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ID:717

NEY LOBO: DA PRÁTICA À TEORIA (1967 – 1989)

Autor:
Rogério Ribeiro Cardoso

Filiação:
Universidade Federal de Uberlândia
Instituto Federal do Triângulo Mineiro

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RESUMO

O presente artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento que visa


historicizar a trajetória intelectual do professor e filósofo curitibano Ney Correia de
Souza Lobo. Para este trabalho, portanto, fizemos um recorte dos itinerários
percorridos por este professor na formulação de uma filosofia educacional espírita.
Nesse sentido, utilizamos para análise as categorias de habitus, capital e campo
propostas por Pierre Bourdieu (2004), de representações proposta por Roger
Chartier (1991) e de intelectual proposta por Jean-François Sirinelli (2003). Para a
construção desse texto, foram analisados vários documentos do acervo de Ney Lobo,
dentre eles um plano pedagógico de 1972, currículos vitae, oito correspondências
entre Ney Lobo e editoras, de 1986 e 1987, e a obra Filosofia Espírita da Educação e
suas consequências pedagógicas e administrativas, de sua autoria, publicada
originalmente em 1989.

PALAVRAS-CHAVE

História da Educação Brasileira, Filosofia Espírita da Educação, Ney Lobo.

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1. A PRÁTICA

Ney Lobo nasceu em Curitiba, Paraná, em 24 de julho de 1919, e faleceu em 28 de


agosto de 2012, na mesma cidade. Formou-se Bacharel em Letras em 1936 pelo
Ginásio Paranaense, como oficial militar pela Escola Militar do Realengo em 1943 e
em Filosofia em 1964 pela Universidade do Paraná; iniciou como docente do
Instituto Educacional Lins de Vasconcelos em 1963 (uma escola privada de Curitiba,
mantida pela Federação Espírita do Paraná até 1998), assumindo sua direção em
1967 e deixando a instituição em 1974.
Entre os anos de 1967 e 1974, como diretor do ILV (Instituto Lins de
Vasconcelos), Ney Lobo pôs em prática um projeto pedagógico que visava uma maior
atividade dos alunos naquela instituição de ensino. Ainda que envolto por noções
militaristas de educação, devido à sua formação pessoal e profissional até aquele
momento, sedimentando o seu habitus, implementou algumas ações de cunho
democrático e anti-hierárquico, fundamentando-se em autores escolanovistas1, em
educadores espíritas2, em Pestalozzi e numa interpretação pessoal do espiritismo.
Assim, substituiu as carteiras escolares e o quadro negro por mobiliário que
permitia o estudo em grupos de cinco alunos e lousa móvel; instituiu o Gabinete de
Orientação Filosófica, com a finalidade de estudar as relações entre a doutrina
espírita e a educação, elaborando fundamentos e princípios filosóficos para uma
possível educação espírita; efetivou a Direção Colegiada, no sentido de permitir
maior participação e responsabilidade docente nas tomadas de decisões dentro da
escola, no sentido de, segundo o próprio, “desindividualizar a direção do colégio” e
“reduzir os riscos de erros e de omissões no processo de deliberações e de tomada de
decisões” (Lobo, 1972, p. 86); construiu a Cidade Mirim, uma representação de
cidade em miniatura dentro da própria instituição escolar, com prefeitura, câmara de
vereadores, comércio (que lidava com produtos e dinheiro reais – havia um convênio
com algumas casas comerciais da cidade), praças, casa de oração ecumênica e
agência bancária (de um banco privado e que emitia um talonário de cheque
específico para a Cidade Mirim), administrada pelos alunos de 1ª a 4ª série, com o
intuito de dar uma feição mais prática às aulas de Educação Moral e Cívica, ao
mesmo tempo em que experimentava técnicas educacionais oriundas dos estudos
realizados pelo Gabinete de Orientação Filosófica; estabeleceu a Assembleia dos
Alunos para os estudantes de 5ª a 8ª série, com objetivos semelhantes aos da Cidade
Mirim; e por fim, as aulas tradicionais foram substituídas por Sessões de Trabalho,
nas quais os alunos realizavam Trabalhos Individuais (TI) e Trabalhos Coletivos
(TC), de modo que as avaliações eram diárias.
Estava ainda prevista para entrar em vigor a substituição das punições e
recompensas pelo princípio da reparação, ou seja, seriam abolidas as punições aos

