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TERRITÓRIO

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AUTÔNOMO
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1
Primavera de 2012

1
Revista

Primavera de 2012
Coletivo Editorial Capa, diagramação e projeto gráfico
Amir el-Hakim de Paula Eduardo de Oliveira Rodrigues
Eduardo Tomazine Teixeira Glauco Bruce Rodrigues
Glauco Bruce Rodrigues Marcelo Lopes de Souza
Marcelo Lopes de Souza Matheus da Silveira Grandi
Marianna Fernandes Moreira Rafael Zilio
Matheus da Silveira Grandi
Rafael Gonçalves de Almeida
Rafael Zilio
Renata Ferreira da Silveira
Tatiana Tramontani Ramos

Publicação semestral sob responsabilidade da Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários – ReKro


http://www.rekro.net/
Envio de materiais pelo endereço eletrônico revistaterritorioautonomo@gmail.com

Distribuição virtual
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totalidade, desde que sem fins comerciais e que os(as) autores(as) sejam citados(as).

Revista TERRITÓRIO AUTÔNOMO [recurso eletrônico] / ReKro – n.º 1 (Primavera de 2012) – Dados
eletrônicos.
Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários, 2012.

Semestral
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISSN: 1982-5080

I. Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários


CDD 910

A Revista Território Autônomo utilizou softwares livres na elaboração desta publicação.


– Sumário –

Apresentação
Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários (ReKro) e revista Território 2
Autônomo: quem somos e o que queremos
Marcelo Lopes de Souza

Críticas & alternativas


A Geografia e o pensamento libertário: Subsídios para um debate sobre tradições e 5
novos rumos
Marcelo Lopes de Souza
Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto 15
carioca: Reflexões sobre um caso da variante por coletivo
Matheus da Silveira Grandi
Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária 44
Tatiana Tramontani Ramos

Encontro com os clássicos


Sobre o Ensino da Fisiografia 69
Piotr Kropotkin
O sentido do Confederalismo 82
Murray Bookchin

Direto da luta
Ocupar, resistir, produzir! A história e as lutas da Ocupação Quilombo das 94
Guerreiras (Rio de Janeiro)
Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

Resenhas
BOOKCHIN, Murray (2011). Anarquismo: crítica e autocrítica. Primitivismo, 113
individualismo, caos, misticismo, comunalismo, internacionalismo, antimilitarismo e
democracia
Rafael Zilio

Orientação para publicações 117

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012


Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários (ReKro) e revista Território Autônomo Marcelo Lopes de Souza

– Apresentação –

Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários (ReKro) e


revista Território Autônomo: quem somos e o que queremos

Marcelo Lopes de Souza


Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD);
Pesquisador do CNPq.
mlopesdesouza@terra.com.br

A
ReKro, responsável pela revista homofobia. Os baluartes de tudo isso proliferam em
eletrônica Território Autônomo, é muitos países: para as elites e os aquinhoados em
filha da esperança com o geral, “condomínios fechados”, shopping centers e
descontentamento. toda sorte de dispositivos de segurança e símbolos
Descontentamento – ou, mais propriamente, de ostentação social; para os pobres e todos os
indignação – com um capitalismo eficiente para oprimidos, prisões, muros e cercas, humilhações no
produzir riquezas (à custa de uma catastrófica espaço público, “arquitetura antimendigo”, e assim
degradação ambiental em escala global), mas segue.
estruturalmente incapaz de distribuí-la com Nosso descontentamento, por fim, deriva
equidade e justiça. Capitalismo esse que, muito pelo ainda do cansaço de vermos os resíduos de um
contrário, diante dos evidentes limites de suas marxismo militante, desgastado e enredado em sua
tentativas de apaziguar os atingidos pelo própria crise, repetir fórmulas velhas (“partido
desemprego, pela (hiper)precarização do mundo do revolucionário”, “Estado socialista” etc.) e,
trabalho, pela escassez ou inadequação dos renitentemente, influenciar até mesmo alguns
equipamentos de consumo coletivo e pela movimentos sociais. Incapazes de fazer uma
estupidificação cultural, responde com brutalidade verdadeira autocrítica, e de modo algum à altura dos
policial aos clamores por terra e moradia, educação desafios da hora presente – entre os quais o desafio
e saúde, liberdade e justiça. de superar, definitivamente, as práticas autoritárias e
Descontentamento, também, com o hierárquicas que são o seu principal legado –, esse
crescimento do conservadorismo, embalado em marxismo teima em dificultar o florescimento de
“valores” como individualismo, consumismo e novas soluções e de alternativas plenamente
competitividade, aos quais, muitas vezes, se emancipatórias à heteronomia de nossas sociedades.
acrescentam o racismo, a xenofobia, o machismo e a Quanto ao marxismo acadêmico, irmão elegante do

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Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários (ReKro) e revista Território Autônomo Marcelo Lopes de Souza

marxismo militante, ele se mostra, nos dias que Kropotkin (1842-1921) – que contribuíram para a
correm, tímido e envergonhado no que diz respeito a causa da liberdade com suas ideias e seus exemplos
assumir também como suas certas características da de vida. O nome da rede, com essa homenagem, não
“ortodoxia” militante (como a “ditadura do pretende sugerir que se trata de uma exclusividade
proletariado” e as práticas explicitamente de geógrafos de formação. De jeito nenhum! Na
autoritárias); mas seu distanciamento em relação à verdade, trata-se de uma rede aberta a todas as
“ortodoxia” não tem chegado a colaborar pessoas, independentemente de terem qualquer
decisivamente para que ele possa elucidar formação universitária ou qualquer vínculo
adequadamente o mundo de hoje e a complexidade acadêmico; basta que elas tenham interesse e
de suas lutas. Por essa razão, tampouco e muito disposição para refletir, estudar e debater as
menos conseguem os marxistas acadêmicos, a questões que o conjunto dos participantes considerar
despeito de algumas inegáveis contribuições pertinentes (e, a partir daí, tenham ânimo para
teóricas, apontar para a construção de um amanhã organizar coisas). Lembremos, de passagem, que,
verdadeiramente diferente do ontem e do hoje. embora tenham sido grandes geógrafos e
(Diante de tudo isso, chega a ser risível a pretensão intelectuais, nem Reclus nem Kropotkin
de tantos marxistas, segundo a qual o marxismo completaram uma formação universitária regular;
seria quase que sinônimo de pensamento crítico, sua autoridade científica e sua erudição,
como se não existisse o pensamento libertário...) decididamente, não derivavam de diplomas...
Não nos conformamos com esse quadro. Aliás, advirta-se, tampouco se pressupõe que
Somos, por isso, decididamente, inconformistas. os participantes sejam anarquistas em sentido
Ao mesmo tempo, e por sermos estrito. O pensamento libertário, sem dúvida, foi,
inconformistas, somos movidos por uma grande durante mais de um século – na segunda metade do
esperança. Esperança que se enraíza na percepção século XIX e até meados do século XX –,
de que, pelo mundo afora, multiplicam-se os praticamente sinônimo de anarquismo; e é bom não
protestos, as revoltas e as experimentações político- esquecer que o adjetivo libertaire (libertário) surgiu
sociais. É motivo de otimismo, igualmente, verificar da pena de um anarquista, Joseph Déjacque, em uma
que vários movimentos emancipatórios que têm carta a outro anarquista, Pierre-Joseph Proudhon.
emergido nas últimas décadas se valem, claramente, Contudo, hoje em dia, não é mais razoável tomar o
de modos de organização e elementos discursivos pensamento e a práxis libertários simplesmente
que têm origem nas tradições libertárias: autogestão, como sinônimos de anarquismo.
horizontalidade, mandatos revogáveis etc. Surgido e desenvolvido em circunstâncias
O nome Rede Reclus-Kropotkin de Estudos históricas precisas, como uma resposta crítica
Libertários (ReKro) é uma homenagem, a nosso endereçada, ao mesmo tempo, contra o capitalismo
ver plenamente justificada, a dois geógrafos (e seu Estado) e contra aquilo que Bakunin chamou
anarquistas – Élisée Reclus (1830-1905) e Piotr de “comunismo autoritário” (isto é, o marxismo), o

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Rede Reclus-Kropotkin de Estudos Libertários (ReKro) e revista Território Autônomo Marcelo Lopes de Souza

anarquismo da segunda metade do século XIX e da visamos à ação, mas sabemos muito bem do valor
primeira metade do século XX continua e merece não menos relevante da reflexão e do estudo, sem os
continuar a ser uma fonte de inspiração importante. quais aquela, além de míope ou mesmo cega,
Entretanto, não seria sensato ignorar as ressalvas rapidamente resvala para o sectarismo e o
que, de pontos de vista um pouco diferentes, mas dogmatismo. E essa valorização simultânea da
igualmente comprometidos com a oposição busca apaixonada pelo conhecimento e do
simultânea ao capitalismo e ao “socialismo engajamento firme por uma sociedade livre e
burocrático” e suas premissas teórico-filosóficas, e tolerante é, diga-se de passagem, uma das lições
às vezes do interior de suas próprias fileiras, têm mais fundamentais a serem extraídas da vida e da
sido levantadas com relação a vários aspectos da obra de Reclus e Kropotkin.
tradição. Por esse motivo, é justo e oportuno É esse o espírto que embala, por conseguinte,
reconhecer que, ao lado do anarquismo clássico, a revista Território Autônomo. As vocação é ser
vertentes neoanarquistas (como, por exemplo, a uma arena de debates e um espaço de reflexão, cujo
“ecologia social” e o “municipalismo libertário” de conteúdo demonstre o nosso compromisso com a
Murray Bookchin) e o pensamento autonomista (re)construção e realimentação da práxis
(filosoficamente representado, sobretudo, pela obra emancipatória, mas sem panfletarismo vulgar e sem
de Cornelius Castoriadis, e nos últimos anos negligenciar a necessidade de uma compreensão
vivificado, adaptado e “reinventado” pela práxis e profunda e criativa dos diversos desafios com que
pelas reflexões que têm sido cultivados por alguns nos vemos confrontados. Território Autônomo
movimentos sociais de diversos continentes, com busca, com isso, a combinação de relevância
destaque para a América Latina) têm colaborado teórico-intelectual com utilidade práxica. Uma
para manter vivo o espírito libertário. combinação que está longe de ser trivial; mas que,
Nós, da ReKro, enxergamos o pensamento acima de tudo, está longe de ser desimportante −
libertário como algo em constante transformação; ou impossível
como algo vinculado a uma práxis emancipatória e a Marcelo Lopes de Souza
uma conduta baseada em valores mais humanos,
como uma forma de intervenção e de interação com Rio de Janeiro,
o mundo – e não, de modo algum, como uma primavera de 2012
ideologia pronta e acabada. Valorizamos a ação e

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A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

– Críticas & alternativas –

A Geografia e o pensamento libertário:


Subsídios para um debate sobre tradições e novos rumos*

Marcelo Lopes de Souza


Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD);
Pesquisador do CNPq.
mlopesdesouza@terra.com.br

Palavras iniciais No entanto, a abertura conquistada não deixa

D
de apresentar uma ligeira contradição, que talvez
e início, no mesmo momento em que tenha sido notada por vocês. O título da sessão em
agradeço pelo convite para participar que se insere esta mesa é, no mínimo, curioso
desta mesa-redonda – convite esse que (“Saberes geográficos e lutas sociais: novas
entendo como um reconhecimento do fato de que, questões, novas abordagens”), pois sugere que o
desde meados dos anos 1980, portanto há mais de pensamento libertário e os seus vínculos com a
um quarto de século, venho me esforçando para Geografia são novos. Ora, basta termos em mente o
colocar o pensamento libertário no “mapa” da anarquismo clássico − matriz fundamental e até hoje
Geografia brasileira –, aproveito para saudar isso representante mais conhecido do pensamento
que me parece ser um pequeno marco histórico. libertário −, para constatar que esse pensamento é
Houve, no passado e no presente, iniciativas por muito antigo, e inclusive anterior ao marxismo; e,
parte de seções locais da AGB, notadamente São quanto à sua vinculação com a Geografia, quem se
Paulo e depois Porto Alegre, para difundir o atreveria a ignorar Reclus e Kropotkin? Contudo, a
pensamento libertário; no entanto, esta abertura de contradição a que faço alusão é relativa; pois, se
agora, no âmbito de um encontro nacional, é, salvo considerarmos especificamente a AGB Nacional, aí
engano da minha parte, uma novidade. Creio que é sim, nessa escala, falar em “nova abordagem” em
um sinal dos tempos, conforme vou ter oportunidade relação ao pensamento libertário tem o sentido de
de discutir ao longo da minha fala. um sintoma, de um reflexo do problema que

* Versão expandida do texto apresentado em 26/07/2012, em Belo Horizonte, durante o XVII Encontro Nacional de Geógrafos, no
contexto da mesa-redonda “Geografia e pensamento libertário”. Decidi manter, aqui, algumas das características de um texto
preparado, originalmente, para meramente servir de base a uma exposição oral: linguagem despojada, uso da primeira pessoa do
singular (e, presumindo a cumplicidade dos leitores, utilização também da primeira pessoa do plural, às vezes) e ausência de
referências bibliográficas formalizadas (com exceção de três textos, dos quais extraí vários trechos, outras obras e outros autores
são mencionados de modo rápido e informal).
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A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

mencionei: a usual pequeníssima atenção dada às autores clássicos em vários sentidos importantes? 1
contribuições libertárias. Como se “pensamento Ou de Cornelius Castoriadis (1922-1997), que,
crítico” e “pensamento marxista” fossem sinônimos, diferentemente de Bookchin, nem sequer cultivou
e como se os libertários fossem ou tivessem sido qualquer tipo de diálogo com a tradição anarquista,
completamente irrelevantes! tendo rompido com o marxismo e chegado ao que
ele chamou de “projeto de autonomia” (projet
O que entender por “pensamento d’autonomie) sem conferir maior atenção aos
libertário”?
libertários do passado? Isso para ficar em apenas
Agora, um esclarecimento sobre o conceito de dois autores muito significativos. Tenho, por isso,
“pensamento libertário” (e de “práxis libertária”, já proposto há décadas, ora implícita, ora
que, para os libertários, pensamento e ação explicitamente, que a nossa compreensão do que
transformadora devem andar tão juntos quanto sejam o pensamento e a práxis libertários vão além
possível). Muitos devem pensar que se trata de um do anarquismo.
assunto óbvio, mas eu gostaria de insistir no Existem razões históricas para isso. O
contrário. Isso porque, para mim, o pensamento ambiente libertário sempre foi plural; basta ver,
libertário vai além do anarquismo, especialmente ainda no século XIX, as diferenças entre
quando compreendido como “anarquismo clássico”, mutualistas, coletivistas e anarco-comunistas (aos
como tenho chamado. O anarquismo clássico quais se deveria acrescentar o anarcossindicalismo,
abrange, fundamentalmente o pensamento e a práxis influente nos primeiros decênios do século XX). A
libertários dos séculos XIX e da primeira metade do despeito disso, ao lançarmos um olhar retrospectivo,
século XX; grosso modo, de Proudhon até a podemos, com os olhos de hoje, falar do anarquismo
Revolução Espanhola. Quando falo de anarquismo
1
clássico, o adjetivo “clássico” não tem nenhum Apenas para citar alguns exemplos: 1) enquanto a
compreensão de poder dos anarquistas clássicos era,
sentido depreciativo, pelo contrário: como sabemos, em geral, um tanto estreita (eles tendiam a confundir o
poder com o poder estatal ou, pelo menos, com o
uma obra ou um autor clássico não é uma obra ou poder heterônomo, portanto fazendo do poder, em si
um autor ultrapassado, mas sim uma obra ou uma mesmo, algo ruim), Bookchin (e, de modo ainda mais
profundo, Cornelius Castoriadis) recusou uma
autor que, mesmo depois de gerações (ou até mesmo interpretação tão limitada da idéia de poder; 2) os
anarquistas clássicos nunca tiveram simpatias por
de muitos séculos), continua a nos inspirar. decisões baseadas em votação (para eles, algo sempre
O anarquismo marca, historicamente, o início associado à “democracia” representativa), adotando,
em vez disso, o consenso, ao passo que Bookchin
do pensamento libertário moderno; e, até hoje, é, de defendeu que, em muitas situações, uma votação e
uma decisão pautada na opinião da maioria pode ter
longe, o mais conhecido representante desse
menos inconvenientes que uma busca obsessiva pelo
pensamento. Porém, o que dizer de Murray consenso; 3) os anarquistas clássicos preconizavam
apenas a ação direta como estratégia de luta, enquanto
Bookchin (1921-2006), que, apesar do grande que Bookchin esposou a ideia de que, sob
respeito que sempre nutriu pelos clássicos determinadas circunstâncias, utilizar-se de canais ou
institucionalidades estatais, a fim de viabilizar
(especialmente por Kropotkin), se afastou dos algumas coisas (como legislação que facilite a
organização da própria sociedade civil) não deveria
ser algo a ser convertido em um tabu.
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A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

clássico como um bloco, ainda que certamente não O pensamento libertário, hoje, é
homogêneo. Bookchin e Castoriadis, de sua parte, já representado por três “linhas” principais: 1) aqueles
nos obrigam a uma ampliação de horizontes – a não que retomam ou tentam retomar de maneira direta
ser que queiramos fazer do qualificativo o anarquismo clássico, ainda que, aqui e ali,
“anarquista” algo excessivamente abrangente, à introduzam ou se vejam forçados a introduzir
revelia dos sentimentos e particularidades dos pequenas adaptações ou atualizações; 2) os
autores e ativistas concretos. Bookchin, mesmo neoanarquistas que, como Murray Bookchin, se
tendo, no final da vida, amargurado com ataques afastaram em grau significativo da herança dos
desfechados contra ele por anarquistas ortodoxos, clássicos, mas sem deixar de cultivar fortes laços
anunciado sua ruptura com o anarquismo explícitos com o anarquismo; 3) os autonomistas,
(preferindo, em vez disso, o termo “comunalismo”), que podem sentir-se ou não próximos da herança
foi, até o fim, na sua essência, um neoanarquista, ao clássica, conquanto, na prática, tenham uma
mesmo tempo próximo e distante das tradições afinidade essencial com ela, no sentido delineado no
clássicas, mas sem deixar de atuar como um parágrafo anterior. É óbvio que esse quadro é uma
verdadeiro libertário. Quanto a Castoriadis, ele foi, simplificação. Para ilustrar: há várias maneiras de
com toda a certeza, o mais original renovador do retomar diretamente o anarquismo clássico, desde o
pensamento libertário na segunda metade do século anarquismo “especifista” preconizado pela
XX, e o principal expoente filosófico do Federação Anarquista Uruguaia/FAU (e assimilado,
autonomismo. no Brasil, por diversas organizações) até outros
Em particular, cabe reconhecer a diversidade tipos de (re)leituras; os neoanarquistas são de
do universo libertário, sobretudo em um momento diferentes matizes, indo de Murray Bookchin até
de relativo renascimento como é o atual. É preciso Hakim Bey (para citar dois casos bem
evitar a todo custo o dogmatismo – dogmatismo contrastantes); os autonomistas, como já disse, vão
esse que, por exemplo, magoou e afastou Bookchin, desde aqueles que se sentem tributários da herança
e decerto colaborou para manter Castoriadis à clássica (como é o meu caso) até aqueles que, como
distância dos anarquistas. Hoje como no passado, Castoriadis, não se veem ou viram dessa forma; por
nenhuma corrente deve cometer o erro de buscar o fim, os anarcopunks, mesmo não oferecendo uma
monopólio da verdade e menosprezar as demais, contribuição teórico-intelectual original (sua marca
pois isso só fortalece os adversários, e não a causa distintiva são suas práticas e seu estilo de vida), e
libertária. Na sua essência, o pensamento e a práxis sendo, eles próprios, um grupo que não é
libertários são aqueles que, radicalmente, propriamente homogêneo (ainda mais hoje em dia,
simultaneamente se opõem ao capitalismo (e ao seu em que os remanescentes do movimento punk fazem
Estado) e ao marxismo, em nome de princípios releituras variadas de sua própria tradição),
como autogestão, horizontalidade, associações deveriam ser incluídos, se estivéssemos tratando de
livres, ajuda mútua, descentralização e organização apresentar, de maneira mais ampla, o campo
federativa. libertário (e não, acima de tudo, o pensamento
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A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

libertário). Estou consciente, portanto, de que, em O pensamento libertário na Geografia –


um texto de maior fôlego, a caracterização teria de origens e desafios contemporâneos
ser, forçosamente, menos abreviada. Voltemo-nos, agora, para as matrizes do
Por outro lado, a necessidade de ampliação de pensamento libertário na Geografia: Élisée Reclus
horizontes não deve servir de álibi para se “jogar um (1830-1905) e Piotr Kropotkin (1842-1921). Não
bote salva-vidas” a um marxismo em crise de vou entrar em detalhes; tenho escrito sobre o papel e
identidade. Há várias pessoas que, sem maiores a obra de cada um, tenho dado palestras e cursos
escrúpulos, se utilizam da problemática expressão sobre eles – não desejo, pois, ficar me repetindo. No
“marxismo libertário” para referir-se a certos tipos entanto, é importante frisar o orgulho que todos os
de marxismo heterodoxo. Isso é, na melhor das geógrafos deveriam sentir por terem tido, em suas
hipóteses, um equívoco, talvez uma ingenuidade; e, fileiras, figuras desse calibre intelectual e ético.
na pior, uma fraude político-intelectual. No âmbito Élisée Reclus e Piotr Kropotkin (especialmente o
do marxismo, têm havido autores mais ou menos segundo) são, há muito tempo, nomes bastante
marginais e correntes minoritárias que tentaram conhecidos fora da Geografia; infelizmente, isso não
driblar a dimensão autoritária do pensamento é algo que se possa dizer, com a mesma convicção,
marxiano; esses autores e correntes (notadamente os de outros geógrafos do período anterior à Segunda
“conselhistas”, como Anton Pannekoek e Karl Guerra Mundial. Até mesmo nomes de grande
Korsch) são, é bem verdade, até certo ponto, relevo, como Paul Vidal de La Blache e Alfred
convergentes com os libertários. Mas não Hettner, circulam bem menos entre não-geógrafos
totalmente: se, por um lado, endereçaram críticas que os nomes de Reclus e, principalmente,
contundentes ao leninismo e à forma de organização Kropotkin. Já em vida, aliás, foram esses dois
partidária, optando, alternativamente, por formas de geógrafos bastante reconhecidos, inclusive por suas
organização horizontais como os conselhos realizações científicas, ainda que não propriamente
operários, por outro lado mostraram-se um tanto pelo mundo universitário (que, de um modo geral,
ambíguos no que se refere a certos aspectos os manteve à distância): Reclus chegou a receber
importantes do legado marxista (como o medalhas (da Sociedade Geográfica de Paris e da
economicismo, e mesmo, em certa medida, a Real Sociedade Geográfica, do Reino Unido), e os
questão do “Estado socialista”). Ora, se fossem livros de Reclus (já desde La Terre, cujos dois
totalmente convergentes, eles seriam, por definição, tomos foram publicados em 1868 e 1869, quando
não mais marxistas, pois isso significaria que teriam seu autor ainda nem sequer tinha quarenta anos de
voltado totalmente as costas para a parte mais típica idade) e de Kropotkin granjearam amplo respeito
e predominante do legado de Marx. entre os cientistas de sua época.
No século XX, contudo, ambos foram
relegados ao esquecimento. O ambiente acadêmico,
que quase nunca lhes abriu as portas, continuou a

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A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

menosprezá-los. E, interessante e escandalosamente certo desprezo disfarçado, uma ambiguidade


(mas compreensivelmente), mesmo a “Geografia essencial. E, quando eu disse, linhas atrás,
crítica” que emergiu nos anos 1970 não fugiu muito “compreensivelmente”, é porque, se levarmos em
à regra. É verdade que, nos anos 1970, Kropotkin conta as importantes diferenças doutrinárias e a
chegou a ser mencionado algumas vezes, histórica rivalidade entre libertários e marxistas,
especialmente em países de língua inglesa – por somente um improvável descuido poderia levar os
exemplo, em textos publicados na revista Antipode. últimos a prestigiarem de modo consequente e
Na França, Reclus passou a ser “resgatado” nas profundo os primeiros. O fator mais relevante para o
décadas de 1970 e 1980. Todavia, foram marxistas, (limitado) prestigiamento levado a cabo nas décadas
em geral, os principais responsáveis por esse tipo de de 1970 e 1980 certamente foi o fato de que os
“resgate” tardio (nos EUA, Richard Peet, por geógrafos marxistas não tiveram em suas fileiras, no
exemplo; na França, Yves Lacoste, e, em seguida, período da Geografia dita tradicional, personagens
uma orientanda sua, de figurino ideológico não tão ilustres e coerentes como Reclus e Kropotkin,
muito bem definido, Béatrice Giblin). Um “resgate” passíveis de serem reivindicados como heróicos
que, a bem da verdade, permaneceu episódico e ancestrais – ainda que não para terem suas ideias
superficial. Tenho denominado esse tipo de verdadeiramente discutidas e aproveitadas...
homenagem deveras circunscrita, em ocasiões Hoje, porém, mais de duas décadas depois da
anteriores, de tratamento “museológico”, uma vez queda do Muro de Berlim, vemos um marxismo
que os pensadores e suas obras são antes admirados inseguro, por mais que a atual crise tenha trazido um
como peças de museu que como personagens e certo alento. Observemos, por exemplo, algumas
ideias cuja atualidade seja de justiça lembrar e das opiniões emitidas por David Harvey – o
valorizar.2 geógrafo contemporâneo mais conhecido
Havia, pois, uma certa hesitação, e, internacionalmente e, ao mesmo tempo, um dos
provavelmente, no fundo, não poucas vezes um marxistas mais respeitados no mundo todo. Sua
2
Dentre as contribuições de Reclus, podemos destacar opinião sobre os governos de esquerda (com ou sem
as seguintes (entre outras), atualíssimas em seu cerne:
aspas) na América Latina contemporânea (por
sua capacidade de valorizar a exploração e a luta de
classes sem, contudo, subestimar ou fechar os olhos exemplo, Venezuela e Brasil), bem como sobre a
para outros tipos de opressão, como o racismo e o
patriarcado; suas belas e equilibradas reflexões sobre China, foi expressa em um artigo publicado alguns
a degradação ambiental e os vínculos entre sociedade anos atrás:
e natureza; a compreensão profunda da dependência
recíproca entre Geografia e História. Quanto a Enquanto existem alguns sinais de
Kropotkin, sua insistência sobre a “ajuda mútua” e recuperação tanto da organização dos
sua exigência de descentralização econômico-espacial trabalhadores quanto da política de
e descentralização territorial radicais merecem ser esquerda (em oposição à “terceira via”
ressaltadas. Tal reconhecimento não precisa, note-se, celebrada pelo New Labour na Grã-
fazer-se em prejuízo do reconhecimento de que as
Bretanha sob Tony Blair, e
obras de ambos eram frutos do século XIX e do início
do século XX, estando, por isso, embebidas em um desastrosamente copiada por muitos
caldo de valores e convicções que, em larga medida partidos social-democratas na Europa),
(pensemos no cientificismo, no mito do “progresso” juntamente com sinais de emergência
etc.), podemos e devemos rever e questionar. de mais partidos políticos radicais em
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A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

diferentes partes do mundo, a A esse otimismo exagerado, baseado em


dependência exclusiva em relação a
informações inadequadas e uma chave de
uma vanguarda de trabalhadores é
agora posta em questão, assim como interpretação enviesada, reagi com o seguinte
também o é a capacidade daqueles
comentário:
partidos de esquerda que ganham
algum acesso ao poder político de ter Tomando aparências por substância, ele
algum impacto substancial sobre o [Harvey] assume que o governo
desenvolvimento do capitalismo e fazer brasileiro sob Lula é de esquerda
face à turbulenta dinâmica de um (enquanto, na verdade, trata-se de um
processo de acumulação suscetível a governo de tipo populista, baseado em
crises. (...) Porém, partidos políticos e uma coalizão de partidos que abrangem
sindicatos de esquerda ainda são desde a centro-esquerda até a centro-
significativos, e o fato de assumirem a direita, e que é liderada por um ex-
direção de aspectos do poder estatal, partido de esquerda). Contudo, o que é
como nos casos do Partido dos particularmente surpreendente é que,
Trabalhadores no Brasil e do para ele, o problema de como
movimento bolivariano na Venezuela, interpretar o papel do Partido
tem tido um claro impacto sobre o Comunista na China é “complicado”... 4
pensamento da esquerda, e não apenas
na América Latina. O complicado E, depois, assim expliquei em uma nota:
problema de como interpretar o papel
do Partido Comunista na China, com o
seu controle exclusivo do poder As políticas econômica e social têm
político, e quanto ao que suas políticas sido, sob Lula, uma mistura de
poderão ser no futuro, tampouco está estatismo e elementos neoliberais, na
resolvido.3 (Harvey, 2009, páginas não qual aspectos tais como
numeradas) “responsabilidade fiscal”, a prioridade
conferida ao agronegócio e a ausência
de uma verdadeira reforma agrária são
3 “mitigados” por meio de políticas
David Harvey (2009), “Organizing for the Anti-
Capitalist Transition”. On-line:
públicas compensatórias. A propósito,
http://www.zmag.org/znet/viewArticle/23393, quando Harvey (certamente não muito
16/01/2010. No original: “While there are some signs bem informado e, além disso, na
of recovery of both labor organizing and left politics verdade, reproduzindo um viés
(as opposed to the “third way” celebrated by New interpretativo estatista) escreveu em
Labor in Britain under Tony Blair and disastrously seu artigo anterior sobre o “direito à
copied by many social democratic parties in Europe) cidade” que um arcabouço legal,
along with signs of the emergence of more radical conquistado “após pressão dos
political parties in different parts of the world, the movimentos sociais”, foi introduzido
exclusive reliance upon a vanguard of workers is now
4
in question as is the ability of those leftist parties that Marcelo Lopes de Souza (2010), “Which right to
gain some access to political power to have a which city? In defence of political-strategic clarity”.
substantive impact upon the development of Interface: A Journal for and about Social Movements,
capitalism and to cope with the troubled dynamics of 2(1), pág. 325. On-line: http://interface-
crisis-prone accumulation. (...) But left political articles.googlegroups.com/web/3Souza.pdf),
parties and labor unions are significant still, and their 27/05/2010. No original: “Mistaking appearances for
takeover of aspects of state power, as with the substance, he assumes that Brazil’s government under
Workers’ Party in Brazil or the Bolivarian movement Lula is a left-wing one (while it is in truth a populist
in Venezuela, has had a clear impact on left thinking, government, based on a coalition of parties which
not only in Latin America. The complicated problem ranges from centre-left to centre-right and which is
of how to interpret the role of the Communist Party in led by a former left-wing party). But what is
China, with its exclusive control over political power, particularly astonishing is that for him the problem of
and what its future policies might be about is not how to interpret the role of the Communist Party in
easily resolved either.” China is a ‘complicated’ one…”
Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 10
A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

