações sociais.

III. A produção do inusitado nas cenas cotidianas

De fato, pode-se constatar que as relações entre determinadas posições sociais comportam
tratamento corriqueiramente jocoso, como ocorre de modo mais acentuado, entre avós e netos, entre
irmãos, entre primos e primas na mesma geração, e com vieses particulares, condicionados em grande
medida, em conformidade com a ocasião e o ambiente.
Na roça, local em que as atividades são marcadamente distintas por gênero, a ironia, com
conotações sexuais, é produzida em profusão, como o momento que tive a oportunidade de registrar
em que uma criança arrancava um pé de cana-de-açúcar cultivado por seu avô, que, ao notar,
perguntou-lhe – menina, você quer ser minha mulher ? Os sentidos dúbios expressos nos contrastes
possíveis criados entre as ações casuais e as atitudes estabelecidas entre distintas posições sociais
propiciam um clima hilariante que permite aventar posturas inusitadas, e que seriam mesmo ofensivas
em um contexto habitual, como pude presenciar quando um jovem, recém-casado, a caminho da roça,
passava diante da casa de suas primas, e elas o provocaram: - você vai me tratar ? O que você vai
trazer prá mim? O que você tem lá prá sua sogra comer? O que come a sua sogra? Para quem você
está indo na roça? O mesmo clima de permissividade instigou a reação com um chiste que seria
inconcebível em outra situação, além de uma resposta provocativa: - Ei prima, você já pariu? Não? E
como é que eu ainda não te provei ?
A simulação de diferentes papéis e posições, com a produção de sentidos incôngruos, expondo
os participantes de uma mesma situação a condições tão inesperadas quanto inócuas é uma diversão
bastante apreciada, conforme constatei, ao ser apresentado ao sobrinho do meu vizinho por dois
meses na aldeia Caracanã: - ele é filho do meu irmão mas eu que fiz ele.
A perspicácia em aventar insinuações com múltiplos sentidos, que poderiam ser desairosos, se
não fossem proferidos de maneira indireta, propicia uma brincadeira divertida, como a que me vi
envolvido quando, durante a derrubada de uma mata para a abertura da roça de um ancião,
conversávamos, e sua prima constatou a nossa inépcia para o trabalho, ao que ele prontamente
respondeu, com o apelo em tom farsesco: - casa comigo, com um velho como eu ou ele, porque velho
não bate em mulher.
Com efeito, se considerarmos o "joke", no sentido apontado por Mary Douglas, como a
preponderância da informalidade sobre o formal, do espontâneo, do inusitado sobre o controle e a
norma, deveremos ter presente que são "requisitos sociais que definem uma brincadeira como
espirituosa, sem graça, imprópria, de mau gosto ou tola" (1968:366). A produção do humor não se
resume a criatividade individual, conforme já insistia Bergson; Mary Douglas vai além e sugere que
"uma brincadeira é percebida ou admitida quando oferece um molde simbólico a uma configuração
social que se processa ao mesmo tempo" ... quando "...um modelo dominante de relações é contestado
por outro", em suma, "...se troça não houver na estrutura social, nenhuma outra poderá surgir."
(1968:366).
Se considerarmos que uma área de cultivo própria é o que possibilita a consolidação de uma
parceria conjugal entre os Makuxi, como entre outros povos amazônicos, pode-se apreender o
sentido burlesco da exclamação ouvida entre os que participavam do mutirão ajuri para a abertura da
roça do mencionado ancião, - o pessoal aqui só aprendeu a casar, não aprendeu a fazer roça não!
A inversão de papéis sexualmente marcados, como é o caso da derrubada da mata, é uma das
mais apreciadas modalidades de humor entre os Makuxi, e alcança um grande efeito cômico quando,
por exemplo, surge direcionada às lideranças que, com sua atuação, motivam o desempenho das
tarefas masculinas; assim, em um dia em que o iebru Vitoriano, o líder político da aldeia Macuquém
tardou a chegar na roça, e só apareceu junto com as mulheres que traziam caxiri para os homens que
já estavam trabalhando, ele foi impiedosamente caricaturado, ao lhe indagarem: cadê o jamaxim? Ao
que se seguiu a ilação - mulher velha só anda se oferecendo por aí... e reiterados pedidos
zombeteiros – traz caxiri prá mim!
