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Artigo

Para uma Etnoarqueologia da Cerâmica Mati

José María López Mazz1 Resumo


Como uma investigação realizada com “olhos
de arqueólogo”, este trabalho discute aspectos
teórico-metodológicos da aproximação etnoar-
queológica. Pretendemos, mais além da pura
analogia, apoiar o trabalho de interpretação
arqueológica das sociedades pré-históricas das
terras baixas sul-americanas. Apresentamos in-
formações recolhidas entre o grupo Mati, às
margens do rio Itui em 2000, sobre a fabrica-
ção e uso de recipientes cerâmicos. A análise
ilustra relações sociais ligadas à tecnologia e
à geração de um registro material aldeão das
terras baixas.

Palavras-chave: Etnoarqueologia Mati, cerâ-


mica, arqueologia Amazônica.

Abstract
This investigation, undertaken with an ar-
chaeological gaze, discusses some theoretical
and methodological aspects of the ethnoar-
chaeological approach. This article intends,
beyond simple analogy, to contribute to the
archaeological interpretation of prehistoric
societies of the South American lowlands. It
offers information on the production and use
of pottery by the Mati, obtained at the shores

1
Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação. Universidad de la República. Calle Magallanes 1577,
Montividéo, Cep. 11200. Uruguay. lopezmazz@yahoo.com.ar.

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of the Itui River in the year 2000. The analysis


illustrates social relations connected to techno-
logy and to the production of a lowland village
material record.

Keywords: Mati Ethnoarchaeology, pottery,


Amazonian archaeology.

O presente trabalho expõe informação


etnográfica sobre a fabricação e o uso dos di-
ferentes recipientes cerâmicos confeccionados
pelo grupo amazônico Matis. O principal in-
teresse do trabalho não é, em si mesmo, o de
fazer etnografia Matis, senão o de orientar nos-
so olhar de arqueólogo a um aspecto preciso e
controlado da economia deste grupo: o sistema
de produção e consumo da cerâmica. Ademais,
através da cerâmica podemos realizar também
diferentes leituras sobre a relação entre tecnolo-
Fig. 1- Territorio Matis
gia e sociedade. Esta situação adquire particular
interesse para a Antropologia e a Arqueologia
Sul-americana, preocupadas em aprofundar seu “ainda crua” e demandava aos arqueólogos um
conhecimento sobre a transformação (histórica estudo sobre a cerâmica dos grupos Pano e sua
e cultural) dos sistemas sociais dos caçadores herança Mayoruna.
coletores das Terras Baixas. O trabalho, em sua primeira parte, re-
O grupo Matis foi contatado oficial- toma aspectos teórico-metodológicos próprios
mente pela Fundação Nacional de Ajuda ao da aproximação etnoarqueológica. Na segunda
Indígena (FUNAI/Brasil) em 1976 (Eriksson parte, expõe e discute informação de primeira
1996). Os Matis habitam na aldeia Aurélio, so- mão produzida em campo. O trabalho pretende
bre o rio Ituí, afluente do rio Javari, no Oeste ir mais além da analogia e apoiar nosso traba-
da Amazônia (Figura 1). No momento do con- lho de interpretação arqueológica das formações
tato eram uns 200 indivíduos, porém afetados econômico-sociais que habitaram um pouco
pelo choque bacteriológico, em 1983 restavam mais ao sul, nas Terras Baixas da bacia do rio da
83 vivos. Portanto, qualquer expectativa de so- Prata a partir do IV milênio antes do presente
brevivência como entidade cultural autônoma (López Mazz 2001).
era pessimista (Eriksson 1991, 1996). Contra
todo prognóstico, no ano de 2000 a população
alcan-çou 213 indivíduos. Os Matis são falantes A arqueologia consumindo
de língua Pano e fazem parte do ramo setentrio- etnografia: aspectos teóricos
nal do grupo denominado Mayoruna, contatado As observações arqueológicas e etnográ-
em 1880, época em que foram dizimados por ficas sobre a cultura material têm provocado um
atividades vinculadas à extração de borracha. debate a respeito da pertinência das condições
Em 1990, o etnólogo Philipe Erikson destacava de comparação entre ambas bases de dados (Bin-
que a etnografia dos grupos Pano estava, a seme- ford 1968; Estevez y Vila 1996; Gándara 1990;
lhança do estudo de seus recipientes cerâmicos, Hernando 1995; Politis 1996b; David y Kramer