como uma ferramenta “para reconhecer de MLS).6 Harvey tinha escrito algumas páginas
o direito coletivo à cidade” no Brasil
antes que “os fracassos de tentativas passadas de
(...), ele tanto está exagerando o
alcance do referido arcabouço legal (e construir um socialismo e um comunismo
mesmo o papel dos movimentos sociais
duradouros precisam ser evitados, e lições precisam
nesse contexto) quanto contribuindo
para a banalização da bandeira do ser extraídas dessa história imensamente
“direito à cidade”.5
complicada”.7 A conclusão inevitável, de um ponto
Como é possível falar de uma “revolução” de vista libertário, é que ele não aprendeu muito as
nessas circunstâncias (ou mesmo a propósito do lições oferecidas por essa “história imensamente
caso venezuelano, certamente mais complexo)? complicada”...
Quanto ao capitalismo burocrático-autoritário Quando Harvey escreve que “um movimento
chinês, a simples menção a um “momento anticapitalista global é improvável de emergir sem
revolucionário” (revolutionary moment) é uma alguma visão que o anime a propósito do que é para
afronta contra não somente os libertários, mas ser feito e como”, essa é uma observação que soa
também contra o legado de marxistas heterodoxos como uma preparação e o significado profundo que
como A. Pannekoek, K. Korsch, H. Marcuse, E. P. se tornará claro posteriormente: ele sonha (como
Thompson e J. Bernardo. Contra esse pano de marxistas ortodoxos fazem) com um “sujeito
fundo, não é surpresa que Harvey tenha sublinhado, revolucionário privilegiado” e com uma teoria (ou
em seu texto de 2009, que “(…) a teoria “visão”) unificadora que possa esclarecer o que esse
correvolucionária anterior sugere que não há “sujeito” deve fazer (“e como”). Ele sabe que a
maneira de construir uma ordem social classe trabalhadora ( o Proletariat em sentido
anticapitalista sem tomar o poder de Estado” (ênfase estrito), com seus sindicados e partidos políticos
5 (social democracia e assemelhados) não constituem
Idem, ibidem, pág. 325, nota 6. No original:
mais um “sujeito revolucionário privilegiado” na
“Brazil’s economic and social policy under Lula has been
a mixture of statism and neoliberal elements, in which história. Como marxista, ele deve estar um pouco
features such as ‘fiscal responsibility,’ the priority given confuso (e há muitos fenômenos que confundem os
to agribusiness and the absence of a true land reform are marxistas nos dias de hoje, como o papel dos
‘tempered’ by compensatory social policies. By the way, camponeses enquanto protagonistas críticos muito
when Harvey (surely not very well informed, but actually mais relevantes que os trabalhadores fabris, ou o
reproducing a statist interpretive bias as well) writes in
his earlier paper on the ‘right to the city’ that a new legal
framework, conquered ‘after pressure from social
6
Idem, ibidem, pág. 325. No original: “(…) co-
movements,’ was introduced as a tool ‘to recognize the
revolutionary theory earlier laid out would suggest
collective right to the city’ in Brazil (Harvey 2008, 39), that there is no way that an anti-capitalist social
order can be constructed without seizing state
he is both exaggerating the reach of this legal framework
power.”
7
(and even the role of the social movements in the David Harvey, op. cit. No original: “[t]he failings of
past endeavors to build a lasting socialism and
process) and contributing to a trivialisation of the ‘right to
communism have to be avoided and lessons from that
the city’-slogan.” immensely complicated history must be learned”.
Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 11
A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

papel crítico-transformativo de largas porções do por assim dizer, de uma reação realista contra o
Lumpenproletariat) (...).8 neoliberalismo), de maneira que seu argumento é o
Outro contraste muito evidente entre o tipo de de que “se nós estamos em um momento
leitura feito por um marxista como David Harvey e keynesiano, então nós necessitamos fazer uso disso
aquele tipicamente libertário fica particularmente politicamente”11: “(...) talvez o melhor que nós
evidente quando discutimos as questões postas por possamos fazer por agora é redirecionar esse
ele em um capítulo (escrito em co-autoria com keynesianismo de tal modo que ele antes beneficie a
David Wachsmuth) intitulado “What is to be done? massa do povo que continue a centralizar o poder de
And who the hell is going to do it?”. Sobre os Estado capitalista”.12
fundamentos de uma pressuposição essencialmente No fundo, é claro que isso não é o marxismo
correta, mas mesmo assim bem simplista de que (ou mesmo Harvey) no seu melhor: isso é, antes, um
“nós não estamos, pelo mundo afora, em um marxismo fin-de-siècle, fatigado. Mas esse tipo de
momento revolucionário”9, e apesar do fato, por ele interpretação revela a visão mais ou menos
reconhecido, de que “existe frequentemente um reformista, pseudopragmaticamente estadocêntrica
substancial conflito entre os pensamento keynesiano esposada por tantos marxistas, como uma
e marxista”10, ele conclui que estamos a experienciar consequência de melancolia e confiança insuficiente
um “Keynesian moment” nos dias atuais, (na conta, nos movimentos sociais emancipatórios. Nessas

8
condições, não somente o keynesianismo, mas o
Marcelo Lopes de Souza, op. cit., pág. 325. No
original: “When Harvey writes that “a global anti- capitalismo de Estado em suas formas ainda mais
capitalist movement is unlikely to emerge without
some animating vision of what is to be done and completas tende a aparecer como o único bote salva-
why,” this is a sentence which sounds like a foretaste vidas: “uma vez que nós não estamos, pelo mundo
and the meaning of which becomes later clear: He
dreams (as orthodox Marxists do) of a “privileged afora, em um momento revolucionário − com
revolutionary subject” and of a unifying theory (or
“vision”) which clarifies what this “subject” has to do
possíveis exceções na América Latina e na China −,
(“and why”). He knows that the working class nós atualmente não temos a opção de rejeitar o
(Proletariat in a strict sense) with its trade-unions and
political parties (social democracy and the like) is no keynesianismo. A única opção é indagar que tipo de
longer a “privileged revolutionary subject” in history.
keynesianismo deve haver, e em benefício de quem
As a Marxist, he must be a little confused (and there
are so many phenomena which can confuse Marxists ele deve ser mobilizado.”13
nowadays, such as the role of peasants as much more 11
relevant critical protagonists than factory workers or Idem, ibidem: No original: “if we are in a Keynesian
the critical-transformative role of large portions of the moment then we need to make use of it politically.”
12
Lumpenproletariat) (…).” Idem, ibidem. No original: “(...) perhaps the best we
9
David Harvey [com David Wachsmuth] (2009), can do right now is to redirect that Keynesianism in
“What is to be done? And who the hell is going to do such a way that it benefits the mass of the people
it?”. In: Neil Brenner, Peter Marcuse e Margit Mayer rather than continue to centralize capitalist state
(orgs.). Cities for People, not for Profit. Critical power.”
13
Urban Theory and the Right to the City. Routledge, Idem, ibidem, pág. 273. No original: “[s]ince
Londres e Nova Iorque. No original (pág. 273): throughout the world we are not in a revolutionary
“throughout the world we are not in a revolutionary moment − with possible exceptions in Latin America
moment.” and China − we do not currently have the option of
10
Idem, ibidem, pág. 271. No original: “[t]here is often a rejecting Keynesianism. The only option is to ask
substantial conflict between Keynesian thinking and what kind of Keynesianism it should be, and to whose
Marxian thinking.” benefit should it be mobilized.”
Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 12
A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

Ao mesmo tempo, porém, em que alguém da menos autoritário; entretanto, não têm sido os
estatura intelectual de Harvey comete tais próprios marxistas os primeiros a marginalizarem os
interpretações, vários recorrem a uma estratégia de “conselhistas”?...
“mimetismo”, que não deixa de ser uma É preciso, de toda maneira, que os libertários
vampirização do pensamento libertário. Põem-se a se acautelem perante as estratégias de “mimetismo”,
falar de “autogestão”, “horizontalidade” etc. como levadas a cabo por um John Holloway (autor de um
se esses princípios e ideias fossem algo totalmente livro intitulado Cambiar el mundo sin tomar el
natural na boca de um marxista. Ora, é bem verdade poder, no qual, interessantemente, não se cita o
que trocas e influências recíprocas ocorreram com anarquismo!) ou mesmo por Antonio Negri (que, em
muita frequência entre marxistas e libertários, e isso suas reflexões sobre o “poder constituinte”, retoma e
já desde o século XIX, a despeito da rivalidade e das simplifica a discussão seminal sobre a sociedade e o
diferenças importantes entre esses dois campos da poder instituintes, de Cornelius Castoriadis, mas
esquerda revolucionária. Com mais frequência, sem dar o devido crédito). Se casos como os de
inclusive, do que os dois lados se dispõem, Harvey causam uma certa perplexidade e, talvez, até
geralmente, a admitir. No entanto, se há algo que é uma certa comiseração, as situações de
característico do pensamento e da práxis libertários “mimetismo” convidam os libertários a exigir que se
– e, por outro lado, nunca foi típico do marxismo –, reconheçam as autorias e as dívidas. Ocorre,
é, exatamente, a ideia de “autogestão” (e ideias contudo, que os libertários só poderão apresentar
correlatas), e já muito antes de essa palavra se essa exigência, com a devida competência, se
popularizar (nos anos 60). Certo, o próprio Marx conhecerem bem a sua própria história – coisa que,
teve os seus “momentos libertários”, como o belo infelizmente, muitas vezes não acontece. Devido a
ensaio A guerra civil na França, sobre a Comuna de uma resistência obscurantista ao estudo sistemático
Paris, publicado ainda em 1871; mas esses e aprofundado e à reflexão teórica (como se “teoria”
momentos foram exceções no conjunto de seu fosse sinônimo de onanismo intelectual e perda de
pensamento e de sua prática organizativa, ao passo tempo), não raro os próprios libertários são os seus
que a leitura tipicamente autoritária da “ditadura do mais constantes adversários. Muitos parecem
proletariado” e do “Estado socialista” como desconhecer que os exemplos de Reclus (e mesmo
momentos de transição (sem atentar para a brutal de Kropotkin), no passado distante, e de Bookchin e
contradição entre esses meios e o fim, que era, a Castoriadis, bem mais recentemente, dão vívido
exemplo dos libertários, a dissolução do Estado e a testemunho do inverso: a saber, de um notável
construção do comunismo) foi, ela sim, típica. E, esforço de preparação intelectual – obviamente,
sem dúvida, também é possível lembrar exemplos sempre em conexão com práticas de resistência e
de tentativas de marxistas honestos e sensíveis, insurgência. Sem esse tipo de esforço, não será
como Anton Pannekoek (talvez o mais conseqüente possível apontar de maneira convincente as
dentre os “conselhistas”), de criticar radicalmente o rachaduras no imponente edifício teórico marxista.
leninismo, buscando resgatar, de Marx, seu veio
Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 13
A Geografia e o pensamento libertário Marcelo Lopes de Souza

E, em última análise, não será possível avançar podem ser um desafio produtivo e – por que não? –,
muito, em geral. às vezes, até mesmo um fator de enriquecimento;
Sem dúvida, os perigos que se nos porém, considerando o oportunismo de certos
apresentam aos libertários não são nenhum marxistas, devem, também, ser uma fonte de
privilégio dos geógrafos; tampouco é a melhor preocupação.
preparação intelectual um desafio que se restrinja Para os libertários há, agora, uma chance
aos libertários brasileiros. Mas, mesmo com a onda visível, como não havia desde os anos 1930! Eu
recente de interesse por Reclus (Kropotkin ainda quase ousaria dizer que nós não temos o direito de
está para ser “descoberto”, para não falar dos errar. É preciso, para tanto, evitar, entre outras
demais), o déficit de leitura ainda é especialmente coisas, que ocorra o mesmo que ocorreu com o
grande entre os jovens geógrafos brasileiros de hoje marxismo: a apropriação descontextualizada, a
– com aqueles propriamente libertários não podendo banalização. Porém, acima de tudo, é essencial que
ser, aqui, excluídos. os libertários, em meio à barbárie que avulta com
E, com isso, chegamos ao tema dos um capitalismo ao mesmo tempo criminógeno e
movimentos sociais contemporâneos. Muitos deles militarizado, antiecológico e alimentador da
(neozapatistas mexicanos, uma parte dos piqueteros ideologia do “desenvolvimento sustentável”, e que
argentinos, uma parcela do movimento dos sem-teto seduz com ilusões de consumo enquanto corrompe e
no Brasil, e assim sucessivamente) possuem uma dissolve o tecido social por negar a tantos a
inegável dimensão libertária. E é isso que é o possibilidade de consumir, consigam ir além de
principal fator, ao lado da crise do marxismo, de um espasmos de indignação. É preciso produzir
renascimento do pensamento e da práxis libertários, conhecimento crítico que seja, simultaneamente,
ainda que um tanto confuso e em meio a toda sorte profundo e com valor operacional (tático,
de hibridismos. Esses hibridismos, em que estratégico e político-pedagógico). E estou seguro
elementos discursivos e práticas libertários se de que, como já o sabiam Reclus e Kropotkin, a
acham, volta e meia, mesclados com ou justapostos Geografia pode colaborar bastante com essa tarefa.
a referências e símbolos de extração marxista,

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Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

– Críticas & alternativas –

Espacialidade cotidiana e processos de negociação no


movimento dos sem-teto carioca:
Reflexões sobre um caso da variante por coletivo

Matheus da Silveira Grandi


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia / UFRJ
matheus_grandi@yahoo.it

Resumo
A proposta de autogestão pressupõe a igualdade de participação efetiva no exercício do poder, seja ele em sua dimensão
formal ou informal. Seu caráter radicalmente democrático é afeito à heterogeneidade, que, por sua vez, pode levar à
formação e consolidação de grupos de afinidade com perspectivas políticas diferentes. Nessa proposta, a igualdade de
participação no poder faz com que cada pessoa tenha o mesmo peso nas deliberações, ganhando ênfase o processo de
convencimento e de disputa por opiniões. No caso de nanoterritórios onde, em meio às interações pessoais, se faz
presente o horizonte autogestionário, dinâmicas e práticas espaciais ligadas à constante e infindável construção desse
regime político influenciam e são influenciadas diretamente pelas negociações feitas no dia a dia. Assim, as
características da espacialidade cotidiana podem colaborar ou dificultar a elaboração de entendimentos nas interações.
Neste artigo buscamos refletir sobre alguns aspectos dessa relação entre a espacialidade e as negociações cotidianas, tão
importantes para processos de mobilização política coletiva de inspiração autogestionária. Para isso, lançamos o olhar
sobre a Ocupação Chiquinha Gonzaga, ligada a uma parcela específica do movimento dos sem-teto carioca formada por
ocupações da variante por coletivo, onde predominam as preocupações com o fomento de relações de poder internas
com reduzidos traços de hierarquia. Através de uma pesquisa participante de caráter exploratório com as características
de uma interação colaborativa (construída para além do período da pesquisa), pudemos observar elementos da
espacialidade e das práticas espaciais cotidianas que indicam a elaboração coletiva de mecanismos próprios de
negociação, tornando bastante específica a forma de autogestão em experiência nesse território. Dessa forma, foi
possível também reforçarmos as indicações feitas por outros autores de que o pano de fundo político-filosófico
aparentemente mais apropriado para a busca de um entendimento mútuo livre de coerções seja o projeto de uma
sociedade basicamente autônoma.

Palavras-chave: Espacialidade cotidiana; Autogestão; Território; Movimento dos sem-teto

Abstract
The proposal of self-management presumes equal and effective participation in the exercise of power, in its formal or
informal dimension. Its radical democratic character allows the expression of heterogeneity and, with time, may lead to
the formation and consolidation of affinities groups with different political perspectives. Considering this proposal, the
equal participation in power gives to every person the same weight in the dynamics of the deliberations, emphasizing
the process of persuasion and the dispute for opinions. In the case of nanoterritories where, among the personal
interactions, the horizon of self-management horizon is present, dynamics and spatial practices related to the constant
and endless process of construction of this political regime influence and are influenced directly by everyday
negotiations. Thus, the characteristics of the spatiality of everyday life could collaborate or disturb the elaboration of
understanding of these interactions. In this article, we reflect upon some aspects of the relation between the spatiality
and the everyday negotiations, both of which are important elements for processes of collective political mobilization
inspired by self-management. In order to do that, we considered the case of Ocupação Chiquinha Gonzaga, which is
part of a specific portion of the sem-teto movement of Rio de Janeiro (ie. the collective variant of this movement) where
concerns related of the promotion of horizontal power relations predominates. Within an exploratory participant

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 15


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

research with characteristics of a collaborative interaction (nourished even beyond the research period), we observed
elements of the spatiality and everyday spatial practices that indicate a collective construction of particular mechanisms
of negotiation, making the self-management experience of this territory a very specific one. We also reinforce the
indications made by other authors that the political-philosophical background apparently more appropriate for the
pursuit of mutual understanding, free of all kind of coercions, may be the project of a basically autonomous society.

Key-words: Spatiality of everyday life; Self-management; Territory; Sem-teto movement.

Situando: Da disputa pelo espaço urbano à os movimentos sociais seguem sendo ricos
necessidade do diálogo
“laboratórios” onde são ensaiadas com

A
frequência formas de relações sociais que se
construção social do espaço é
distinguem das predominantes na sociedade
forçosamente um processo
ocidental contemporânea em diferentes
político. O espaço urbano, cuja
aspectos. Assim são vistas experiências do
construção é permeada pelos conflitos e tensões
movimento dos sem-teto, um dos “novíssimos”
entre diversos agentes modeladores,1 não se
movimentos sociais7 que ganhou destaque nas
diferencia disso. Nesse âmbito, o papel dos
últimas décadas no país. Através da prática
movimentos sociais precisa ser constante e
espacial insurgente da ocupação de imóveis
insistentemente destacado.2 No caso deste
ociosos (públicos e privados, na periferia e nos
artigo, o foco está voltado para processos de
centros urbanos),8 o movimento tem buscado
luta popular ligados à chamada “questão da
criar, construir e fortalecer alternativas no
habitação” que, no Brasil, remete tanto a
combate à falta de habitação.
discussões feitas pelo movimento operário
Os diferentes casos e organizações que
carioca do início do século XX3 quanto àquelas
compõem esse movimento têm formas de
ligadas aos debates sobre a Reforma Urbana.4
organização política interna bastante diversas.
Trata-se de uma questão sempre inserida nos
Quanto a isso, algumas ocupações do Rio de
marcos gerais daquilo que vem sendo chamado
Janeiro se destacam por adotarem uma
de direito à cidade.5
organização política interna sem hierarquia
Mesmo em uma época entendida por
formal entre os/as moradores/as,9 modelo que
alguns como de “conformismo generalizado”,6
7 Cf. Souza (2002, 2006a, 2009b) e Rodrigues (2005).
8 Cf. Moreira, Grandi e Almeida (2010)
1 Cf. Corrêa (1997, 2004) 9 Cf. Souza (2006a, 2009a, 2009b, 2011); Mamari
2 Cf. Souza (2000, 2002, 2006a, 2006b, 2011). (2008); Teixeira e Grandi (2008); Almeida, Grandi e
3 Cf. Valladares (1983) Moreira (2009); Oliveira (2009); Teixeira (2009);
4 Cf. Souza (2002) Moreira, Grandi e Almeida (2009); Grandi (2010);
5 Cf. Lefebvre (2001). Sobre o atual esvaziamento e Grandi e Teixeira (2010); Lima (2010); Almeida
enrijecimento político da expressão, ver Souza (2011); Freire (2011); Moreira (2011). Sobre
(2010). exemplos diferentes, ver Cassab (2004), Lima (2004)
6 Cf. Castoriadis (2004). e Bloch (2007).

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Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

vem sendo identificado como variante por intensa de moradoras e moradores das
coletivo.10 Esta e outras características ligadas à ocupações seja enfatizada e requisitada. São
sua história e processos de constituição tem elementos que ganham destaque especialmente
feito com que as ocupações Chiquinha Gonzaga na conjuntura política atual do país,
(2004), Zumbi dos Palmares (2005)11 e quando/onde a ideia de participação em sentido
Quilombo das Guerreiras (2006) venham sendo forte é sistematicamente esvaziada em
consideradas uma parcela específica do processos “pseudo-democráticos”.
movimento dos sem-teto carioca. Localizadas As ocupações dessa parcela do
na área central da cidade, um dos principais movimento dos sem-teto carioca apontam uma
pontos que têm em comum é a sua instância possibilidade de radicalização do caráter
máxima de deliberação: o Coletivo, que possui democrático do processo de negociação e
a legitimidade para definir formalmente as definição das normas e regras de suas
regras válidas nesses territórios, no qual é coletividades. Assim, refletir sobre a dinâmica
garantido acesso e o mesmo peso em eventuais de interações que se desenrolam no seu interior
votações a todas as famílias.12 é uma tarefa que se liga a questões da prática
Essas definições derivam de intrincados política cotidiana. Afinal, é difícil não notar a
processos de negociação, buscando mecanismos enorme dificuldade que muitos ativistas e
para assegurar as características e os organizações enfrentam atualmente ao tentarem
comportamentos que as pessoas da ocupação aglutinar forças visando ganhos táticos e/ou
julgam fundamentais para seu espaço de estratégicos. Mas não se trata de tentar
moradia.13 Tal proposta de organização política encontrar aqui qualquer tipo de “remédio
interna implica em processos amplos e abertos milagroso” para uma das dificuldades que vêm
de discussão, fazendo com que a participação há algum tempo desafiando o caminhar de
muitas lutas. É justamente no sentido de pensar
10 Em contraste com essa variante há aquela identificada
como variante por coordenação. Cf. Souza e Teixeira sobre tal dificuldade que parece importante
(2009)
11 A Ocupação Zumbi dos Palmares foi despejada no prestar atenção aos processos de negociação
início de 2011 como desfecho de acontecimentos que
exigem reflexões aprofundadas para sua melhor que, para além de dividir e fragmentar, podem
compreensão. Durante alguns meses a Ocupação
Machado de Assis, realizada em 2008, também (ou poderiam) colaborar com a aproximação e
compôs essa fração – depois do que teve sua forma de cooperação entre diferentes opiniões e
organização interna alterada.
12 Essa instância também reforça o apartidarismo bandeiras de luta. Em suma: parece ser urgente
característico dessas ocupações.
13 As vemos como embriões de “formas alternativas de pensar sobre como pessoas podem se
existência coletiva” (RIBEIRO, 1991) ou mesmo
como heterotopias urbanas (RAMOS, 2010). aproximar, ao invés de se afastar.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 17


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

Acreditamos na importância que a interessamos em buscar elementos da


espacialidade cotidiana tem nessa problemática. espacialidade cotidiana que pudessem
Observar aspectos que podem colaborar ou colaborar ou dificultar a conquista paulatina
dificultar a negociação de diferenças parece de interações livres o máximo possível de
fundamental à instauração de relações sócio- coerções de toda ordem. Para isso, partimos de
espaciais que prezem por interações com reflexões de caráter exploratório sobre a
reduzidos traços de coerção – característica experiência de/em um território específico dessa
bastante cara à democracia em sentido radical14 parcela do movimento dos sem-teto carioca que,
e que se torna particularmente instigante ao ser gerido por uma coletividade constituída e
quando experimentadas por coletividades que constituinte de/por trajetórias e características
apresentam reduzidos traços de hierarquia em particulares, levanta questões pertinentes ao
suas relações de poder formais internas. Foi assunto: a Ocupação Chiquinha Gonzaga.
nesse sentido que surgiram as preocupações da O pano de fundo teórico-político foi
pesquisa que deu origem a este artigo.15 Nos composto, por um lado, pelas reflexões a
respeito do “projeto de autonomia” inspiradas
14 “(...) [O] regime de auto-instituição explícita e lúcida,
na medida do possível, das instituições sociais que nas considerações do pensador greco-francês
dependem de uma atividade coletiva explícita.”
(CASTORIADIS, 2002:260) Ela é um regime no qual Cornelius Castoriadis. Por outro, pela teoria da
a possibilidade, de direito e de fato, de se auto-
instituir permanentemente é garantida através de ação comunicativa elaborada pelo filósofo e
todas as disposições necessárias para tal.
(CASTORIADIS, 2004) Na democracia radical, no
sociólogo alemão Jürgen Habermas. Essa
fundo sinônimo de uma sociedade basicamente escolha deu-se por conta da suspeita de que
autônoma, “(...) a esfera pública torna-se
verdadeiramente e efetivamente pública – pertencente tanto nas reflexões sobre o projeto de
a todos e efetivamente aberta à participação de todos.”
(CASTORIADIS, 2002:264) Esta definição traz autonomia quanto na teoria da ação
consigo o reconhecimento das três esferas das
atividades humanas consideradas na democracia grega comunicativa existiriam elementos que
ateniense da antiguidade: o oikos, a agora e a
poderiam se complementar exatamente no
ekklesía. (CASTORIADIS, 2002; 2004) O oikos
refere-se à esfera dos negócios privados, da casa- sentido das preocupações da pesquisa.16
família. A agora, à esfera que envolve os negócios
privados/públicos do comércio e da formação das Metodologicamente, buscamos um enfoque
opiniões, da discussão aberta e livre que, ao mesmo
tempo, não tem a incumbência nem a possibilidade de
sancionar decisões políticas. Essas sanções têm lugar
e momento na ekklesía, locus do poder explícito da espaciais insurgentes e processos de comunicação:
sociedade. É a esfera pública/pública de discussão e Espacialidade cotidiana, política de escalas e agir
deliberação a respeito dos negócios comuns. Ela comunicativo no movimento dos sem-teto no Rio de
compreende tanto a “assembleia do povo” quanto o Janeiro”, desenvolvida entre 2008 e 2010 junto ao
“governo” e os tribunais. Somente com essas três Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ e
esferas suficientemente discerníveis e articuladas que orientada pelo Prof. Dr. Marcelo Lopes de Souza – a
se pode considerar um regime realmente democrático. quem agradecemos a orientação de então.
15 Artigo derivado da pesquisa intitulada “Práticas 16 Cf. Souza (2000, 2002, 2006a).