IV. Ironia e autonomia pessoal

A zombaria, a burla, o chiste, ou como definiria o Mary Douglas o “joke” - "play upon forms"
-, tem em comum com o rito o fato de que ambos conectam conceitos amplamente diversos. Mas
enquanto no "joke" estabelece-se um tipo de conexão em que uma noção vem a ser desacreditada ou
suplantada por outra, no rito a conexão que se estabelece é de modo tal que noções diversas se apóiam
mutuamente, convergem para um sistema unificado. Desde esta perspectiva "o rito impõe ordem e
harmonia, enquanto o 'joke' desorganiza", em síntese, o joke é essencialmente um "anti-rito"
(Douglas,1968:369-370).
Ao atentar para o dado de que o "joke" conecta e desorganiza, ataca e destrói o sentido, o
juízo, a consciência e a hierarquia, a autora sugere que o "joke rite", rito burlesco, deve então
expressar uma situação comparável, pois se ele nega, afronta a estrutura social, talvez celebre ou
releve algo em troca. Assim, considera Mary Douglas, o rito burlesco "pode expressar algo sobre o
valor pessoal dos indivíduos em contraposição ao valor das relações sociais através das quais eles se
organizam"; ou, também, "pode expressar algo sobre diferentes níveis da estrutura social, a
irrelevância de um plano óbvio e a relevância de algo submerso ou não desejável."
(Douglas,1968:370).
Tanto P. Rigby como M. Douglas convergem ao afirmar que o riso, a brincadeira, a
espontaneidade, desde que atacam, negam, contradizem a classificação e a hierarquia, são símbolos
obviamente aptos para expressão das relações sociais indiferenciadas, igualitárias, no mesmo sentido
que Victor Turner concebe alguns ritos dionisíacos, enquanto expressão de valor da “community” em
oposição à estrutura, aos domínios da vida social formalmente regrados, hierarquizados.
(Douglas,1968:370).
Partindo do estudo das relações jocosas, M. Douglas pode especificar modalidades
combinatórias engendradas com múltiplos fatores, conhecimento, partilha, habilidade, inspiração,
prazer inventivo cuja operação distingue os gozadores, brincalhões, entre outros atores sociais,
conferindo-lhes uma imunidade legitimada pelo contexto irônico de que são artífices. M. Douglas
aventa, inclusive, uma aproximação entre o esoterismo que caracteriza a fabulação humorística e a
atuação propriamente mística: "A imunidade dos gozadores pode ser derivada filosoficamente de seu
suposto acesso a outra realidade que aquela mediada pela estrutura dominante. Tal acesso está
implícito no contraste das formas que o gozador maneja. Suas peças expõem a inadequação de uma
estruturação realista da experiência e assim dão asas poderosas à imaginação... Talvez o gozador
possa ser considerado uma espécie de místico menor. Embora apenas um tipo mundano e marginal,
ele está entre aqueles que transcendem os limites da razão e da sociedade e oferecem lampejos de
verdade que escapam à trama dos conceitos estruturados vigentes." (Douglas 1968:373).
Não é preciso alongar aqui uma pletora tipológica do riso pela literatura etnológica afora,
apenas pontuando distinções categoriais como joking relationships, relações lúdicas, jocosas,
prazenteiras, de brincadeira, parceria catártica, familiaridade privilegiada, ritos burlescos ou
dionisíacos, pois é a devida contextualização social que permite articular significações múltiplas
expressas na paródia.
Pode-se aventar, a princípio, que o mesmo tipo de imunidade auferida pelos protagonistas na
produção do riso (chirún-ba), permeia a atuação tanto das lideranças rituais como políticas na
construção de redes de socialidade em sentidos diversos: o xamã, como em menor grau o rezador, na
condição de mediador entre os humanos e outros seres que habitam o universo, tem a prerrogativa de
situar-se além do âmbito da aldeia e da cultura e, desde esta perspectiva, explorar, vasculhar,
auscultar, inclusive com o recurso do humor, em grande detalhe os procedimentos, circunstâncias e
peculiaridades pessoais que permitiram tornar seus assistentes vulneráveis aos ataques de feiticeiros
estranhos e outros predadores humanos. Com sua atuação, revertendo ou não tal vulnerabilidade ou
estado patológico, os xamãs como os rezadores, reinstauram círculos de socialidade com a imunidade
de quem usa habilidosamente uma pinça fina para revolver os detalhes mais reconditos da vida
comunitária e com eles reconstruir, recosturar o tecido social a partir da criação, da concatenação de
novos nexos simbólicos plausíveis diante da agressão sofrida.