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2001). O estudo etnográfico de culturas atuais, sinala que o trabalho arqueológico requer um
desde uma perspectiva arqueológica (subdiscipli- nível de teoria substantivo sobre os processos
na da Antropologia, disciplina auxiliar da His- sociais e outro observacional (chamado teoria
tória e método arqueológico), analisa vínculos arqueológica) sobre processos de formação e
entre cultura material e conduta, entre passado transformação de contextos. Para este autor, a
e presente, ao mesmo tempo que desenvolve Etnoarqueologia não é uma nova teoria social
argumentações por analogia (David y Kramer substantiva, ainda que aporte reflexões e princí-
2001:33; Hernando 1995). pios gerais à teoria arqueológica (Gándara 1990).
Pouco a pouco, a arqueologia tem reva- Ressalta-se a importância dos estudos realizados
lorizado o uso analógico das relações entre con- em relação aos problemas de formação e trans-
duta humana e a variabilidade de seus produtos formação dos contextos, isto é, aos problemas
(e circunstâncias materiais). Por este caminho, gerais da teoria arqueológica; porém, adverte
o reconhecimento de uma natureza mais ampla quanto aos riscos do particularismo histórico e
e diversa do “dado arqueológico” associou-se a de que os arqueólogos atuem como etnógrafos
busca de leis específicas do comportamento e aficionados (op.cit).
melhorou o uso da informação etnográfica no Irmhid Wüst (1998:674), por sua vez,
raciocínio arqueológico (Binford 1968; Gándara expõe uma perspectiva que vincula teoria, práti-
1990; Watson et al 1979). ca e ética ao sugerir que as investigações etnoar-
Alguns etnógrafos das Terras Baixas Su- queologica e etnohistórica são importantes para
lamericanas têm reconhecido que seus estudos transformar a investigação arqueológica em uma
não têm sido suficientemente exaustivos em re- ferramenta para a defesa da propriedade indígena
lação à “cultura material” (Lizot 1984). A partir da terra. Este é um elemento importante, em mo-
de uma ótica arqueológica, Politis (1996a:19) mentos em que muitos arqueólogos Sul-america-
entende que “a etnoarqueologia é um tipo de nos assumem a necessidade de uma atividade pro-
etnografia que enfoca alguns aspectos e relações fissional com especificidades históricas próprias
não abordados pelas etnografias tradicionais”. e um compromisso das ciências sociais com um
Estévez e Vila (1996) destacam que a diferença de processo sustentado de descolonização.
objeto de estudo e de método têm gerado um di-
vórcio entre etnografia e arqueologia, marcando
as limitações mútuas na hora de estudar as dife- Virtudes metodológicas
rentes manifestações de um fenômeno, como a O uso da analogia etnográfica não é
“formação social”. Estes autores advertem para um puro exercício de sentido comum e livre as-
o perigo de correlacionar categorias sociais da sociação. Pelo contrário, os arqueólogos, como
etnografia com categorias materiais definidas ar- qualquer outro cientista, devem contrastar siste-
queologicamente, já que uma etnografia descri- maticamente suas hipóteses. A informação etno-
tiva só poderá ajudar a uma arqueologia descri- gráfica permite conceber e testar hipóteses que
tiva, na medida em que perpetua o preconceito vinculam comportamento e cultura material,
histórico-cultural que correlaciona a categoria inspirando modelos que estudam as interações
etnia na etnografia como explicativa ou corres- entre relações sociais e estruturas arqueológicas.
pondente a categoria descritiva de “culturas ma- A informação etnográfica serve para construir e
teriais” na arqueologia (op.cit.18). verificar modelos, porém as proposições devem
Gándara (1990), retomando a argumen- ser resolvidas com hipóteses verificáveis através
tação de Binford (1968), realiza uma avaliação de informação arqueológica (Binford 1968).
conclusiva sobre o uso da analogia etnográfica A analogia etnográfica é um procedimen-
em uma concepção materialista histórica. As- to heurístico para produzir hipóteses, porém o

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mais importante é a história de sua contrastação, histórico depurar a metodologia arqueológica