1 Tais como John Dewey, Adolphe Ferrière, Roger Cousinet, Edouard Claparède, Theobaldo Miranda dos Santos,

Lorenzo Luzuriaga, Lourenço Filho e Rui Barbosa, dentre outros.


2 Principalmente José Herculano Pires e Humberto Mariotti.

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discentes indisciplinados em prol de um mecanismo que garantisse que tais
estudantes reparassem o mal causado por sua indisciplina, com o objetivo ainda de
exercitarem o arrependimento e a justiça, assim como também seriam abolidas as
recompensas aos estudantes que tivessem cumprido seus deveres, no intuito de se
evitar situações favoráveis ao desenvolvimento do orgulho e do egoísmo, como
também favorecer o sentimento de humildade.
A Cidade Mirim fora inaugurada em 1970, e era parte integrante do currículo dos
alunos de 1ª a 4ª série do 1º grau (hoje, anos iniciais do Ensino Fundamental),
atrelada à disciplina de Educação Moral e Cívica, como dito. Tinha como uma de suas
finalidades o desenvolvimento do sentimento de cidadania e de responsabilidade
social nas crianças, por meio de atividades geridas pelos próprios discentes, como
por exemplo a administração política da própria minicidade, que funcionava de fato
como a miniatura de uma sociedade democrática. De acordo com D. Incontri (2001,
p. 246), “as sinceras convicções democráticas do Prof. Lobo transparecem
concretamente na proposta pedagógica que geriu”.
A experiência na Cidade Mirim era gerida e analisada pelo Gabinete de
Orientação Filosófica, no qual Ney Lobo ensaiava suas teorias. A pequenina cidade
era organizada como “um conjunto de casas-miniaturas construídas em estilos
variados e em dimensões proporcionais à estatura das crianças do 1º ciclo do Ensino
Fundamental” (Lobo, 2003, p. 459-460). A cidade era organizada em sete áreas:
política (prefeitura-mirim e câmara de vereadores-mirim); comercial (livraria-mirim,
casa de artigos esportivos, foto-boutique-mirim, farmácia e casa dos brinquedos);
financeira (banco-mirim); social (sala de jogos e casa de bonecas); de comunicação e
divulgação (agência-mirim de correios, jornal “Cidade-Mirim” e estação de rádio
comunitária); de segurança (guarda-mirim e parque para a educação de trânsito); e
espiritual (a Casa de Oração).
Nas salas de aula, os alunos que se destacavam intelectualmente eram
estimulados a auxiliar os demais colegas, formando equipes com cinco alunos para as
sessões de trabalho. Além disso, cada classe elegia um monitor e um auxiliar3.
Essa experiência ocorreu durante um período de bastante repressão social e
política no Brasil: o Regime Militar ditatorial que se estendeu de 1964 a 1985, mas
que passou por sua fase mais autoritária após o Ato Institucional nº 5 de 13 de
dezembro de 1968, que ampliou sobremaneira os poderes do Executivo, reduzindo a
já pequena participação do povo nas decisões políticas do país. De forma
contrastante com a realidade vigente, o projeto pedagógico implementado no ILV
tinha características bastante democráticas, principalmente pelas práticas
educacionais promovidas pela Cidade Mirim e pela Assembleia de Alunos, mas
também pela manutenção da Direção Colegiada e do Gabinete de Orientação
Filosófica.

3Mais algumas informações a respeito da experiência prática de Ney Lobo no ILV podem ser encontradas em
Cardoso (2014a; 2014b).