Considerando-se que as lideranças políticas exercem a mediação entre o grupo local e os
estranhos, e as lideranças rituais entre os seres de diferentes domínios, pode-se depreender a
relevância política do humor protagonizado por indivíduos situados em posições limiares numa
estrutura social que opera a conversão de inimigos, estranhos, em afins e de afins, em consangüíneos.
Via de regra as relações hierarquizadas construídas a partir de instâncias de mediação entre os grupos
locais/aldeias e agências indigenistas constituem alvo privilegiado da ironia mordaz que, mesmo no
código ético discursivo que evita a afronta, ou qualquer forma de hostilidade ostensiva, flui solta e
fervilhante por entre as bordas das platéias nas intermináveis reuniões políticas em que se caricatura
incansavelmente as figuras dos tuxauas, conselheiros e representantes de associações cujas pretensões
de representação política regional ou nacional quedam fatalmente ridicularizadas.
Se, como aventamos, o ethos humorístico é fator constitutivo da dinâmica social Makuxi,
pode-se também depreender como a produção da alegria, cuja manifestação por excelência é o riso,
conforma círculos, circuitos de socialidade, não apenas pela incorporação de novos partícipes nas
rodas do riso, como também por sua exclusão. Com efeito, o riso, enquanto expressão da alegria
produz sociedade e como tal, inversamente, é a sanção moral que motiva a repreensão pública mais
severa. Poder-se-ia invocar inúmeros casos nesse sentido, como pude registrar nos cadernos de
campo em períodos e aldeias diversos, o de um jovem Makuxi cujo reiterado procedimento
obsessivamente raivoso (sakarope) converteu-o em objeto da mais generalizada pândega, movida por
seus co-residentes e especialmente pelas crianças, e que, dentre outras conseqüências, lhe aniquilava
as eventuais possibilidades de levar adiante qualquer pretensão conjugal com as moças núbeis da
aldeia, forçando-o, assim, a retirar-se; e, mesmo, o de um professor, recém nomeado diretor de escola,
cujo comportamento considerado excessivamente avarento (amunek) insuflou uma tal onda de
escárnio por parte dos habitantes da aldeia, que levou-o a declinar o cargo e retirar-se diante do cerco
implacável que lhe impunha o riso, minando qualquer possibilidade de estabelecer ali relações
minimamente consistentes.
Ao se esmiuçar o que consiste objeto do riso, é possível evidenciar os limites éticos que
delineiam os contornos externos dos círculos de socialidade estabelecidos. As bordas desses circuitos
tornam-se claramente delimitadas diante da eminência de kanaimé - nos termos do etnógrafo T.Koch-
Grünberg, “o sentimento de vingança que invade um homem e o obriga à ação” (1982,III:187), como
pude testemunhar, na aldeia Makuxi do Guariba, quando um de seus mais idosos habitantes, em
estado intemperante durante uma festa, era acusado de haver admitido e mesmo se vangloriado, cínica
e escarnecidamente, do assassinato recente de uma jovem; acusação esta que, devido a sua
proximidade, já causava repugnância e aversão entre todos os presentes.
Em suma, nos casos mencionados, ainda que preliminarmente, de modo abreviado, temos uma
ligeira mostra de algumas das modalidades corriqueiras de produção do humor que adquirem
expressão pública com maior freqüência, as quais consistem basicamente na troca, inversão e
simulação de papéis, posições e atitudes envolvendo parentes de gerações alternadas, irmãos, primos
cruzados e afins de sexo oposto, como também, em determinadas situações, de ocorrência trivial nas
festas e reuniões políticas, reunindo crianças e mulheres que se dedicam a deformação caricatural dos
personagens proeminentes, e que, tanto pela improcedência, pelo descabimento inspiram cogitações
inócuas, quanto salientando exageradamente alguma característica física ou moral, acabam por
remeter o alvo de sua ironia para além da sociedade, com o inusitado absurdo e a desmedida
monstruosidade, ao domínio da natureza.
Neste quadro, traçado em termos um tanto esquemáticos, temos os elementos para evidenciar
a crítica como princípio político pervasivo, que incide sobre as esferas da hierarquia e da
reciprocidade, ou, de modo mais amplo, sobre a estrutura social, trazendo à tona o valor da autonomia
pessoal.

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