já que a analogia, como sustenta Gándara (1990), e verificar modelos ou leis gerais do modo de
não é prescindível, senão indispensável para a produção caçador coletor. A partir de uma defi-
inferência arqueológica. A partir do reconheci- nição de “traços essenciais” no interior de uma
mento de uma “analogia etnográfica orientado- mesma cultura (Yamana), buscaram ver como
ra”, assume-se tanto para o passado como para estes ficavam materializados no registro arqueo-
o presente, uma relação estreita entre atividade lógico e etnohistórico. A arqueologia do Canal
humana e contextos materiais. Para Gándara (op. de Beagle tem tirado bom proveito da infor-
cit.), o trabalho analógico depende da relevância mação etnográfica e etno-histórica, ao facilitar
e do grau de homogeneidade das propriedades os estudos da organização espacial dos assen-
compartilhadas que atuam permitindo a projeção tamentos (e das unidades habitacionais) e da
do contexto de referência ao contexto do objeto. singular “adaptação” humana àquelas latitudes
A lógica deste procedimento é similar a da amos- (Piana et al. 1992).
tragem estatística que enfatiza a homogeneidade Também na Terra do Fogo, Legoupil
das unidades de amostragem. (1996) assume que a informação dos povos atu-
De Boer y Lathrop (1979) assinalam ais é relevante na interpretação dos povos do
que existe isomorfismo entre comportamentos passado. Partindo da técnica de escavação “paleo-
humanos e as representações arqueológicas de- etnográfica”, proposta por Leroi-Gourhan (1957),
rivadas do “registro” material. Portanto, impor- e definindo os “elementos objetivos”, comparou
ta observar o comportamento e seus produtos, a organização espacial de um acampamento
tratando de especificar a relação entre ambos. caçador coletor patagônico da época pré-histórica
Como destacam estes autores (op. cit.), o in- (aproximadamente IV milênio AP) com outro de
teresse da Etnoarqueologia tem relação com a época moderna. Com um estudo detalhado das
possibilidade de documentar, através da relação “variáveis objetivas” do registro arqueológico,
dialética entre atividade e produto, a passagem Legoupil (1996) apóia a interpretação funcional
do objeto desde seu contexto sistêmico compor- na analogia etnográfica e conclui reconhecendo
tamental contemporâneo (sensu Schiffer 1972) e a influencia do determinismo ecológico e da
sua incorporação ao registro arqueológico. estrutura social na organização espacial dos
Os estudos sobre o grupo amazônico acampamentos.
Nukak orientam sua análise à subsistência, ao Na região amazônica, estudos atuais
assentamento, à tecnologia e à mobilidade for- que integram informação arqueológica e etno-
rageira dos caçadores da selva tropical (Politis, gráfica permitem discutir os estereótipos neo-
1996a, 1996b). A mobilidade não parece ser pro- coloniais de marginalidade ecológica e cultural
duto da baixa produtividade ecológica (como tradicionalmente atribuídos às sociedades das
foi sustentado). Pelo contrário, constitui uma Terras Baixas (Steward 1946). Neste sentido, o
estratégia original de gestionar os recursos que grau de desenvolvimento social, a demografia,
se apresentam concentrados em dadas partes do os padrões de assentamento e a mobilidade eco-
território, movendo-se os Nukak para produzir nômica que haviam sido propostos vêm sendo
(Politis, 1996a). Estas investigações têm dado questionados a partir de investigações que arti-
novo impulso ao estudo da mobilidade caça- culam informação etnográfica e arqueológica de
dora coletora pré-histórica, realizado a partir de primeira mão (Heckemeberger et al. 1999; Wüst
contextos materiais e da caracterização de assen- y Barreto 1999). Para entender os processos de
tamentos. aculturação no Brasil Central, Irmhild Wüst
Estévez e Vila (1996), trabalhando na (1998:674) propõe orientar o olhar arqueoló-
Terra do Fogo, buscaram através do estudo etno- gico e etnográfico aos levantamentos regionais

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exaustivos, com especial atenção para a morfo- cerâmica. As imagens e a descrição sobre a fun-
logia dos sítios, os padrões de assentamento e a ção dos recipientes cerâmicos que aqui se expõe
variabilidade espacial intra-sítio. são produto de entrevistas e observações reali-
zadas nas diferentes áreas de atividade e com a
Coleta e processamento colaboração de diferentes “informantes chave”.
Na aldeia Aurélio obteve-se informação “loca-
dos dados cional” que permite realizar uma análise espacial
As observações foram realizadas entre sobre a localização dos diferentes recipientes na
junho e julho de 2000 na aldeia Aurélio sobre aldeia. Tais observações puderam ser contrasta-
as margens do rio Ituí. Prestou-se especial aten- das logo na visita a uma aldeia abandonada (há
ção ao registro daqueles aspectos sociais que mais de cinco anos atrás) do Igarapé Boiadeiro,
apresentam um interesse direto para o trabalho lugar onde o grupo habitava anteriormente, no
arqueológico: economia, mobilidade, ocupação momento do “contato”.
do território e tecnologia. Nesta ocasião apre- Para conhecer os aspectos tecnológicos,
senta-se uma base de dados relativa a tecnologia acompanhamos e registramos as diferentes etapas

Fig. 2 - Senhora Shari no seu lugar de trabalho

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do trabalho da Senhora Shari, mulher responsável cerâmicas (Pintada e Incisa) (Neves, 2005). A
pela produção dos objetos cerâmicos (Figura 2). informação coletada neste contexto etnográfico
A informação obtida foi traduzida em mapas Matis pretende servir de referencial específico
distribucionais de maneira a representar a orga- e válido para o trabalho de investigação
nização e a distribuição espacial das zonas de arqueológica sobre assentamentos pré-históricos
produção e de consumo dos diferentes objetos de grupos caçadores agricultores (ceramistas)
cerâmicos. que ocuparam as Terras Baixas Americanas
do norte e leste do Uruguai e do sul do Brasil
O objetivo e a justificativa (López Mazz 2001).