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Era do gabinete que partiam as propostas pedagógicas para a escola, e ali iniciava
Ney Lobo a sistematização de uma filosofia de educação fundamentada no
espiritismo. Os anos de 1967 a 1974 foram de experimentações práticas, mas também
de suas primeiras publicações a respeito do que viria a ser a Filosofia Espírita da
Educação. Essas publicações ocorreram no jornal Mundo Espírita (editado pela FEP
– Federação Espírita do Paraná) a partir de 1966, continuando no ano seguinte. Em
consequência delas, Ney Lobo foi convidado a apresentar suas teorizações no 1º
Encontro de Educadores Espíritas centro-sulino, ocorrido em abril de 1968 em
Curitiba. Dois anos depois, foi convidado a contribuir com textos para a revista
Educação Espírita (editado pela Edicel, São Paulo), para a qual enviou apenas um
artigo, em 1972, a respeito da direção colegiada instituída no ILV. Foi, no entanto, o
responsável por proferir a conferência de lançamento da revista, em 28 de dezembro
de 1970, em São Paulo, versando sobre a temática da educação espírita (Rizzini,
2001, p. 241).
Em 1974, no entanto, por conta de divergências ideológicas com a mantenedora
do colégio, Ney Lobo desvinculou-se da instituição.

2. OUTROS CAMPOS DE ATUAÇÃO

A partir de sua saída do ILV, Ney Lobo trabalhou na Capemi (Caixa de Pecúlio
dos Militares) e depois nos Correios, sendo que durante esse período mudou-se com
a família por três vezes (ainda em Curitiba) por, dentre outras razões, questões
econômicas.
É verdade que o ex-diretor descendia de uma família tradicional de ervateiros4 da
capital do Paraná: a família Correia; entretanto, com o decaimento da produção de
erva-mate por volta da década de 1930, a família Correia Lobo sofreu perdas
financeiras, de modo que o capital econômico do jovem Ney deveria ser construído
de outra forma. Este o provável motivo que o levou a ingressar na carreira militar em
1939, matriculando-se na Escola Militar do Realengo no Rio de Janeiro e formando-
se oficial em 1943. Ocorre que quando o professor se desligou do ILV em 1974, ele já
não mais estava na ativa, fazia parte da reserva remunerada há 10 anos. Pai de quatro
filhos, com a esposa e mais um enteado, desempregado, precisou acionar seu capital
social a fim de conquistar outros postos de trabalho; foi dessa forma que, com a
ajuda de amigos, Ney Lobo veio a fazer parte do quadro funcional da Capemi e
posteriormente dos Correios. Após este último emprego, aposentou-se pelo INSS5 em
1984, ano em que também foi reformado definitivamente pelo Exército, por idade,
com a patente de coronel.

4Comercializavam erva-mate, um dos principais produtos que movimentavam a economia da região Sul do Brasil
no final do século XIX e início do século XX.
5 Instituto Nacional do Seguro Social.