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 18


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

particular de pesquisa participante,17 valendo-se possibilidades vistas de cooperação entre um


de trabalho de campo de cunho qualitativo. horizonte autonomista e a preocupação com um
Como instrumentos de coleta de dados foram agir orientado ao entendimento mútuo.
empregados a observação participante (e
respectivas notas de campo); entrevistas formais Rápidas pinceladas sobre o projeto de
autonomia e o agir comunicativo
(semi-abertas e fechadas); e entrevistas
informais (com e sem diretriz). A análise de
No decorrer de sua obra, e especialmente
tabelas e gráficos foi enriquecida com
após o rompimento com o marxismo,
preocupações ligadas à análise crítica de
Castoriadis teve como um de seus focos a
18
discurso.
tentativa de elucidar alguns fundamentos do que
Buscando apresentar alguns dos pontos
seria entendido como uma sociedade
principais das reflexões feitas, as páginas
basicamente autônoma.19 O autor entendia a
seguintes serão estruturadas da seguinte forma.
autonomia como sua etimologia sugere: a
Primeiramente, serão feitos alguns
junção dos termos gregos autos (“o próprio”,
apontamentos rápidos e introdutórios sobre o
seja o indivíduo ou a coletividade) e nómos (as
pano de fundo teórico-político que perpassou a
leis, normas, valores, regras e convenções que
pesquisa para ao menos localizar o/a leitor/a em
regem uma coletividade). Diz respeito,
meio aos termos e conceitos utilizados. Logo
portanto, à capacidade de dar-se suas próprias
após, alguns aspectos sobre a espacialidade
leis – o contrário da heteronomia.20 Uma
cotidiana das dinâmicas de negociação interna
sociedade basicamente autônoma não se trata
da Ocupação Chiquinha Gonzaga serão
uma “sociedade perfeita”21 e por isso a ênfase
explorados. Considerações finais serão feitas,
na ideia de projeto. A autonomia (sinônimo de
então, a respeito de como os elementos da
democracia radical) deve ser vista como um
espacialidade cotidiana da ocupação
horizonte político-filosófico e/ou uma “utopia
aparentemente colaboram ou dificultam os
realista”,22 em constante e eterna rediscussão e
processos de negociação internos, bem como as
19 Sobre a biografia de Castoriadis, ver apontamentos de
17 Trata-se da chamada interação colaborativa. Cf. Souza (2002) e Ortellado (2003).
Grandi (2010); Moreira, Grandi e Almeida (2010); 20 A heteronomia pode ter origens extra-sociais (leis
Teixeira e Grandi (2010). Debates no âmbito do “divinas” ou “naturais”) (CASTORIADIS, 1983;
Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio- 2002), intra-sociais (através da opressão de um grupo
Espacial (NuPeD) têm sugerido desdobramentos a da sociedade sobre sua totalidade) e inter-sociais
esse respeito. Cf. Almeida (2011). Ainda que não se (vinda da opressão ou ocupação de grupos ou
utilize dessa abordagem, Moreira (2011) também sociedades diferentes) (SOUZA, 2006a).
colabora para tais reflexões metodológicas. 21 Cf. Castoriadis (2002)
18 Cf. Fairclough (2001) 22 Cf. Souza (2002, 2006a)

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 19


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

elaboração sob os fundamentos da autonomia.23 instituição global da sociedade – lembrando-se


O projeto de autonomia aponta, então, para a a indissociabilidade entre liberdade e
capacidade de interrogação explícita e ilimitada igualdade. Uma vez que a necessidade de se
sobre as significações imaginárias sociais e seu viver coletivamente leva à necessidade do
fundamento possível, em um processo estabelecimento de leis, é impossível a plena e
incessante e auto-reflexivo na busca por reduzir irrestrita liberdade ao se viver em sociedade. A
ao máximo a heteronomia e acabar com a maior liberdade possível passa a ser aquela que
submissão da sociedade instituinte à sociedade garante efetiva e socialmente possibilidades
instituída (sem abolir a diferença entre ambas). iguais para todos de participação na instituição
“A coletividade dará regras a si mesma, global da sociedade. “(...) [S]e trata de
sabendo que o faz, sabendo que elas são ou se igualdade política, de igualdade de participação
tornarão sempre, e em qualquer lugar, no poder” (CASTORIADIS, 2004:210) [grifos
inadequadas, sabendo que pode mudá-las – e no original], o que compreende igualdade no
que elas a constrangem durante todo o tempo acesso, por exemplo, à capacidade efetiva de
em que não as tiver mudado regularmente.” julgar e à real disponibilidade de tempo.25
(CASTORIADIS, 1983:34) (grifos no original) Algumas das categorias centrais de seu
O projeto de uma sociedade basicamente pensamento já surgem aí, e estão ancoradas nas
autônoma não se restringe à autonomia coletiva. duas faces distinguíveis mas indissociáveis da
Esta é inseparável da autonomia individual, instituição global da sociedade: a sociedade
implicando-se mutuamente.24 E não basta tal instituída e a sociedade instituinte. A sociedade
liberdade ser garantida de maneira formal: ela instituída trata-se da dimensão herdada da
deve ser reafirmada constantemente pela sociedade, compreendendo tanto seu substrato
material-concreto quanto as esferas das relações
23 “Uma sociedade justa não é uma sociedade que
políticas e simbólico-afetivas. O ser humano se
adotou leis justas para sempre. Uma sociedade justa é
uma sociedade onde a questão da justiça permanece constitui enquanto indivíduo social específico
constantemente aberta.” (CASTORIADIS, 1983:33)
24 A autonomia individual contem uma face interna e de uma sociedade ao interiorizar o mundo da
outra externa. É através da primeira que se estabelece
uma instância individual reflexiva não- sociedade instituída, tanto em seus fragmentos
predeterminada que desempenha um papel ativo. Já a
segunda surge da impossibilidade de ser livre quanto em sua totalidade virtual, incorporando
sozinho/a – pois sequer há a categoria “indivíduo”
sem a existência da sociedade. Por isso, tal condição é
indissociável da existência de uma paideia que forme 25 A primeira remete a questões como a livre circulação
indivíduos educados para o exercício da liberdade. das informações, a liberdade de pronunciamento, a
“(...) [S]er autônomo implica que psiquicamente centralidade da educação, etc. A segunda está bastante
investimos a liberdade e a intenção da verdade.” ligada (mas não só) às questões econômicas e de
(grifos no original) (CASTORIADIS, 1992:141) produção.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 20


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

as instituições da sociedade.26 Isso ocorre em Mas há junto da sociedade instituída


parte pelo processo entendido pelos gregos também a sociedade instituinte que, através do
antigos como a paideia: a formação integral dos imaginário radical, é a principal causadora da
indivíduos da sociedade, compreendida em seu movimentação da realidade social-histórica.29 É
sentido mais amplo.27 Assim, a polaridade entre a dimensão instituinte que garante a autocriação
sociedade e indivíduo se desfaz sem, ao mesmo e auto-alteração constante da sociedade –
tempo, acabar com sua diferença. Esse incluindo suas significações imaginárias sociais
indivíduo socializado é obra da instituição, e mesmo suas condições material-concretas.30
mantida através do poder – na forma do Assim, Castoriadis valoriza tanto a dimensão
infrapoder e do poder explícito.28 herdada quanto o processo de auto-instituição
O infrapoder é exercido sobre os das sociedades – este muitas vezes ocultado
indivíduos antes mesmo do poder explícito. pela própria sociedade instituída.
Esse infrapoder está sob o peso de uma herança, A igualdade de participação no poder,
pois é o poder da sociedade instituinte e “(...) ao condição para uma sociedade basicamente
mesmo tempo, o do imaginário instituinte, da autônoma, aponta então tanto para o infrapoder
sociedade instituída e de toda a história que nela quanto para o poder explícito. Mas diversas
encontra seu final passageiro.” relações interferem na liberdade e na igualdade
(CASTORIADIS, 1992:127) Já o poder de participação dos indivíduos na instituição da
explícito é estabelecido pela instituição global sociedade. Afinal, são processos que sempre
da sociedade justamente por conta de a paideia envolvem diferentes graus e tipos de
e a sociedade instituída não conseguirem negociações entre indivíduos. Muitas dessas
manter sozinhas a sociedade instituída. Essa dinâmicas se desenrolam em espaços
dimensão do poder é aquela que remete às leis, específicos, dependendo em diferentes graus de
normas e regras estabelecidas formalmente e, interações verbais. As diferentes formas de tais
através de instituições autorizadas a emitirem interações podem influenciar a garantia desses
imposições sancionáveis, garante o monopólio
29 A sociedade instituinte se funda também ao menos em
das significações imaginárias sociais legítimas. duas dimensões: a imaginação radical da
psiquê/soma do indivíduo; e o imaginário social. Cf.
Castoriadis (1982)
26 Cf. Castoriadis (1982) 30 A sociedade se desenvolve, assim, primeiramente
27 Cf. Castoriadis (1992) como “criação de um espaço e de um tempo (de uma
28 O poder é entendido por Castoriadis como a espacialidade e de uma temporalidade) que lhe são
capacidade de levar alguém ou alguns a fazerem próprios, povoados de uma quantidade de objetos
coisas que, largados por conta própria, talvez não 'naturais', 'sobrenaturais' e 'humanos', ligados por
tivessem desejado fazer. Ver Castoriadis (1983; 1992; relações estabelecidas a cada vez pela sociedade
2002). considerada.” (CASTORIADIS, 1992:124)

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pressupostos de liberdade e igualdade radical na como o principal meio de interação desses


participação tanto da dimensão formal quanto indivíduos,33 sua atenção volta-se para ações
informal do poder. Diante disso, é válido linguísticas – necessariamente vistas como
recorrer a autores que pensaram sobre esse ações sociais simbolicamente mediadas34 e
contexto de interações verbais, no sentido de dentre as quais as interações verbais se inserem.
complexificar as reflexões sobre horizontes É a partir daí que Habermas busca refletir sobre
autônomos. “(...) como é que (pelo menos dois)
Decorre daí o interesse nas elaborações do participantes de uma interação podem
filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. coordenar os seus planos de ação de tal modo
Apesar de politicamente muito menos radical e que Alter possa anexar suas ações às ações de
ambicioso do que Castoriadis, Habermas critica Ego evitando conflitos e, em todo o caso, o
o liberalismo político típico e, “(...) na esteira risco de uma ruptura da interação.”
de suas ressalvas contra [ele], salienta o fato de (HABERMAS, 2003:164)
que a autonomia individual, quando concebida O modelo de ação comunicativa seria
divorciada da 'autonomia pública' (…), é uma delineado dessa maneira, quando os indivíduos
abstração individualista (…)” (SOUZA, participantes de uma interação “(...) buscam
2006a:77). entender-se sobre uma situação de ação para
Optamos então por dar atenção à sua poder assim coordenar em comum acordo seus
Teoria da Ação Comunicativa. Partindo de planos de ação e com eles suas ações.”
críticas às formas como o ideal iluminista tem (HABERMAS, 1999a:124) [tradução livre]
sido buscado,31 Habermas busca ampliar a Seriam interações orientadas ao entendimento
abrangência da racionalidade para abarcar a mútuo alcançado comunicativamente,
capacidade de entendimento e renovar as
se exclusivamente ao sucesso. Cf. Habermas (1999a)
esperanças na emancipação humana através da
33 Cf. Freitag e Rouanet (1993).
razão. Para isso, o intelectual alemão aposta em 34 Cf. Habermas (1999b). O autor considera que os
planos da luta política compreendem tanto a ação
formas de interação nas quais os indivíduos instrumental, quanto a elucidação pedagógica e os
discursos práticos – este vinculado diretamente às
buscariam coordenar seus planos de ação não só ações orientadas ao entendimento mútuo. (FREITAG
e ROUANET, 1993) Concordamos aqui com essa
de maneira instrumental mas também ressalva, fazendo eco ao que Souza (2002) também
comunicativamente.32 Julgando a linguagem destaca e lembrando que as ações instrumentais têm
um papel crucial para a difusão de conhecimentos e
31 Cf. Habermas (1999a, 2007) saberes técnicos, por exemplo. Ver Habermas (1999a).
32 A ação orientada pela racionalidade instrumental Problemas surgem ao se hipertrofiar a razão
partiria de um modelo teleológico. Nele o ator tem em instrumental, arriscando-se a tratar questões políticas,
mente um fim específico e busca eleger dentre suas éticas e morais como meras discussões técnicas (como
alternativas de ação aquelas mais eficazes orientando- é comum atualmente).

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 22


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

condicionando a ação ao acordo sobre o sendo tanto o contexto de inserção quanto a


processo através do qual suas diretrizes serão fonte de recursos que orientam as ações. Nesse
elaboradas/definidas. É uma situação de sentido, o/a participante de uma interação
ação/fala que pode não conseguir gerar o orientada ao entendimento se insere em um
entendimento mútuo, mas que tem por base os processo circular enquanto iniciador/a e
pressupostos dessa busca.35 É assim que, produto das tradições nas quais se encontra. É
enquanto no agir instrumental “(...) um atua um pressuposto para a ação comunicativa o
sobre o outro para ensejar a continuação compartilhamento mínimo do mundo da vida,
desejada de uma interação, no agir superando um simples “co-estar” no tempo ou
comunicativo um é motivado racionalmente no espaço no sentido de compartilhar o contexto
pelo outro para uma ação de adesão (…)” do qual o que é tematizado é retirado ou faz
(HABERMAS, 2003:79) [grifos no original] referência. Tal contexto pode, então, ser
A ação comunicativa ocorre sempre a composto tanto pelo cotidiano quanto extrapolar
partir de algo que é pinçado pelos/as o que é circunscrito por essa escala espaço-
participantes de seu mundo da vida. Este é temporal próxima-imediata.
esquematizado em três principais esferas: o Além do compartilhamento do mundo da
mundo da vida objetivo, social e subjetivo,36 vida, a ação comunicativa depende também do

35 Habermas é alvo de diversas críticas, muita delas oferecimento de pretensões de validez pelas
bastante pertinentes. Algumas argumentam que sua
teoria da ação comunicativa cega aos conflitos entre
pessoas envolvidas. Significa que, sendo o caso,
os atores em interação (MOUFFE, 2000). Porém, a pessoa orientada pela busca do acordo se
parece clara a presença do conflito, já que sua teoria
pressupõe coordenar as diferentes perspectivas dos dispõe a resgatar e defender as garantias da
falantes, ouvintes e observadores no domínio de
relevância de certo tema. Trata-se de entendê-la como veracidade (mundo objetivo), correção (mundo
um processo possível de coordenação de intenções de
agir no mundo; social) e sinceridade (mundo subjetivo) de seus
36 O mundo da vida tem origem na fenomenologia. É
enunciados. Esse acordo “(...) não pode ser
aquilo que os participantes da interação “(...) têm
defronte como conteúdos intramundanamente imposto à outra parte, não pode ser extorquido
constituídos de sua comunicação – objetos, que
percebem e manipulam, normas obrigatórias, que no mundo objetivo (relativo ao estado de coisas
preenchem ou infringem, vivências de acesso cognitivamente acessíveis, entidades que são
privilegiado, que podem manifestar.” (HABERMAS, passíveis de enunciados verdadeiros), no mundo
2003:169) Outros elementos também compõem o social (relativo às relações interpessoais reguladas por
mundo da vida, servindo como recursos para o agir normas legitimamente estabelecidas e passíveis de
orientado ao entendimento mútuo, como “(...) as enunciados corretos) ou no mundo subjetivo (relativo
solidariedades dos grupos integrados por intermédio à totalidade de experiências e vivências às quais o
de valores (…)” e as “(...) competências dos falante tem acesso privilegiado e a partir das quais se
indivíduos sociabilizados (…).” (HABERMAS, pode construir enunciados sinceros). Empiricamente,
2003:166) Para HABERMAS (1999b, 2003), ao porém, o falante se refere simultaneamente a aspectos
estabelecer linguisticamente um ato de fala padrão, o dos três “mundos”, seguindo então uma atitude
falante pode estabelecer uma relação direta com algo realizativa de tipo global. (HABERMAS, 1999a)

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ao adversário por meio de manipulações: o que pela racionalidade comunicativa (enquanto


manifestamente advém graças a uma horizonte para as interações pessoais) podem
intervenção externa não pode ser tido na conta oferecer a processos de mobilização de
de um acordo.” (HABERMAS, 2003:165) indivíduos e grupos sociais com valores e
[grifos no original] Seria através da inspirações minimamente comuns – ainda que
argumentação (entendida enquanto processo)37 mantendo heterogeneidades internas. Algumas
que os sujeitos poderiam encaminhar a situação experiências de movimento sociais se encaixam
para um “consenso verdadeiro”, no qual não aí. É por isso que voltamos as atenções para
haveria nenhum tipo de coação ou efeito algumas características da espacialidade
externo/interno à estrutura da comunicação. cotidiana da Ocupação Chiquinha Gonzaga que
Para Habermas, essa seria uma situação aparentavam se relacionar com a dinâmica
linguística ideal.38 interna de suas interações pessoais, buscando
Percebe-se certo tom idealista nas aspectos que colaborassem ou dificultassem a
considerações dessa teoria habermasiana. Seus construção de entendimentos entre seus/suas
limites são claros, até porque nem sempre há a moradores/as.
possibilidade concreta de diálogo entre as
diferenças. Existem limites para o agir Em experimento: Algumas linhas sobre a
espacialidade cotidiana da Ocupação
comunicativo. Porém, vale buscar as possíveis
Chiquinha Gonzaga
colaborações que interações verbais animadas
A experiência da Ocupação Chiquinha
37 Os pressupostos para tal argumentação seriam: (a) ter
como regra um princípio de universalização (“Toda Gonzaga39 é bastante rica e complexa. Para
norma válida tem que preencher a condição de que as
consequências e efeitos colaterais que previsivelmente pintar um panorama rápido sobre ela, nas
resultem de sua observância universal, para a
satisfação dos interesses de todo indivíduo possam ser próximas páginas vamos: (a) apresentar as
aceitas sem coação por todos os concernidos”
arenas e os campos políticos identificados na
[HABERMAS, 2003:147] [grifos no original]); e
também (b) haver acordo sobre o princípio ético para ocupação; (b) elencar aspectos dos processos de
o discurso que garantiria que “[t]oda norma válida
encontraria o assentimento de todos os concernidos, construção das opiniões, de deliberação e de
se eles pudessem participar de um Discurso prático”
(HABERMAS, 2003:148). efetivação das regras nesse território; e (c)
38 Cf. Habermas (1999a) e Freitag e Rouanet (1993). Tal
situação teria como pressupostos que: (1) todos os lembrar alguns papéis desempenhados por
interessados possam participar do discurso; (2) todos espaços-tempo específicos do cotidiano da
tenham oportunidades idênticas de argumentar; (3)
hajam chances simétricas de fazer e refutar Ocupação Chiquinha Gonzaga marcados por
afirmações, interpretações e recomendações; (4) e só
sejam admitidos no discurso atores que (a) ajam de
acordo com normas justificáveis e (b) satisfaçam o 39 Sobre a toponímia das ocupações dessa parcela do
pressuposto da veracidade. movimento, ver Oliveira (2009) e Teixeira (2009).

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interações mais descontraídas. Campos políticos e arenas: Aspectos da


espacialidade na disputa de opiniões
O antigo hotel abandonado há cerca de 20
anos40 pelo INCRA na Rua Barão de São Félix
As reuniões preparatórias se avolumaram,
110 (próximo à Estação Central do Brasil –
por um lado, com pessoas convidadas por serem
Centro) foi territorializado pelo Coletivo da
conhecidas de outras experiências de militância;
Ocupação Chiquinha Gonzaga na madrugada do
por outro, com moradores/as de rua com quem
dia 23 para o dia 24 de julho de 2004 (Figura
ativistas faziam contato. A grande variedade de
1). As suas reuniões preparatórias foram
perspectivas políticas e matrizes discursivas44
organizadas conjuntamente pela Frente de Luta
que compõem o Coletivo começou a se
41
Popular (FLP) e a Central de Movimentos
constituir desde o início dessas reuniões, se
Populares (CMP) durante durante o ano de 2003
consolidando com a abertura de cadastro para
e início de 2004 na sede da CMP, em ruas e
novas famílias ocorrida após a ocupação.45
42
praças da cidade. Os encontros semanais com
Misturavam-se pessoas que nunca haviam tido
as famílias diferenciavam essa experiência das
experiências com movimentos sociais e outras
anteriores do movimento dos sem-teto carioca,
que já tinham histórico de engajamento
estimulando discussões políticas de maneira
político.46 Porém, eram experiências
mais descentralizada, incentivando
predominantemente ligadas ao movimento
procedimentos de autogestão e compartilhando
sindical e estudantil, com pouca familiaridade
conhecimentos sobre comportamentos / táticas a
com a “luta por moradia” ou com a autogestão.
serem adotadas durante o processo de Tal variedade influenciou diretamente a
43
ocupação. formação dos campos políticos da Ocupação
Chiquinha Gonzaga. Eles são identificáveis no
cotidiano, apesar de não serem discerníveis com
exatidão. Demonstram e derivam da
40 Cf. FELRU-RJ (2006) heterogeneidade de pessoas do Coletivo, de seus
41 Cf. Teixeira (2009) e Penna (2010).
42 Integrantes dessas e de outras organizações, bem interesses e suas opiniões sobre o processo político
como ativistas independentes, conformam o chamado da ocupação. Grosso modo, as pessoas que
“apoio” dessa parcela do movimento carioca. Cf.
Souza e Teixeira (2009) e principalmente Almeida possuíam experiências de engajamento político
(2011).
43 Informações obtidas a partir de entrevistas com ex-
ligadas a movimentos populares com valores mais
integrante da FLP (realizada em 22/01/10) e com próximos à autogestão compuseram o embrião do
integrante da CMP (realizada em 15/01/10) – ambas
em conjunto com Rafael Gonçalves de Almeida – 44 Cf. Sader (1988)
além daquelas com moradores/as da ocupação. Sobre 45 Atualmente a Ocupação Chiquinha Gonzaga é
esse momento prévio à ocupação, no qual é ensaiada a composta por aproximadamente 60 famílias.
forma de gestão coletiva, ver Almeida (2011). 46 Ver também Oliveira (2010).

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Figura 1: Localização da Ocupação Chiquinha Gonzaga

Mapa – Fonte: TEIXEIRA (2009). Adaptação: GRANDI (2010)


Foto – Fonte/Elaboração: GRANDI (2010)
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campo político47 identificado na pesquisa como


“mais comprometido com a organização por O que difere o grupo na verdade são os
ideais. O pensamento. (…) Eu acho que
Coletivo”. Por outro lado, aquelas egressas de é uma defesa da ocupação enquanto
experiências com organizações burocratizadas espaço coletivo mesmo. Assim,
enquanto espaço pra moradia, enquanto
(geralmente sindicatos ou partidos políticos – espaço pra disputa política, mas uma
principalmente do Partido dos Trabalhadores) disputa política saudável. Uma disputa
política entre os moradores. (…) Existe
conformaram o início do campo político “menos uma diferença no que se pensa, no que
comprometido com a organização por Coletivo”.48 se espera de uma ocupação. E na forma
de organização dessa ocupação. Um
As pessoas que não integram os campos políticos grupo defende a organização que foi a
são parte das arenas da ocupação, contexto de proposta da ocupação, uma organização
coletiva; e o outro acha que não cabe
referência e disputado pelos campos.49 (Figura 2) mais esse tipo de organização.
(informação verbal)50
47 Utilizamos aqui os conceitos do antropólogo Marc
Swartz (1968), campo político e arena. O campo
político é formado por um ou mais grupos e/ou
indivíduos que estejam mais diretamente envolvidos O campo político autogestionário volta seu
e, por isso, sejam mais frequentemente definidores do comprometimento ao processo de gestão coletiva do
processo político em estudo – estando ou não
vinculados a organizações formais específicas, mas território, incluindo a existência e manutenção dos
em geral tendo algum grau de afinidade política entre
si. A arena é o contexto no qual os campos políticos espaços de uso coletivo.51 Estimulam o crescimento
estão imersos, sendo constituída pelos atores que do próprio campo, bem como da arena primária,
estão envolvidos com os participantes do campo sem,
ao mesmo tempo, estarem envolvidos diretamente no pela vontade de ampliação da participação nos
processo em questão. Assim, os campos políticos
disputam a(s) arena(s) buscando de hegemonizá-la(s) debates coletivos independentemente do
e deter o controle do processo político, ainda que não posicionamento político das pessoas. Para isso,
ajam sempre intencionalmente. Outros trabalhos que
se utilizaram desses conceitos para análises sócio- incentivam a intensificação do compartilhamento
espaciais são Santos (1981), Lagüens (2005), Souza
cotidiano das dimensões do “mundo da vida” como
(2009a), Teixeira (2009), Grandi (2010), Grandi e
Teixeira (2010) e Almeida (2011). tática para potencializar a disposição ao diálogo.
48 Esses campos políticos também são identificados
como “campo autogestionário” e “campo centralista”. Já o outro campo político tem menos
Ver também Almeida (2011). comprometimento com o processo coletivo e
49 Especialmente no regime político interno à ocupação,
no qual o “peso” de cada pessoa é igual para as no caso de comparecerem às reuniões.
deliberações coletivas. As arenas sempre são 50 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga.
disputadas pelos campos políticos. Na pesquisa Entrevista realizada em 17/09/09.
identificamos uma arena primária e uma arena 51 Em trabalhos anteriores foram identificadas duas
secundária, por conta de nessa ocupação a principais categorias quanto à organização espacial
participação nas reuniões do Coletivo não ser interna das ocupações cariocas da variante por
obrigatória. Fazem parte da primeira aquelas pessoas coletivo: os espaços de uso privado e os espaços de
que participam das reuniões e têm sua opinião uso coletivo. Esta última subdivide-se em espaços
disputada pelos campos políticos diretamente nesses formais (deliberativos e não-deliberativos), espaços
espaços-tempo. A segunda é composta pelas pessoas de uso comum, espaços de produção e geração de
que não participam das reuniões mas seguem sendo renda e áreas de segurança. Cf. Teixeira e Grandi
disputadas pelos campos políticos em outros espaços (2008) e Almeida, Grandi e Moreira (2009). Análises
e momentos – agindo como importantes difusores de sobre a dinâmica desses espaços podem ser vistas em
opiniões e eventualmente podendo “fazer a diferença” Grandi (2010), Almeida (2011) e Moreira (2011).

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Figura 2: Representação gráfica genérica dos campos políticos e arenas da Ocupação Chiquinha Gonzaga

Fonte / Elaboração: Grandi (2010)

aparenta maior afinidade com o funcionamento por defendidas pelo próprio campo político, do contrário
coordenação. Um dos argumentos reivindicados é desestimulada. Há vínculos (oficiais ou não) com
liga-se à “eficiência”: organizações políticas burocratizadas (partidos,
sindicatos e mesmo outras organizações de
[T]inha que ter uma voz de comando. movimentos sociais), tendendo a reforçar a
Quando eu falei isso, foram contra.
coordenação da Associação de Habitação Popular da
Porque nas outras aí você sabe que têm.
Então aqui não teve voz de comando. Ocupação Chiquinha Gonzaga (AHPOCG) como
“Vamos pro Coletivo”, eles acham que
fórum deliberativo.53
o Coletivo vai resolver. Mas tem que
respeitar alguém sim. (informação Mas os campos políticos e as arenas são
verbal)52
grupos mutáveis e heterogêneos. O trânsito das
pessoas entre esses grupos modifica suas práticas
Os/as seus/suas integrantes não estimulam o espaciais de diversas formas. Por um lado, a
crescimento de seu campo político, já que a força do mudança entre as arenas leva ao compartilhamento
campo depende da centralização, concentração e 53 A AHPOCG tem grande importância nas negociações
oficias com os órgãos governamentais, por exemplo.
fortalecimento da sua capacidade deliberativa sobre
Certas pessoas da ocupação lembram que tal tarefa
assuntos coletivos. A maior participação nas pode ser cumprida sem o enfraquecimento do
Coletivo como instância deliberativa. Também não há
reuniões é incentivada quando fortalece as opiniões vínculo direto entre ser da coordenação da AHPOCG
e ser de algum campo políticos. Sua estrutura mistura
52 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga. pessoas com diferentes perspectivas, resultado de
Entrevista realizada em 10/09/09. tensões e acordos políticos internos.