deste trabalho A produção


Em primeiro lugar, este trabalho tem va-
lor em relação ao estudo das sociedades amazô- da cerâmica Matis
nicas atuais, já que aprofunda o conhecimento A produção da cerâmica Matis envolve
dos grupos Mayoruna através de uma aproximação conhecimento e trabalho de mulheres. A confec-
à “facção política Matis” (Erikson 1996:19). Este ção é realizada em um lugar especializado para o
trabalho busca melhorar nossa compreensão da trabalho artesanal que se situa periférico a aldeia
variabilidade que apresentam as diferentes asso- (Figura 2). Os conhecimentos sobre a manufa-
ciações de restos materiais (e outros vestígios) que tura são transmitidos por linha feminina e isto
constituem o testemunho da produção social de constitui um dos aspectos visíveis da divisão se-
grupos caçadores coletores horticultores das Ter- xual do trabalho nesta sociedade. O objeto de
ras Baixas Sul-americanas, onde habitualmente trabalho está representado pela argila que se ex-
desenvolvemos nosso trabalho de arqueólogo. trai das barrancas dos cursos de água próximos.
Especialmente, buscamos entender os Esta argila é misturada logo com cinzas da casca
padrões espaciais internos da aldeia através do de uma árvore chamada müi (Figura 3). Este an-
estudo do deslocamento espacial das atividades tiplástico de uso habitual pelos povos da Ama-
de fabricação e de uso da cerâmica, nos dife- zônia é conhecido como cariapé. Previamente a
rentes lugares ou âmbitos da sociedade Matis. mistura com argila, as cinzas são filtradas em
As observações realizadas pretendem contex- um coador chamado sekte (Eriksson 1999).
tualizar socialmente as atividades vinculadas à A modelagem dos recipientes realiza-se
cerâmica Matis e, ao mesmo tempo, apoiar as através da confecção de “roletes” que são uni-
inferências e interpretações ao nível do registro dos e alisados com uma concha e logo com
arqueológico. uma semente de fruto de palma (Figura 4). O
Um objetivo específico é explorar os tratamento das superfícies de alguns recipientes
alcances metodológicos (epistemológicos e recebe finas camadas de barbotina para lhes dar
heurísticos) do trabalho arqueológico. Outro acabamento.
é o de desenvolver instâncias de investigação Os recipientes Matis são secados a som-
que efetivamente contribuam para melhorar as bra durante um dia e logo são cozidos. Primei-
relações, às vezes pouco claras, que vinculam ro em um fogo suave onde são colocados sobre
antropólogos e arqueólogos com seus objetos de os troncos. Finalmente se cozinha em um fogo
estudo. Se bem que nosso âmbito de trabalho forte, onde são colocados no interior da lenha
habitual não é a Amazônia, esperamos que a (Figura 2).
informação produzida apóie o debate atual A força do trabalho responsável pela
em torno do povoamento pré-histórico da manufatura cerâmica está representada por
região, particularmente em relação às tradições mulheres. Não obstante, não vimos meninas

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Fig. 3 - Antiplástico vegetal mui (cariapé)

Fig. 4 - Concha e semente de palma usadas como ferramentas

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aprendendo esta manufatura. Pudemos apreciar (cultivados e coletados) e de animais caçados


incidentalmente a presença de meninos e anci- (fervidos). A realização de cerimônias é o
ãos que estavam no lugar de trabalho da artesã. momento para o uso dos recipientes maiores
Eles cooperaram em assegurar a lenha, porém a de tipo “comunitário” e de outros pequenos
manutenção e controle das fogueiras usadas no usados para beber ou vinculados à tatuagem.
processo de fabricação são uma atividade intei- As cerimônias são uma oportunidade para a
ramente a cargo da artesã. fabricação de máscaras de alto valor simbólico.
As circunstâncias e/ou o momento no No contexto cerimonial masculino utilizam-se
qual a artesã se põe a fabricar recipientes está também “trombetas” e recipientes para o “curare”.
marcada pela necessidade de reposição de peças. O desejo de realizar intercâmbios fora do grupo
Os recipientes cerâmicos são meios de produção é outra razão, além do consumo no interior do
eficazes no seio da economia doméstica, como grupo, para produzir peças cerâmicas.
utensílios para o processamento de vegetais

Fig. 5 - Tipologia de formas cerâmicas

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Tipologia e Função O quarto tipo de recipiente (D1) é


