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Dialética da Consciência na Fenomenologia do Espírito

Esta pesquisa tem por objetivo investigar como a filosofia da consciência hegeliana,
exposta nos cinco primeiros capítulos da Fenomenologia do Espírito, conduz dialeticamente
a consciência ao saber científico, isto é, conceitual, absoluto. No entanto, não iremos tratar do
saber científico concluído, levado à cabo, mas tão somente do caminho que a consciência faz
em direção a esse saber. Por isso, nos limitaremos a examinar a parte da Fenomenologia onde
acredita-se haver uma epistemologia, ou seja, uma indagação sobre como construímos um
saber sobre o mundo sensível, como fazemos a experiência desse mundo. Iremos prezar por
reconstruir a dialética do conhecimento sensível, que faz a consciência, rumo ao saber
conceitual, à consciência de si.

****

1. Introdução - Estrutura e Método da obra

A Fenomenologia do Espírito é uma obra que possui uma série de controvérsias no


tocante a seu lugar no sistema hegeliano. Originalmente concebida para ser uma introdução
ao sistema, seu título inicial era “Ciência da Experiência da Consciência” 1, sendo substituído
por “Fenomenologia do Espírito” durante a impressão2. Uma das causas de tais controvérsias
é a intenção inicial de Hegel de fazer uma introdução ao sistema, mas que no fim acabou por
expor já uma parte do sistema3. Tal fato lança luz sobre alguns pontos que justificam a

1
Encontra-se na primeira edição da Fenomenologia do Espírito, depois do prefácio e antes da
introdução, um frontispício com o título Ciência da Experiência da Consciência (Wissenchaft der
Erfahrung des Bewuβtsein), que foi mantida pelo editor muito provavelmente pela confusão causada
pela mudança de título por parte de Hegel. (McDowell, 2018).
2
NOBRE, M. Como nasce o novo. p. 35. Também John McDowell irá afirmar em seu texto “Qual é o
tópico da Fenomenologia?”: “Sob a pressão de um prazo limite, ele [Hegel] enviou ao editor
segmentos daquilo que estava escrevendo à medida justamente que os acabava, e tais trechos eram
então dispostos para impressão. Assim, os trechos mais antigos já estavam essencialmente definidos
e acabados, mesmo que Hegel tivesse o desejo de revisá-los à luz de pensamentos que lhe
ocorreram apenas depois, ao longo do processo de escritura.” p. 1
3
A Fenomenologia seria o primeiro tomo de uma obra maior intitulada Sistema da Ciência (System
der Wissenschaft), composta, por sua vez, em seu outros tomo, por sistema da lógica, ciência da
natureza e ciência do espírito. HEIDEGGER. Dilucidación de la ‘Introducción’ de la ‘Fenomenología
del Espíritu’ de Hegel.
escolha do escopo desta pesquisa. Como ao longo da pesquisa irei analisar somente os quatro
primeiros capítulos da obra, algumas considerações iniciais devem ser feitas.
Se tomarmos como base a Enciclopédia das Ciências Filosóficas, mais
especificamente o livro III - A Filosofia do Espírito, no qual a Fenomenologia aparece
reestruturada, perceberemos que na maturidade de Hegel a obra é desmembrada do que
convencionalmente é chamado de ‘segunda parte’, isto é, os três últimos capítulos, “O
Espírito”, “A religião” e o “Saber Absoluto”, respectivamente. Tal separação nos permite
situar a Fenomenologia, em suas intenções iniciais, como uma análise mais estrita da questão
da consciência ou, em outras palavras, da experiência (Erfahrung) da consciência, tal como
seu primeiro título. Levando em consideração o texto da ‘Introdução’, que foi o primeiro
texto da Fenomenologia a ser escrito, percebe-se que ele faz referência ao que é considerada
a primeira parte da obra, e que o conteúdo da segunda parte ultrapassa o que se anuncia no
texto da introdução4. Por exemplo, no §5 da ‘Introdução’5 Hegel afirma que a apresentação
tem por objeto ‘somente o saber fenomênico’ e que, portanto, o ponto de vista adotado é o da
consciência natural que caminhará em direção ao saber científico, isto é, filosófico, absoluto6.
Também é importante mencionarmos a ênfase que a ‘Introdução’ dá à necessidade de
se fazer um “exame da realidade do conhecer”7 ou, ainda, das “determinações abstratas do
saber e da verdade tais como se encontram na consciência”8. Pois um dos debates que Hegel
faz nessa parte, como demonstrou muito bem Marcos Nobre9, é com a considerada
‘representação natural’ da filosofia moderna e seus pressupostos10, isto é, o problema
levantado, principalmente pela filosofia de Kant, sobre como o meio que nos utilizamos para
conhecer determinado objeto altera ‘a coisa mesma’, ou seja, o que esse objeto é em si. Em
outras palavras, a ‘representação natural’ estabelece uma condição de impossibilidade entre o
meio e seu fim, como se o meio fosse contrário a seu fim, nos colocando na impraticabilidade
de conhecer ‘a coisa mesma’. O que Hegel irá propor, diante disso, segundo Nobre, é