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de outros espaços-tempo (os deliberativos). Por estimular a fala de pessoas que geralmente não o
outro, integrar um campo político implica em fazem nas reuniões.
compartilhar mais frequentemente outros espaços de
discussão extra-reunião do Coletivo – inclusive (...) [À]s vezes eu acho que há casos
que até importa [a articulação extra-
alguns espaços privados. Porém os campos políticos
reuniões]. (…) Chegar no fulano e
se diferenciam claramente tanto no espaço-tempo perguntar “O quê que acha sobre isso,
fulano?”. (…) Não é obrigado a
deliberativo quanto nas práticas espaciais ligadas a
concordar, mas às vezes a pessoa diz
outros espaços e momentos cotidianos. “Não, eu tava pensando assim”, “Mas
pô, se tu pensarias assim, seria melhor.”
Algumas práticas espaciais ligadas aos
Ele chega já mais preparado. Só que
espaços privados servem como exemplo.54 Reuniões uns usam como panelinha (…) é uma
forma de tu derrubar a opinião dos
informais pré/pós-reuniões do Coletivo são
outros, às vezes. Não pra encontrar
realizadas neles com frequência por ambos os sugestão. Mas se for no caso de
simplificar pra encontrar uma sugestão
campos políticos. O campo menos comprometido
mais rápida, eu até acho que é um
com a organização por coletivo se articula nos mínimo preparo pra reunião.
(informação verbal)56
espaços privados visando geralmente estabelecer a
unidade ao redor de propostas consolidadas para que
estas sejam encaminhadas às reuniões, ao mesmo Tais reuniões também são realizadas por
tempo que organizam táticas para “vencer” opiniões pessoas das arenas, sendo importantes para atualizar
contrárias. O Coletivo não parece ser um empecilho, as informações sobre os assuntos coletivos e para o
desde que mantido sob domínio de suas opiniões – o surgimento, formulação, refinamento e um certo
55
que o enfraquece como instância deliberativa. tipo de “pesquisa de opinião” sobre as propostas que
Já o campo político mais comprometido com se pretende levar às reuniões.
a organização por Coletivo faz tais reuniões Os espaços privados são, portanto, permeados
buscando compartilhar opiniões sobre a conjuntura pelos assuntos coletivos. Isso aumenta sua
da ocupação e refletir conjuntamente sobre cenários importância nos processos de elaboração e disputa
possíveis, atitudes futuras e questões pontuais. Não das opiniões, aproximando as práticas que se
objetivam a homogeneidade de opiniões, desenvolvem neles a outras tantas práticas espaciais
acreditando que é no Coletivo que as deliberações que influenciam diretamente tais processos. A
devem ser tomadas. Assim, tais conversas podem possibilidade de expôr as opiniões e fazer parte da
auxiliar o refinamento de propostas, elucidar ideias, construção das normas do nanoterritório57 da
tornar as exposições mais compreensíveis e Ocupação Chiquinha Gonzaga passa, assim, por
54 Sobre os espaços privados de outra ocupação dessa dinâmicas informais e formais que se influenciam
parcela do movimento dos sem-teto carioca, ver
Moreira (2011).
55 Afirmações derivadas de entrevistas e de notas de 56 Morador da Ocupação Chiquinha Gonzaga. Entrevista
campo provenientes da observação participante e do realizada em 22/08/09.
compartilhamento de espaços de atuação política. 57 Cf. Souza (2006a)

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 29


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mutuamente, caracterizando a territorialidade da deixou de ser cumprida. A portaria passou a ser um


ocupação. Isso torna as discussões em outros local de passagem.
espaços coletivos às vezes tão importantes quanto O enfraquecimento da função de segurança da
aquelas do espaço-tempo formal das reuniões. portaria colaborou para a refuncionalização da
calçada em frente ao prédio. Apesar de não fazer
Da construção das opiniões à sua parte do interior da ocupação, a calçada se
manifestação: nómos coletivo e o exercício do fortaleceu como sua “área de influência” direta
poder
quando um dos moradores da ocupação estabeleceu

Tomemos como exemplos três espaços da nela seu carrinho de lanches durante a noite. Sem

ocupação: os corredores (espaço informal de uso pessoas na portaria, moradores/as que param para

comum), a portaria (área de segurança) e a conversar junto ao carrinho ajudam a zelar pela

calçada.58 Por serem bastante frequentados pelos/as entrada da ocupação. “Quando o [fulano] não tá lá

moradores/as, são loci de encontros e conversas embaixo na barraquinha, fica deserto. Porque não

informais, criação e fortalecimento de vínculos tem ninguém pra tomar conta.” (informação

afetivos interpessoais e com seu espaço vivido, verbal)60 A calçada foi então integrada à dinâmica

fundamentais para o compartilhamento da territorial da Chiquinha Gonzaga por seu papel na

experiência com/no prédio e tendo características segurança do prédio. Mas também se tornou um

público/privadas marcantes. espaço de interações, conversas, informes,

A portaria era um espaço-tempo onde as articulações e debates informais entre pessoas das

pessoas permaneciam por conta do regimento arenas e de um campo político específico.

interno exigir que alguém de cada apartamento se


responsabilizasse por cumprir nela uma certa As pessoas começaram a usar porque
as pessoas precisavam de um espaço
quantidade de horas zelando pela segurança do como esse. Existia uma coisa que
prédio. Assim, era um espaço de articulação e incomodava que nem sempre a
assembleia era capaz de resolver. E
conversas informais. “(...) [A]cabava outras pessoas precisava de um espaço de trocar ideia
chegando, parando, batendo um papo, reclamando com o seu vizinho, de articulação. E
como não existia mais esse espaço, que
de alguma coisa, já adiantando alguma questão que era a portaria, o seu [fulano] virou esse
fosse ser discutida na reunião.” (informação espaço. (informação verbal)61

verbal)59 Porém com o passar dos anos essa prática


Assim, é também uma posição que confere
58 A calçada foi considerada como tendo características
similares às encontradas nos corredores da ocupação vantagens políticas no processo de convencimento e
(GRANDI, 2010). Mas as observações feitas
destacaram aspectos também ligados às áreas de
segurança, obrigando-nos a voltar atrás naquela 60 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga.
colocação e afirmar agora seu caráter híbrido. Entrevista realizada em 17/07/09.
59 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga. 61 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga.
Entrevista realizada em 23/08/09. Entrevista realizada em 17/09/09.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 30


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disputa pela formação das opiniões dos/as convencimento que se dá nesses espaços. Exemplos
moradores/as, apesar de parecer não ter havido disso acontecem quando é necessário cobrar de
intencionalidade na sua constituição. porta em porta o pagamento das respectivas parcelas
Os corredores também ajudam a suprir essa da conta mensal de água ou do rateio da manutenção
demanda por espaços de interação informal e de algum equipamento de uso coletivo (como a
articulação fora das reuniões do Coletivo.62 Isso é bomba d'água do prédio).
enfatizado inclusive pelas características da Mas nesses espaços as interações também são
dimensão material do prédio: a falta de elevadores regidas por regras que não vêm das deliberações do
devido ao abandono do imóvel pelo estado colabora Coletivo, mas sim de acordos informais resultantes
para a vitalidade dos corredores e escadas dos 14 de negociações que envolvem muitas vezes as
andares. Assuntos coletivos e particulares circulam expectativas de formas de convívio cotidiano. São
por eles, dando origem inclusive à “Rádio acordos informais que podem inclusive evitar que
Corredor”.63 Os corredores têm papel importante no desentendimentos pessoais se tornem assuntos
estabelecimento de laços pessoais que podem ir formais do Coletivo.66 Respeitar aos/as demais
além da afetividade, garantindo inclusive redes de moradores/as (desde evitar o barulho em certos
solidariedade fundamentais à sobrevivência material horários até evitar brigas) e pressionar pelo
de algumas pessoas. Se relacionam também com os compartilhamento das tarefas de manutenção do
espaços formais deliberativos de diferentes prédio (como a limpeza e a segurança) são exemplos
maneiras. São, por exemplo, importantes na dessa espécie de “código de bons costumes”
mobilização para as atividades coletivas (através de elaborado de acordo com as necessidades e
passagem “de porta em porta” e da fixação de particularidades materiais, políticas e afetivas do
cartazes), incluindo o característico grito espaço da ocupação. De forma geral, envolvem
“Reuniããão!” ecoado antes dos encontros do tentativas de criar e encontrar regras informais que
Coletivo.64 A formação das opiniões e de redes facilitem a convivência entre os/as moradores/as e
internas de apoio político também se vale desses que passam principalmente pelo compartilhamento
espaços através de conversas informais e difusão de cotidiano e pelo cultivo de um certo grau de
65
informações. tolerância. Compõem um conjunto de condutas que
A efetivação de certas normas estabelecidas orientam as relações internas à ocupação e se
formalmente pelo Coletivo também depende do tornam reais ao ponto de afetarem o cotidiano das
pessoas sem que precisem, para isso, passar pela
62 Informação derivada das entrevistas realizadas. deliberação formal. Assim, são regras informais
63 “(...) [E]sta tessitura de redes informais de
informações ('fofocas') e boatos gestados no âmbito que interferem na experiência de cada pessoa com
dos corredores.” (TEIXEIRA e GRANDI, 2008:6)
64 Essa chamada vocal foi o mecanismo mais citado nas
entrevistas como forma através da qual as pessoas 66 No entanto a dissolução dos conflitos pessoais sem
tomavam conhecimento das reuniões do Coletivo. que cheguem às reuniões é situação pouco frequente
65 Cf. Teixeira e Grandi (2008) na ocupação tratada.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 31


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

esse nanoterritório, influenciando indiretamente a “Isso aí é fundamental: o interesse.


Quando a pessoa tá interessada que
formação das opiniões e os processos deliberativos
aquela reunião prossiga, ele sobe e
formais. desce tentando não sei quantas vezes
gritando “Reuniããão!”, gritando igual
Assim, o nómos coletivo é construído e
louco. (…) Do contrário, ó: ele nem
reforçado cotidianamente também por interações liga. Não só uma pessoa. Vários
moradores quando tem interesse desce
informais, refletindo e tendo reflexos sobre sua
rapidinho e sai caçando um montão de
dimensão formal. As regras formais do prédio não gente.” (informação verbal)68
são fruto simples, direto e exclusivo dos espaços-
tempo de deliberação do Coletivo. Estes, por sua
Observando o agente dessa prática espacial e
vez, tampouco são menos complexos. São espaços
compartilhando os assuntos cotidianos na ocupação,
de disputa política, de convencimento, onde a
certas pessoas preveem a pauta e mesmo os rumos
“conquista” da opinião alheia é central. É a instância
da reunião.69 Os assuntos tratados influenciam a
de poder explícito da ocupação, que delibera regras
quantidade de pessoas e de intervenções nas
gerais, estas podendo ser rediscutidas de acordo com
reuniões, crescendo de acordo com seu caráter
a conjuntura sócio-espacial da ocupação e/ou com
coletivo.70 A importância dos espaços informais de
67
os temas que ganham relevância no seu cotidiano.
uso comum para a gestão territorial coletiva ganha
O exemplo mais sublinhado dessas regras formais é
destaque, bem como do momento imediatamente
o Regimento Interno.
anterior às reuniões. Trata-se de um espaço-tempo
A periodicidade das reuniões varia, mas sua
de convencimento que busca ampliar a participação,
realização depende geralmente de situações que a
um quando-onde cotidiano de disputa simbólica
estimule (como a urgência de resolução de questões
sutil e com reflexos práticos sobre a gestão do
internas ou externas). Mecanismos de lembrança e
território.
convocação são importantes, como o “boca-a-boca”,
Até porque os debates que se desenrolam nos
lembretes por baixo das portas, cartazes e chamada
espaços formais deliberativos da ocupação pautam
vocal nos corredores. Essa chamada é realizada
temas ligados diretamente ao seu mundo da vida. Os
predominantemente por integrantes dos campos
políticos da ocupação, servindo para muitas pessoas 68 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga.
Entrevista realizada em 07/07/09.
como indício de quais interesses estão envolvidos
69 Isso se repete em outras atividades coletivas, como
em cada reunião. Podem ser interesses pessoais ou mutirões, eventos e oficinas.
70 Acontece que não existe consenso sobre quais seriam
ligados a perspectivas políticas propriamente ditas. as fronteiras entre os “assuntos coletivos” e os
demais. As entrevistas indicaram que existem
assuntos considerados de maior importância coletiva
(como aqueles ligados à regularização e reforma do
67 Por exemplo, as regras internas se modificam prédio) e que atraem mais pessoas às reuniões,
dependendo da estabilidade da territorialização enquanto assuntos vinculados à gestão cotidiana da
operada pelo Coletivo, com reflexos diretos sobre o ocupação tendem a afastar pessoas especialmente das
Regimento Interno. Cf. Grandi (2010) e Almeida arenas e assuntos privados a afastar inclusive pessoas
(2011). dos campos políticos.

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elementos que surgem do seu compartilhamento são exemplo, costumam receber menos atenção. Porém,
mobilizados com frequência para questionar as há também outros casos.
pretensões de validez de quem argumenta, buscando
demonstrar se faltam ou não com a veracidade, Porque as assembleias, não só da
ocupação, é um espaço de disputa de
correção ou sinceridade.
convencimento. Se existe uma pessoa
Assim, por mais que nem todas as pessoas que você sabe que tem uma proposta
diferente da sua, você não ouve o cara
ajam sempre contemplando essas pretensões, a
com a mesma atenção que um
forma de gestão coletiva do território permite que a companheiro, um cara lá que é seu
aliado. (informação verbal)74
própria coletividade julgue essas características de
acordo com seu compartilhamento sócio-espacial.
“(...) Você só barra a desconfiança, na verdade, no Existe o risco de que essa postura afaste
dia-a-dia, na prática do próprio trabalho, na prática indivíduos do processo de gestão territorial coletiva
da discussão, e vai pra discussão.” (informação defendido por muitas/os moradoras/es, mas os
verbal)71 relatos mostram que o processo da ocupação têm
Isso confere dinâmicas de funcionamento e de tido resultados em termos de formação política de
interações pessoais particulares às reuniões e suas certas pessoas que passam a se sentir à vontade e
72
discussões. Apesar da organização espacial e da corresponsáveis pelo território.75
garantia formal de direito à fala,73 não são todas as
pessoas que efetivamente falam nas reuniões. Porque no início, nas assembleias, tinha
Aspectos de ordem psicológica, ligados a diferentes gente que não falava nada. (…) Eu
também falava pouco, até. (…) Um
formas de opressão ou mesmo a atenção pouco inibida porque eu tinha chegado
diferenciada que certas pessoas recebem das demais há pouco tempo também. Às vezes as
pessoas falavam, brigavam e atacavam
podem influenciar a liberdade individual. Mas essas o outro. Daí eu ficava meio com medo
diferenças de atenção recebida muitas vezes estão de falar. (…) Aquelas pessoas que já
militavam há certo tempo eram sempre
ancoradas em relações que se estabelecem também as pessoas que tavam falando. (…)
em outros espaços, bem como às posturas políticas e Então eu vejo a diferença em algumas
pessoas que hoje não têm mais
à identificação com campos políticos específicos. vergonha, não têm mais medo de se
Pessoas estigmatizadas como mentirosas, por colocar numa assembleia. Várias
pessoas que você vê que ficava lá no
cantinho, só levantando o dedo pra
71 Morador da Ocupação Chiquinha Gonzaga. Entrevista votar, e hoje ela já fala, já coloca, ou já
realizada em 28/05/08 por Eduardo Tomazine chega numa assembleia e expõe se tiver
Teixeira.
72 As pessoas se organizam espacialmente em forma de
com algum problema, se ela quiser
um “grande círculo”, possibilitando que todos se alguma coisa do Coletivo. Já expõe
vejam e que a localização não destaque a priori
nenhum/a participante. 74 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga.
73 O Regimento Interno da ocupação garante o direito à Entrevista realizada em 17/09/09.
fala e, se necessária a votação, cada unidade de 75 Afirmação derivada de diversos relatos registrados
moradia tem direito a um voto. sobre casos específicos.

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Figura 3: Croqui do primeiro andar da Ocupação Chiquinha Gonzaga

Fonte / Elaboração: Teixeira e Grandi (2008)


Adaptação: Grandi (2010)

sem vergonha igual tinha no início. são influenciadas por muitas dinâmicas, se
(informação verbal)76
conectando com relações que se estabelecem em
Percebemos como as reuniões do Coletivo nível pessoal e em muitos outros espaços e
momentos. Frequentemente atritos e afinidades
76 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga.
Entrevista realizada em 16/05/09. ligadas a outros espaços podem auxiliar ou dificultar

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as interações que se desenrolam durante as reuniões. material da ocupação. A festa de aniversário de


Por isso alguns espaços caracterizados pela quatro anos da ocupação, por exemplo, motivou a
descontração são também importantes para se reforma do depósito e a sua transformação em uma
entender as relações entre as práticas espaciais cozinha de uso coletivo. (Figura 3)
cotidianas e o processo de gestão da ocupação. Durante sua realização, os momentos e
espaços são de interações sócio-espaciais relaxadas
Descontração e compartilhamento: Um e descontraídas, pautadas por assuntos menos
“lugar” ocupado ligados à gestão formal do prédio. Forma-se uma
atmosfera que facilita a troca de experiências
Apesar de não serem espaços deliberativos, a
pessoais e subjetivas, aumentando a possibilidade
definição da responsabilidade pelas festas e
das pessoas se conhecerem mais e melhor,
confraternizações é feita formalmente. São também
estreitarem laços de amizade e se aproximarem
espaços formais não-deliberativos onde as regras e
afetivamente.
normas coletivas formais e informais são
costuradas, legitimadas e efetivadas. No caso da A gente, por essa coisa de você ter mais
Ocupação Chiquinha Gonzaga, o espaço de contato, então você sabe um pouco
mais daquela pessoa. (…) “Fulano
confraternizações é o mesmo salão onde se realizam sempre tá muito bem na reunião. Hoje
as reuniões, ilustrando o compartilhamento do ele não tá. Tá atropelando o outro, tá...”
(…) [S]e você tem mais intimidade
substrato material entre usos distintos do espaço. com esse vizinho e sabe de algumas
Existem ao menos dois tipos de questões a mais, tem um conhecimento
maior sobre ele (…). A gente acaba
confraternizações, sendo que ambas em geral entendendo um pouco melhor. (…) E
passam por alguma formalização frente ao Coletivo: esses espaços de festa, hoje,
possibilitam [isso] né. E às vezes eu
aquelas comemorações individuais feitas por não falo com o vizinho não é porque eu
moradores/as (aniversários, por exemplo), quando a não gosto dele. É porque eu não tenho
tempo! Então na festinha eu consigo
responsabilidade pela manutenção do espaço fica a sentar perto dele, tomar uma cervejinha
cargo do número restrito de pessoas que a propõe; e e... “E aí, teu filho? Como é que tá o
cursinho dele? E aí, a escola? E aí?” A
aquelas de responsabilidade coletiva, geralmente gente tem tempo de sentar e trocar uma
deliberadas coletivamente e marcando datas informação e rir junto, e brincar junto.
Então eu acho que a gente devia
importantes para a ocupação, ligadas ou não a lutas investir até mais nesses espaços.
populares (aniversário da ocupação, dia da mulher / (informação verbal)77
do trabalhador, dia das mães, natal etc.). De
qualquer forma, são sempre em alguma medida Lógico: as festas não garantem que todas as
espaços-tempo que suscitam a colaboração entre pessoas gostem umas das outras. Mas, tal qual os
moradores/as nos preparativos, realização e andares da ocupação, as festas potencializam
arrumação posterior, alterando inclusive o substrato 77 Moradora da Ocupação Chiquinha Gonzaga.
Entrevista realizada em 23/08/09.

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especialmente – e espacialmente – o campos políticos na ocupação, divisão abertamente


compartilhamento da dimensão subjetiva do mundo conhecida pelos/as moradores/as e por diversos/as
da vida pelas famílias. Incentivam o aumento da ativistas dessa fração do movimento dos sem-teto
intimidade, estimulando a empatia, o respeito e a carioca. Mas isso não representa uma fragilidade do
tolerância – aspectos importantes para que as processo – caso não se deseje a homogeneização das
interações aconteçam de maneira mais livre e franca opiniões. Pelo contrário, a convivência de interesses
e, assim, contribuam para a forma de gestão distintos e opiniões diversas pluraliza o processo
ensaiada na ocupação. São práticas espaciais que político e complexifica a experiência política da
fortalecem a formação de afetividades espaciais ocupação, enfrentando os desafios com resoluções
coletivas, fundamentais à constituição da ocupação elaboradas à no cotidiano do prédio. A dinâmica de
78
enquanto “lugar”. disputas políticas internas tem reflexos diretos sobre
Gostar do espaço é básico para se lutar, brigar a espacialidade cotidiana da ocupação, por exemplo,
e preocupar com ele. Carinhos e desconfortos em inclusive ampliando ou diminuindo a quantidade e a
relação a determinados espaços fazem deles mais intensidade do uso coletivo de alguns espaços.
cuidados ou não, mais ou menos frequentados ou Vale destacar que as disputas políticas
evitados. As relações de afetividade entre as pessoas internas são em sua maioria baseadas na disputa
e entre elas e o espaço ajudam a acreditar na luta pela formação e conquista de opiniões e não em
coletiva enquanto caminho possível para a resolução táticas de coerção física ou psicológica. Ainda
dos problemas de moradia ou de outro tipo. No assim, as pessoas ligadas ao campo político mais
limite, para a mudança social. Os sentimentos comprometido com a organização por Coletivo são
construídos influenciam diretamente o processo aquelas que mais estimulam tal regime. Fazem isso
político, sendo também uma parte essencial dele, se preocupando com que todos/as os/as diretamente
sem a qual as dificuldades cotidianas acabam interessados/as e afetados/as pelas questões
solapando as conquistas coletivas. coletivas tenham condições o mais iguais possíveis
de se colocar, inclusive difundindo informações e
“Na prática a teoria é outra”: Contribuições ajudando a melhor formular propostas –
e desafios aumentando a igualdade e liberdade efetiva de
participação e ampliando a capacidade deliberativa
No decorrer de sete anos de existência,
do Coletivo. Isso fica claro quando mantêm as
moradores/as da Ocupação Chiquinha Gonzaga
fronteiras do campo político mais permeáveis,
construíram relações de poder internas específicas
incentivam a ampliação do campo e da arena
ligadas à sua forma de organização coletiva. As
primária, compartilham intensamente o cotidiano da
diferenças de posições políticas, interesses e práticas
ocupação e comprometem-se com o processo de
espaciais deixam perceber a existência de dois
gestão coletiva.
78 Sobre a compreensão de “lugar” adotada aqui, ver
Tuan (1980, 1983) e Relph (1976). Existe também uma territorialidade própria à

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ocupação, estabelecendo táticas que envolvem Não se trata de uma “situação ideal de fala”
diferentes graus de acesso às coisas, relações e como na teoria de Habermas, certamente. Mas
espaços.79 Dentre essas táticas está a instauração de vendo-a como um horizonte, essa constatação não
critérios para o acesso ao processo de gestão do deprecia a experiência em questão. Lembraremos
território através do uso de referenciais materiais- dos pressupostos de tal “situação de fala” para
concretos, simbólicos e afetivos ligados ao mundo refletir sobre a ocupação. O primeiro deles fala da
da vida da ocupação. Buscam repelir indivíduos importância de que todos os interessados possam
indesejados, como traficantes de drogas, agentes das participar do discurso, condição garantida
forças repressivas do Estado, proprietários do formalmente pelo Regimento Interno e estimulada
imóvel ou mesmo indivíduos que pareçam somente informalmente de várias maneiras, como vimos.
fragmentar a coletividade. Mas também o fazem Quanto ao segundo e terceiro pressupostos – que
quando, direta ou indiretamente, afastam valores todos tenham oportunidades idênticas de argumentar
trazidos e difundidos por tais indivíduos.80 São e que haja chances simétricas de fazer e refutar
exemplos de práticas espaciais agindo como táticas afirmações, interpretações e recomendações – vale
territoriais através das quais informações e valores lembrar que alguns mecanismos informais de poder
diferenciados são estimulados. agem nas reuniões do Coletivo de forma a
O esforço em difundir a ideia de que as flexibilizá-los. As diferenças de atenção recebida
pessoas devem participar em igualdade de condições durante as falas são exemplos disso – como costuma
com os demais da dimensão instituinte de seu ocorrer em interações de toda a sociedade. Porém,
cotidiano predomina. Tal tarefa não é nada simples, nesse caso, tais práticas cumprem eventualmente o
com percalços, falhas e contradições. Apesar de papel de punição coletiva informal, agindo como um
serem assimiladas de maneiras distintas e terem mecanismo de segurança do Coletivo para evitar
desdobramentos inesperados, as práticas espaciais que colocações que faltem com a verdade, correção
cotidianas e o processo político da ocupação ou sinceridade afetem diretamente sua dinâmica
propiciam experiências em um território gerido de deliberativa. Esse mecanismo aponta para o quarto
maneira diferente da dominante na sociedade pressuposto da “situação ideal de fala”
contemporânea. Servem também como território de habermasiana, que sugere que só sejam admitidos
referência para relações que as/os moradoras/es no discurso atores que ajam de acordo com normas
estabelecem em outros espaços, influenciando a justificáveis e que satisfaçam o pressuposto da
perspectiva de suas outras experiências. veracidade. O compartilhamento social, objetivo e
subjetivo de outros espaços-tempo da ocupação
79 Sobre a territorialidade humana, ver Sack (1986), os
comentários de Souza (1995, 2009c) e as recentes permite a muitos/as moradores/as e ao Coletivo, por
elaborações de Almeida (2011).
80 Tentam se defender de significações imaginárias exemplo, se prevenir de possíveis mentiras,
sociais (CASTORIADIS, 1982) hegemônicas, potencializando esses mecanismos de segurança.
diferentes daquelas que muitos/as dos/as moradores/as
deseja fortalecer. Práticas espaciais específicas incentivam esse

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 37


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compartilhamento – como o estímulo à construção e possível de imaginário. Desejo que o


outro seja livre, porquanto minha
fortalecimento de relações afetivas com a ocupação
liberdade começa onde começa a
(num processo de “lugarização”) e com suas/seus liberdade do outro, e, sozinho, posso no
máximo ser 'virtuoso na felicidade'.
moradoras/es (nas confraternizações, corredores,
Não espero que os homens se
calçada, etc.), além das confluências escalares transformem em anjos, nem que suas
almas tornem-se puras como lagos da
possibilitadas pelas diversas atividades ligadas a
montanha – que aliás sempre me
diferentes frentes de luta e movimentos sociais que entediaram profundamente. Sei, porém,
o quanto a cultura atual agrava e
acontecem na ocupação, por exemplo.
exaspera a sua dificuldade de ser e de
Seja através do Coletivo ou das relações ser com os outros e vejo que ela
multiplica ao infinito os obstáculos à
informais estabelecidas, moradoras e moradores
sua liberdade.” (CASTORIADIS,
parecem adaptar ao seu contexto sócio-espacial 1982)
preocupações também expressas com Habermas.
A existência de normas, regras e valores
Tais adaptações apontam, em certa medida, para
específicos é um pressuposto para se pensar uma
formas sutis de facilitar a negociação e o
sociedade basicamente autônoma. Um dos aspectos
entendimento mútuo no processo político
que a diferiria seria o processo de discussão e
nanoterritorial em tela. Fortalecem, assim, uma
deliberação a respeito desses marcos. Ainda que
forma aparentemente própria de autogestão
esse tipo de processo envolva também elementos
territorial com reduzidos traços hierárquicos a
subjetivos ligados à paideia e ao infrapoder, é
presença de uma racionalidade comunicativa em
desejável que as deliberações de suas instâncias
suas práticas espaciais cotidianas.
formais baseiem-se em uma ampla e livre
reflexividade dos/as participantes.81 Isso, junto com
Do embate ao debate: Em busca de um
“ponto de fuga” orientado ao entendimento seu caráter humanista e democrático, dá relevância
aos pontos levantados por Habermas ao menos no
“Desejo poder encontrar o outro como
que tange à dimensão do poder explícito – mesmo
um ser igual a mim e absolutamente
diferente, não como um número, nem que suas ponderações não esgotem os pressupostos
como um sapo empoleirado sobre outro
à livre e igual participação dos/as interessados/as.
degrau (inferior ou superior, pouco
importa) da hierarquia dos rendimentos As reflexões sobre a razão comunicativa
e dos poderes. Desejo poder vê-lo e que
põem luz especialmente sobre alguns aspectos das
ele possa ver-me como um outro ser
humano, que nossas relações não sejam interações verbais ou ações discursivas, uma vez
um campo de expressão da
que Habermas considera que a linguagem permitiria
agressividade, que nossa competição
permaneça dentro dos limites do jogo, aos indivíduos chegar a um entendimento.82 Porém
que nossos conflitos, na medida em que
os elementos do “mundo da vida” não são todos
não possam ser resolvidos ou
superados, digam respeito a problemas mobilizáveis através da linguagem falada, sendo
e lances reais, envolvam o mínimo
81 Cf. Castoriadis (1992)
possível de inconsciente, o mínimo 82 Cf. Habermas (2002)

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importantes também os aspectos não-verbalizáveis interações sociais cruciais aos processos de


para as ações discursivas. Assim, o entendimento entendimento que vão além da verbal.
mútuo não depende exclusivamente da dimensão O eurocentrismo, as pretensões de
83
verbal de sua interação, tornando outros aspectos universalização e de totalização da teoria
materiais-concretos, político-sociais ou simbólico- habermasiana devem ser criticadas e deixadas de
culturais necessários a um agir comunicativo. lado. Mas aspectos como os princípios de igualdade
Ressaltamos a necessidade de espaços próprios para nas condições de acesso, reflexão, intervenção,
sua viabilização. Características espaciais críticas e deliberação84 – bem como as
específicas agem como condicionantes e reflexos considerações sobre a construção de condições de
desses processos verbais, de forma que o substrato participação plena, livre e igual de todos/as os/as
material, as relações territoriais e simbólico-afetivas interessados/as – são importantes para interações
podem contribuir ou dificultar o estabelecimento de que valorizem discussões amplas, abertas e
interações orientadas ao entendimento. A radicalmente democráticas. Acontece que tais
organização em andares com seis quartos e a falta de elementos parecem se aplicar mais facilmente ao
elevadores influencia a circulação das pessoas e das nível das interações pessoais, encontrando terreno
informações, interfere na formação de vínculos fértil quando já são buscadas relações de poder
afetivos e afeta a elaboração das opiniões que horizontalizadas. A transposição de suas reflexões
permeiam os espaços-tempo formais deliberativos para outras escalas sem adaptações e
da ocupação, por exemplo. Da mesma forma, sem reconsiderações é bastante temerosa. Porém, elas
que houvesse uma sala de tamanho e com colaboram para ganhos de autonomia individual e
acomodações razoáveis, privacidade e boas coletiva ao menos em nanoterritórios, podendo
condições acústicas, as reuniões do Coletivo seriam inclusive influenciar na dimensão escalar das ações
prejudicadas. Ainda assim, caso se tratasse de um dos grupos ao contribuir para sua força e coesão.
espaço territorializado por facções criminosas, as Apesar das divergências em muitos aspectos e
condições para o estabelecimento de relações de da pouca radicalidade e ambição das colocações de
poder não-hierarquizadas e que tentassem reduzir ao Habermas frente às de Castoriadis, percebemos que
máximo as formas de coerção físicas e psicológicas existem na teoria habermasiana considerações
também seriam pequenas. Além disso, se por importantes para quem se propõe a refletir sobre
ventura o espaço formal deliberativo da ocupação uma sociedade basicamente autônoma. É nesse
não fosse religiosamente neutro, existiria o risco real sentido que a valorização da racionalidade
de pessoas não se sentirem à vontade para participar comunicativa pelos movimentos sociais pode
da gestão coletiva do seu território. As dificuldades desempenhar um papel crucial: ressaltar a
podem ser contornadas em muitos casos, mas fica 84 Kalyvas (2001) critica Habermas por sua dificuldade
clara a existência de outras dimensões das em abordar o momento da deliberação em suas
reflexões. Porém, não custa pensar, então, sobre como
83 Essa crítica é desenvolvida por Kalyvas (2001). elas poderiam auxiliar esse momento tão fundamental.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 39