pequeno, com asa e lhe chamam shuma. Essa
dos Produtos Cerâmicos espécie de colher ou xícara é usada para beber
As formas das vasilhas, suas dimensões e individualmente em festas ou durante os ritos
o uso que se faz delas relacionam-se com a utili- de iniciação. No contexto de consumo de chicha,
dade que apresentam, tanto na produção, como ao recipiente se chama nishkete, enquanto na ce-
no consumo dos alimentos. A seguinte tipologia rimônia da bebida tachik (cerimônia masculina
(Figura 5) expressa um cruzamento entre a in- associada à caça) seu nome muda para eushkete
formação morfológica e métrica proveniente de (Erikson 1990:59). O recipiente shuma mede
nosso registro e aquela recuperada durante as en- aproximadamente 13 cm de diâmetro e 5 cm de
trevistas realizadas nos diferentes âmbitos de uso. altura.
Matzum é o nome genérico usado para Um quinto tipo corresponde aos reci-
recipiente cerâmico. O primeiro tipo (A) corres- pientes globulares sem gargalo (E1, E2) (aproxi-
ponde aos recipientes grandes (norapa) (aproxi- madamente 18 cm de diâmetro máximo e 22 cm
madamente 50 cm de diâmetro e 30 cm de altu- de altura), usados para armazenar água (waca).
ra), denominados norapa matzum e usados para as São denominados waca matzum, ainda que não
festas e cerimônias, onde se preparam as bebidas sejam os únicos usados para este fim. Uma va-
cerimoniais a base de milho, banana ou fruto da riedade é utilizada como forma base para a fa-
palmeira de buriti. Também durante as festas se bricação da trombeta cerimonial (ou buzina na
cozinha carne para muitas pessoas nestes reci- literatura), chamada matzmuma (E3). Esta trom-
pientes (Erikson 1990:57). beta é fabricada a partir de um recipiente do
O segundo tipo (B) corresponde aos reci- tipo anterior (E) ao qual se perfura o fundo e se
pientes de dimensões medianas, matzum propria- adere um apêndice cerâmico e logo um bambu
mente ditos (aproximadamente 30 cm de diâmetro pelo qual se sopra. Foi observado seu uso para
e 15 cm de altura), usados nos fogões dos espaços convocar aos homens à cerimônia da bebida ta-
unifamiliares para cozinhar carne (macaco, porco tchik e a toda aldeia durante a festa do mariwin.
do mato, anta, tartaruga e peixe) e plantas domesti- Finalmente, um sexto tipo original
cadas (mandioca, “wymna” e milho). de produto cerâmico corresponde às máscaras
Um terceiro tipo de recipiente é de me-
nores dimensões (C) (aproximadamente 16 cm
de diâmetro e 7,5 cm de altura) e lhe chamam
matzum baku (pequeno), usado durante o consu-
mo de alimentos (C1) (carne, tubérculos e água).
Alguns são usados para o trabalho artesanal (arma-
zenamento de contas de colar). Um tipo especial
está representado pelo recipiente que se usa para
guarda o curare (beshó) (C2) (15 cm de diâmetro e
9,5 cm de altura). Este recipiente caracteriza-se por
um acondicionamento vegetal de proteção que ser-
ve para tapá-lo e conservá-lo. Uma variedade de
recipientes pequenos (C3) (12 cm de diâmetro
por 4 cm de altura) constitui o que denominam
anchán, usado para guardar as espinhas com que
se realizam as tatuagens cerimoniais (musha) e Fig. 6 - Shobo, casa comunal
sua função lhe confere caráter ritual.

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cerimoniais para a festa tradicional do mariwin femininos. Um conjunto de recipientes usados


(F) (17 cm por 12 cm), chamadas mariwin maschó. na cerimônia masculina do tchatchik localiza-se
Estas máscaras cerimônias reproduzem os traços no nantan, espaço central do shobo reservado aos
faciais (tatuagens e escarificações) próprios da homens.
identidade Matis. Sua fabricação se realiza a par- No abrigo periférico usado para a con-
tir de um recipiente pequeno ao qual se aplicam fecção de cerâmica, localizam-se alguns recipien-
apêndices para modelar as orelhas, a boca e o tes pequenos (C1), usados na confecção de con-
nariz. Finalmente, realiza-se o motivo musha que tas de colar, e outros para beber água neste lugar
os próprios Matis levam tatuado no rosto. durante o trabalho (C1 e E1).
A localização de fragmentos cerâmicos
A Distribuição Espacial de recipientes quebrados vincula-se a locais de
trabalho como o de plantio (onde se leva água
da Cerâmica na Aldeia Matis para beber) e aos riachos e caminhos. Em todos
De nossas observações surge que os ti- os casos, as observações realizadas correspondiam
pos cerâmicos usados em espaço domésticos cor- a produtos de acidentes durante o transporte de
respondem a vários tipos: para cozinhar carnes água à aldeia ou durante os trabalhos agrícolas.
e vegetais (tipo B), relacionados ao artesanato e Finalmente, pode-se observar algumas si-
ao ato de comer (tipo C1) e para acondicionar tuações de reciclagem de fragmentos de grandes
curare (tipo C2), água (tipo E2), chuma (tipo D) e vasilhas (tipo A) para realizar fogos domésticos em
anchán (tipo C3). algumas casas com piso de madeira (takpan shobo).
Estes espaços domésticos estão constitu-
ídos por uma família nuclear composta por um
homem e uma a duas mulheres, várias crianças
Possibilidades
e algum membro próximo (tio(a), sogra, etc.). O de uma etnoarqueologia
shobo (Figura 6) comunal subdivide-se nestes es- da cerâmica Matis
paços unifamiliares, nos quais se dorme, realiza- Parece ser consenso que a Etnoarqueolo-
se o processamento de alimentos e onde as cerâ- gia é uma interface disciplinar que possibilita uma
micas estão associadas a um fogo cuinário, com metodologia arqueológica útil e que se tem obtido
acondicionamento (fossa, estrutura de estacas) e maior eficiência e controle das observações em as-
reutilização (Figura 7). Fazem parte destes con- pectos relativos à subsistência, aos assentamentos e
textos domésticos alguns recipientes pequenos à cultura material. Não obstante, como foi desta-
(tipo C), usados pelas mulheres na confecção de cado na introdução desta publicação, as melhores
artesanato (contas de colar, cordas) e pelos ho- possibilidades da Etnoarqueologia devem ser esti-
mens para armazenar curare. madas para além da própria analogia.
Por outro lado, dentro da casa comunal, Para avaliar as possibilidades de uma
porém em um espaço substancialmente diferente, etnoarqueologia da cerâmica Matis partimos
nossas observações revelaram cerâmicas de uso da convicção de que o trabalho arqueológico
exclusivo no âmbito cerimonial do shobo, pró- precisa de uma epistemologia que focalize fun-
ximo ao nantan, que correspondem aos seguintes damentalmente o trabalho, as relações sociais
tipos: A1 e A2 (norapa matzum), E3 (matzuma), de produção e a própria materialidade de seus
E2 (guardar água) e D (chuma). produtos (entre outros ver Bate 1998; Estevez y
Em grande medida, a distribuição espa- Vila 1996; Vicent 1998). É interessante o fato de
cial da cerâmica cerimonial está associada à di- que a Etnoarqueologia também contribui para
visão sexual e a organização do trabalho, geran- aprofundar esta perspectiva materialista, ao
do uma relação direta entre recipiente e espaços ilustrar os aspectos imateriais (sociais, comuni-