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No campo educacional, atuou entre os anos de 1986 e 1988 como professor de
Teologia Espírita e de Filosofia na instituição de ensino superior Unibem, ainda por
conta de seu capital social, mas também em virtude de um capital cultural bastante
vasto, construído desde sua formação no Ginásio Paranaense (1930-31 a 1936),
passando pela Escola Militar do Realengo (1939 a 1943) e pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Paraná (1960 a 1964), mas
bastante estendido de maneira autodidata.
Durante esse período de sua trajetória, no entanto, Ney Lobo proferiu palestras
em simpósios e congressos a respeito das relações entre espiritismo e educação. Nos
anos de 1980 e 1981, coordenou duas jornadas de estudos na Unibem a respeito da
filosofia educacional espírita e suas possíveis práticas didático-pedagógicas. Em
1983, expôs as diretrizes de uma futura obra que vinha elaborando sobre a tal
filosofia educacional, ministrando um curso no Encontro Nacional para o
Desenvolvimento da Educação Espírita, no Instituto de Cultura Espírita do
Paraná/Santa Catarina (mantenedor da Unibem na época) em Curitiba. Essas
palestras e cursos serviam tanto para divulgar suas ideias, principalmente em sua
rede de sociabilidade, quanto para aprimora-las e organiza-las de modo a serem
publicadas mais adiante para o público geral.
Com efeito, entre junho de 1981 e dezembro de 1984, Ney Lobo dedicou-se com
mais afinco ao campo literário, e escreveu o que podemos considerar como sua obra
basilar: Filosofia Espírita da Educação e suas consequências pedagógicas e
administrativas (FEE), publicada pela Federação Espírita Brasileira (FEB) em 1989.
Nesta obra se encontra o resultado dos estudos iniciados no Gabinete de Orientação
Filosófica do Instituto Lins de Vasconcellos, acrescidos de pesquisas autônomas
implementadas pelo professor Ney Lobo, cujas primeiras ilações vinham sendo
apresentadas naqueles congressos para os quais havia sido convidado. Foi ainda das
práticas pedagógicas experimentadas no ILV e de princípios da Escola Nova,
analisados sob a lente de uma interpretação particular (filtrada pelo seu habitus) das
obras de Allan Kardec6, que Ney Lobo sistematizou sua filosofia educacional.
Anteriormente à publicação da FEE, Ney Lobo já havia publicado três obras a
respeito de educação moral e cívica (uma delas, inclusive, utilizada como livro
didático pelo ILV), como se pode observar na Tabela 1, entretanto nenhuma dessas
versava sobre as relações entre espiritismo e educação. É a partir de 1989 que as
obras de Ney Lobo passam a abordar quase que exclusivamente essa temática,

6 Pseudônimo do pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), autor de obras didáticas e um
dos propagadores dos métodos de Johann Heinrich Pestalozzi na França no século XIX. Para mais informações
sobre este educador francês, ver Incontri, D. & Grzybowski, P. (2005). Kardec Educador, textos pedagógicos de
Hippolyte Léon Denizard Rivail. Bragança Paulista-SP: Comenius. Sob este pseudônimo, o professor Rivail
publicou as obras constitucionais do espiritismo, quais sejam: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns
(1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868). Além dessas,
outras obras de Allan Kardec foram utilizadas por Ney Lobo: O que é o Espiritismo (1859), Obras Póstumas
(1890) e o periódico mensal de estudos psicológicos denominado Revista Espírita (1858 a 1869).

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fazendo alusão em vários momentos àquela sua experiência prática na década de
1970.

1973 Técnicas Modernas de Educação Moral e Cívica


1974 Curso Integral de Educação Moral e Cívica
1974 Educação Moral e Cívica - 5ª série
1989 Filosofia Espírita da Educação e Suas Consequências Pedagógicas e Administrativas
1992 Estudos de Filosofia Social Espírita
1994 O Plano Social de Deus e as Classes Sociais
1995 Espiritismo e Educação
1997 Lins de Vasconcellos, o Diplomata da unificação e o Paladino do Estado Leigo
2003 Prática da Escola Espírita: a escola que educa
2008 A Espiritualidade da Inteligência Humana
2009 Coleção Perfeições Espirituais: A Conquista da Esperança
2010 Coleção Perfeições Espirituais: A Pedagogia da Conquista da Indulgência
2011 Coleção Perfeições Espirituais: A Pedagogia da Conquista da Veracidade
2012 Coleção Perfeições Espirituais: A Pedagogia da Conquista da Caridade

TABELA 1 | Publicações do professor Ney Lobo entre 1973 e 2012.