Espacialidade cotidiana e processos de negociação no movimento dos sem-teto carioca Matheus da Silveira Grandi

importância do entendimento e do acordo sem, ao concernida tenha a chance de dar


espontaneamente seu assentimento. A
mesmo tempo, abolir o conflito inerente a qualquer
forma da argumentação deve evitar que
processo de negociação e, assim, garantir tanto a alguns simplesmente sugiram ou
mesmo prescrevam aos outros o que é
integração quanto o respeito às diferentes
bom para eles. Ela deve possibilitar,
identidades e alteridades.85 Trata-se de uma não a imparcialidade do juízo, mas a
ininfluenciabilidade ou a autonomia da
perspectiva que traz elementos importantes para se
formação da vontade. (HABERMAS,
pensar sobre em que medida um território 2003:92) [grifos no original]
autogerido pode, preservando sua diversidade
interna de opiniões e perspectivas, lidar com as
Agradecimentos
(desejadas) diferenças.
Observar os pressupostos de uma ação Agradeço às pessoas da Ocupação Chiquinha
orientada ao entendimento tende a facilitar a Gonzaga e demais ativistas que cederam
comunicação e a coordenação dos planos de ação de gentilmente suas entrevistas e com quem
diferentes indivíduos ou grupos, além de dificultar a compartilhei e compartilho momentos incríveis de
coerções físicas ou psicológicas e imposições ou aprendizado; à Marianna Fernandes Moreira e
ameaças internas/externas. Dessa forma, o agir Rafael Gonçalves de Almeida pelos enriquecedores
comunicativo acaba exigindo situações com no e atentos comentários e sugestões sobre a versão
mínimo alguma simetria de poder, permitindo-nos preliminar deste artigo; aos/às colegas Amanda
reforçar o que já fora indicado por outros autores:86 Cavaliere Lima, Eduardo Tomazine Teixeira,
que o pano de fundo político-filosófico Glauco Bruce Rodrigues e Tatiana Tramontani
aparentemente mais apropriado para a razão e a ação Ramos pelas constantes, instigantes e sensíveis
comunicativa trata-se do projeto de autonomia de conversas sobre o tema e outras preocupações
Castoriadis (guardadas as divergências que existem éticas-políticas em geral.
87
entre tais autores). Atentar a essa proximidade, por
fim, fortalece a preocupação com a busca pela Referências bibliográficas
construção paulatina de uma sociedade basicamente
autônoma através da constante ruptura com sua ABREU, Maurício (1987): Evolução Urbana do Rio
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85 Sobre as controvérsias a respeito do tema da
MOREIRA, Marianna (2009): Oikos, Ágora e
“alteridade”, ver Souza (2002).
86 Cf. Souza (2000, 2002, 2006) Ekklèsia: Uma Introdução às Fronteiras,
87 Sobre algumas dessas divergências, ver Habermas Pontes e “Áreas de Sombra” de um Espaço
(2000), Whitebook (1998), Kalyvas (1998, 2001) e Ocupado (Ocupação Quilombo das Guerreiras
Ortellado (2003). – Rio de Janeiro). Cidades 9. Presidente

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

– Críticas & alternativas –

Informalidade e hiperprecarização, economia popular


urbana e economia solidária

Tatiana Tramontani Ramos


Doutora em Geografia
tatiana_tramontani@yahoo.com

Resumo
Destacam-se neste artigo as discussões sobre a precarização no trabalho, em sua abordagem conceitual, a forma com
tem sido abordada pela literatura específica e sua incorporação às discussões sobre a precarização do trabalho em
contextos semiperiféricos como o brasileiro; a relação entre a pobreza urbana e a (hiper)precariedade no trabalho, com
destaque para a grande parcela de informalidade que está contida no mercado de trabalho brasileiro; e os circuitos
econômicos alternativos que emergem podem contribuir para práticas sócio-espaciais insurgentes. As experiências que
inspiraram e ajudaram a construir esse trabalho são as práticas de uma organização do movimento dos sem-teto no Rio
de Janeiro e, também, interlocutores de um movimento social com origem em periferias e favelas que tem constituído
um importante caminho como alternativa econômica solidária para trabalhadores e comunidades pobres no Brasil.

Palavras-chave: precarização do trabalho; hiperprecariado; circuitos econômicos alternativos; economia popular


urbana; economia solidária; movimento dos sem-teto.
Abstract
The main discussions in the present article is the precarious labor, in their conceptual approach, the way that has been
addressed in the literature and its incorporation into specific discussions about the precariousness of labor in contexts
such as the Brazilian semiperiphery; the relationship between urban poverty and (hyper) precariousness, especially for
the large share of informality that is contained in the Brazilian labor market; and economic alternative circuits that
emerge from and contribute to socio-spatial insurgents practices. The experiences that inspired and helped to build this
work are the practices of an organization of the ‘sem-teto’ movement in Rio de Janeiro, and also partners in a social
movement with origins in the periphery and slums which has been an important way as an economic alternative
solidarity for workers and poor communities in Brazil.

Key-words: labor precariousness; hyperprecariat; economic alternative circuits; popular urban economy; solidarity
economy; sem-teto movement.

As transformações no mundo do trabalho: França e Alemanha e, posteriormente, no Reino


precariedade e hiperprecariedade Unido, Itália e Estados Unidos.

A
É consenso que entre esses países de
s transformações no mundo do
industrialização avançada, os quais conquistaram
trabalho começaram a se tornar tema
uma situação relativamente estável no que se refere
de debate e pesquisa na década de
ao desenvolvimento social, as novas políticas
1980 nos países centrais, primeiro em países como
econômicas de caráter neoliberal (privatizações,

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

redução dos gastos públicos, flexibilização do (que se traduz na transformação de estruturas


mercado de trabalho) e o processo de reestruturação produtivas tradicionais que, em geral, promovem
produtiva (desconcentração industrial, mecanização perdas como a mudança de função ou acúmulo de
da produção, terceirizações, demissões) dos anos funções na empresa, alterações na jornada de
1970 e 1980 vão promover significativas perdas de trabalho, déficit em termos de qualificação
direitos e garantias sociais (previdência, saúde e profissional e exigências de mercado levando a
educação), além de impactar negativamente as alterações de salário, etc.), ou da precarização da
condições de vida e de trabalho. Nesse sentido, as proteção social (a qual diz respeito à legislação
transformações no modelo de produção fordista e no vigente e direitos trabalhistas pertinentes a cada
Estado keynesiano vão contribuir de forma decisiva espaço).
para o que alguns autores europeus vêm Quando se fala de trabalho precário na
caracterizando nas últimas décadas como um economia formal, ou em precarização do trabalho
processo de “precarização do mundo do trabalho”. formal, a tendência é que se pense em países
Segundo KALLEBERG (2009: 25), o centrais, onde os aspectos-chave do trabalho
surgimento e a disseminação da expressão precário estão associados a diferenças em termos de
precariedade estão diretamente associados ao qualidade do emprego, como desigualdade de
contexto de questionamento e, em vários momentos, salários, questões relativas à segurança,
de enfrentamento, promovido pelos movimentos vulnerabilidade a demissões e acordos de trabalho
sociais europeus. Os trabalhadores europeus, não normatizados.
sentindo-se desvalorizados pelas empresas, vendo Em países semiperiféricos, por sua vez,
seu poder de negociação e de pressão diminuir em (como países da Ásia, África e América Latina), o
função do enfraquecimento dos sindicatos, trabalho precário é, muitas vezes, o padrão quando
vislumbrando uma reestruturação no sistema de se fala em assalariamento, e está, ao menos
previdência e na rede proteção social, quantitativamente, mais relacionado ao trabalho na
compreenderam o aumento da vulnerabilidade no economia informal do que na formal. Apenas a
mercado de trabalho e passaram a organizar um titulo de ilustração, entre 1995 e 2007 o grau de
debate e uma estratégia de luta contra a informalidade no Brasil calculado pelo IPEA com
precariedade. Dessa forma, o termo precariedade base na Pesquisa Nacional por Amostra de
ganhou uso corrente em países como a França e a Domicílios (PNAD) do IBGE, foi superior a 55,4%
Alemanha para protestar contra o declínio do (2007) em todos os anos, ultrapassando a taxa de
trabalho seguro e das proteções sociais. 60% dos empregos no país em seis, dos doze anos
Para HIRATA e PRÉTECEILLE (2002: 55), analisados na série histórica.
a precarização social pode ser vista como uma No caso dos Estados Unidos, porém,
“dupla institucionalização da instabilidade”, KALLEBERG (2009) afirma ser consenso que a era
manifestando-se através da precarização econômica mais recente do trabalho precário teve início do

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 45


Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

meio para o fim da década de 1970. Os anos 1970 pois se dá nos marcos do trabalho formal, nos países
marcam o começo de mudanças macroeconômicas semiperiféricos, como o Brasil, é muito mais difícil
(tais como o choque do petróleo) e de mercado (tal trabalhar com esses “parâmetros de formalidade”,
como a competição com a Ásia) que levaram a um pois o trabalho formal não abrange a parcela mais
aumento na competição global dos preços. Essa significativa da nossa força de trabalho. Não
corrida contra o relógio, no que diz respeito à podemos justificar, desta forma, as nossas perdas
produção e competitividade durante a década de em termos de regulamentação trabalhista e salarial
1970, vai resultar em uma “política de precarização com base, apenas, em parâmetros de formalidade no
maciça” até o final dos anos 1990. emprego.
A despeito das mudanças nos rumos da O segundo motivo pelo qual se faz necessária
1
legislação trabalhista – algo que não parece estar a distinção entre a precarização “lá e cá” é a
encerrado, nem no Brasil, nem em outros países – e existência de grupos sociais historicamente
do processo de precarização do trabalho no Brasil, precários em termos de trabalho, renda e condições
há que se fazer uma distinção entre a precarização de existência. O que podemos dizer é que a
do trabalho formal, nos moldes como se incorporação do termo ‘precarização’ à discussão
desenvolveu nos países centrais, da realidade do das transformações no mundo do trabalho, tanto no
trabalho permanente e profundamente precário Brasil, como em outros países semiperiféricos, se
existente nos países semiperiféricos como o Brasil. deu sem atentar para certas diferenças intrínsecas,
Essa distinção é necessária por dois motivos. históricas e culturalmente constitutivas e, por isso,
O primeiro está relacionado à própria decisivas para uma análise adequada, como a
utilização do termo precarização. Nesse caso, há instabilidade no trabalho, a falta de fiscalização e a
uma importante diferença entre a precarização corrupção, que permitem a superexploração da mão-
desencadeada pelas transformações no modelo de-obra, o subemprego e a informalidade.
produtivo e no sistema político-econômico no A “precarização histórica” e estrutural do
continente europeu e nos Estados Unidos e a mercado de trabalho é um fenômeno que pode ser
precarização do trabalho no Brasil, ou em outras notado em boa parte dos países semiperiféricos, e
economias semiperiféricas, posto que a realidade que Marcelo Lopes de SOUZA (2008a) vai
objetiva e intersubjetiva nesses grupos de países denominar hiperprecarização e constituição de um
gera parâmetros muito distintos de comparação. hiperprecariado urbano.
Enquanto no continente europeu a precarização se Por isso, é inadequada uma interpretação que
manifesta através de uma sequência de perdas em (simplesmente) “importe” o conceito de
termos de seguridade social e, também, de salários, precarização dos países centrais ou, o que talvez
fosse pior, relacione a precarização a um processo
1
Flexibilização da legislação trabalhista e sua perda de de “exclusão social”2.
rigor ao tratar de proteção social e salarial para o
2
empregado. Existem diversas contribuições críticas ao uso da

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

A incorporação, sem uma reflexão crítica, do americano (em torno de 20 anos), gerando,
termo precarização e suas variáveis, como o consequentemente, um debate novo em termos de
trabalho precário, tem relação, em grande parte, com produção de dados, análises e literatura.
a sua aproximação pouco criteriosa com outras A informalidade pode ter tido um aumento
noções, especialmente com a de informalidade. Se expressivo nas últimas décadas no mundo devido às
na Europa o debate sobre a precarização joga luz transformações econômicas, políticas e sociais que
sobre transformações que vem sendo feitas nas temos analisado, mas não se trata, por isso de uma
legislações em cada país e suas consequências novidade, como reforça a afirmação de Márcio
trabalhistas e sociais, no Brasil, isto é, na Pochmann:
semiperiferia capitalista, tem sido tomado o
caminho mais curto e, por vezes, associando-se o A informalidade e sua relação com o
emprego não são tema novo no Brasil.
trabalho precário ao trabalho informal, como
A informalidade do trabalho faz parte
sinônimo. do processo histórico de formação e
desenvolvimento de uma economia
Essa associação é inadequada sob vários
periférica que se industrializou
aspectos. Primeiro, por uma questão de tardiamente. Por isso há diversos tipos
de produção e reprodução da
generalização problemática: nem toda precarização
informalidade, sobretudo porque o país
leva à informalidade, assim como nem toda se mostrou incapaz de realizar as
chamadas reformas clássicas do
informalidade trata-se de trabalho precário.
capitalismo contemporâneo (agrária,
Segundo, o debate sobre a precarização introduz tributária e social). (...) Assim, no ciclo
da industrialização nacional (1933 a
toda uma discussão sobre conquistas e perdas em
1980), com avanços significativos na
termos de direitos e garantias que a questão da valorização do trabalho, grande parcela
da população foi excluída do emprego
informalidade não atende, necessariamente.
protegido. Nas últimas duas décadas,
Terceiro, a noção de precarização conforme foi diante do quadro geral desfavorável ao
mercado de trabalho, destacou-se a sua
concebida no contexto histórico, político e
informalização. (POCHMANN, 2001:
econômico europeu, pressupõe um fenômeno não 195).
muito recente no cenário europeu (tem cerca de 40
Em outras palavras, a precariedade não só não
anos) e recente no cenário brasileiro e latino
corresponde a um fenômeno recente, como,
expressão “exclusão social”, que nos mostram que especialmente no caso de países semiperiféricos,
dificilmente encontraremos casos de exclusão
propriamente dita (a não ser em caso de prisões e preexiste ao processo de incorporação da economia
campos de trabalho forçado, campos de refugiados e flexível, à globalização e às transformações no
de contenção política, territórios de exceção etc.), mas
sim diferentes formas de inclusão precária mundo do trabalho. Podemos dizer, então, que o
(MARTINS, 1997) já que, mesmo deficiente,
inadequada e, por vezes, perversa, a participação processo de informalização e precarização do
econômica e social dessa população se insere em um trabalho em economias semiperiféricas e
movimento necessário ao funcionamento da produção,
dos serviços, do consumo etc. industrializadas como a brasileira acompanha um

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 47


Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

contexto mais amplo de reestruturação econômica e em resumo, das políticas de ajuste neoliberal e da
readaptação do mercado de trabalho às novas globalização.
necessidades da produção e do mercado. Contudo, É claro que um trabalhador que sempre
essa não seria a única causa, ou a causa isolada de pertenceu ao setor informal, dedicando-se a
nossa “precarização histórica”. atividades “por conta própria”, não será atingido
Se na Europa a discussão de precarização se diretamente pela reestruturação produtiva, mas
dá em torno de uma sequência de perdas certamente será atingido por outras consequências
econômicas e sociais vivenciadas pela classe do “pacote neoliberal”. A redução do poder de
trabalhadora nas três últimas décadas, “tais compra manifestada na desvalorização dos salários
conceitos muito pouco se aplicam a uma realidade diante dos preços dos produtos e serviços (inclusive
como a brasileira, em que jamais existiu um Estado produtos e serviços considerados essenciais como
de bem-estar [e] (...) as condições de trabalho e de itens da cesta básica, medicamentos, fornecimento
vida da maioria dos trabalhadores em um país de água e luz etc.), a elevação do custo de vida com
semiperiférico sempre foram precárias” (SOUZA, a subida dos aluguéis e dos preços dos transportes
2008a: 131, nota 38). O difícil, talvez, seja públicos, a perda de clientes devido à redução do
mensurar, qualitativa e quantitativamente, essa poder aquisitivo de forma mais ampla que acaba
“precariedade”. reduzindo o rendimento daqueles que estão sujeitos
As condições de trabalho a que são expostos às variações do mercado, entre outros.
os nossos trabalhadores, em termos de salário, Para ajudar na redefinição dos termos desse
riscos, salubridade, conforto ambiental, garantias e debate, SOUZA (2008a) propõe as expressões
seguridade trabalhista etc. seriam classificadas como “hiperprecarização” e “hiperprecariado”.
formas de trabalho extremamente precárias em
países centrais, pelo fato da maioria desses Os conceitos de “hiperprecarização” e
“hiperprecariado” designam, portanto,
trabalhadores ganhar “por serviço concluído”, por
coisas diferentes daquelas cobertas pelo
etapas, ou em valores subdimensionados se debate europeu. A “hiperprecarização”
se refere a um processo que, na esteira
considerarmos o tipo de esforço e de risco a que se
de fenômenos como “ajustes
expõem diariamente. estruturais”, desindustrialização e
transformações no modo de regulação e
A falta de qualidade, os baixos salários e a
no regime de acumulação
ausência de outros benefícios já são características (reestruturação produtiva, “acumulação
flexível”, terceirização,
pertencentes a tais formas de trabalho, mas elas
desregulamentação parcial do Direito
também serão atingidas, direta ou indiretamente, do Trabalho), tudo isso nos marcos da
globalização e da hegemonia das
pelas transformações trazidas pela reestruturação
políticas econômicas neoliberais
produtiva, flexibilização da produção e do consumo, (elementos que conectam o centro e a
[semi]periferia, ainda que as formas e
desindustrialização, desregulamentação do trabalho,
intensidades evidentemente difiram),
atira maciçamente trabalhadores pobres

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 48


Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

do setor informal no mundo geralmente falarmos em grupos (no plural) que constituem o
muito pior da informalidade. Aquilo
hiperprecariado, cada qual com seu aspecto
que era precário em decorrência das
difíceis condições de remuneração, agregador. Isso não só porque o hiperprecariado não
segurança no trabalho e conforto,
se identifica e nem é identificado por determinadas
torna-se, assim, precaríssimo, em razão
do desamparo trabalhista e convenções sociais, como porque ele, normalmente,
previdenciário, da maior instabilidade,
não possui qualquer consciência de seu papel
da maior imprevisibilidade e de uma
frequente deterioração do modesto político-econômico. Como mencionamos, trata-se
padrão de consumo. O
de um universo muito amplo e heterogêneo de
“hiperprecariado”, de sua parte,
constitui o heterogêneo universo de pessoas em diferentes atividades que vão da
trabalhadores informais e todos aqueles
legalidade à ilegalidade dentro de um amplo
que sobrevivem em circunstâncias de
grande vulnerabilidade e mesmo espectro de informalidade. Eles vivem nas brechas
perigo, morando em espaços
do comércio informal (como ambulantes e camelôs),
extremamente desconfortáveis e muitas
vezes insalubres ou improvisados e dos rejeitos (como catadores de recicláveis –
exercendo ocupações estigmatizadas. O
“carroceiros” –, ou dos lixões), ou na ilegalidade
“hiperprecariado” sempre existiu.
Apenas, a partir das décadas de 80 e (dedicando-se a atividades ilícitas como comércio
90, expandiu-se e, principalmente,
de produtos falsificados, ou mesmo ao comércio de
tornou-se sociopoliticamente mais
visível, especialmente no que concerne drogas no varejo), enfim, vivem de um trabalho
a sua parcela ligada a atividades ilegais
fisicamente e emocionalmente desgastante, de baixo
e fortemente criminalizadas, como o
tráfico de drogas de varejo. (SOUZA, retorno financeiro entre outros problemas.
2008a: 131, nota 38, aspas do autor).
A hiperprecarização e o hiperprecariado,
Essa é a parcela da população que dessa forma, não vem, simplesmente, para substituir
desempenha atividades informais, de baixíssima a precarização e o precariado em um contexto
qualificação, rendimento e que, em geral, nunca ou semiperiférico. Nem para fazer referência a uma
poucas vezes esteve inserida no circuito formal da parcela da população de baixa renda, que vive da/na
economia. Logo, diante das suas condições físicas, informalidade. A proposta é de um aprofundamento
sociais, psicológicas, político-culturais, possui da discussão acerca de quem é essa parcela
pouca ou nenhuma chance (a partir, unicamente, das hiperprecarizada da sociedade Qual a sua origem,
disponibilidades de vagas), também, de conseguir qual o seu papel, quais são suas táticas e estratégias
uma ocupação formal, ou mesmo informal, porém, de circulação na cidade, de apropriação do espaço
melhor qualificada. urbano e de territorialização.
O hiperprecariado constitui uma parcela tão Milton SANTOS, no texto “A Revolução
heterogênea e espacialmente dispersa da sociedade, Tecnológica, a experiência da escassez e os limites
que se torna difícil até mesmo sua distinção da globalização atual”, traduz essa realidade como
enquanto grupo. Talvez fosse mais apropriado uma situação onde,

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

boa parcela da humanidade, por É assim que uma pequena parcela do


desinteresse ou incapacidade, não é
hiperprecariado pode encontrar brechas e, nessas
mais capaz de obedecer leis, normas,
regras, mandamentos, costumes, brechas, oportunidades para se organizar e
derivados dessa racionalidade
transformar, com diferentes graus de radicalidade, a
hegemônica. Daí a proliferação de
"ilegais", "irregulares", "informais". ordem instituída. Exemplos de experiências desse
Essa incapacidade mistura, no processo
tipo, que buscam novas formas de apropriação do
de vida, práticas e teorias herdadas e
inovadas, religiões tradicionais e novas espaço urbano e de organização da economia
convicções. (SANTOS, 1999: 3)
popular urbana são o movimento dos sem-teto (com
Nesse trecho, o autor tenta relacionar as suas diferentes frentes e organizações locais,
condições adversas a que é submetida grande parte regionais e nacionais), o Movimento das
da força de trabalho em países periféricos e Comunidades Populares (MCP), alguns ativismos de
semiperiféricos à capacidade de superação, de bairro/favelas etc.
inovação ou de simplesmente conseguir sobreviver e Quando o trabalhador hiperprecarizado toma
produzir em condições nas quais muitos de nós não consciência de sua situação e investe em formas
o conseguiria. O autor vai ressaltar que a para reverter o quadro de completa privação (do ir e
transposição de certas barreiras sociais, a superação vir, do trabalhar, do morar, do alimentar-se e a sua
de inúmeros obstáculos econômicos é que vão família) ao patamar de conquistas (econômicas,
garantir a força e a criatividade muitas vezes socioculturais e políticas) ele se torna protagonista
necessária para a produção e manutenção de certas de uma ação social e parte da formação de uma
formas de resistência e superação de profundas consciência coletiva.
adversidades por parte desse hiperprecariado Quando SANTOS (1999) afirma que a
urbano. superação do conformismo é parte de uma “etapa
superior de produção da consciência”, nos ajuda a
É nesse caldo de cultura que numerosas compreender porque o hiperprecariado organizado
frações da sociedade passam da em torno da questão urbana, protagonistas da luta
situação anterior de conformidade
associada ao conformismo a uma etapa por moradia, trabalho, condições adequadas de vida,
superior da produção da consciência, deixa de ser apenas uma “consequência negativa” de
isto é, a conformidade sem o
conformismo. Produz-se, desta um “sistema injusto”, um “efeito colateral do
maneira, a redescoberta pelos homens capitalismo”, ou uma “mera” externalidade sócio-
da razão e não é espantoso que tal
descobrimento se dê exatamente nos econômica e passa a ser um “não-conforme”. Isto é,
espaços sociais, econômicos e não se adapta às formas sociais e espaciais pré-
geográficos também “não conformes” à
racionalidade dominante. (SANTOS, estabelecidas e não se conforma com as fatalidades
1999: 3) da engrenagem sistêmica.
A “experiência coletiva” que está implicada
na constituição de um ativismo social e,

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 50


Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

consequentemente, de um movimento social, está terrenos e prédios (públicos ou privados, em áreas


diretamente relacionada à experiência de centrais ou periféricas da cidade), sua principal
determinadas condições objetivas e subjetivas de estratégia de luta.
existência (THOMPSON, 1981) o que, de certo Por que jogar luz sobre a relação entre os
modo, nos lembra que a conjuntura que leva à luta movimentos que envolvem a luta por moradia (sem-
por trabalho e moradia não se esgota no espaço onde teto, favelas, bairros populares) e o tema da
essa luta se desenrola, mas remete, também, a uma hiperprecarização? Ou, melhor colocando, por que
estrutura social, política e econômica fundada na valorizar o pertencimento de certa parcela do
distribuição desigual da riqueza, dos recursos, da hiperprecariado urbano a tais movimentos?
renda e das oportunidades, o que produz uma cidade As lutas que vinculam trabalho e moradia se
desigual. traduzem no direito à cidade como uma situação
que inclui direito à habitação digna (acesso
Ativismos sociais e o hiperprecariado facilitado a esta por transportes e uma localização
central, equipamentos urbanos e serviços básicos,
Os protagonistas do movimento sem-teto, que como luz, água, saneamento, gás, educação, saúde,
se constituem da parcela ativista desse cultura e lazer) e, também, direito ao trabalho
hiperprecariado, refletem a dialética espacial a qual digno.
se refere o autor, isto é, a conquista de uma Este último está necessariamente atrelado ao
capacidade de reflexão crítica, da formação e primeiro por relacionar as condicionantes
organização política em torno de uma agenda de luta individuais, familiares e do mercado onde esses
comum e pautada em uma leitura própria do mundo, trabalhadores estão inseridos. O trabalho depende de
e não da mera assimilação de reivindicações e deslocamentos, habilidades, qualificação, boas
“fórmulas prontas”, derivadas de uma leitura condições físicas e emocionais etc. Assim, as
engessada, previamente “estruturada” de mundo. No condições adequadas para a dedicação ao trabalho,
caso do movimento dos sem-teto, trata-se de uma dentro ou fora das ocupações, bem como as
forma de organização e ação coletiva que coloca em variáveis que nele interferem, podem ser melhor
questão a dinâmica urbana capitalista a partir da luta equacionadas quando a luta por moradia não é uma
3
pela moradia e por trabalho e tem nas ocupações de simples luta por “casa”, por um “teto sobre as
3
Nesse sentido, a ocupação dos imóveis é norteada cabeças”, mas por todo o conjunto indissociável de
pelo princípio constitucional de que a propriedade
deve, efetivamente, ter uma função social. Quando os bens, serviços e direitos, que articulam moradia e
imóveis estão abandonados ou não são utilizados, fica trabalho.
caracterizado o desrespeito a tal determinação
constitucional, o que legitima a ação do movimento. Costurar a relação entre a luta pela moradia e
As ocupações são os espaços de luta e reprodução do
movimento sem-teto, são os espaços da sociabilidade a constituição de circuitos econômicos alternativos,
cotidiana dos trabalhadores, ou seja, onde se dão as solidários pode ajudar a melhorar a qualidade de
redes de solidariedade, conflitos, disputas, encontros,
festas, etc. vida, contribuindo, ainda que através de doses

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

“homeopáticas”, para o desenvolvimento sócio- Da atividade informal à economia popular


espacial4 que se deseja, pautado, em grande parte, solidária
pelo ideário do direito à cidade.
As expressões que remetem aos circuitos
Sabemos que os problemas que envolvem a
econômicos “alternativos”, no entanto, são múltiplas
organização, o grau de politização, a defasagem
e, por mais que sejam tratadas como sinônimos,
educacional, o escasso acesso à informação
expressam diferenças quanto a sua natureza político-
assimilável, sem mencionarmos a pobreza, a
filosófica, quanto ao local de origem e ao contexto
fragilidade, a vulnerabilidade e a heterogeneidade
histórico no qual, predominantemente, se
de atividades em que estão envolvidos os
desenvolvem.
trabalhadores hiperprecarizados, dificultam muito e,
Economia social, economia solidária, terceiro
no limite, até inviabilizam qualquer prática política
setor, economia popular, sócio-economia solidária,
mais consistente ou mais duradoura, mas tais
cooperativismo e associativismo são os termos mais
dificuldades podem ser mitigadas se as atividades
utilizados para fazer referência às atividades desse
econômicas derem lugar a circuitos econômicos
circuito econômico que se traduz como “alternativo”
capazes de contribuir para práticas sócio-espaciais
ao circuito econômico “oficial”, ou institucional –
de base popular, mais humanas e solidárias. Isso
na forma das instituições empresa, Estado,
faz da economia popular urbana e da economia
profissional liberal ativo no circuito superior – como
social/solidária significativamente diferentes
práticas de/para iniciativa popular, com vistas a
daquilo que genericamente se define como
constituição de uma economia mais humana e
“atividade informal”.
solidária (ARRUDA, 2003).
Muitos autores5 vêm trabalhando nessa
temática há anos, especialmente na Economia e na
4
“Não se faz referência, aqui, ao desenvolvimento Sociologia, mas esse ainda é um assunto com pouca
apenas do espaço social (situação em que a grafia
deveria ser socioespacial), mas à transformação das repercussão dentro da Geografia. Mesmo quando se
relações sociais e do espaço social. Para o autor desse trata da Geografia Econômica e da Geografia
texto, o desenvolvimento, isto é, o processo (aberto,
não predeterminado, ainda que animado por valores e Urbana, essas áreas têm se preocupado há bastante
por vontades conscientes) de mudança para melhor, é
uma incessante busca por mais justiça social e
tempo, muito mais com a macroeconomia e sua
qualidade de vida sobre a base da autonomia interface geopolítica, ou com o circuito superior e o
individual e coletiva. (...) Sem abrir mão de um
horizonte analítico e político-filosófico radical, a papel das corporações e empreendimentos (rurais e
presente reconstrução do conceito de
urbanos) do que com esse tipo de abordagem que
desenvolvimento enquanto desenvolvimento sócio-
espacial reconhece que ganhos e perdas de autonomia foca no circuito inferior.
ocorrem nas mais diversas escalas temporais e
5
espaciais, inclusive quotidianamente, e é necessário CORAGGIO (1987, 1996, 2001, 2003 e 2006);
saber estimar adequadamente cada vitória (e cada LISBOA (1997, 2003 e 2004); CARPI (1997);
derrota). (...) À luz disso, “desenvolvimento sócio- AHLANDER (2001); FRANÇA FILHO (2002);
espacial” refere-se a um processo, a um devir, e não a NORONHA (2003); SINGER (2002 e 2003); LIMA
um estado.” (SOUZA, 2006a: 111, 112, 113) (2004), são alguns exemplos deles.

