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educação

possibilidades ou potenciali-
dades: a postura piagetiana
na epistemologia genética so-
bre a gênese da inteligência

Paulo Gomes Lima, Mestre em Educação pela Unicamp e dou-


tor pela FCL-Unesp campus Araraquara, SP

Resumo: O objetivo desse estudo é contribuir para uma compreensão mais


clara sobre a gênese da inteligência, segundo Piaget, se esta é considerada como
um conjunto de potencialidades ou como um conjunto de possibilidades. Com
base em autores que versam sobre a gênese da inteligência, incluindo o próprio
Piaget, verificamos que somente o funcionamento da inteligência é hereditário e
a inteligência na visão piagetiana não é tida como um “potencial a desabrochar”,
mas como um conjunto de possibilidades (maturação orgânica e meio ambiente)
que resultarão na construção da inteligência propriamente dita.
Palavras-chave: Descrição, Possibilidades, Potencialidades, Gênese, cons-
trução e uso da inteligência.

Possibilities or potentialities: Piaget attitude to-


wards the genetics epistemology about the genesis
of intelligence
Abstract: The objective this study is to contribute to a clearer understan-
ding on the genesis of the intelligence, according to Piaget, if this is considered as
a group of potentialities or as a group of possibilities. With base in authors that
turn on the genesis of the intelligence, including own Piaget, we verified that only
the operation of the intelligence is hereditary and the intelligence in the vision
piagetiana, it is not had as a “ potential to blossom “, but as a group of possibilities
(organic maturation and environment) which will result properly in the construction
of the intelligence said.
Key-words: Description: Possibilities; Potentialities; Genesis, construction
and operation of the intelligence.

ACTA Científica - Ciências Humanas 2º Semestre - 2005 17


Introdução vimento, mas no “núcleo funcional”, em outras pala-
Compreender a origem do conhecimento ou vras, as condições necessárias para o funcionamento
como este é formado e transformado no ser humano da inteligência.
consolidou-se na grande preocupação de Jean Piaget, Assis (1998a)1  com muita propriedade acentua
que objetivou por meio de seus estudos abrir trilhas que “o que temos programado geneticamente é o nosso
no sentido dessa compreensão, de forma a contribuir corpo, nossa mente não”.
para uma visão construtiva do sujeito epistêmico, ou
seja, da criança em seu desenvolvimento cognitivo. A concepção piagetiana das estruturas
O objetivo desse estudo é analisar a postura cognitivas inatas
piagetiana referente a inteligência e sua formação: se Para Piaget “não existem (no homem) estruturas
concebida como possibilidade ou potencialidade no cognitivas ‘a priori’ ou ‘inatas’: só o funcionamento da
desenvolvimento cognitivo. Almeja-se contribuir de inteligência é hereditário e só gera estruturas mediante
maneira substancial com um considerável número de uma organização de ações sucessivas, exercidas sobre
leitores que porventura apresentem interesse neste os objetos” (1983, p. 39, ênfase na fonte).
ponto não totalmente clarificado. Depreende-se, em decorrência desses postulados,
O motivo gerador do interesse por este objeto a compreensão de uma epistemologia construtivista,
de pesquisa deu-se por ocasião de uma aula ministrada onde a própria organização da inteligência em formação
pela Profª. Dr.ª Orly Zucatto Mantovani de Assis da é elaborada num construto de possibilidades.
Faculdade de Educação da UNICAMP em maio de Logo, a inteligência não é predeterminada num
1998, quando então foi discutida a gênese do conhe- indivíduo como um potencial a desabrochar, mas o é e
cimento segundo Piaget. deve ser vista e entendida como um conjunto de possi-
Numa breve revisão de literatura procuraremos bilidades internas e que podem ou não se desenvolver
percorrer o itinerário piagetiano sobre a inteligência em contato com o meio.
e sua formação. No enfoque: o desenvolvimento da Os seres humanos não nascem com a estrutu-
inteligência dá-se por meio de possibilidades ou po- ra intelectiva pronta, mas a desenvolvem dentro da
tencialidades? perspectiva das possibilidades. Assis (1998a) afirma
que as possibilidades orgânicas são hereditárias e não
A inteligência é herdada, adquirida ou a inteligência em si, como preconizam os adeptos do
construída? inatismo.
Ao longo do tempo, alguns estudiosos conside- Isto implica considerarmos que se uma mulher X for
raram a inteligência simplesmente como capacidade fecundada com um espermatozóide de Albert Einstein,
herdada, ou seja, que se apresentava potencialmente não necessariamente seu filho será um gênio, pois ele não
programada desde os primeiros momentos da fe- herdará geneticamente a inteligência de seu pai, mas as
cundação, enquanto a experiência ambiental seria possibilidades orgânicas de vir a desenvolvê-la, acrescen-
tão somente o instrumental de subsídio para o tadas naturalmente do meio propício para isto.
desenvolvimento desta ”potencialidade”. Assim, a Entende-se, portanto que a formação da inteli-
hereditariedade patamarizada no meio ambiente seria gência é advinda de seu funcionamento que é here-
o elemento formador do conhecimento, o formador ditário (fator interno) e de estímulos do meio (fator
da inteligência. externo). Por isso nos pautamos pela possibilidade
Ora, essa posição remete-se à concepção inatista do vir a ser, do tornar-se que com certeza começa
por um lado e Eriksoniana de outro, pois conceben- com os primeiros momentos da vida e transcorre
do a inteligência como herdada advoga-se à mesma ao longo dela.
a denominação de potencial que, articulado ao meio
ambiente, gerará o produto final do conhecimento. O ‘a priori’ funcional de Piaget
Percebemos que a palavra potencial (ou poten- Explanando sobre o aspecto funcional das estru-
cialidade) traz consigo a idéia de uma “sementinha”, turas cognitivas, Piaget (1983, p.45) expõe que o orga-
de que a inteligência é pré-formada, necessitando o nismo auto-regula este processo, havendo no decorrer
complemento do meio para se desenvolver em sua dele construções necessárias para o desenvolvimento
totalidade. cognitivo; assim:
Chiarottino (1981, p.58-59) observa que na obra “A auto-regulação, cujas raízes são evidentemente or-
de Piaget o termo “a priori” ou inato não consiste em gânicas, é assim comum aos processos vitais e mentais,
estruturas prontas e dadas desde o início do desenvol-