O processo de publicação da Filosofia Espírita da Educação, no entanto, levou


seis anos. Durante o já citado Encontro Nacional para o Desenvolvimento da
Educação Espírita, realizado em 1983, Ney Lobo iniciou, com o então presidente da
editora Edicel, de São Paulo, as primeiras negociações para a publicação do livro.
Dessa forma, após ter finalizado o texto no final do ano seguinte, o professor
empenhou-se em revisar todas as cerca de 1200 páginas datilografadas, trabalho que
finalizou em março de 1986. Ele explica o empreendimento, em carta à editora:

Esta obra deita suas raízes mais profundas no período em que exercemos o
magistério em colégio espírita por onze anos (de 1963 a 1974), sete dos quais
como diretor. No exercício efetivo dessa função (...) foi-se consolidando a idéia
da indispensabilidade de uma diretriz filosófica superior e espírita. Não
sabíamos para que ensinávamos. Mesmo que intuíssemos os fins educativos
espíritas, desconheceríamos os caminhos que a eles conduziriam. Por isso,
partimos para a organização do GABINETE DE ORIENTAÇÃO FILOSÓFICA
(...). Dávamos o primeiro passo. Era uma idéia pioneirissima, cintilante e
sedutora. Idealizamos uma cúpula doutrinária, o Gabinete, como dossel da
Filosofia Espírita a cobrir todo o edifício pedagógico. (...) No Gabinete de
Orientação Filosófica, redigimos os primeiros estudos sobre educação espírita.
(N. Lobo, 1986)

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Em março de 1987, a editora lhe devolveu os originais alegando que não poderia
publicar uma obra tão volumosa em vista da crise econômica pela qual passava o
país 7 . Outra editora, a Lake, também de São Paulo, já havia do mesmo modo
declinado, nove meses antes, frente à possibilidade de publicar uma obra com aquele
número de páginas. Em novembro de 1986, Ney Lobo já havia tentado a editora
Cultrix, igualmente de São Paulo, sem obter êxito.
Em junho de 1987, não obstante, a editora Lake entrou em contato com o
professor novamente, reatando a possiblidade de publicação da obra, desde que esta
pudesse ser publicada em quatro ou cinco volumes. Entretanto, como Ney Lobo já
havia ao mesmo tempo contatado a FEB, a Lake preferiu dar prioridade àquela,
aguardando sua resolução e alegando as mesmas dificuldades financeiras expostas
pela Edicel. Enfim, a FEB acabou tendo precedência (e a preferência do autor) e
publicou a obra em cinco volumes, cuja primeira edição foi a público em 19898. Em
1993, foi publicada a segunda edição do primeiro volume, e em 2002, a sua terceira
edição, bem como a segunda edição do segundo ao quinto volume.

3. A TEORIA

A obra se inicia com uma espécie de exegese dos textos de Allan Kardec,
extraindo dali a filosofia espírita, justificando-a e demonstrando, por meio de
argumentos filosóficos, a sua existência. Na sequência, e partindo dessa
demonstração como alicerce, se põe a elaborar uma possível filosofia educacional
espírita.
Os pontos fundamentais do espiritismo nos quais Ney Lobo alicerça sua teoria
são os seguintes (Kardec, 1998): a existência de Deus; a reencarnação (para o
espiritismo, o ser humano é um espírito reencarnado criado por Deus, pré-existente
e pós-existente ao corpo físico); a mediunidade (mecanismo por meio do qual os
espíritos encarnados e desencarnados se comunicam); e a evolução (o progresso
como lei da Natureza, de modo que todos os seres evoluem tanto materialmente
quanto espiritualmente).
Ney Lobo principia a discussão sobre educação, em sua obra, com a seguinte
ilustração: tem-se o fato educacional, ou seja, o fenômeno real (“é feito assim” – o
concreto); através da lente da Filosofia Espírita (“vemos o mundo assim” – o ideal),
o filósofo da educação, por reflexão crítica, extrai princípios e valores, que resulta na
formulação de uma Filosofia Espírita da Educação (“deveria ser feito assim” – o
objetivo); então, através da lente da Filosofia Espírita da Educação, o pedagogo
espírita vê o fato educacional e extrai conhecimentos e teorias que o auxilia na
formulação da Pedagogia Espírita (“fazer como deveria ser feito” – as metas), que se

7O Brasil passava por uma época de alta inflação, boa parte dela em consequência das políticas econômicas do
Regime Militar (1964 a 1985).
8 A primeira edição dos volumes de 2 a 5 foram a público em 1990.