4
HYPPOLITE, J. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. p. 19 e 20.
5
HEGEL, G.W. F. Fenomenologia do Espírito. p. 72
6
Também podemos citar o final do décimo parágrafo da ‘Introdução’ em que Hegel diz: “sendo o
saber fenomênico nosso objeto, também suas determinações serão tomadas primeiramente tais
como se oferecem; e como foram apreendidas é bem como se oferecem.” HEGEL, G.W. F.
Fenomenologia do Espírito. p. 75
7
Idem.
8
Idem.
9
NOBRE, M. Como nasce o novo. pgs. 109 a 126.
10
No segundo parágrafo da ‘Introdução’ podemos ler: “Pressupõe, por exemplo, representações
sobre o conhecer como instrumento e meio e também uma diferença entre nós mesmos e esse
conhecer, mas, sobretudo, que o absoluto esteja de um lado e o conhecer de outro”. HEGEL, G. W.
F. Fenomenologia do Espírito. p. 70
“mostrar que há outra possibilidade de formular o problema do conhecer, que não se
enreda na exigência de uma crítica prévia nem na consequente figuração do conhecer como
‘instrumento’ ou ‘meio’.”11

Porque “o fato do ‘fim’ ser contrário ao ‘meio’ [...] indica que o ‘contrassenso’ está antes em
pensar em ‘meios e fins’ quando se trata de conhecer.”12’ Desde a introdução, podemos dizer,
acontece uma tentativa de desfazer a, por assim dizer, dicotomia vigente na modernidade
entre sujeito e objeto.
Portanto, levando isso em consideração, explico os motivos do escopo escolhido.
Como o objetivo é tratar da dialética da consciência na formação do conhecimento, aposta-se
que a ‘primeira parte’ da Fenomenologia, ou seja, os cinco primeiros capítulos nos oferece as
etapas dialéticas da consciência propriamente dita. É claro que na segunda parte a
consciência não deixa de cumprir seu papel na elaboração dos saberes do ‘Espírito’, da
‘Religião’ e do ‘Saber Absoluto’, mas dali em diante ela e o saber fenomênico deixam de ser
os objetos centrais do texto13; o que justificaria a divisão artificial da obra em duas partes,
assim como permite visualizar melhor uma mudança em relação às intenções iniciais
manifestadas no texto da ‘Introdução’.
Como o foco da pesquisa é investigar a dialética da consciência em suas relações
empíricas e fazer um exame da realidade do conhecer, daquilo que configura uma
‘epistemologia’ em Hegel, não irei me deter nos capítulos em que o saber é construído a
partir da universalidade conceitual, em vez de partir da singularidade do objeto. Por este
motivo, também o capítulo V, ‘A Razão’, não será abordado na pesquisa, pois lá a
consciência já atingiu a certeza de ser toda a realidade, já foi estabelecida a unidade da
‘consciência’ com a ‘consciência de si’, tal como colocado por Hegel na Enciclopédia14. Nos
limitaremos às primeiras partes na qual a consciência se relaciona dialeticamente com aquilo
que se apresenta em seu campo de sensibilidade, isto é, no campo fenomênico da experiência
da consciência. Dito de outro modo, a pesquisa irá se ocupar de uma fenomenologia da
consciência, dos estágios que a consciência atravessa até descobrir o saber de si mesma.

11
Idem. p. 115
12
Idem.
13
Como apontou McDowell: “No capítulo sobre o espírito, as transições não são mais entre meras
figuras da consciência, mas entre configurações historicamente efetivas da vida humana.” ‘Qual é o
tópico da Fenomenologia?’ p. 16.
14
HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas III - A Filosofia do Espírito. p. 187.
Por último, cabe ressaltar o caráter processual que caracteriza a exposição hegeliana
na Fenomenologia. Veremos a consciência em pleno desenvolvimento em relação dialética
com seu objeto, e aqui encontra-se a importância metodológica de Hegel, que inclusive nos
diz muito a respeito sobre o problema dos pressupostos da ‘representação natural’ da
modernidade em sua concepção dicotômica do conhecer. O texto da ‘Introdução’, em seus
últimos parágrafos, afirma que o próprio caminho que a consciência trilha é a ciência ou, nas
palavras de Hegel, “o caminho para a ciência já é ciência ele mesmo, e portanto, segundo seu
conteúdo, é ciência da experiência da consciência”15. Por isso irei acompanhar esse caminho
passo a passo, uma vez que a ciência parece se encontrar no processo, mais que nos seus
resultados16.