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

Paul SINGER, Armando de Melo LISBOA e condição humana” LISBOA (2004: 22). Segundo o
José Luis CORAGGIO são autores que, nos anos autor, seriam partes dessa socioeconomia solidária
1980, dedicavam-se ao tema da economia que por atividades que, simultaneamente, reforçassem o
ora chamamos “alternativa”. Nesses trabalhos os pertencimento social a uma comunidade, gerando
referidos autores começam a delinear conceitos e trabalho e renda, rompendo com a lógica da mera
definir as fronteiras entre as principais expressões adaptação ao fundamento da forma mercantil e
relacionadas ao tema, reservando cada um, é claro, recuperando o sentido original da economia: o
espaço para suas afinidades, posições e convicções cuidado da casa (LISBOA, 2004: 22).
político-filosóficas. Para CORAGGIO (2006), a crítica ao
Para SINGER, (2003) a principal inspiração capitalismo deve ser um norteador para as nossas
da economia social e solidária é o cooperativismo propostas e alternativas. Nesse sentido, a economia
operário, surgido das lutas de resistência contra a solidária deixa de ser “apenas” uma alternativa ao
Revolução Industrial, ao longo do século XIX e XX. desemprego e à dificuldade de se reinserir no
Nele estavam contidos os princípios que iriam mercado de trabalho (formal) e passa a ser uma
nortear as práticas e os discursos de muitos estratégia de resistência e luta (por vezes silenciosa,
empreendimentos do tipo por vezes bastante barulhenta, dependendo do
solidário/cooperativista/associativo (sérios) na contexto).
atualidade. Essas noções relacionam-se a um Para esse autor, práticas econômicas
contexto histórico que remete às experiências solidárias não significam “integrar (de outra forma,
revolucionárias fortemente inspiradas no Socialismo ou da mesma) os excluídos no sistema que os
Utópico e no anarquismo clássico, que afirmavam o exclui”, como se fosse uma resposta ao
cooperativismo, o mutualismo e o associativismo desemprego, à precarização e à alienação, por meio
como alternativos à economia capitalista, em meio de empreendimentos associativos, mas colocar-se,
às trágicas consequências da revolução industrial coletivamente, contra o modelo de sociedade e de
como a superexploração da força de trabalho e as economia que impõe esses problemas como um
péssimas condições de vida a que eram submetidos projeto de autonomia, análise com a qual
os trabalhadores nesse período. concordam TRAJANO e CARVALHO (2003).
LISBOA (2004) defende a adoção da
expressão socioeconomia solidária, pois, para ele, A experiência de construção do
trabalho co-labor-ativo e da autonomia
"socioeconomia" explicitaria tanto “o amálgama da
dos trabalhadores não se constitui em
economia na sociedade”, quanto a subordinação da um processo linear, sem conflito e sem
contradições. Exige o rompimento com
economia a essa mesma sociedade, expressando a
práticas heterônomas ou, numa outra
compreensão de que a economia não é um fim em si linguagem, práticas paternalistas e
autoritárias, em que o outro decide por
mesma, mas apenas um “instrumento que tem por
mim, em que normas e valores devem
finalidade o sustento da vida e a melhoria da ser interiorizados, sem possibilidade de

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reflexão crítica. (TRAJANO e economia popular, por princípio político, teria como
CARVALHO, 2003: 175)
fundamento a reinvenção dessas práticas, sua
Diferentemente da situação do terceiro adaptação (completa ou parcial) aos problemas,
setor na América Anglo-Saxônica, e da economia projetos e possibilidades da comunidade a qual está
social e solidária de tradição européia, na América vinculada. Assim,
Latina a economia solidária não surge a partir do
movimento operário, como acontece na Europa no o que caracteriza a EPS, insistimos, não
é a condição de informalidade (o
século XIX, ou com o esgotamento de um Welfare descumprimento das obrigações legais
State, que nunca existiu de fato, ou existiu de forma não é exclusivo dos produtores
informais, nem a eles pode ser atribuída
residual, mas a partir de experiências de a responsabilidade maior pela evasão
marginalização duradoura ou permanente do fiscal), ou estarem desvinculados do
mercado, mas sua condição de estar
mercado de trabalho e de situações de falência de voltada para prover o sustento do grupo
empresas que passaram a constituir experiências de (experiência associativa) sem a
presença da mercantilização do
autogestão. trabalho, com uma racionalidade
A economia popular, no entanto, não se produtiva submersa nas relações
sociais. Por isto não podemos
resume a uma economia meramente informal confundi-la com uma espécie de
praticada por pobres em áreas precárias. "capitalismo popular". (LISBOA, 2004:
10)
Normalmente, a economia popular se constitui de
atividades informais, mas nem toda atividade Essa parece que tem sido, aliás, a única, ou a
informal corresponde à economia popular. Além maior preocupação dos governos nos últimos anos
disso, há uma diferença entre essas que pode em relação à precarização e hiperprecarização do
remeter a um projeto político de fato. trabalho: a tributação da renda e o pagamento de
A economia informal, analisada de maneira impostos. Como se a responsabilidade sobre os
geral, assume a forma de “microprojetos inúmeros problemas relacionados à administração
individuais”, que configuram uma espécie de pública e a “falta de dinheiro” para investimentos
simulacro precário das práticas econômicas em setores como hospitais, escolas, universidades,
(produtivas e mercantis) formais (cf. LISBOA, transportes etc., fosse exclusivamente dos
2004), de forma que essas práticas não afirmam, trabalhadores que não pagam seus impostos e não
necessariamente, uma relação com a base social “contribuem” para a construção social do país.
local, comunitária ou com um saber ancestral. Ou Apenas “usam” os hospitais, “usam” as escolas
seja, enquanto a economia informal tem como públicas com seus “montes de filhos”, “lotam” os
característica a adoção de práticas que tentam transportes públicos, “competem” com os
reproduzir, ainda que precariamente, as relações lojistas/empresários (que “pagam regularmente os
formais de produção e trabalho capitalistas, a seus impostos”) ao instalarem bancas de camelôs

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

com produtos baratos, sem nota fiscal, sem registro Segundo os próprios ativistas que se dedicam
de procedência, sem pagar luz, IPTU, ou aluguel, à discussão e à práxis político-econômica como
espalhados nas calçadas, nas portas das lojas. Para o forma de produzir alternativas ao modo capitalista
Estado, e para uma grande parcela da população, em de produção e ao trabalho, a definição de economia
especial a classe média, o hiperprecariado e o popular encontra-se, por demais, desgastada, ou
trabalhador informal precarizado são problemas mesmo nunca correspondeu ao que o nome deveria
sociais e econômicos que podem ser “sanados” com designar. Ela descreve, fundamentalmente,
um registro administrativo e regularização fiscal. atividades precárias de sobrevivência na cidade para
Não se colocam em questão as causas fundamentais uma parcela considerável da população que não
de sua existência. encontra outra possibilidade de fazê-lo.

A economia popular e o hiperprecariado A economia popular é a economia que


tá aí, a economia do povo. Aos trancos
e barrancos, se virando, ganhando uma
O espectro da economia popular é muito mixaria aqui, gastando ali, né? Essa é a
amplo e diverso, assim como também o é a economia popular, por exemplo, os
camelôs... é uma economia popular.
delimitação do hiperprecariado urbano, como (Entrevista com uma importante
havíamos mencionado anteriormente. Apesar da liderança do MCP, realizada em
29/09/2011)
expressão “economia popular” ser utilizada com
frequência na literatura para fazer referência a Com a (hiper)precarização do trabalho em
algumas experiências de (auto)organização popular seus diferentes estratos, é possível perceber uma
em torno de uma solução ou alternativa a certas ampliação absoluta da “economia popular”, notada
dificuldades e obstáculos do mundo do trabalho e de com o perceptível aumento do número de camelôs,
reprodução da vida, a experiência mostra que nem ambulantes, prestadores de pequenos serviços etc.,
sempre essa é uma realidade alcançada. Em geral a mas, simultaneamente, cada vez menos as atividades
economia popular passou a abrigar uma gama muito rotuladas como economia popular constituem-se de
variada de atividades que não expressam, práticas politicamente organizadas e solidárias por
necessariamente, algum tipo de projeto político princípio. Essa, aliás, é tanto uma crítica, quanto
comum ou de organização coletiva. O caráter de uma dificuldade enfrentada por esses movimentos
resistência tão destacado na literatura como uma na tentativa de construção e manutenção de
característica marcante em diferentes experiências e atividades econômicas alternativas e inspiradas por
movimentos tem se diluído em uma ampla um sentido de autonomia e autogestão.
miscelânea de atividades de produção e serviços, Essa dificuldade em se estabelecer um
únicas ou complementares, para um número grande, parâmetro de análise que ajude a elucidar e salientar
e cada vez maior, de trabalhadores nas cidades o princípio e fundamento das práticas econômicas
brasileiras. surgidas das camadas populares é que vai levar

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

alguns autores (especialmente CORAGGIO, 1987, Santa Marta e Cidade de Deus), bem como o
1996, 2001, 2003 e 2006 e LISBOA, 1997, 2003 e desenvolvimento econômico local. Isso através de
2004) a tomarem como referência de análise a programas de capacitação do trabalhador para a
expressão economia popular, acrescida do adjetivo economia solidária e fortalecimento de
solidária, ou economia popular de solidariedade. empreendimentos desse tipo já existentes nas
A expectativa desses autores é de que a comunidades.
economia popular, com todos os obstáculos Ainda que os idealizadores e promotores do
materiais e imateriais enfrentados por seus projeto estejam repletos de boas intenções e
protagonistas, guarde em si o germe de uma vontade, um projeto que conta com investimentos
possível transformação social. Dessa forma, o grupo públicos da ordem de quase dez milhões de reais
social, ou parte desse grupo definido como vindos do Programa Nacional de Segurança
hiperprecariado urbano, guardaria o potencial (que Pública com Cidadania – o PRONASCI8 – não
pode ser manifestado, ou não) de ser protagonista de contém em si fundamentos e princípios que
transformação social, econômica e política. estimulem a busca da autonomia individual e
No que tange às experiências oficiais coletiva, já que eles estão inseridos na mesma lógica
relacionadas à economia popular solidária na cidade de exclusão e higienização dos projetos
do Rio de Janeiro, é importante destacar que, em desenvolvidos pela Prefeitura, como “revitalização
2009, foi criada uma Secretaria Municipal do Centro e Zona Portuária”, perseguição e
especificamente para “promover o desenvolvimento eliminação do trabalho ambulante e do “comércio
econômico solidário”, a Secretaria Especial de de rua”, remoção de favelas e despejo de ocupações
Desenvolvimento Econômico Solidário da Cidade na cidade, “pacificação” de favelas etc.
do Rio de Janeiro (SEDES 6). Nela está inserido o
projeto RIO ECOSOL7, um projeto que visa 8
“O Programa Nacional de Segurança Pública
promover a economia solidária em quatro com Cidadania é uma iniciativa pioneira que reúne ações
comunidades populares da cidade do Rio de Janeiro de prevenção, controle e repressão da violência com
(Complexos do Alemão e de Manguinhos, Morro atuação focada nas raízes sócio-culturais do crime.
6 Articula programas de segurança pública com políticas
Segundo o Diário Oficial do Município - DOM
(http://doweb.rio.rj.gov.br, acesso em 07/10/2011), sociais já desenvolvidas pelo governo federal, sem abrir
esta Secretaria “tem por objetivo pensar, estruturar,
mão das estratégias de controle e repressão qualificada à
propor, viabilizar e credenciar políticas públicas para
a geração de alternativas de trabalho, emprego e renda criminalidade. (...) Além dos profissionais do sistema de
na cidade”.
7 segurança pública, o Pronasci tem como público-alvo
O projeto foi idealizado e está sendo coordenado pelo
Núcleo de Solidariedade Técnica da Universidade jovens de 15 a 24 anos que estão à beira da criminalidade
Federal do Rio de Janeiro (Soltec/UFRJ) –
ou já em conflito com a lei. O objetivo é a inclusão e
responsável pelo desenvolvimento da sua
metodologia, calcada na “pesquisa-ação” e na acompanhamento do jovem em um percurso social e
“participação” – e pelo Centro de Ação Comunitária
formativo que lhe permita o resgate da cidadania”.
(CEDAC), uma ONG que é responsável pela
“formação e educação popular para o trabalho”. (Fonte: http://portal.mj.gov.br/pronasci)

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

Essas práticas contam com parcerias públicas empregado, do gestor e do patrão. Nós
queremos que as pessoas adquira a
e privadas, para transformar o Rio de Janeiro em
consciência de gestor, e de um gestor
uma cidade-vitrine, passível de comercialização coletivo. E que desapareça a
consciência patronal e de empregado. É
material e imaterial, sediando megaeventos
o que temos de diferente. Nosso grupo,
esportivos, shows e eventos internacionais. O o GIC, os GICs que nós propomos eles
têm uma consciência de gestão
projeto, mais uma vez, ignora questões bem mais
coletiva. (Entrevista com uma
profundas existentes na cidade do Rio de Janeiro, na importante liderança do MCP, realizada
em 29/09/2011)
sua região metropolitana e em outras, que é a
gigantesca segregação sócio-espacial existente na O GIC, mencionado na entrevista, consiste
cidade que reproduz a lógica do trabalho precário em uma das atividades do setor de economia10 do
informal como única alternativa possível para MCP, um movimento social com mais de 40 anos de
milhares de cidadãos. Nesse sentido, a “economia atuação no Brasil que desenvolve diferentes práticas
solidária” como colocada nesses projetos e leis, do âmbito econômico sobre bases comunitárias,
pode ser traduzida apenas como uma solidárias e coletivas.
“regularização” de parte do trabalho informal, sem, O que garante o sucesso das várias
contudo, alterar sua situação de subalternidade, experiências econômicas populares e de caráter
como coloca um ativista entrevistado, a respeito da verdadeiramente social/solidário, sustentadas por
comparação entre os programas de Economia esse movimento no Rio de Janeiro e em diferentes
Solidária Oficiais, como o ECOSOL da Prefeitura estados brasileiros, é a adesão e o compromisso
do Rio e a experiência do GIC – Grupo de assumido pela comunidade onde a experiência está
Investimento Coletivo criado pelo Movimento de inserida e, no caso do GIC, a constante
Comunidades Populares (MCP9): movimentação do dinheiro investido. A comunidade
investe no GIC e se utiliza de empréstimos neste,
Veja os bancos comunitários pois confia no seu funcionamento e vê nessa
incentivados pelo capitalismo por aí. É
totalmente diferente. Não tem a atividade benefícios que ela não teria em bancos
participação popular, usa o povo como convencionais, ou aos quais estaria impossibilitada
massa de manobra. Como no emprego.
Cadê a poupança? Cadê a participação de acessar por não ter comprovação de renda, ter “o
nas discussões, no destino, na forma? nome sujo”, não possuir documentação pessoal
Totalmente diferente do que a gente
propõe, onde se discute tudo. E com regularizada, entre outros fatores. O interessante de
isso, além de você sentir como a coisa é 10
Os grupos que compõem o setor econômico do MCP
sua, você aprenda a administrar. É são o de produção coletiva (GPC), vendas coletivas
aquele negócio: é o tipo de consciência. (GVC), trabalho coletivo (GTC) e investimento
Hoje existe a consciência do coletivo (CIC). No caso desse último, as atividades
estão relacionadas a aplicações, resgates e
9
O Movimento de Comunidades Populares é um empréstimos em condições mais favoráveis ao
movimento de base popular fundado por trabalhadores trabalhador de baixa renda e de forma coletiva, ao
rurais e urbanos pobres que hoje possui uma escala de estilo “banco do povo”, porém com a moeda corrente
atuação ao nível nacional. vigente no país.

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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

ser observado é que o GIC acaba fortalecendo os pela economia empresarial e estatal, nem são isentas
laços comunitários, pois o dinheiro pego como de influências e obstáculos sérios, mas demonstram
empréstimo, muitas vezes é a única chance de a força e o poder da organização popular em busca
garantir pequenos ganhos em termos de melhora nas de alternativas, em sentido crítico, mesmo em
condições de vida das pessoas, com a compra de condições muito difíceis e até hostis, como o
uma geladeira, a reforma da casa, e isso cria um enfrentamento com uma grande empresa, da
sentimento de segurança que remete ao sentido violência e a criminalidade que tem dominado as
primeiro da economia e da vida em comunidade. favelas e bairros populares em todo o país.
O GIC não tem nenhum fim lucrativo, sua A economia informal é secular no Brasil,
única finalidade é a promoção da economia popular assim como a precariedade do trabalho. O
solidária e de ganhos de qualidade de vida para a hiperprecariado urbano atual traz em si a essência
comunidade em que se insere. Seu objetivo não é ser do trabalho árduo, mal remunerado e de risco, que
grande, mas do tamanho de sua comunidade. Um muitos cidadãos insistem em classificar como
GIC não almeja movimentar milhões de reais, como invisível: a “economia invisível”. Quando na
um banco, mas se multiplicar o quanto for possível verdade essa economia não tem nada de invisível,
para alcançar mais e mais comunidades. mas, ao contrário, está explícita diante de nós a cada
passo nas ruas, a cada olhar pela janela de casa, do
(...) o objetivo do grupo é ajudar as carro, do ônibus... os “invisíveis” sempre viveram
famílias a melhorar sua renda,
dos mercados locais, de abrangência espacial
aprender a poupar e transformar o
GIC no Banco da Comunidade para relativamente restrita, de baixo teor tecnológico,
sair da dependência dos capitalistas e
mas elevado potencial criativo e de flexibilidade na
financiar a construção das
comunidades populares autônomas. dificuldade (o famoso “jeitinho brasileiro”, o “jogo
(Relato de um dos administradores
de cintura” não estão apenas no futebol e no samba)
voluntários do GIC de São Lourenço da
Mata – PE, para o “Jornal Voz das e contribuem para esses mercados, ainda que
Comunidades”, agosto de 2011, ano 6,
subordinados à lógica de uma economia considerada
no. 14, p.4)
“visível”, reforçando o que, em 1979, Milton Santos
Podemos dizer que o GIC, o GVC, o GPC e o já denominava como o espaço dividido da
GTC correspondem a experiências bem sucedidas articulação dos dois circuitos: o inferior e o
de economia popular solidária, ou socioeconomia superior.
solidária, por conseguirem realizar uma economia Há saídas, há experiências de sucesso e há,
que remete ao seu sentido original, do cuidado com também, obstáculos e fracassos. É justamente entre
a casa, e essa “casa” não se refere apenas à unidade esses sucessos e fracassos, entre os tropeços de
habitacional familiar, mas à vida em comunidade. quem caminha, que se encontra o vínculo entre a
Essas experiências não estão desvinculadas de uma luta pela moradia e a economia popular
economia profundamente heterônoma, dominada urbana/economia popular solidária. Trabalho e

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geração de renda foi (como motivador), é (como um daqueles galpões ali do porto,
naqueles armazéns na altura da
necessidade imediata de sobrevivência) e sempre
Rodoviária. Eu perguntava para o
será (como projeto político) uma questão secretário: “tem projeto de geração de
renda para esse povo?” Ele respondia:
fundamental para os movimentos sociais de base
“Não. Só moradia!”. A gente
popular como aqueles que inspiram as ocupações do conseguiu 41 casas em um conjunto
que tava sendo construído em Nova
movimento dos sem-teto, que organizam as
Iguaçu para sermos reassentado. Eu
comunidades e bairros populares. perguntei de novo, após um tempo, e
ele disse a mesma coisa: “aqui não
A espacialidade é um elemento fundamental
tem projeto de renda. É pra
na análise da relação moradia e trabalho. A moradia!”. Sabe o que eu penso? Sabe
por que eles jogam os pobres nessas
proximidade do local de trabalho traduz-se na
áreas? É pra pessoa não pensar. Pra
possibilidade de utilizar o seu tempo de forma mais ela viver menos. Quem não pensa não
vive, sabe? A pessoa passa três horas
produtiva. Quando dizemos “produtiva” não
de ida e três horas de volta do trabalho
estamos nos referindo ao trabalho que pode ser na condução. São seis horas, um
quarto do dia! Seis horas que ela podia
realizado nesse tempo para geração de riqueza, mas
tá pensando, produzindo, mas tá no
a outras formas de produção: o tempo em família, o ônibus. De cada dez pessoas no ônibus
essa hora [era em torno de 20h] neve
tempo de descanso, o tempo de lazer, o tempo
tão dormindo. É o povo exausto que
ocioso que permite pensar, refletir, elaborar, como não pode pensar... (entrevista
concedida por B., em 23/09/2011)
mostra de forma brilhante o relato de um ativista do
movimento dos sem-teto no Rio de Janeiro, morador Esse trabalhador que constitui o
de um conjunto habitacional popular em Nova hiperprecariado urbano e que ocupa o espaço da
Iguaçu. cidade e seus imóveis ociosos, seus terrenos e suas
encostas, conhece e questiona a dinâmica urbana
Outro dia eu tava lembrando: tem mais contemporânea, lutando pelo seu lugar na cidade.
de 40 anos, tem uns 48 anos, eu
trabalhei na remoção do pessoal que Eles querem morar onde há mais oportunidades de
morava ali no morro do Pasmado, em trabalho, onde há disponibilidade de transportes,
Botafogo, na época era favela do
Pasmado. Eu trabalhava com equipamentos urbanos de consumo coletivo,
caminhão e ajudei a tirar os móveis e serviços básicos etc. Em outras palavras, querem
as coisas dos pessoal de lá para levar
lá para Vila Kennedy e Vila Aliança. também, uma radicalização da participação popular
Na época aquilo ali era mato, não no sentido da democratização do planejamento e da
tinha nada lá. Aí eu fiquei pensando...
é incrível como a Prefeitura, o gestão das cidades (cf. SOUZA, 2003, 2006a e
Governo, faz hoje em dia a mesma 2006b).
coisa. Usa as mesma ferramenta. Joga
o povo lá pra cima, lá pra longe, pra O trabalho, nessas condições, é caracterizado
periferia. Na época que eu participei por uma dura realidade que coloca a necessidade da
da ocupação na Barão de São Félix
[atual Ocupação Chiquinha Gonzaga] conquista do sustento e da sobrevivência
a gente foi abrigado por dois meses em

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diariamente. Esse talvez seja o elemento mais difícil uma falta de compromisso e de confiança no
de ser transformado e coletivizado. O peso da sucesso do empreendimento que leva as pessoas a se
responsabilidade de “trazer dinheiro para casa” é dedicarem cada vez menos, até por que “o tempo
enorme e esse é um campo onde as “experiências”, não pára” e elas têm que se sustentar de alguma
os “testes” não são suportados por muito tempo. forma. A saída acaba sendo o trabalho individual ou
Não há condições e margem de manobra para tal, familiar de sempre.
não há “reserva de caixa”. Quando o assunto é Quando moradores da Ocupação de sem-teto
trabalho, continua vigorando uma lógica trazida “de Quilombo das Guerreiras11 foram questionados em
fora” em que não há tempo a perder, a esperar: cada diálogos informais e, também, em entrevistas de
um precisa “defender o seu”. Não podemos julgar pesquisa, a respeito da vontade de trabalhar em uma
essas reações. São reações de quem já passou e atividade coletiva, em uma ou mais cooperativas,
ainda passa por situações limite. A busca da dentro das ocupações, por exemplo, a resposta era
autonomia se constitui de pequenos ganhos em sempre positiva: “sim, gostaria!”. No entanto, vinha
diferentes interfaces de relacionamento. Há sempre seguida de um ‘porém...’: “mas tenho que
conquistas extremamente importantes em diferentes sustentar a minha família...”, “mas preciso ganhar
aspectos e há pontos nevrálgicos extremamente dinheiro hoje...”, “mas isso leva tempo e eu não
difíceis de serem modificados e um desses pontos é posso esperar para alimentar meus filhos...”.
a relação com o trabalho e a forma do trabalho. Todos têm consciência de caminhos,
Trabalhar coletivamente, trabalhar em um alternativas, críticas ao modelo onde estão inseridos,
espaço de produção, venda, prestação de serviço que mas as condições objetivas muitas vezes são, de
seja (auto)gerido, organizado e mantido pelos imediato, instransponíveis. Ao mesmo tempo, para
próprios trabalhadores é um desejo, mas uma além das condições objetivas que dificultam ou
possibilidade que parece sempre muito longe de ser impossibilitam a dedicação a práticas econômicas
alcançada. solidárias e autogestionárias, como cooperativas
As dificuldades apontadas são muitas: (1) A autogeridas, há as condições subjetivas que se
renda nesse tipo de atividade coletiva acaba sendo expressam na heteronomia introjetada no indivíduo,
muito baixa, insuficiente para sustentar a família; deixando explícita, sua dificuldade de se mover fora
(2) simultaneamente, o trabalho toma muito tempo, das práticas hierárquicas do capitalismo.
o que inviabiliza uma complementação por outros Isso explica, em parte, a utilização
meios; (3) o custo para montar, equipar, colocar equivocada ou mesmo mal intencionada da
para funcionar um espaço de produção ou prestação expressão “autônomo” para designar trabalhadores
de serviços para trabalho coletivo, isto é, um tipo de que atuam no mercado “por conta própria”, isto é,
oficina de trabalho, é alto, exige investimentos em
11
máquinas, ferramentas, que os trabalhadores pobres Ocupação de sem-teto de inspiração política
fortemente horizontal localizada na Zona Portuária do
não têm como arcar; (4) isso gera um desânimo, Rio de Janeiro.