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torna uma nova lente; através da lente desta pedagogia, o didata espírita, vendo o
fato educacional, extrai procedimentos, métodos e técnicas e formula a Didática
Espírita (“como fazer o que deveria ser feito” – as ferramentas), um momento de
transição do teórico para o prático; este momento prático se dá quando o educador
espírita observa o fato educacional através da lente da Didática Espírita e parte para
a ação, para a Educação Espírita (“fazendo como deveria ser feito” – a atitude),
gerando o ato educativo.
Dessa forma, do fato educacional chega-se ao ato educativo passando pelas
lentes da Filosofia Espírita, da Filosofia Espírita da Educação, da Pedagogia
Espírita, da Didática Espírita e da Educação Espírita (Lobo, 2002, Vol. 1, pp. 71-
86). A Figura 1 projeta esse raciocínio do autor: trata-se de um diagrama contido na
obra FEE desenhado por Ney Lobo, representando a progressão do fato educativo,
espontâneo, ao ato educativo, intencional.

FIG. 1 | Do fato ao ato educativo (Lobo, 2002, p. 86). Desenho feito pelo autor.

O cerne da obra, no entanto, é a fatoração do fato educativo em sete fatores: o


educando, o educador, os fins da educação, a disciplina, o currículo, o método e, por
fim, a instituição escolar, que ao longo dos quatro primeiros volumes vão sendo
analisados à luz de mais de duas dezenas de teorias pedagógicas e filosofias
educacionais que Ney Lobo considerou como as mais representativas9, comparando-

9Como por exemplo: Naturalismo Pedagógico; Humanismo Pedagógico; Culturalismo Pedagógico, Idealismo
Pedagógico; Nacionalismo Pedagógico; Socialismo Pedagógico; Pragmatismo Pedagógico; Individualismo
Pedagógico. Além das seguintes: Otimismo Antropológico; Pessimismo Antropológico; Realismo Cristão;

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as com a sua visão espírita, e dali elaborando as soluções para cada fator e as
consequências pedagógicas de cada solução encontrada. O quinto volume se dedica a
estudos complementares sobre a temática e exemplos de práticas pedagógicas.
A Figura 2 ilustra os sete fatores:

FIG. 2 | Os fatores do fato educativo (Lobo, 2002, p. 67). Desenho feito pelo autor.

Ney Lobo elaborou uma representação de cada um dos sete fatores, e estabeleceu
o que se segue, a respeito de cada um deles:
O educando é um espírito transeunte, pluriexistencial, nesta terra um peregrino
reencarnado, ainda muito imperfeito, em determinado grau educativo, em romagem
da perfectibilidade para a perfeição, o qual, pela educação já conquistada e a
conquistar, em reencarnações sucessivas e progressivas, atingirá, pelo seu próprio
esforço e dos seus educadores, o estado final de Espírito Puro, ou seja, de totalmente
educado (Lobo, 2002, Vol. 1, pp. 132-133). Quando encarnado, o espírito passa por
fases de maturação, que vai desde um período heterônomo, do nascimento ao fim da
adolescência, até um período autônomo, que se inicia na juventude. O período de
transição entre o fim da adolescência e o início da juventude, entre os 15 e os 20 anos
de idade, Ney Lobo chamou de idade axial10 (2002, Vol. 1, pp. 245-251). Antes da

Empirismo Gnosiológico; Otimismo Pedagógico; Pessimismo Pedagógico; Realismo Pedagógico; Inatismo;


Empirismo; Interacionismo; Antifinalismo Pedagógico; Relativismo Teleológico-Pedagógico; Finalismo
Pedagógico;
10 O termo “idade” neste caso não trata de uma idade específica, mas de um período (idade como era ou época).

