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O Sagrado Direito de Defesa

I– Ao comum do povo geralmente repugna o solene desvelo com


que a Justiça Criminal tutela os interesses do acusado, ainda que o
tenha por autor de crime gravíssimo. É que, havendo obrado tão
perniciosamente contra a espécie humana, a nenhuma outra coisa
parece pudera já aspirar tal indivíduo, exceto (e isto à maneira de
pública reparação) a pôr termo à própria vida.
Dantes era como procediam os homens, sob o influxo da lei do
(1)
talião ; não assim hoje, em que às instituições legítimas, não aos
impulsos da vingança privada, confiaram a solução de seus conflitos.
Efeito grande do progresso cultural dos povos, o direito de
defesa constitui, de presente, garantia impostergável do indivíduo.
Toda vez que acusado de crime, tem jus à defesa, mesmo que,
vilíssimo entre os de sua condição, esteja naquele ponto da escala
zoológica onde o homem confina com a animalidade bruta.

II – Por emprestar-lhe caráter sagrado, os mais dos autores


prendem o direito de defesa não menos que à primeira idade do
mundo.
Antes de condenar Caim, o fratricida, rezam as Escrituras que
Deus quis ouvi-lo: “Quid fecisti?”(2)
Não fora preciso (no caso que o houvesse) mais cabal
argumento da excelência do princípio da defesa, indelevelmente
inscrito, em soberbos relevos, nos diplomas constitucionais de todas
as nações livres.
Nossa Carta Magna incluiu-o expressamente em suas primeiras
disposições(3). Isto mesmo fizera constar a ONU, em 6.12.48, no art. 11
da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
É a defesa, portanto, direito que o Estado democrático deve
assegurar, sem exceção, aos acusados, com o timbre de regra
processual inviolável: “Ninguém pode ser julgado sem defesa”.
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III – Não basta, porém, que o acusado tenha defesa; é mister que a
tenha em sua plenitude, porque “só merece o nome de defesa a que for livre e
completa”(4).
Aquele que a tomou a seu cargo, ainda que venha a exceder-se
por palavras ou atos, sempre achará quem lhe escuse as demasias. É
que a defesa do réu, sem embargo de exercida alguma vez com
despropositada veemência, não desmereceu nunca no conceito dos
que bem compreendem o ideal da Advocacia: promover a restauração
do direito violado.
Daqui por que o próprio legislador houve a bem acautelar os
interesses do advogado (do cliente, fora melhor dito) contra a má
fortuna, desfazendo a nota de crime nas ofensas que irrogar em Juízo,
na discussão da causa: não constituem injúria ou difamação(5);
tampouco desacato(6).
Tal imunidade, que outros profissionais desconhecem, têm-na
os advogados (e dela fazem grande cabedal), porque são eles, no fim de
contas, segundo a frase memorável de Rui, “a voz dos direitos legais” do
acusado(7).

IV – Da boa estimação que graves autores fizeram do princípio


processual da amplitude do direito de defesa depõem superiormente
estes dois exemplares:
a) “Só uma luz nesta sombra, nesta treva, brilha intensa no seio dos autos. É
a voz da defesa, a palavra candente do advogado, a sua lógica, a sua
dedicação, o seu cabedal de estudo, de análise e de dialética. Onde for
ausente a sua palavra, não haverá justiça, nem lei, nem liberdade, nem
honra, nem vida” (Ribeiro da Costa, Ministro do Supremo
Tribunal Federal; in Diário da Justiça da União, 12.12.63, p. 4.366);
b) O grande advogado Sobral Pinto, sustentando a tese de que
todo homem tem direito à palavra de defesa, acentuou: “Deus
que tudo sabe e tudo pode, antes de proferir a sua sentença contra Caim,
que acabava de derramar o sangue de seu irmão, quis ouvi-lo, como narra
a Sagrada Escritura, dando aos homens, com este exemplo, a indicação
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irremovível de que o direito de defesa é, entre todos, o mais sagrado e


inviolável” (Pedro Paulo Filho, A Revolução da Palavra, 2a. ed., p.
168).
Tem foro de garantia constitucional e está germanado à plena
defesa o princípio do contraditório, que deve dominar o processo penal.
Consiste na igualdade ou equilíbrio entre as partes, com idênticas
oportunidades para produzirem provas e contradizê-las. Tudo há de
ser feito às claras, na “bochecha do Sol”, como recomendavam nossos
maiores(8), ouvindo-se ambas as partes. Depara seu fundamento na
regra jurídica: “Audiatur et altera pars”. Ouça-se também a parte
contrária.
Nisto do contraditório — ou resposta —, cai a lanço reproduzir
passo antológico de Vieira, em carta à Nobreza de Portugal:
“É cousa tão natural o responder, que até os penhascos duros respondem e
para as vozes têm ecos. Pelo contrário, é tão grande violência não
responder, que aos que nasceram mudos fez a natureza também surdos,
porque se ouvissem, e não pudessem responder, rebentariam de dor”
(Cartas, 1971, t. III, p. 680).
E tendo falado Vieira, o clássico mais autorizado da língua
portuguesa(9), aqui faremos ponto; que nenhuma pena se atreveu
nunca a ir-lhe adiante.

Notas

(1) “Lei, pena do talião, castigo que consiste em fazer sofrer ao delinquente o
que ele faz sofrer à vítima” (Constâncio, Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, 1877, p. 916); “Talião. Deriva-se do adjetivo latino talis,
como quem dissera talis retributio, ou poena talis, porque talião é pena
recíproca, castigo semelhante ao delito, mal igual, e pena tal qual se deu a
outra pessoa” (Bluteau, Vocabulário, 1721, t. VIII, p. 26).
(2) “Que é o que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama desde a terra até
a mim” (Gên 4,10; trad. Antônio Pereira de Figueiredo).
(3) Art. 5º, nº LV: “(…) aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
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(4) J. Soares de Melo, O Júri, 1941, p. 16.


(5) Art. 142, nº I, do Código Penal.
(6) Art. 7º, § 2º, da Lei nº 8.906, de 4.7.94 (Estatuto da Advocacia).
(7) Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10.
(8) Arte de Furtar, 1652, p. 68.
(9) Francisco José Freire, Reflexões sobre a Língua Portuguesa, 1842, p.
10.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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