2. Capítulo I - A certeza sensível

Começarei fazendo uma primeira leitura bastante rente ao texto do Capítulo I, “A


certeza sensível”17. A ideia é deixar o texto falar por si.
A consciência diante do objeto (Gegenstand) encontra-se, num primeiro momento, na
certeza sensível (sinnlich Gewissheit). O objeto aparece à ela de forma imediata, essente
(Seienden), diz Hegel. Seu saber não pode ser outro que um saber imediato, receptivo e não
conceitual. Assim, a concretude do objeto que se apresenta diante dela em sua imediatez, faz
com que a certeza sensível apareça como o mais rico conhecimento (reichste Erkentnnis) e
também o mais verdadeiro (wahrhafteste) . No olhar da consciência sensível para seu objeto
ela o tem diante de si em sua plenitude. Tal é o modo como a certeza sensível acredita ter
diante de si a verdade do objeto. Olhamos para um objeto qualquer e sua forma, a riqueza de
seus detalhes, a tonalidade de suas cores nos persuade a enxergar aí sua verdadeira essência,
seu valor para um saber.
Mas, continua Hegel, essa certeza é também a mais pobre. Do que ela sabe apenas
exprime que o objeto é. Sua verdade só expressa o ser do objeto e a consciência se coloca
como puro Eu, ela é um este, e seu objeto, um isto. O Eu enquanto este, ou seja, enquanto

15
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. p. 79
16
Em outras palavras, como colocou McDowell, “Não se trata apenas de que a narração da série de
figuras descreve um progresso até a ciência; a própria narração é ciência, em virtude do caráter
sistemático com que a série se desdobrará.” ‘Qual é o tópico da Fenomenologia?’ p. 15.
17
A ideia é refazer a leitura dos capítulos ao longo da pesquisa, aumentando não só a compreensão
como também a riqueza da interpretação sobre eles.
oposto ao objeto que se mostra ser um puro isto, tem a certeza sensível de seu objeto, mas
essa certeza é vazia porque a consciência nela permanece imóvel, tal como o objeto; em si
mesmos não houve relação, apenas um simples ‘visar’, este meu Eu vê isto, um objeto. Tudo
se passa na imediaticidade entre dois singulares, de um lado o Eu e do outro o objeto. Assim,
não há verdade alguma da certeza sensível, do lado do Eu não há sequer representação
multiforme de um pensar, e a Coisa [Sache], tampouco se apresenta enquanto multidão de
diversas propriedades (mannigfaltiger Beschaffenheiten) , alerta Hegel.
Encontramos aqui o primeiro erro da consciência, mas também seu primeiro passo em
direção à verdade. Ao refletir sobre a imediaticidade dessa relação, a consciência descobre a
verdade da imediaticidade, ou seja, o que parecia imediato é, ao contrário, mediação
(Vermittlung). Hegel diz, “Eu tenho a certeza por meio de um outro, a saber: da Coisa; e essa
está igualmente na certeza mediante um outro, a saber, mediante o Eu”18. Na certeza sensível,
portanto, revela-se dois momentos da relação, um essencial e imediato, que é o objeto; e o
outro inessencial e mediatizado, o Eu, que é um saber sobre o que o objeto é.
Avançando no problema, sempre acompanhando o raciocínio e a letra hegeliana, faz-
se necessário que a consciência questione a própria certeza sensível: ‘o que é um isto, se
inquirido no aqui e agora?’ Hegel nos dá um exemplo: caso nos perguntemos, o que é agora?
Agora é noite. Tal afirmação não se sustenta, descobriremos, pois tão logo o tempo passe tal
afirmação já não irá valer. O que é agora? perguntamos de novo, agora é dia! Em ambos os
casos a resposta se revela ser um não essente, e o agora que se mantém é um negativo em
geral (ein Negatives überhaupt)19: não dia, não noite. O mesmo vale, podemos verificar, no
caso do aqui. O aqui, por exemplo, diz Hegel, é uma árvore. Mas se nos virarmos, essa
verdade se desvanece: o aqui já não é uma árvore, e sim uma casa. O aqui propriamente dito
permaneceu, e tal como o agora é um negativo em geral, não-árvore, não-casa.
A essa negatividade em geral, ou seja, um não isto ou aquilo, Hegel denomina
universal (Allgemeine), uma simplicidade indiferente ao seu redor. A enunciação do sensível,
igualmente, é também um universal: quando dizemos isto, dizemos isto em geral, assim como
isto é, diz o ser em geral. “Isto está caindo”, mas bem poderia ser “Isto está fixo”. A única
verdade, e por verdade Hegel, aqui, parece exigir, com rigor, algo que mantenha sua validade
independente das mudanças circunstanciais, é a universalidade do isto, do aqui e do agora.
Assim, ao perceber que diz o que não vê, a consciência descobre que o verdadeiro da certeza
sensível é o universal da própria linguagem. “Não falamos pura e simplesmente tal como nós