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idade axial, o educador exerce maior influência sobre o educando; após, inicia-se o
período de autoeducação. Durante esta transição, o espírito recapitula sua
personalidade a partir do ponto em que estava antes de nascer, gerando conflitos
com a educação atual. Ney Lobo sugere um recuo da idade axial através da educação
formal, no sentido de que o educando desenvolva a autonomia e a autenticidade o
quanto antes, adentrando no período de autoeducação.
O educador (também como espírito reencarnado) é revelador de aspectos
culturais, conhecimentos científicos e valores morais que o educando não
apreenderia por si só; restaurador da cultura inata já trazida pelos educandos
(denominadas por Lobo de “virtualidades relativas”, ou seja, potencialidades e
virtudes já conquistadas em vidas anteriores, em contraposição às “virtualidades
absolutas”, que seriam as potencialidades e virtudes ainda não desenvolvidas pelo
espírito); médium pedagógico, utilizando de sua intuição para perceber
potencialidades e necessidades de cada educando individualmente; delegado por
espíritos superiores na orientação das futuras gerações; compromissado com a nação
e a sociedade; e agente principal, durante o período heterônomo do aluno, e depois
auxiliar, durante o período autônomo do aluno, no processo de educação, sendo que
durante a idade axial, os dois papeis se alternam (Lobo, 2002, Vol. 2, pp. 50-53).
O educador é, ainda segundo o autor, uma “expressão e projeção do contexto
histórico-sócio-cultural de uma sociedade” (2002, Vol. 1, p. 67). Em outras palavras:
“esse educador não pode destacar-se da sua cidadania terrena nem sacudir de si a
sua personalidade nacional, a qual reveste tanto a sua estrutura biossocial quanto o
seu aparato espiritual”. (Lobo, 2002, Vol. 2, p. 34).
A finalidade da educação, para o autor, se divide em três aspectos: o
desenvolvimento da espiritualidade do educando, como fim individual; o espírito
puro e a definitiva identificação de pensamentos e sentimentos com Deus, como fim
supremo; e a construção de uma sociedade regenerada governada por uma
aristocracia intelecto-moral11, como fim social (Lobo, 2002, Vol. 2, pp. 200-212).
Com relação à disciplina, Ney Lobo estabelece o banimento de castigos e
recompensas; a disciplina baseada no arrependimento e na reparação; sansões
quando necessárias visando sempre a correção; a proporcionalidade entre a falta e a
reparação ou a sansão; e a ação do professor baseada na autoridade com brandura
(Lobo, 2002, Vol. 3, pp. 73-78 & 91).
O currículo se mostraria formado por dois tipos: um genérico-espiritual,
abrangente e composto; e outro técnico-específico, confinado e componente do
anterior. Esse currículo deveria ser integralizante, ou seja, interdisciplinar;

11No capítulo sobre as aristocracias, em Obras Póstumas, Allan Kardec estabelece uma linha evolutiva (que pode
ser interpretada como de justiça social) que começa na “aristocracia dos patriarcas”, passando pela “aristocracia
da força bruta”, a “aristocracia do nascimento”, a “aristocracia do dinheiro” e a “aristocracia da inteligência”,
culminando no futuro numa “aristocracia intelecto-moral”, em que intelectualidade e moralidade estariam unidas
em prol da justiça. Ver Kardec, A. (1987). Obras Póstumas (22a ed.). (G. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: FEB.
(Obra original publicada em 1890).