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Fig. 7- Plano do shobo com fogos domésticos

cacionais, religiosos, etc.) que constituem a face que apóiam a interpretação dos contextos ar-
oculta da materialidade. Desta maneira, ajuda-se queológicos em termos de áreas de atividade.
efetivamente aos arqueólogos, dando-lhes a co- Isto permite também se aproximar, por inferên-
nhecer situações culturais e condutas concretas cia, ao número de pessoas e as relações sociais
de formação do registro, no lugar de deixá-los vinculadas à produção, à circulação e ao consu-
imaginá-las livremente, em abstrato. mo destes produtos.
Entre outras coisas, pode-se assinalar Outra potencialidade se dá em relação
como elemento positivo que o referencial Matis à análise comparada da organização espacial do
presta bom serviço para o estudo de contextos assentamento Matis e o da estrutura dos sítios
arqueológicos nos quais aparecem imersos os ar-queológicos das Terras Baixas Sul-americanas,
produtos cerâmicos. O chamado “tipo cerâmi- já que aporta um modelo específico das socieda-
co”, suas dimensões, freqüência e associações des caçadoras agro-ceramistas. De fato, além dos
com outros elementos do registro permitem a modelos referenciais Nukak (Politis 1996b) e
elaboração de tipologias e hipóteses de trabalho Yamana (Vila y Estevez 1996), usados no estudo

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de caçadores coletores pré-históricos que protago- cerimônias masculinas. Os recipientes maiores


nizaram o povoamento americano e as primeiras associam-se à produção feminina de bebidas
etapas de sua colonização (do XIII ao VI milênio cerimoniais (e, eventualmente, comida), porém
AP), a aldeia Matis oferece um modelo específico também ao âmbito cerimonial maior e mais
para o estudo de algumas formações econômico- amplo de todo o grupo (festas do mariwin e
sociais substancialmente diferentes e cronologica- capivara) onde se atualizam a organização social
mente posteriores ao VI milênio AP. e a identidade grupal. A localização destes
No caso dos grupos caçadores coletores, recipientes está associada ao corredor central da
o modelo de assentamento seria do tipo con- casa comunal, elemento que simboliza o rio e
centrado ou agregado, com várias atividades em ordena tanto o universo, como a vida Matis. O
um mesmo espaço. Por outro lado, no exemplo consumo individual está marcado pelo emprego
caçador agricultor o modelo seria do tipo de- do recipiente denominado chuma, um copo ou
sagregado ou desconcentrado, com áreas de ati- colher de cerâmica com a qual necessariamente
vidade especializadas, dispersas e desconectadas, deve-se beber tanto o chatchik, como a cerveja
em um assentamento de maior extensão espacial de milho (uma).
e inserção territorial. Em termos arqueológicos e partindo do
Da variabilidade arqueológica cerâmica referente Matis, esperamos poder identificar em
explicada analogicamente em termos de produ- nossos sítios áreas especializadas de fabricação de
tos de padrões de conduta específicos, podemos objetos cerâmicos, a partir de contextos onde se
inferir diferentes tipos de relações sociais. Des- possa diagnosticar a associação singular entre ma-
te modo, os espaços de produção artesanal, de térias primas (argila, antiplásticos, corantes), fer-
consumo doméstico e de consumo cerimonial ramentas, fogo e os próprios vestígios cerâmicos.
adquirem fisionomia própria e podem inspirar Também partindo dos mesmos referenciais, pode-
hipóteses de trabalho desde o contexto “com- se inferir contextos domésticos unifamiliares atra-
portamental” observado (dinâmico e sistêmico) vés da associação entre estruturas de combustão,
até o cenário de sua contrastação no registro ar- recipientes de tamanho e forma padrão, diversas
queológico (estático e singular). ferramentas (armas de caça, etc) e artesanatos (re-
Os padrões recorrentes de associação de cipientes pequenos, contas de colar, cordas), com
objetos arqueológicos permitem (apoiados na marcas de postes. São específicos destes contextos
analogia Matis) inferências em termos de áreas de domésticos a presença de elementos estruturais
atividade especializada e de atividade de gênero. da habitação comunal tradicionalmente identifi-
Com efeito, a formação econômica e social Matis cados como “marcas de postes”.
parece fortemente marcada pela divisão sexual A identificação destes contextos domés-
do trabalho, que de maneira dialética se opõe. ticos adquire particular relevância para a arque-
Por um lado, o trabalho feminino de produção ologia das Terras Baixas. De fato, a recorrência
de recipientes e de processamento doméstico destes contextos e sua associação espacialmente
de alimentos; por outro, o consumo masculino contínua permitiriam a alguns arqueólogos afir-
cerimonial de objetos (máscaras, recipientes de mar que se tratam de “casas comunais”, no nos-
bebida para ritos masculinos, curare, trombeta). so caso o shobo Matis (porém também a maloca
As relações de parentesco também se Guarani). Estas estruturas tradicionalmente co-
associam de alguma maneira à produção da varia- nhecidas pela etnografia e arqueologia america-
bilidade arqueológica. Elas primam no espaço na como “long houses” tem correspondido à prova
de consumo doméstico, enquanto as relações de por excelência capaz de identificar o advento das
cooperação extrafamiliares dominam entre os sociedades “segmentarias”, mais numerosas e se-
companheiros de caça que compartilham várias dentárias, as “well planed villages” (Dillehay 1996)