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É notório e compreensivo que Piaget (1977)
e suas ações têm, além disso a grande vantagem de ser
partisse do princípio de que “o conhecimento vem da
diretamente controláveis; portanto, é nessa direção, e
ação que o indivíduo exerce sobre o objeto. Não é um
não na da simples hereditariedade, que convém buscar
conhecimento que provém do objeto em si mesmo; mas
a explicação biológica das construções cognitivas, tan-
um processo contínuo de novas estruturas, decorrentes
to mais que, pelo jogo de regulações, a auto-regulação
da interação do sujeito com o real: o conhecimento é
é, por sua própria natureza eminentemente construtiva
sempre uma assimilação, isto é uma interpretação feita
(e dialética)”.
através da integração do objeto às estruturas anteriores
Chiarottino reforça este posicionamento infe- do sujeito (p.1-10), que se acomodam, isto é, modifi-
rindo que “o homem nasce com certos funcionamen- cam os esquemas mentais a partir desses (objetos e
tos invariantes: coerência e capacidade de estabelecer informações), propiciando novos conceitos acerca do
relações (núcleo funcional). Esse núcleo, essa organi- objeto. Daí o termo construtivismo.
zação inicial dá origem às categorias da razão e é nesse Galloway (1976, p. 309) observa que a acomoda-
sentido que podemos dizer que aí estão pré-formadas. ção ocorre logo após a assimilação e a nova informação
No entanto, é no contato com o real, por um processo não é apenas aceita e acrescentada a estas estruturas
de assimilação e acomodação, que estas categorias se (assimilação/acomodação); estas se acomodam, ou seja,
estruturam. As categorias da razão resultam, portanto, ajustam-se ou adaptam-se à informação que está sendo
da maturação biológica e da ação do meio. O essencial assimilada, sendo o resultado da acomodação uma es-
a notar é que se a construção de estruturas é possível, trutura modificada do conhecimento e, desta maneira,
isso ocorre porque, antes de tudo, há uma organização, um novo nível de conhecimento. O fator regulador que
um núcleo funcional independente de qualquer experi- favorecerá a estabilidade do desenvolvimento cognitivo
ência, e que permite as primeiras assimilações e depois é a equilibração, que cuidará em manter o equilíbrio en-
as assimilações exigidas pelo meio” (1983, p.60). tre (a) a informação ambiental que está sendo assimilada
Fica claro na perspectiva piagetiana que a inteli- e (b) suas estruturas existentes no conhecimento. No
gência não é inata nem deve ser tida como inteligência que consiste, então a equilibração?
em potencial, todavia como um processo construído A equilibração é definida pela auto-regulação or-
pelo funcionamento das estruturas orgânicas, resul- gânica, em outras palavras a equilibração é um conjunto
tando em possibilidades de vir a se desenvolver, como das reações ativas do sujeito às perturbações externas
enfatizamos anteriormente. (carmichel, 1977, p. 104). Entende-se perturbação
como tudo o que representa um obstáculo à assimi-
Potencialidades ou possibilidades no lação, impedindo que esta se realize, e as regulações
construto da inteligência? como as reações do sujeito às perturbações2 (Assis,
Quanto à potencialidade ou potencial, Piaget frisa 1976, p. 37). De uma forma bem direta e objetiva Assis
sua posição considerando que “esta é a mais perigosa das (Ibid., p. 34) acrescenta que para que haja equilibração,