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na maioria das vezes informalmente, sem relação de de poder sociais, ou tratam-se, na verdade, de um
assalariamento com nenhum tipo de empresa, ou eufemismo para escamotear graves problemas
patrão. No entanto, quando o hiperprecariado, por econômicos, políticos e sociais das metrópoles do
sua informalidade, é qualificado/identificado, ou Brasil e do mundo. Recorremos à SOUZA (2008b)
mesmo se auto-intitula “autônomo”, o significado para refletir sobre o assunto. Para esse autor, de
da autonomia é esvaziado, banalizado e até forma direta e sucinta, ser um trabalhador autônomo
deturpado. significa
A autonomia, em relação ao mundo do
trabalho, foi basicamente debatida a partir da ideia não ser oprimido e explorado; significa
não ser governado por leis de cuja
da autogestão operária, que, no século XX, ganhou
elaboração a esmagadora maioria das
força, principalmente, a partir da década de 60, pessoas não teve a menor chance de
participar. É claro que, nesse sentido,
culminando com os acontecimentos de maio de 68.
os “trabalhadores autônomos” pobres
Quando analisamos e comparamos o significado e o são muito pouco autônomos, uma vez
que estão inseridos, de maneira
uso político da expressão autonomia para qualificar
subalterna, em uma sociedade
a natureza das relações de produção e de profundamente desigual e injusta.
Apesar disso, o fato de não terem um
organização do trabalho, podemos afirmar que seu
patrão, de não estarem submetidos à
uso contemporâneo esvaziou completamente o disciplina de uma fábrica e de poderem,
de alguma maneira, organizar seu
sentido mais radical e profundo de uma das questões
tempo do modo como lhes parece
mais importantes formuladas pelos trabalhadores ao melhor, merece ser visto como uma
possibilidade interessante. Não se
longo de suas lutas. A autogestão é, basicamente, o
deseja sugerir, com isso, que a
exercício da autonomia coletiva: informalidade e a precarização
crescente das relações de trabalho não
sejam, de forma imediata, problemas
graves nos marcos da problemática
Uma sociedade autogerida é uma geral do capitalismo contemporâneo. O
sociedade onde todas as decisões são que se quer dizer é simplesmente isso:
tomadas pela coletividade que é, a cada que a situação dos “autônomos” não
vez, concernida pelo objeto dessas precisa ser vista apenas como
decisões. Isto é, um sistema onde limitação; ela pode e deve ser vista,
aqueles que realizam uma atividade também, em parte, como
decidem coletivamente o que devem potencialidade, apesar das muitas
fazer e como fazê-lo nos limites dificuldades a serem enfrentadas.
exclusivos que lhes traçar sua (SOUZA, 2008b: 05)
coexistência com outras unidades
coletivas. (CASTORIADIS, 1983: 212)
Trabalhadores hiperprecarizados, em geral,
Logo, usar a expressão “trabalhador são pessoas que não possuem, ou tem acesso apenas
autônomo” para designar o camelô, o ambulante, o a canais de representação frágeis e pouco
catador, o flanelinha, é uma forma de reconhecer significativos, o que os coloca em uma condição de
nele especificidades que dizem respeito às estruturas “marginalidade política”, uma vez que não tem

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como se fazer presente, de forma efetiva, nos autogerida nos marcos de uma outra forma de se
espaços formais de representação política e, além pensar a organização não somente da produção, mas
disso, possuem poucos recursos e força para exercer também da distribuição e do consumo. Desafios que
pressões em partidos e no aparelho de Estado. Essa impõe uma transformação de práticas e, também, de
condição de precariedade econômica e social, aliada princípios e subjetividades.
à marginalidade política, afasta esse conjunto da Tais desafios começam no plano das ideias,
classe trabalhadora da concepção de autonomia que uma vez que é necessário romper e superar com
estamos abordando. Por isso, SOUZA (2008b) uma forma de se pensar em termos de economia
afirma que, nesse sentido, “os ‘trabalhadores capitalista, onde a produção, o consumo e a
autônomos’ pobres são muito pouco autônomos”. distribuição estão atrelados aos processos de
A autogestão produtiva não é uma questão exploração, acumulação, assalariamento e
simplesmente econômica em sentido estrito. Sem hierarquização, o que torna a ideia de uma
dúvida ela levanta questões econômicas claras e organização do trabalho sem hierarquia e
relevantes, no entanto, a autogestão é, antes de tudo, diferenciação de remuneração estranha para nós,
expressão de relações de poder, logo, ela remete, de afinal, já incorporamos a ideia de que é normal uma
forma explícita, à política. A questão do regime de pessoa ganhar mais do que a outra em função da
propriedade, por exemplo, não pode ser tratada obtenção de um título acadêmico, sem levar em
apenas do ponto de vista técnico e da eficácia consideração as condições concretas de vida de cada
produtiva, como querem os economistas e uma e a dinâmica social que está organizada para
intelectuais conservadores, que argumentam que a reproduzir esta desigualdade. Soa estranho, por
propriedade privada é o regime que permite maior exemplo, defender a organização do trabalho em
ganho produtivo e maior eficiência dos fatores de uma fábrica onde a pessoa responsável pela limpeza
produção e, por isso, seria melhor para a sociedade tenha os mesmos direitos políticos e econômicos de
em seu conjunto. A questão do regime de um trabalhador da administração. Nesse sentido, a
propriedade coloca, antes da questão econômica, a sociedade, de forma autônoma e coletiva, deve
questão do poder: em uma sociedade heterônoma, instituir para si, quais são as suas prioridades (em
quem detém a propriedade dos meios de produção, termos de bens e serviços) e de que forma esses
possui uma capacidade maior de exercer poder do bens e serviços serão disponibilizados para os
que os demais, logo, um problema político se coloca cidadãos.
imediatamente. Diante de tais formulações, não é possível
O elemento fundamental que está posto é o aceitar de forma acrítica o uso da categoria
poder. A participação direta do conjunto dos autonomia para qualificar uma gama tão
trabalhadores em condições iguais de decidir sobre heterogênea de trabalhadores, principalmente
suas próprias vidas. Ela coloca para nós desafios aqueles que identificamos como o hiperprecariado.
concretos de se pensar uma nova economia O que diríamos então da espacialidade vivida,

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produzida e compartilhada por esses trabalhadores e luta pela verdadeira autonomia no trabalho e na
nas áreas favelizadas das grandes metrópoles, nas vida.
ocupações de sem-tetos, nos bairros e loteamentos Se tomarmos a situação da perspectiva de
periféricos, no seu dia-a-dia em busca do sustento uma conquista em longo prazo, ou de um horizonte
de sua família e sua sobrevivência? de luta de uma coletividade, a expressão ganha
Tanto nas cidades, quanto no campo, os outro sabor. Mesmo em uma situação subalterna e
espaços que reproduzem relações de trabalho, sejam que continua a reproduzir uma exploração (que não
essas formais ou informais, definem-se por uma deixa de ser de classe), o fato de não estar inserido
profunda heteronomia. Isto é, são os espaços de de maneira formal nesse circuito e de não reproduzir
outrem. Nesses, o trabalhador tem pouco ou nenhum certas regras e normas colocadas por outros, já abre
poder sobre as relações de produção e sobre os uma margem de manobra que pode, ao menos,
corpos, inclusive o seu. As estruturas de poder que ajudar a alcançar, como coloca SOUZA (2006a),
atravessam esses espaços cerceiam quase por relativos ganhos de autonomia a médio e longo
completo as possibilidades de autogestão, prazos.
autodeterminação, autonomia. Ainda que esse No caso de algumas ocupações do movimento
trabalhador esteja nas ruas, seja um ambulante, um dos sem-teto no Rio de Janeiro essa situação de
camelô, ou que esteja no campo ganhando seu trabalho hiperprecário para a maioria dos moradores
sustento como temporário (um boia-fria), ainda é uma realidade, mas a perspectiva de análise e a
assim, esse trabalhador está subordinado a um crítica a essa mesma realidade tem alimentado o
sistema que exerce sobre ele um poder heterônomo. movimento e sua luta. A conquista de uma
Na verdade, quanto maior a pretensa “autonomia”, alternativa a esse tipo de trabalho ainda é um desejo
nesse sentido falacioso de “liberdade do não- não realizado, mas que já foi esboçado algumas
assalariamento”, maior é o jugo da opressão vezes.
econômica e, por sua vez, social. Apesar das adversidades encontradas no
No entanto, como dissemos no início, essa quotidiano de trabalho – a instabilidade de renda, o
não é a única perspectiva em que esse fenômeno da baixo rendimento obtido, a exposição a riscos, a
informalização do trabalho pode ser analisado. violência criminosa e policial, entre outros – da
Mostramos, a partir da citação de SOUZA (2008b: maior parte dos trabalhadores informais
05), “que a situação dos ‘autônomos’ não precisa (hiper)precarizados, as alternativas em termos de
ser vista apenas como limitação; ela pode e deve trabalho coletivo ainda não são compatíveis com as
ser vista, também, em parte, como potencialidade, conquistas obtidas em termos de avanço na
apesar das muitas dificuldades a serem organização política e nos ganhos sócio-espaciais.
enfrentadas”. Assim, há outras formas de se Mesmo entre aqueles que experimentaram ou
enxergar as fissuras do sistema, nas quais se podem vivenciam um contato mais próximo com
desenvolver estratégias de resistência à heteronomia organizações de movimentos sociais e comunitárias,

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que valorizam e estimulam a plena participação, a tenha sido a da Cooperativa de Reciclagem da


horizontalidade nas discussões e a coletividade nas Ocupação Chiquinha Gonzaga, em 2005,
decisões, ainda encontram dificuldades em estender experiência relatada por GRANDI e TEIXEIRA
esses princípios para o trabalho e geração de renda. (2009). Segundo os autores, essa primeira tentativa
surgiu como uma alternativa de trabalho para uns,
A experiência da economia popular uma complementação de renda para outros e nela
(solidária) entre os sem-teto da área central foram depositadas muitas expectativas não apenas
da cidade do Rio de Janeiro
para melhorar a renda das famílias, mas também

A criação de espaços de produção e geração para as condições gerais do prédio (já que a

de renda dentro das ocupações de sem-teto na área cooperativa ficava obrigada a contribuir com uma

central do Rio de janeiro sempre esteve na pauta de porcentagem sobre os rendimentos para o coletivo –

discussões do movimento tanto por sua importância manutenção dos espaços do prédio, aquisição de

objetiva na possibilidade de transformação na vida material para melhorias de infraestrutura etc.), para

dos indivíduos, quanto na sua contribuição indireta, a relação entre os moradores, etc. No entanto,

no que se refere à manutenção da segurança jurídica segundo GRANDI (2010), os resultados não foram

da posse12, na compatibilização do uso residencial tão positivos. A proposta foi levada à assembleia e

com outros usos do espaço. recusada, tornando-se pivô de amplos e acalorados

Atualmente, nas ocupações com as quais debates e até discórdias entre moradores. Conflitos

colaboramos, poucas atividades econômicas surgiram por diferentes motivos: desde a falta de

(individuais ou coletivas) são realizadas no interior consenso quanto ao uso dos espaços coletivos da

dos espaços de moradia, ou mesmo dos espaços de ocupação, passando pelo tipo de cooperativa e de

uso coletivo. Para os espaços coletivos foram trabalho (com lixo), até questões pessoais

pensadas cooperativas de trabalho autogeridas relacionadas à falta de confiança e problemas de

pelos moradores e há, inclusive, espaços destinados comunicação. A conclusão é que a cooperativa nem

a essa função e que abrigam ou já abrigaram essas chegou a ser implementada.

atividades nas ocupações. Houve então uma segunda tentativa na

Talvez a primeira experiência de Ocupação Chiquinha Gonzaga com a Cooperativa

implementação de uma atividade de geração de de Alimentação. Essa cooperativa fornecia refeições

renda coletiva nas ocupações por nós estudadas 13 para eventos, sob encomenda e “quentinhas” a
12
Com base na “função social da propriedade” e nas varejo. A cooperativa funcionou por algum tempo
“funções sociais da cidade” identificados pela na cozinha coletiva da ocupação graças à dedicação
Constituição Federal, pelo Estatuto da Cidade e pela
MP 2.220/2001 que complementa o referido Estatuto. de alguns moradores. Atualmente o funcionamento
13
Ocupação Chiquinha Gonzaga (Centro do Rio de
Janeiro), Ocupação Zumbi dos Palmares (Saúde, da cooperativa de alimentação da Chiquinha
Zona Portuária do Rio de Janeiro) e Ocupação Gonzaga é intermitente. Ela mantém o espaço
Quilombo das Guerreiras (Santo Cristo, Zona
Portuária do Rio de Janeiro). destinado a essa atividade, bem como os

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equipamentos e esses são utilizados a partir de envolvia representantes de 12 famílias da ocupação


encomendas para alguma atividade, ou e também destinava uma porcentagem da sua receita
comemoração (normalmente organizados por para atividades do coletivo e manutenção do prédio.
entidades ligadas aos próprios movimentos sociais). A cooperativa de calçados de Quilombo das
GRANDI (2010) fez um estudo detalhado guerreiras chegou a conseguir, em 2007, ser
sobre as praticas sócio-espaciais e o agir admitida para o processo de “incubação” promovido
comunicativo na Ocupação Chiquinha Gonzaga e pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas
aponta que, em grande parte, os problemas Populares (ITCP) da COPPE/UFRJ. Isso significou
relacionados ao funcionamento e manutenção dessa um reconhecimento importante e um apoio grande,
experiência remete a diversas origens, da relação contudo, o processo de “incubação” é longo e se
entre as pessoas e a formação de diferentes campos realiza, em grande parte, na Ilha do Fundão. Para
políticos, passando pelas estratégias de divulgação quem vive de atividades informais precárias, o
da mesma, até o alcance das informações e a dispêndio com passagens e o tempo que deveria ser
valorização de experiências relacionadas à dedicado à capacitação não podem ser ignorados, a
economia popular solidária. despeito do apoio técnico fornecido pela ITCP. A
Hoje existem dois projetos para o cooperativa não conseguia reunir todos os esforços
funcionamento de cooperativas na Ocupação de trabalho, aquisição de matérias-primas e
Chiquinha Gonzaga, uma cooperativa cultural (que equipamentos, o que reduzia muito a sua capacidade
visa criar uma editora para publicação de jornais e de produção e, consequentemente, de geração de
livros) e uma cooperativa de prestação de serviço de renda para os envolvidos, o que acabou decretando
construção civil. Essa continua sendo uma questão o encerramento de suas atividades.
importante para alguns moradores, motivando a Existiu, ainda, a experiência de Confecção e
realização de eventos como um seminário Serigrafia na Ocupação Zumbi dos Palmares, com a
organizado na ocupação em maio de 2008, que foi produção de camisetas, bandeiras e estampas. Essa
intitulado “O que pode a economia popular nunca foi, de fato, uma cooperativa, pois era gerida
urbana? Pensando a produção e a geração de e organizada por um só morador com a colaboração
renda nas Ocupações”, organizado pelos moradores esporádica de outros, a despeito desse morador ter
da própria ocupação e pelo NuPeD, bem como um tentado, por diversas vezes, montar oficinas de
encontro de Experiências de Economia Solidária, treinamento, cursos, coletivizar o trabalho. No
realizado em maio de 2010, pelo GT de Economia entanto, diversos problemas inviabilizaram o projeto
Solidária ligado ao Grupo Reunindo Retalhos. coletivo, os quais remetem, de certa forma, a
Outra experiência de cooperativismo dentro problemas ocorridos na ocupação Chiquinha
das ocupações foi a Cooperativa de Chinelos e Gonzaga, envolvendo conflitos entre moradores,
Sandálias da Ocupação Quilombo das Guerreiras, disputas, desconfiança, além da tradicional urgência
criada em meados de 2007. Essa cooperativa em ganhar a vida, em ganhar dinheiro por parte do

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próprio e por parte dos demais moradores. Esse independente), ainda assim, ela é bastante
morador seguia desenvolvendo a atividade em uma incompleta, se considerarmos as condições a que
das unidades domiciliares da ocupação, utilizada estão submetidos e o mundo onde estão inseridos,
como uma oficina até que a ocupação Zumbi dos conforme as formulações e os exemplos
Palmares foi despejada em fevereiro de 2011 e essas apresentados aqui. Nesse momento é compreensível
atividades foram definitivamente encerradas. pensar que o trabalhador autônomo, no sentido
O trabalho realizado nas imediações, em libertário, ainda está para ser socialmente
locais muito próximos das ocupações (nas calçadas, produzido.
na esquina, na Rodoviária e na Central do Brasil,
por exemplo) ainda é predominante para os que Referências bibliográficas
ganham a vida “trabalhando por conta própria”.
Esse tipo de prática e de atividade econômica marca AHLANDER, Ann-Mari Sätre (2001): “The social
economy: new co-operatives and public
um outro tipo de espacialidade desses trabalhadores: sector”. Annals of public and cooperative
é predominantemente fora do espaço da ocupação economics. P. 413-433, 72: 3. Published by
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outra economia. Porto Alegre: Veraz
enquanto e para a maioria dos moradores. Editores.
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demonstra que, apesar de ainda não representar uma Annals of public and cooperative economics.
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Informalidade e hiperprecarização, economia popular urbana e economia solidária Tatiana Tramontani Ramos

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

– Encontro com os clássicos –

Sobre o ensino da Fisiografia*

Piotr Kropotkin

Q uando o professor Huxley1 introduziu, há


23 anos, o nome e a disciplina de
Fisiografia, suas intenções
certamente excelentes. Naquela época, as ciências
foram
escolas, mostra que a reforma não foi pensada o
suficiente. Eu não preciso falar aqui sobre a obra
"Fisiografia" do professor Huxley. Todo mundo sabe
seus méritos inestimáveis e suas desvantagens
naturais estavam quase completamente excluídas óbvias, suas explicações maravilhosamente claras
das escolas. O ensino da Geografia encontrava-se dos fenômenos naturais, sua bela anatomia da
num nível bastante incipiente: a chamada Geografia nascente de água, ou do vulcão, e também a
Política era um mero conjunto de nomes e uma ausência de uma concepção geral construtiva dos
disciplina completamente subordinada. A Geografia fenômenos do globo. Não preciso falar dos méritos
Física era uma coleção de informações, muito deste ou daquele outro livro porque se aproxima a
abstrata, muito incoerente, muito extensa e ao época em que uma outra reforma nessa mesma
mesmo tempo muito superficial para ter alguma direção vai se tornar absolutamente necessária. O
utilidade na educação. Sob o nome de Fisiografia, as que é necessário agora na escola é não fornecer
ciências naturais foram, por assim dizer, algumas noções de Natureza em conexão com as
“contrabandeadas” para dentro das escolas. características físicas de uma dada localidade, mas
Mostrando como o estudo da Natureza poderia ser transmitir um conhecimento profundo da Terra,
abordado, assim como métodos de observação como parte do Universo – não uma mera introdução
científica poderiam se tornar familiares examinando ao estudo da Natureza, mas este estudo em si. E a
as coisas mais de perto, o professor Huxley, sem pergunta é: como levar adiante este estudo?
dúvida, prestou um imenso serviço a este país. Ele O Heimatskunde2 está agora em voga. Mas
realizou uma profunda reforma. quanto mais pensamos nele, mais nos convencemos
No entanto, a verdadeira forma que assumiu a de que se ele atendia aos seus objetivos 50 anos
Fisiografia em seu famoso livro e mais tarde nas
2 Uma tradução livre para a língua portuguesa do termo
1 Thomas Henry Huxley (1825-1895), importante em alemão, ainda que dotado de imprecisões, seria o
naturalista inglês do século XIX que desenvolveu "estudo da terra natal". No entanto, a originalidade
estudos integrados entre diferentes disciplinas para a do termo em alemão foi mantida no texto para
análise da dinâmica natural da Terra. (N.T.) preservar o estilo da escrita do autor. (N.T.)
* Tradução do texto original “On the Teaching of Physiography” (1893). Disponível online em http://dwardmac.pitzer.edu/
Anarchist_Archives. Tradução: Eduardo de Oliveira Rodrigues & Urubatan Nery. Revisão: Marcelo Lopes de Souza.
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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

atrás, especialmente em alguma aldeia remota, Terra deva estar limitado somente ao estudo de sua
perdida nas montanhas da Floresta Negra, ele não própria localidade. O Erdkunde – isto é, o
atende mais, em nossos tempos da civilização conhecimento da Terra como um todo – inunda por
ferroviária e de trânsito global, aos seus objetivos. todos os lados suas mentes, e nós somos compelidos
Nós não podemos impedir que nossos filhos a aceitar esse fato para falar-lhes da Terra como um
recebam um conhecimento geral da Terra, mesmo todo, desde sua idade mais tenra – na escola
em idade precoce. Eles comem laranjas e bananas, primária e na escola secundária, bem como na
que não crescem nas nossas latitudes. E muitos universidade e depois da universidade.
deles veem as que crescem nas estufas de Kew, em O estudo da nossa própria localidade possui,
meio a um ambiente bastante incomum. Na idade de sem dúvida, uma imensa importância na educação.
seis anos eles já conhecem o "navio do deserto", o Mas esta importância me parece repousar em outro
crocodilo feio do rio Nilo, o cão que arrasta trenós lugar. O estudo de nosso próprio lugar não pode ser
no extremo norte e o cão que costumava encontrar usado para o estudo da Natureza de um modo geral.
meninos italianos perdidos nas neves de St. Bernard Ele deve ser usado apenas como meio para dar uma
Pass. Os livros, os jornais ilustrados, os contos que forma mais concreta aos conhecimentos adquiridos,
passam pelas mãos dos nossos filhos, contam-lhes e como um meio de adquirir conhecimento através
histórias de terras distantes, povoados – não de do trabalho e da própria observação. Assim que
fadas, mas de homens negros, os quais Livingstone cada menino e menina souber o suficiente sobre
amou e Stanley investigou. Eles falam sobre países geometria elementar para medir ângulos e
de vegetação tropical exuberante ou que estão distâncias, eles devem ser capazes de traçar ângulos
enterrados na neve, e de homens distantes, no chão, fazer o mapa de uma lagoa ou de um riacho
estranhamente vestidos e caracterizados. Na idade com o auxílio do compasso e das suas próprias
em que costumávamos imaginar a vida dos contos mãos. Não para tornarem-se geógrafos, mas para
de fadas, eles imaginavam ser navegadores em ajudá-los a compreender concretamente o que
viagens para a Austrália, ou viajantes no continente significa um mapa, para dar uma melhor
negro e colonos em ilhas distantes. E se existem em compreensão da geometria em si, e facilitar
nossas favelas uma grande quantidade de crianças imensamente a compreensão dos desenvolvimentos
que, ao serem levadas para um subúrbio e ao verem futuros na Matemática e na Física. Cada menina e
uma macieira florescendo admiram "as margaridas menino deveria saber quais plantas são
na árvore" – é porque ainda existe algum tipo de predominantes em seus prados, seu parentesco com
conhecimento nesse mundo imenso que começa a se outras plantas da mesma família, ou grupos
infiltrar, e que se infiltrará mais e mais até mesmo similares, e as particularidades de cada uma. Eles
nas favelas. deveriam saber bem sobre os animais,
Em suma, não há período na vida de nossas especialmente os insetos, e aprender a observar os
crianças durante o qual seu conhecimento sobre a seus hábitos. Tudo isso contribuiria para dar-lhes

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

uma concepção mais concreta do que ouvem e foi feito pelo Comissionário da Sociedade
aprendem sobre terras distantes. Geográfica3 no que diz respeito ao ensino da
Esta é a parte apropriada do Heimatskunde na Geografia, e as opiniões parecem estar bem
educação, mas se você confiar a ele mais do que acordadas sobre este assunto. Há, entre aqueles que
isso, estará aquém de seu objetivo. Falar com um se comprometeram com a grande missão de
estudante a respeito da distribuição das chuvas nas transmitir aos nossos filhos as primeiras noções do
Ilhas Britânicas, relacionando isso com as águas que universo, muitas mulheres e homens que assumiram
correm por baixo da ponte de Londres, é tão essa tarefa com seriedade total. Embora os
artificial e irracional como desenvolver as leis de professores não contem com o devido apoio em seus
atrito dos fluidos, ou as leis da elasticidade dos esforços por parte de pais indiferentes, e apesar
sólidos, em conexão com a mesma ponte. Essas leis, deles não encontrarem simpatia suficiente em uma
bem como a distribuição dos climas na Terra, devem sociedade que valora seus esforços através dos
ser estudadas por si, e não em relação a alguma baixos salários que lhes são pagos, os professores
característica da paisagem local. fazem o seu melhor, e muitos deles conseguem
Em suma, no atual estado de nossa transmitir às nossas crianças, tanto no jardim de
civilização, a concepção da Terra como um todo, e infância quanto na escola primária, uma boa dose de
da variedade de seus climas, paisagens e habitantes, conhecimento e métodos científicos de observação.
penetra inevitavelmente na mente de nossos filhos, e É evidente que ainda existe margem para
devemos dar-lhes noções da Terra e do universo melhorias. O grande desejo do momento é que haja
desde as primeiras fases, até as mais complexas de mais conhecimento das ciências naturais entre os
acordo com o desenvolvimento gradual da sua professores das escolas primárias. No entanto,
inteligência. E devemos utilizar nosso bairro, não quando vemos a avidez com a qual os professores
para transmitir o conhecimento da Terra – este seria aproveitam cada oportunidade para adquirir esse
um método totalmente artificial – mas para dar uma conhecimento, parece que o que é mais necessário
concepção mais concreta de fatos aprendidos pelo agora é dar-lhes mais oportunidades para ampliar
estudante e, especialmente, para a promover o seu conhecimento na ciência através de palestras em
estudo de maneira espontânea. Neste sentido, o seu tempo livre, ou através de cursos livres
Heimatskunde deve ser levado a cabo paralelamente distribuídos por todo o país para além dos grandes
ao Erdkunde, ao longo de todos os três segmentos centros, ministrados por voluntários em Biologia,
da educação. Geologia, Geografia e assim por diante, como
Voltando nossa atenção para o atual estado da também mais excursões de verão, sempre que um
educação em Fisiografia nas escolas, é muito naturalista ou geógrafo puder se dispor a passar suas
prazeroso constatar que nas escolas primárias o
estudo da Natureza está, via de regra, com uma base 3 J. S. Keltie's 'Geographical Education'; Report to the
Council of the Royal Geographical Society. London
razoavelmente satisfatória. O mesmo comentário já (John Murray), 1885.

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

férias. Tudo isso poderia ser facilmente realizado, depende inteiramente de melhorias nas escolas
especialmente se as associações de professores e secundárias e nas universidades.
outros órgãos similares tomassem a iniciativa nessa As coisas permanecem bem diferentes com a
questão. educação no ensino secundário das escolas
Ao mesmo tempo, uma grande regulares. Aqui, os naturalistas são unânimes em
ação(iniciativa?) deve ser feita pelos próprios pais. reconhecer que tudo precisa de uma reforma.
Eles devem ser gratos ao professor que dá a seus Em muitas escolas deste país a Fisiografia é o
filhos as primeiras noções da ciência, e sistematiza único meio para transmitir ao estudante algum
os conhecimentos adquiridos. Mas seria tolice da conhecimento sobre a Natureza. A Física, a
parte deles confiar unicamente no professor. Química, a Botânica e a Zoologia não são ensinadas
Nenhuma quantidade de ensino organizado equivale nas escolas, e a responsabilidade pela instrução em
ao primeiro impulso pelo o amor à natureza que todas essas disciplinas é jogada sobre os ombros do
deve vir dos próprios pais. A escola alemã é professor de Fisiografia. Seus estudantes não têm
exaltada com grande louvor neste país. Mas a escola nenhuma ideia sobre calor e suas leis mecânicas, de
na Alemanha é apenas uma parte do sistema de sua propagação e conversão, e supõe-se que o
educação. A quantidade de livros bons e baratos, os professor de Fisiografia instrua-os em tudo isso,
periódicos para a educação domiciliar, e o número enquanto fala sobre o vento do oeste ou do leste que
de sociedades na Alemanha que recentemente sopra na sala de aula ou trata da circulação da
começaram a desenvolver o gosto por coleções de atmosfera. Seus pupilos não sabem o que é um
história natural, por aquários de água doce e composto químico e, mesmo assim ele deve falar da
marinhos, terrários em casas particulares para os composição das rochas e da água do mar, explicar a
estudos topográficos e similares, como também o teoria atômica enquanto explica de onde o sal de
despertar desse interesse entre amadores, devem ser cozinha é extraído. Seu conhecimento da fisiologia
levados em conta. Tais sociedades – não para das plantas é nulo, e ele deve explicar como elas se
promover o desenvolvimento da ciência, mas para alimentam, o que elas absorvem do solo e expelem
tornar os seus resultados e métodos acessíveis a um na atmosfera e como funciona seu protoplasma. Eles
público mais amplo – poderiam facilmente ser não sabem uma lei da mecânica e são convidados a
fundadas, e o professor iria encontrar aí grande entender o mecanismo dos terremotos, do
ajuda em seu trabalho. movimento das geleiras, do mar e das correntes de
Em suma, o que se procura para melhorar a ar!
educação primária não é tanto uma mudança no Se o professor seguisse o livro do professor
sistema com uma ainda maior perfeição na Huxley, ele deveria dedicar atenção especial aos
realização do sistema existente. Grandes melhorias pupilos que não sabem que a fonte de um rio
podem ser alcançadas através do desenvolvimento encontra-se à montante de sua desembocadura, que
do gosto pelas ciências naturais em geral. E o resto hesitam em descobrir onde está o norte e o sul, mas