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Para uma Etnoarqueologia da Cerâmica Mati

ou as “aldeias de agricultores” (Iriarte 2004). Isto da produção econômica e do consumo cotidia-


adquire importância para nossa zona de traba- no. A aplicação de técnicas analíticas (ácidos
lho arqueológico e para a investigação sobre os graxos, silico-fitolitos, lâmina fina, etc) podem
conjuntos de “cerritos” (estruturas em terra), em produzir dados de utilidade complementar e
particular as estruturas de forma alongada (long construir uma linha independente de informa-
houses?). A utilidade da analogia Matis na interpre- ção neste tema.
tação destas estruturas em terras, típicas das Terras Convém ter presente o proposto por
Baixas, deve, no entanto, estar acompanhada por Fabíola Silva (2000:226) que sugere melhorar
um trabalho “fino” de escavação e interpretação as tipologias e as classificações de artefatos des-
de “pisos de ocupação” e reconhecimento de ele- contextualizados. O limite dos benefícios de
mentos estruturais, sem os quais a analogia não uma Etnoarqueologia da cerâmica Matis pode
dispõe, a nosso entender, do controle necessário. situar-se, então, na identificação e interpretação
Por outro lado, os contextos cerimoniais de alguns contextos e/ou alguns objetos isola-
parecem possíveis de ser inferidos a partir de for- dos como a cerâmica usada eventualmente nos
mas cerâmicas excêntricas (máscaras e trombetas) abrigos periféricos para confeccionar curare ou as
e/ou de recipientes de grandes dimensões. Os máscaras enterradas nos rituais.
elementos cerâmicos isolados poderiam também É desejável sempre uma leitura atenta
receber uma atenção particular a partir desta pers- dos processos de formação de sítio, incluídos
pectiva, segundo o defendido por Silva (2000). Esta aspectos tafonômicos e pós-deposicionais, de
já seria uma situação um pouco mais complicada maneira a controlar as limitações e melhorar as
de estabelecer com certeza em campo, ainda que os possibilidades do método. No mesmo sentido,
contextos funerários sejam sugestivos. convém ter consciência da escala das superfícies
As diferentes instâncias nas quais ope- que os arqueólogos investigam (escavações) para
ram a Etnoarqueologia e a analogia controlada poder entender melhor as áreas de atividade.
podem co-variar entre si, articulando um res- Como podemos ver, as melhores possi-
paldo factual mais amplo ao conjunto da inter- bilidades de uma Etnoarqueologia da cerâmica
pretação arqueológica. Isto permitirá entender Matis estão na observação controlada da materia-
melhor a relação entre tipos cerâmicos, suas di- lidade nos diferentes espaços da sua produção
mensões, sua redundância, sua disposição espa- social. Os aspectos metodológicos não podem,
cial e sua relação relativa com outros elementos como já dissemos, perder de vista os aspectos
do registro. imateriais que constituem a materialidade do
objeto de estudo.
Os limites de uma Os estudos etnográficos ilustram que
as tecnologias, ademais de suas contingências
etnoarqueologia econômico-sociais e materiais/adaptativas, es-
da Cerâmica Matis: tão imersas em um conjunto maior de relações
Sem abandonar as convicções sobre práticas e simbólicas que as sociedades estabele-
a utilidade de uma teoria substantiva de tipo cem com a natureza (Descola 2002, Silva 2000).
materialista e das virtudes de um referencial Deste modo, a produção material constitui ins-
Etnoarqueológico Matis, devemos assinalar, no tâncias polissêmicas que codificam e comuni-
entanto, a possível existência de alguns contex- cam relações sociais e conteúdos ideológicos,
tos cerâmicos, difíceis de reconhecer ou de “in- pelo que resulta perigoso criar uma separação
terpretar” na medida em que os vínculos que os taxativa entre os modos como o ambiente é
situam em relação ao registro arqueológico não usado e as formas de representação que lhe são
podem ser reduzidos exclusivamente a aspectos dadas (Descola 2002; Politis 2000; Silva 2000).