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espiritualizante; antropocêntrico, em contraposição a um currículo teocêntrico;
individualizado, isto é, garantindo o progresso de cada aluno individualmente,
respeitando suas idiossincrasias; organizado em torno da educação do espírito; e
com timbre nacional, ou seja, dando ênfase à cultura do país onde se encontra a
escola (Lobo, 2002, Vol. 3, pp. 145-150).
O método aplicado numa escola espírita, para Ney Lobo, deve focar na atividade
em substituição à passividade, desenvolvendo a inteligência; na cooperação em
substituição ao individualismo, desenvolvendo a fraternidade; na individualização
em substituição à coletivização, desenvolvendo a personalidade. E aqui podemos
perceber com mais clareza a influência da Escola Nova. Nesse sentido, a avaliação
deveria basear-se na autossuperação do educando, e para isso, o docente precisaria
ter noções de psicologia evolutiva, levando ainda em consideração a abrangência
desse processo do ponto de vista das vidas sucessivas (Lobo, 2002, Vol. 4, pp. 43; 75-
78 & 98-100).
Por fim, para o sétimo fator, a instituição escolar espírita, estabelece que esta
deveria ser preferencialmente privada e gratuita, no sentido de se conciliar a
liberdade de ensino com o direito à educação; ser de tempo integral em regime,
preferencialmente, de internato, formando um ambiente familiar estreitamente
ligado aos lares dos alunos, numa espécie de comunidade escola-lar; e ter instituída a
direção colegiada, de modo a garantir a liberdade de ação e o autogoverno. Para Ney
Lobo, essa escola deve proporcionar práticas sociais eficazes a fim de desenvolver a
fraternidade e a sensibilidade dos educandos em relação ao semelhante. Para isso, a
escola deveria ser uma cópia da vida espiritual, antecipando uma sociedade ideal e
sendo dela uma miniatura, preparando os alunos não apenas para a vida social
vigente, mas para uma vida social aperfeiçoada (Lobo, 2002, Vol. 4, pp. 165; 190-191
& 213-214).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como dissertamos até aqui, o professor Ney Correia de Souza Lobo (1919-2012),
militar e filósofo paranaense, protagonizou na cidade de Curitiba, capital do estado
do Paraná, entre 1967 e 1974, uma experiência pedagógica de educação ativa,
impulsionado pelos princípios da Escola Nova e pelos preceitos espíritas que
esposava, e sobre a qual erigiu uma filosofia educacional; trabalho esse no qual se
engajou por toda a vida a partir dali, mas que teve como marco significativo a
publicação da obra Filosofia Espírita da Educação em 1989.
Essa filosofia se sustenta na fatoração do fato educativo em sete conceitos (ou
fatores) sob a ótica espírita, os quais são esmiuçados ao longo dos cinco volumes da
obra. Ao elaborar esses conceitos, Ney Lobo deixou transparecer, principalmente
para os três últimos (o currículo, o método e a instituição escolar), a influência do
movimento escolanovista e de sua experiência pedagógica no ILV, propondo práticas
pedagógicas semelhantes às que havia posto em ação anteriormente, como, por

33
exemplo, as Sessões de Trabalho organizadas em TIs e TCs, a composição de uma
sociedade em miniatura a ser gerenciada pelos alunos (como educação cívica), tal
qual a Cidade Mirim o foi, e o princípio da direção colegiada. Entretanto, sua
abordagem em relação à natureza do educando e do educador, bem como a
finalidade da educação e os princípios disciplinares, é bastante original e
fundamenta-se majoritariamente no espiritismo (que não deixa, por sua vez, de ter
raízes no cristianismo).
Em outras palavras, ao analisar a obra FEE, correlacionada à análise da
experiência pedagógica de Ney Lobo no ILV, percebemos que apesar de haver
influências do militarismo em alguns pontos de sua filosofia educacional (tais como a
educação cívica, o compromisso do educador com a nação e o currículo com timbre
nacional), em muitos outros ele suplanta essa influência (como a direção colegiada, a
Assembléia De Alunos e a Cidade Mirim) conflitando muitas vezes com o seu próprio
habitus forjado na carreira militar.
Por fim: se no ILV, o centro em torno do qual deveriam orbitar as demais
disciplinas era a disciplina de Educação Moral e Cívica, para a filosofia educacional
que estava propondo, o eixo havia sido descolado para a educação da espiritualidade
do educando.

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