noções; pois é uma noção aristotélica do tipo ‘ virtude é preciso haver perturbações, desequilíbrios, regulações
dormitiva ’ e que só adquire sentido a partir do momento e compensações; em outras palavras, é preciso haver
em que há medidas (energia potencial, etc.)”. assimilações e acomodações.
Como sabemos a mensuração intelectiva não é Assim, podemos averiguar que a construção das
de fato possível organicamente, desta maneira torna-se estruturas cognitivas no seu aspecto funcional segue
inviável considerar a inteligência como um potencial um conjunto de fatores possíveis dependendo, toda-
latente, que num determinado momento eclodirá. No via, das solicitações ou estimulações do meio no qual
entanto, estudando-a como um conjunto de possibili- o ser humano está inserido, seguindo uma seqüência
dades, estaremos considerando o seu funcionamento invariável e idêntica para todas as crianças e todas as
“a priori” como pré-requisito para o desenvolvimento culturas, ocorrendo através do processo constante de
da mesma, num processo contínuo de apreensões or- equilibração (Assis, 1998b, p. 7-11).
gânicas e, por isso, maturacionais que, com o estímulo Através de todos os argumentos expostos, per-
do meio, possibilitarão o desenvolvimento cognitivo. cebemos que na concepção piagetiana sobre o desen-
É importante atentarmos, portanto, que a inteli- volvimento da inteligência o termo “potencial” não se
gência é formada por estruturas orgânicas funcionais aplica, e sim o termo “possibilidade”, justificando-se
que nascem com o indivíduo, mas que necessitam de por si próprio, uma vez que, passo a passo, todo o
variáveis internas (maturação) e externas (estímulos do conhecimento é desenvolvido e por fim formado em
meio), contribuindo com as possibilidades do desen- construções sucessivas e necessárias no rol da capaci-
volvimento cognitivo.
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dade orgânica do indivíduo e da solicitação do meio. como a realidade em si mesma (que se transforma
Considerando que no organismo ocorrem cons- numa realidade mais complexa e integrada). O sujeito
truções sucessivas e necessárias, o desenvolvimento da conquista a realidade graças a elaboração progressiva
inteligência desse ponto de vista é como uma série de dos seus instrumentos cognitivos (p. 19). Portanto, esta
construções que prolongam a embriogênese e a formação interação só é possível quando articulados o conjunto
do organismo propriamente dito (Piaget, 1977, p.11). das estruturas cognitivas com o meio ambiente, resul-
Vemos que o organismo desenvolverá as construções tando na construção do conhecimento.
orgânicas possíveis e estas em contato com o meio Delval (1997) sustenta que a imagem que Pia-
ambiente darão a inicialização a construção do co- get nos oferece do ser humano é a de um homo faber
nhecimento. de si mesmo, que vai construindo a sua inteligência
Marti (1997) argumenta que é na interação entre ao mesmo tempo que estabelece representações da
o sujeito e o objeto que vão sendo construídos de for- realidade (p. 94).
ma dialética tanto as estruturas internas (instrumentos Este estudo poderia ser resumido e representado
de assimilação cada vez mais elaborados) do sujeito, graficamente da seguinte maneira:

portanto:

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