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Mazz, J. M. L.

Um exemplo disto é o fato de que a Conclusões


cerâmica Matis ser um suporte válido sobre o Para concluir, cabe reafirmar o reconhe-
qual se expressa ou se comunica informação cimento positivo do valor metodológico dos es-
de distinta ordem social. Em um caso, trata da tudos etnoarqueológicos e sua utilidade para os
identidade feminina, associada estreitamente à arqueólogos que assumem a responsabilidade de
produção e uso de recipientes. Outra circuns- interpretar e explicar, através do registro arqueo-
tância é a cerâmica como suporte da identidade lógico, os modos de produção e de reprodução
Matis, associada a alguns recipientes específicos social das populações americanas pré-históricas.
de uso masculino (máscaras, trombetas, curare) A etnoarqueologia, mais além da analogia, pres-
e, particularmente, à decoração incisa com o ta singular serviço já que permite melhor contro-
motivo musha, presente em quase todos os reci- lar a elaboração das representações arqueológi-
pientes. Isto pode ampliar em demasia a mar- cas e suas possibilidades de comparação. Isto dá
gem à arbitrariedade da relação entre significado mais resolução às generalizações e às inferências
e significante que o arqueólogo atribui ao “fato e, portanto, maior ajuste às conclusões finais as
arqueológico”. quais chegam os estudos.
Esta situação vincula-se ao já advertido A etnoarqueologia, e neste caso a etnoar-
por Estevez e Vila (1996), os quais assinalam o queologia da cerâmica Matis, apóia a interpreta-
perigo de vincular etnicidade e relações socias ção da variabilidade arqueológica, tanto no tem-
com cultura material. Porém, no caso Matis, é po, como no espaço. Em nosso caso concreto,
fato que a produção da cerâmica dá suporte permite melhor entender as generalizações que
à identidade grupal. Esta limitação, apesar do estão na base da elaboração das chamadas “tradi-
exemplo Matis, tão pouco invalida a crítica ge- ções cerâmicas” e como os aspectos comuns em
ral realizada às interpretações difusionistas e nível técnico e morfológico-funcional se articu-
histórico culturais que exageraram no uso da lam com elementos decorativos, distintivos de
similaridade cerâmica. Não obstante, o exem- valor político. Se bem que tenhamos em conta a
plo da cerâmica Matis representa uma limitação advertência clássica sobre os perigos de relacionar
natural desta própria crítica. estilos cerâmicos e sociedade, concordamos com
A cerâmica Matis contribui ademais Irmhild Wüst (1999:312) que às vezes nos reper-
para reforçar as relações sociais e a identidade tórios cerâmicos pode-se reconhecer matrizes cul-
social feminina/masculina. Como assinala Silva turais, assim como processos de simbioses sociais
(2000), citando a Regina Miller e a Lux Vidal, expressadas na homogeneização estilística.
a reprodução social e a transmissão cultural Resulta interessante reconhecer que a re-
servem-se, entre outras coisas, da confecção e de- lação produção/consumo vinculada à cerâmica
coração dos objetos, ao mesmo tempo em que a atravessa, de alguma maneira, uma organização
cultura material é usada para definir identidades social altamente marcada pela divisão sexual do
sociais e transmitir bens e prerrogativas entre trabalho. A partir desta perspectiva, a produção
grupos de parentesco. A cerâmica arqueológica, de recipientes e seu uso cotidiano ilustram o pa-
em alguns casos, seguramente não foge a esta pel específico das mulheres na reprodução social
situação e os padrões de sua variabilidade no re- no marco da economia doméstica. Em contras-
gistro podem ter estado pautada neste sentido. E te, o vínculo masculino com a cerâmica se situa
aqui se abre uma nova linha de trabalho, onde a fundamentalmente no âmbito cerimonial (ceri-
Etnoarqueologia se anuncia como um caminho mônias tribais e de grupos corporativos de caça),
válido para explorar. contribuindo tanto à integração social, como à
identidade e reprodução ideológica.

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Para uma Etnoarqueologia da Cerâmica Mati

Para finalizar, queremos sublinhar as Agradecimentos


possibilidades da cerâmica Matis enquanto referen- A Gonzalo Arijón e a Philippe Erikson.
cial válido para entender melhor a estrutura dos A Shari, Kanika e a Binán. A Adriana Dias e à
assentamentos dos grupos agricultores das Terras Sociedade de Arqueologia Brasileira.
Baixas, já que assinala claramente áreas domésticas,
cerimoniais e de trabalho artesanal. Neste sentido, Artigo submetido à Revista da SAB em
realiza-se uma contribuição positiva ao estudo ar- abril de 2008. Aprovado em junho de 2008.
queológico da organização social, na medida em
que o uso do espaço nos assentamentos humanos
é particularmente sensível às relações de produção.

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