18
Hegel, p. 84.
19
Idem, p. 85
o ‘visamos’ na certeza sensível”20. Isso nos traz consequências curiosas, pois mais do que
declarar a inconsistência entre a palavra e a coisa, ou considerar a coisa mesma inacessível à
consciência, Hegel nos diz que diferentemente de onde nós procurávamos, a verdade da coisa
estava em nossa própria linguagem, o objeto que no início do texto aparecia para a
consciência, já estava, sempre-já mediado pela linguagem, e por isso, segundo Hegel, o mais
verdadeiro é a linguagem:
“nela refutamos imediatamente nosso visar, e porque o universal é o verdadeiro da
certeza sensível, e a linguagem só exprime esse verdadeiro, está, pois, totalmente excluído
que possamos dizer o ser sensível que visamos.”21

É por não dizer o ser sensível que visamos que desde do primeiro instante visamos aquilo que
dizemos. A linguagem, para a consciência, precede o objeto. À parte isso, tudo que nos resta
é o ato de olhar:

“Por isso, não é o que ‘visamos’ como ser, mas é o ser com a determinação de ser a
abstração ou o puro universal. Nosso, ‘visar’, para o qual o verdadeiro da certeza sensível não
é o universal, é tudo quanto resta frente a esses aqui e agora vazios e indiferentes.”22

Assim, mais uma vez, a consciência se depara com uma inversão, aquilo que antes era
o essencial, isto é, o objeto, passa a ser o inessencial de nossa certeza sensível. O essencial é
agora aquilo que no primeiro momento se mostrava como inessencial, isto é, nosso saber do
objeto: “o objeto é porque Eu sei dele”23, afirma Hegel. A certeza sensível, desse modo, foi
deslocado do objeto para o Eu.
O Eu, a partir de então, passa a ocupar a centralidade que antes era ocupada pelo
objeto. O agora é dia porque Eu o vejo, isto é uma árvore porque Eu a vejo. Mas um outro Eu
vê a noite e uma casa, de modo que a verdade que cada Eu enuncia se desvanece uma na
outra. O que não se desvanece é a universalidade do Eu. Tal como antes, esse Eu não é um Eu
específico, mas geral. Quando digo ‘Eu’, digo todos os ‘Eus’. Não conseguimos dizer qual é
esse Eu. Toda tentativa nos levaria de volta para as mesmas dificuldades que encontramos ao
tentar dizer o objeto.

20
Idem, p. 86
21
Idem.
22
Idem.
23
Idem.
A certeza sensível, mais uma vez, faz a experiência de que sua essência está em um
inessencial, isto é, não encontra-se nem no objeto e nem no Eu. Tanto quanto o objeto o Eu
também é um universal. Por isso a certeza sensível encontra sua essência em si própria
enquanto totalidade da relação. Nem em um [o objeto] nem no outro [o Eu], mas toda em si
mesma na medida em que deixa de fazer a separação entre Eu e objeto. Ela readquire a
imediatez dessa relação, e “a verdade dessa imediatez se mantém como relação que-fica-igual
a si mesma, que entre o Eu e o objeto não faz distinção alguma de essencialidade e
inessencialidade.”24 Na superação da dicotomia antes estabelecida por ela mesma, a
consciência na certeza sensível reencontra a imediatez que foi seu ponto de partida.
Nesse ponto o movimento dialético subjacente a todo esse processo vem à tona:
1) a imediatez da certeza sensível que aparece como toda verdade se desvanece diante da
mediação da consciência.
2) A mediação cinde a certeza sensível em duas partes: um Eu que olha e um objeto que
é visto. Mas essa mediação em sua essência não diz nem o Eu nem o objeto, mas sim
o universal da linguagem, que não é nem o Eu nem o objeto. A mediação da certeza
sensível se desvanece na universalidade da linguagem.
3) A negação da imediatez sensível, que foi negada pela cisão entre Eu e objeto, é, por
sua vez, também negada (negação da negação). Com isso, retorna a certeza sensível
em sua imediatez como verdade, mas agora enquanto totalidade de uma relação
universalizada, enquanto movimento que contém momentos diversos.

Paremos, por enquanto, por aqui. Para encontrarmos a verdade de todo esse processo
até agora descrito faz-se necessário que lancemos um olhar retrospectivo sobre esse
movimento. Não só o movimento dialético que se revela merece uma investigação maior
como também cada um de seus momentos.

24
Idem. p. 88

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