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Crime, Castigo e Erro Judiciário

I– Ainda que Deus tenha dado ao homem, único entre todas as


criaturas, porte ereto, com preceito de contemplar os céus e fitar os
olhos nas estrelas, como em elegante ritmo cantou o poeta(1), são
porém mais que muitas as vezes em que, deslembrado de sua augusta
predestinação, abdica da própria dignidade e, insensato, inclina-se
para a terra. E, o que é mais, obrando já com soberba desconsideração
das regras do convívio social, arroja-se perdidamente à carreira dos
delitos.
Aí, como a organismo doente que lhe importa curar, entra o
Estado a aplicar-lhe sua medicina; e o estipêndio do crime sabe-se que
é, pelo comum, o castigo ou pena.
Posto se proclame, e com alguma verdade, que a história da
pena é a de sua paulatina abolição, não há entretanto eliminá-la do
corpo das leis repressivas, que isto implicaria retorno da civilização à
barbárie(2).
Mas seu caráter não é só aflitivo, ou de retribuição pelo mal
cometido; é, sobretudo, o fim da pena reeducar o delinquente pela
disciplina da vontade, prática da virtude e amor do trabalho, este o
principalíssimo dos fatores de promoção humana(3).

II – De ser a pena um imperativo legal não procede, contudo, deva


infligir-se ordinariamente em grau extremado. Ao invés, nisto de
imposição de castigo deve-se atender sempre à moderação.
As penas de duração longa padecem de inconveniente
conspícuo, uma vez que, na conformidade das palavras do ilustre Juiz
João Baptista Herkenhoff, “retirariam dos réus todo sentido de esperança: por
mais hediondos que tenham sido os crimes praticados, esse sentimento não pode
ser eliminado do homem”(4). E não o pode porque, profundo que seja o
abismo em que um dia se precipitara, ao homem nunca lhe adormece
no peito o desejo ardente de retomar o curso da vida e tornar aos seus.
Por mais forte razão, ela não poderá desamparar aquele que,
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tendo perdido a liberdade, foi como se tudo já perdera: o encarcerado.


Em suma: a pena demasiado severa, sobre não recuperar o
infrator (esforçado argumento para que se não aplique), ainda “mata a
esperança, que é o último remédio que deixou a natureza a todos os males”,
como pregou o sublime Vieira(5).

III – Mais que a sentença draconiana — que impõe ao réu pena que,
de muito rigorosa, antes parece perpétua —, é para recear a que
condena o inocente. Gênero de desgraça grande é esse, que, por
evitá-lo, o emprego de diligência, ainda em seu grau máximo, sempre
se teve por muito pouco.
A condenação do inocente à pena última não raro meteu em
escrúpulo até a corações empedernidos. De Nero, monstro coroado,
refere com efeito Suetônio que, certo dia, em que o convidaram a
assinar uma condenação capital, disse: “Tomara não soubesse escrever!”(6)
Outro tanto passou com o imperial Pedro II. Constando-lhe que Mota
Coqueiro, a quem se dera morte no patíbulo, fora vítima de erro
judiciário, no mesmo ponto mandou quebrar a pena com que lhe
negara pedido de clemência e “nunca mais quis assinar nenhuma
condenação”(7).
A todos assusta e angustia o espectro do erro, no entanto mais
àqueles que foram investidos da terrível quão bela função de julgar,
que é atributo próprio só da Divindade.
De feito, julgando sempre, estão os juízes, mais que ninguém,
sujeitos à tirania implacável dessa contingência humana que é o erro.
Não é tudo. Ouçamos a esse varão abalizado em virtudes e
letras, de quem justamente se orgulha e ufana a Magistratura
brasileira, Eliézer Rosa, cujas palavras vêm aqui de molde: “Nos
tribunais, o medo de errar é muito mais oprimente que num juiz de primeiro grau.
Saibam todos que é esta uma imensa e dolorosa verdade. Ser relator dum feito é
terrivelmente penoso, pela consciência que tem de que seu voto pode ser
acompanhado e, por mais e melhor que tenha pensado em acertar, o insidioso erro
pode esconder-se na pureza de seu pensamento”(8).
Este mesmo temor de errar foi, decerto, o que inspirou à
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sabedoria humana a regra comum de interpretação da dúvida — “In


dubio pro reo” —, porque “a condenação do inocente constitui maior desgraça
para a sociedade do que para o condenado, sendo preferível, segundo a velha
sentença de Berryer, ficarem impunes muitos culpados, do que punido quem
devera ser absolvido”(9).

Notas

(1) Ovídio, Metamorfoses, I, 85.


(2) “Suprima-se a pena (quod Deus avertat) e o crime seria, talvez, a lei da
maioria. É indubitável a eficácia inibidora do castigo” (Nélson Hungria,
Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 196).
(3) Doutrina é esta que geralmente professam aqueles a quem
tocou a meritória tarefa de recuperar os desajustados sociais,
como se tira do dístico expressivo gravado no frontão da antiga
Penitenciária de São Paulo: “Aqui, o trabalho, a disciplina e a
bondade resgatam a falta cometida e reconduzem o homem à comunhão
social”.
(4) Uma Porta para o Homem no Direito Criminal, 2a. ed., p. 163.
(5) Sermões, 1959, t. III, p. 278.
(6) Cf. As Vidas dos Doze Césares, 1955, p. 269; trad. Sady Garibaldi.
(7) Raimundo de Menezes, Crimes e Criminosos Célebres, 2a. ed., p.
123.
(8) A Voz da Toga, 2a. ed., p. 50.
(9) Firmino Whitaker, Júri, 6a. ed., p. 89.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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