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

que, após poucas explicações sobre estas questões sua própria orientação, e que, como sempre, deva
absolutamente elementares, o professor já supõe que saber muito mais – mas muito mais mesmo – do que
possa mostrar-lhes um mapa hietográfico das Ilhas aquilo que ele simplesmente pretende ensinar, deve
Britânicas, para explicar-lhes como "o ar é possuir, assim como o próprio autor do livro possui,
carregado de umidade", e como "um tabuleiro ou um vasto e completo conhecimento enciclopédico
planalto rodeado de montanhas" irá influenciar a de vários ramos da ciência. Mas isso significaria
distribuição das chuvas pelo país. Todo o exigir o impossível de um professor da escola
conhecimento da Natureza, que seja bom para uma secundária.
criança e que possa ser entendido somente quando O fato é que não podemos evitar a
ela estiver mais amadurecida, deveria portanto ser necessidade imposta a nós pelo desenvolvimento da
transmitido espontaneamente, de uma forma não ciência, da indústria e da civilização como um todo,
sistemática e casual. de educar nossos filhos em ciências naturais de
Nas mãos de um professor bem-educado, maneira adequada. O conhecimento dos
excelentes resultados podem ser e são obtidos a movimentos de massa – o fundamento de todas as
partir de conversas informais nas escolas primárias. ciências naturais – deve ser transmitido em sua
Conversas sobre a Natureza destinadas a estimular o forma adequada, os da mecânica com a ajuda de
desejo de saber alguma coisa e para testar as figuras geométricas e fórmulas algébricas simples,
diversas aptidões das crianças, assim como suas não só como é dado na introdução à Física em todas
respostas ao método de aprendizado proposto. Mas as escolas do continente, e especialmente na França,
na escola secundária a educação em ciência não mas com uma visão mais profunda do assunto, caso
poder ser deixada aos perigos do gosto e do contrário, será um conhecimento superficial de
impulso. Ela deve ser sistematizada. Dar muito pouco valor. O estudo dos estados, leis e
conhecimento sistemático é, de fato, o principal transformações de energia molecular devem voltar a
dever desse segmento da escola. ser transmitidos em sua forma adequada para os
Uma tentativa de transmitir um conhecimento termos da Física, também com um conhecimento
sistemático foi feito no trabalho notável, o "Reino profundo das expressões matemáticas das leis e com
4
da Natureza", pelo Dr. H.R. Mill . Não acho o trabalho de laboratório. E o estudo da energia
palavras adequadas para expressar o prazer que tive atômica deve ser transmitido nos termos da
ao ler as definições filosóficas claramente Química, também com o trabalho de laboratório, e
formuladas pelo autor, parágrafo após parágrafo, com um estudo aprofundado das leis de
deste pequeno, porém muito bem estruturado livro. transformações químicas. Que espécie de geração
Mas o professor que tome o livro como método para estamos preparando para as futuras lutas e posterior

4 Assim como Thomas Huxley, H.R. Mill foi um desenvolvimento da indústria e da ciência, se
importante naturalista inglês do século XIX, que negarmos aos nossos filhos os próprios elementos, a
desenvolveu estudos sobre a dinâmica natural da
Terra. (N.T.) própria base de toda educação? Será certamente

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

necessária uma revisão geral do reino da Natureza, Isso produziu a força, o significado histórico, e os
do Cosmos, que inclua a vida orgânica, o homem, e méritos inestimáveis do retorno medieval ao estudo
os ideais do homem e as instituições. Mas, isso só da Antiguidade. Na realidade, este movimento
será alcançado em um estágio mais à frente, quando significou o início – o alvorecer da Ciência Natural
uma revisão geral dos conhecimentos já adquiridos moderna. Mas agora as peças estão invertidas. A
nos diversos ramos separados da ciência deverá ser ciência não pode mais ser estudada em Aristóteles.
feita. No final da educação secundária e durante os Ela deve ser estudada em Newton e Mayer. E
estudos universitários tal revisão seria de valor aqueles que negligenciam Newton em favor de
inestimável. Então, e somente então, ela seria bem Aristóteles estão agora na mesma posição que os
compreendida, mas não antes dos elementos de cada adversários da educação clássica ficaram 500 anos
ciência em especial forem dominados. atrás. Eles apoiam as Palavras contra a Ciência.
Sei, no entanto, e de modo algum minimizo, o Outro fato que atinge todos os que pensam a
principal obstáculo a esta necessária reforma. Ele educação é a enorme diferença entre a quantidade de
encontra-se na educação pseudoclássica, que agora é conhecimento que foi necessária em tempos antigos
considerada como a base apropriada à educação e a quantidade necessária atualmente. Aquele que
secundária, que não deixa tempo para o estudo do conhecia a Geometria 500 anos atrás era um homem
mundo em que vivemos e para familiarizar o culto. Agora, cada carpinteiro deve saber Geometria.
estudante com os métodos da pesquisa científica. Aquele que sabia o que havia além do Mar Negro
Uma discussão sobre os méritos relativos aos dois era um homem de extraordinário conhecimento.
sistemas rivais de educação estaria fora de questão Agora, nós tratamos nossas doenças através da brisa
aqui, mas existem dois ou três pontos, ao menos, do mar numa viagem até a Nova Zelândia5, ou
que preciso comentar já que eles têm influência viajamos de bicicleta para Hami e saímos de férias
direta sobre a minha discussão. para Spitzbergen. Os limites do mundo conhecido
Em primeiro lugar, o atual sistema de foram ampliados, assim como os limites do
educação clássica nasceu num momento em que o conhecimento. Nossa geração foi considerada como
conhecimento da natureza poderia ser tomado a suficientemente educada sabendo Geometria
partir do estudo da Antiguidade. Ele foi uma elementar e Álgebra elementar. Mas a próxima
fortíssima e necessária reação contra o geração vai encontrar uma educação imperfeita se o
escolasticismo monástico. Foi um retorno à nossa menino e a menina de dezoito anos não forem
Mãe Natureza. Retornar ao espírito grego
significava um retorno à Natureza – a Ciência 5 A frase original usada é “now, we go for a sea-air cure
to New Zealand”. Ao longo do século XIX, era
Natural, aos métodos científicos, em vez de altamente recomendado para o tratamento de algumas
doenças, como a tuberculose, viagens para altas
discussões verbais: à arte natural em vez da arte altitudes ou viajar de navio. Acreditava-se que o ar
convencional, para a liberdade da vida municipal em das montanhas e a brisa do mar possuíam efeitos
medicinais benéficos para o tratamento de doenças.
vez da escravidão dos Estados despóticos do leste. (N.T.)

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

capazes de entender, pelo menos os métodos de Esta separação artificial é, no entanto,


análise diferencial e integral, e se não utilizarem aniquilada todos os dias. Voltemos para a Natureza.
esses instrumentos de análise como nós agora Voltemos ao espírito grego, que concebia o homem
usamos as regras da aritmética. como uma parte do Cosmos, vivendo a vida do todo
Tal conhecimento pode ser adquirido somente e encontrando sua maior felicidade vivendo essa
numa condição onde o trabalho espontâneo se torne vida. O renascimento universal do amor à Natureza,
a base da educação em todos os ramos do currículo que é uma característica proeminente da nossa
escolar. E se há 50 anos atrás poderia ser dito que as própria época, a aplicação dos métodos das ciências
ciências naturais não ofereciam nenhuma disciplina naturais às ciências que lidam com o homem e sua
para a mente do jovem, que não abriam um campo mente e, finalmente, a concepção poética do grande
suficientemente amplo para o trabalho do próprio universo infinito que mais e mais penetra na nossa
estudante, hoje esta afirmação não pode mais ser poesia, na nossa arte e na nossa ciência, são provas
sustentada. Nem mesmo no que diz respeito às de que esta separação está chegando ao fim. Os
ciências biológicas, que não muito tempo atrás eram geógrafos têm contribuído especialmente para
meramente descritivas, mas que agora também têm destruir as telas que separavam esses dois ramos da
elaborado métodos para promover a investigação e a ciência, isolados uns dos outros pela universidade.
descoberta como forma de exercícios educativos. O "Cosmos" de Humboldt é o trabalho de um
E, finalmente, uma terceira censura às geógrafo, e é o trabalho geográfico mais
ciências naturais deve ser mencionada, representativo do nosso tempo. A “Géographie
especialmente porque ela nos traz diretamente de Universelle” de Elisée Reclus – nos dá uma
volta à minha discussão. A Ciência Natural, da descrição da Terra tão completamente mesclada com
maneira como ela é vista, não dá à educação o o Homem, que se o homem fosse retirado do
caráter humano que deveria dar. Isso é verdade, e a trabalho ele perderia todo o seu significado, todo o
objeção permanece em pleno vigor até agora. No seu (sic) espírito.
entanto, depende inteiramente de nós mesmos fazer Esta tendência crescente remove a última
dela o mais poderoso instrumento de transmissão de objeção contra as ciências naturais, tornando-se o
educação humana também. Os gregos antigos não alicerce da educação. O homem, suas instituições,
separavam o homem da natureza. E o divórcio entre sua linguagem, e sua moral, estão se tornando parte
as ciências humanas – História, Economia, Política, do grande Cosmos e sendo considerados como tal.
Moral – e ciências naturais, foi realizado Esta digressão foi necessária para apoiar a
inteiramente por nós mesmos, especialmente minha próxima proposição, ou seja, a de que eu não
durante o nosso século, e por essa escola que posso conceber uma Fisiografia na qual o Homem
manteve os alunos que estudam o Homem na total tenha sido excluído. Um estudo da natureza sem o
ignorância sobre a Natureza, e os alunos que homem é o último tributo pago pelos cientistas
estudam a Natureza na ignorância sobre o Homem. modernos à sua educação escolástica anterior.

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

Mas a Fisiografia, incluindo o homem, de seus destinos históricos e o significado dos


retorna à sua origem, o Erdkunde, o estudo da Terra tempos modernos. Temos aqui uma característica
e tudo o que está sobre ela. Deveríamos, portanto, marcante da superfície da Terra que torna-se um
retornar à velha Geografia Física? Primeiramente as assunto amplo e cheio de significado para ser
nascentes, em seguida os estalactites e as estudado separadamente, no qual o estudo da
estalagmites, os vulcões, os movimentos da crosta Geologia, Biologia, Climatologia e História
terrestre, a distribuição de mono e dicotiledôneas e a completam-se mutuamente a fim de imprimir na
distribuição das raças humanas? Certamente não, mente uma característica distinta e dominante da
porque nós podemos fazer melhor. arquitetura da vida na Terra.
A primeira coisa que chama atenção do Então, seguindo os cursos dos rios, temos as
geógrafo que olha para a Terra como um todo, não é planícies altas e baixas que cercam os planaltos. Eu
nem tanto a diversidade da paisagem e suas vejo as planícies da minha terra natal coberta com
características em partes separadas, mas sim certos campos de milho, tão distantes quanto a visão pode
tipos bem definidos de paisagens e cenários. Por alcançar. Os arvoredos de graciosas bétulas, e os
exemplo, o grande platô da Ásia Oriental, a espinha prados ricamente adornados com uma flora ainda
dorsal do continente, uma parte do velho continente não modificada pelo homem. As pobres casas feitas
da Eurásia. Percebemos sua monotonia: a sua falta de troncos de madeira nas aldeias, e as comunidades
de características topográficas marcantes, seus rurais em seu trabalho. E em um mapa, guiando-me
calmos rios e lagos salgados, O inverno frio e seu simplesmente pela orografia do país, eu rastreio a
verão escaldante, as migrações de seus animais para extensão do movimento glacial e dos sedimentos, e
sudoeste e nordeste, suas populações sendo delineio as regiões atingidas pela fome com a
conduzidas em certas datas históricas pela rápida mesma segurança de um estatístico. Eu leio a
dessecação, através do Vale de Dzungaria, na história do país escrita em seus rios nas
direção das planícies da Ásia e da Europa. Sua vida proximidades do Vale de Jungaria do outro lado, e
pacata, suas músicas monótonas, suas imensas naquelas planícies que apenas esperam pelos
federações. Temos assim características bem colonizadores para serem cobertas com plantações
definidas de um todo vivo. E o pensamento evoca de milho. Então, eu comparo estas planícies com as
imediatamente a ideia de outro grande planalto no de Yorkshire e Lancashire, situadas entre as
Novo Mundo, com seus lagos salgados, cânions, as montanhas e o Canal da Mancha, com partes
suas manadas de búfalos migrantes, seus índios densamente povoadas da Europa no seu entorno e
conservando velhas organizações de clãs e, em meio possuindo o atraente oceano a oeste. Eu as comparo
a eles, a irrupção do primeiro vagão e a ferrovia do também com as planícies da Alemanha, os puzhters6
Pacífico atravessando o deserto. E assim vemos o
platô da Ásia Menor e os da África com suas 6 Referência ao bioma típico encontrado nas planícies
que recobrem boa parte do sudoeste da Hungria.
semelhanças físicas, a variedade de floras e faunas, (N.T.)

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

da Hungria, as estepes da Sibéria meridional, os impressão geral correta do mundo em que vivemos.
pampas da América do Sul. E, novamente, fora Esta revisão e análise dos diferentes tipos de
destas paisagens separadas, diversificadas por suas paisagens deveria ser, na minha opinião, o mais
posições geográficas e seu entorno, outra grande importante a ser ensinado sobre a Geografia na
característica da superfície da Terra – as altas e escola secundária. Quando isso for feito, e quando a
baixas planícies – fixam minha atenção e gravam-se educação do aprendiz em Mecânica, Física e
em minha memória. Biologia tiver progredido o suficiente, uma revisão
O mesmo com as regiões alpinas, como as da geral da dinâmica atmosférica, do oceano e da
Suíça, do Altai, do Cáucaso e outro tipo crosta da Terra viria como uma conclusão
completamente diferente representada pelos necessária. E a mente do aprendiz ser nutrida
Pireneus centrais ou pela Transcaucásia. O mesmo suficientemente durante este tempo, para que ele
com as regiões dos Grandes Lagos, que se estendem crie interesse em assuntos econômicos e políticos,
através do Canadá, pelo noroeste da Inglaterra, possibilitaria que a revisão sobre a subdivisão da
englobando a Escandinávia e a Finlândia, e humanidade em regiões econômicas e Estados, com
novamente representando um tipo bem definido de a análise de suas instituições e relações mútuas,
paisagem terrestre, originada por um grupo bem encontrasse lugar apropriado.
definido de atores que desempenham um papel É evidente que em todos esses ensinamentos
definitivo na história da humanidade. Os desertos tudo o que for possível deve ser feito para transmitir
áridos da África, da Arábia, o território a ideia concreta dos diferentes tipos descritos pelo
transcaspiano, as grandes florestas da África e da geógrafo. As excelentes coleções de imagens
Sibéria e os arquipélagos tropicais do Ártico. As coloridas de paisagens, publicadas em tamanho
planícies do Ganges e do Nilo, as Tundras do grande e pequeno por Hölzel7 em Viena, são de
extremo norte, e assim por diante, aparecem grande utilidade e oferecem uma verdadeira
novamente como características definitivas da representação científica dos vários tipos. A coleção
superfície da Terra. só precisa ser mais completa. Quanto aos livros, eu
Em uma palavra, existem tipos de paisagens e particularmente recomendo a leitura dos relatos
cenários sobre a superfície da Terra, assim como originais de viagens. Nossos jovens não leem o
existem tipos de animais e plantas. Cada um deles suficiente desses relatos de viagens encantadores,
representa um grupo definido de causas físicas que profundamente impressionantes e altamente
agem para produzir um resultado, e cada um deles instrutivos das quais todas as literaturas – e,
desempenha um papel definitivo na distribuição e especialmente a literatura inglesa – possuem uma
no destino da vida orgânica, bem como no grande riqueza, especialmente a partir do século
crescimento e no desenvolvimento de civilizações 7 Adolf Hölzel (1853–1934), artista e pintor alemão
separadas. Devemos familiarizar nossos estudantes cuja primeira fase da sua obra, ainda no século XIX, é
marcada pela forte influência Impressionista na
com estes tipos a fim de transmitir-lhes uma pintura de paisagens. (N.T.)

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

passado e no início do presente. Elas deveriam ser novamente, as rotas de expedições ao Ártico são
selecionadas, reimpressas e amplamente divulgadas. traçadas em mapas a partir dos dados indicados em
Assim também as obras clássicas como "Ansichten registros de viagem; enquanto que, em outras
8
der Natur" de Humboldt, as monografias de Ritter escolas, modelos orográficos grosseiros são feitos
sobre o camelo, a árvore do chá, suas palestras de argila. A importância desse trabalho e os seus
gerais sobre Erdkunde, entre outras. Estamos com efeitos estimulantes e educativos são tão evidentes
medo de dar aos nossos jovens trabalhos que eles que eu nem preciso mais insistir neste assunto.
ainda não estão inteiramente preparados para E, finalmente, algo muito positivo poderia ser
compreender. Entretanto, é exatamente a partir de feito na forma de viagens, mesmo com todos os
tais obras que eles se tornam mais passíveis de obstáculos que são colocados no caminho por
serem atraídos pelo o amor poético da Natureza, despesas de trem e hotel. Os jovens não são
pelo desejo de saber mais sobre seus mistérios – a extravagantes em suas necessidades, e podem viajar
luz fraca pela qual algumas partes da obra são com poucas despesas. Além disso, uma boa
circundadas – despertando a sede de mais estratégia para a redução de despesas poderia ser
conhecimentos, e envolvendo a Natureza com a uma espécie de federação de escolas para este fim
poesia que levou os nossos melhores naturalistas específico. Na verdade eu não vejo porque, durante
para suas pesquisas. as férias da Páscoa, os meninos de uma escola de
Não preciso insistir sobre a necessidade de Londres que desejam visitar o distrito de Lago, não
promover o trabalho prático e experimental por possam pendurar suas redes em alguma escola de
todos os meios possíveis. Apenas é preciso Cumberland na semana do feriado. Um grande feito
mencionar o quanto foi alcançado nesta direção até neste sentido já foi feito na Noruega e no Cáucaso.
agora por alguns modestos professores de Viagens escolares são uma característica regular do
Fisiografia. Numa pequena escala, algumas escolas ensino nesses dois países e a quantidade de valiosos
realizam experimentos a fim de explicar várias materiais obtidos pelos meninos das classes altas
características da superfície da Terra. Um imenso (abastadas?) nas escolas secundárias, e,
interesse é despertado nas aulas quando a origem especialmente, pelos pupilos dos professores
das montanhas é demonstrada por meio de camadas seminaristas do Cáucaso, bem como por tais mestres
de argila, ou quando a origem dos vales é ilustrada que tem a chance de ficar em distritos montanhosos
por montes de areia, ou ainda quando cartas remotos e inexplorados, podem ser vistos a partir de
meteorológicas são compiladas a partir de dados excelentes anuários recentemente publicados pela
fornecidos nos jornais, ou registros de instrumentos Escola de Administração do Cáucaso.
meteorológicos são mantidos pelos estudantes, ou, Também é evidente que excursões parecidas,

8 A tradução literal da obra de Humboldt seria “Visões e até mesmo viagens mais distantes, deveriam ser
da Natureza”. Mais uma vez mantivemos o título parte regular da educação universitária. Excursões
original em alemão para manter o estilo da escrita do
autor. (N.T.) de verão como as que são feitas nos encontros de

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

verão dos senhores Geddes e Thomson em bons professores, muitos dos quais amam sua
Edimburgo não podem ser muito bem própria disciplina, mas também criando toda uma
recomendadas. Elas certamente irão contribuir para literatura de excelentes livros ou revistas científicas
desenvolver o gosto pela Geografia nas escolas e em todos os ramos, acessíveis aos bolsos mais
ampliar o conhecimento daqueles que podem mais modestos; de resenhas populares e livros populares,
tarde se tornar professores. Mas isso me traz à de revistas para a promoção de leituras e
educação universitária. experimentos de laboratório nas escolas de classe
Em relação a isso, não posso insistir muito no média; de atlas baratos que outros países podem
fato de que os melhores e mais seguros meios para reimprimir, já que eles são incapazes de produzir
melhorar o nível da educação secundária em alguma coisa boa ou barata, e assim por diante.
qualquer assunto é elevar o nível da educação Todo o luxo dos aparelhos para a educação
universitária da mesma maneira. Dentre as milhares geográfica que temos admirado na Exposição da
de maneiras, diretas e indiretas, é a universidade que Sociedade Geográfica podem agora ser usados
carimba seu selo de qualidade sobre a educação de prazerosamente nas salas da Sociedade dos
um país. É o alto padrão da educação universitária Professores, em Londres. Da mesma forma, o fluxo
na Alemanha e o número considerável de jovens que da literatura científica completamente popular e o
recebem essa educação que tem melhorado fluxo da ciência para a indústria que vemos agora na
imensamente a educação secundária neste país, não Alemanha são o resultado direto de sua educação
9
só fornecendo as Realschulen e aos Gmynasiums universitária. A Áustria é um outro exemplo disso.
A presença do professor Penck em Viena deu um
9 Gymnasium, Realschule e Hauptschule são
subdivisões do sistema ensino na Alemanha. Neste impulso maravilhoso tanto na exploração dos
país, o primeiro segmento do Ensino Fundamental
(Grundschule) é oferecido igualitariamente para todas trabalhos de campo quanto na educação que hoje
as crianças. Ao final desta etapa, com 10 anos de admiramos na Áustria. E a geração de estudantes
idade, as crianças são divididas, segundo seu
desempenho, em três escolas diferentes, Os de melhor que trabalham sob a orientação do Dr. Penck, sem
desempenho vão para o Gymnasium, que oferece uma
dúvida, marcarão uma nova etapa no
sólida formação intelectual com duração de 9 anos,
permitindo ao estudante o acesso à universidade; a desenvolvimento da Geografia no país. Se Oxford
Realschule, direcionada às crianças de desempenho
mediano, diz respeito a uma formação menos tivesse há 50 anos atrás um Ritter ocupando uma de
intelectual e mais prática, com duração média de 6
anos e que permite ao estudante ingressar em um parte de sua profissão e seu futuro já aos 10 anos de
curso técnico profissionalizante; por fim, a idade. Além disso, destacamos a enorme
Hauptschule, com duração média de 4 anos, oferece diferenciação de qualificação entre as três escolas, que
uma formação ainda mais prática do que a Realschule prejudica principalmente os estudantes da
e é destinada às crianças com desempenho escolar Hauptschule no mercado de trabalho. Por fim e não
mais baixo, Ao final da Hauptschule, o estudante por acaso, outra dura crítica diz respeito ao fato de
poderá ter acesso também a um curso que grande parte dos filhos de estrangeiros e
profissionalizante voltado para sua capacitação em imigrantes, por seus parcos conhecimentos da língua
profissões de menor qualificação. Esta divisão do alemã, acabam sendo indicados para a Hauptschule,
ensino alemão é alvo de inúmeras críticas. Dentre sendo que muitos teriam total capacidade de seguir
elas, destacamos primeiramente a divisão de ensino outro tipo de carreira. Cria-se assim um sistema de
extremamente prematura das crianças, que determina ensino extremamente elitista. (N.T.)

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

suas cadeiras, reunindo em torno de si estudantes de pouco esteja sendo feito nessa direção,
todo o mundo (Elisée Reclus foi a pé a Berlim para especialmente neste país que possui uma frota
acompanhar suas palestras), seria este país, e não a comercial imensa e tantos iates particulares. Quando
Alemanha, que manteria agora a liderança na alguém se lembra das explorações épicas, feitas há
educação geográfica. cerca de vinte anos atrás, de simples baleeiros
Cada ciência deve ser ensinada em círculos noruegueses que abriram o Mar de Kara e a rota
concêntricos cada vez maiores. Isso deve ser feito siberiana setentrional, ou quando se pensa em
com a Geografia. O estudante que aprendeu os Scoresby10, não se pode atribuir à indolência o fato
assuntos fundamentais na escola secundária e se de, a cada ano, dezenas de jovens exploradores não
acostumou com os métodos científicos de serem levados a bordo de navios deste país, que
raciocínio, terá toda uma série de novas questões cruzam todas as latitudes e longitudes. Mas há
desenvolvidas antes dele entrar na universidade. Ele muito trabalho a ser feito em casa também. Quando
terá que estudar e ajudar, em parte, na descoberta eu vejo a quantidade de informações úteis coletadas
das leis que determinam as diferentes características a cada ano pelos alunos exploradores do Dr. Penck
da superfície da Terra – pois tais leis existem. As na Áustria, ou por estudantes russos na Rússia, não
leis dos planaltos, das planícies, dos continentes. As posso deixar de pensar que os jovens naturalistas
leis de distribuição das terras e mares, as leis de deste país têm extremamente cerceadas suas
propagação e interpenetração de floras e faunas. As oportunidades para a pesquisa. O pouco que já foi
leis da circulação da hidrosfera e da atmosfera. As feito para promover o estudo da Geografia nas
leis do crescimento e da migração das civilizações. universidades já produziu seus frutos. Mas,
É evidente que a pesquisa independente deve deixemos o ensino universitário se desenvolver
estar no próprio fundamento de todos os estudos. livremente neste ramo e veremos em breve os seus
Não importa para o estudante o quão restrito seja o efeitos refletirem-se sobre a totalidade da educação
domínio explorado, não importa qual ramo da secundária deste país.
ciência ele escolheu. A exploração pessoal e o Termino como comecei. Minha intenção era
trabalho pessoal, no contato livre com a Natureza, expressar a desiderata11 de um geógrafo que vê em
desenvolvem a inteligência dos jovens sua ciência um poderoso instrumento de educação, e
incomparavelmente mais do que anos de estudo em a trata, em seus níveis mais elevados, como uma
livros ou mesmo em laboratório. Todos os homens revisão filosófica do conhecimento adquirido por
distintos que eu conheço ou conheci, entre diferentes ramos da ciência. Resta agora ao
geógrafos, tiveram a oportunidade de fazer suas
10 Willian Scoresby (1789-1857) foi um cientista e
explorações independentes na juventude. Enquanto explorador inglês do Ártico, realizando inúmeras
viagens exploratórias de cunho científico por esta
que é justamente pelas viagens distantes que este região. (N.T.)
país deve a Darwin, Wallace, Hooker e tantos outros 11 Do latim, desideratu. Desejo, aspiração. Novamente o
termo foi mantido no idioma original do texto para
suas glórias. Parece surpreendente, portanto, que tão manter o estilo de escrita do autor. (N.T.)

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Sobre o ensino da Fisiografia Piotr Kropotkin

professor verificar qual desses requisitos é realizável


de uma só vez, com os poucos recursos à sua
disposição e dentro de sua própria linha de ação, e
quais devem ser deixados para o lento processo de
mudança da opinião pública.

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

– Encontro com os clássicos –

O sentido do Confederalismo*

Murray Bookchin

P
oucos argumentos vêm sendo usados de Mas, democracia direta?1 Esqueça o sonho
maneira mais eficaz, para contestar a que em nosso mundo “complexo” e moderno
ideia de democracia participativa, do que poderemos ter qualquer alternativa democrática para
a afirmação de que vivemos em uma “sociedade o Estado-nação! Muitas pessoas pragmáticas,
complexa”. Centros urbanos modernos, dizem, são incluindo aí socialistas, muitas vezes repudiam os
muito grandes e muito densamente povoados para argumentos para esse tipo de “localismo”,
permitir tomadas de decisão direta ao nível das apontando-os como utópicos – com a
bases. Nossa economia é também muito “global”, condescendência da boa fé na melhor, e escárnio na
presumivelmente, para desvendar os meandros da pior das hipóteses. Na verdade, há alguns anos atrás,
produção e do comércio. Atualmente, em nosso em 1972, um artigo publicado no periódico “Root
transnacional e, muitas vezes, altamente and Branch” e escrito por Jeremy Brecher, um
centralizado sistema social, é aconselhável, para social-democrata, me desafiou a explicar como
reforçar a representação do Estado, aumentar a minhas opiniões “descentralizadoras” expressas em
eficiência das instituições burocráticas ao invés de meu livro Post-Scarcity Anarchism impediriam, por
avançar na utopia “localista” de esquemas de exemplo, que a cidade de Troy, no estado de Nova
controle popular sobre a vida política e econômica. York, despejasse seus resíduos sem tratamento no
Afinal, esses argumentos funcionam rio Hudson, a partir do qual as cidades à jusante
frequentemente de maneira a colocar centralistas como Perth Amboy extraem sua água potável.
realmente como “localistas”, no sentido de acreditar Superficialmente, argumentos como os de
em “mais poder para o povo” – ou, pelo menos, para Brecher a favor de um governo centralizado
os seus representantes. E, certamente, um bom parecem bastante convincentes. Uma estrutura que é
representante está sempre ansioso para conhecer os certamente “democrática”, mas ainda em grande
desejos dos seus “representados” [constituents] parte construída de cima para baixo, é dada como
(para usar outra palavra arrogante que substitua necessária para prevenir que uma localidade gere
“cidadãos”). impactos ambientais sobre outra. Mas argumentos

1 No original em inglês: face-to-face democracy. (N.T.)


* Tradução do texto original “The Meaning of Confederalism” (1990). Disponível online em http://theanarchistlibrary.org.
Tradução: Eduardo de Oliveira Rodrigues. Revisão: Marcelo Lopes de Souza
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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

convencionais, tanto políticos quanto econômicos, seus recursos, que interligam, de maneira caótica, a
contra a descentralização, que vão desde o destino vida econômica moderna com as áreas ricas em
da água potável de Perth Amboy ao nosso “vício” petróleo, cujos principais produtos incluem
relativamente ao petróleo, possuem seus alicerces poluentes atmosféricos e agentes cancerígenos
fincados em uma série de suposições muito derivados desta matéria-prima? Ignorar o fato de
problemáticas. Mais perturbador ainda, é que estes que a nossa “economia global” é o resultado da
mesmos argumentos repousam sobre uma aceitação crescente burocracia industrial e de uma economia
inconsciente do status quo econômico. de mercado competitiva, cujo mote é “crescer ou
morrer”, parte de uma visão extremamente míope.
Descentralização e Autossustentabilidade É até ocioso explorar as boas razões
ecológicas para se alcançar uma certa medida de
A suposição de que o que existe atualmente autossustentabilidade. A maior parte das pessoas
deve necessariamente existir, é justamente o ácido que possuem consciência ambiental estão cientes de
que corrói todo o pensamento visionário (como que uma enorme divisão nacional e internacional do
testemunha disto, citamos a tendência recente de trabalho causa um grande desperdício no sentido
radicais a abraçar o “socialismo de mercado” ao literal da palavra. Uma divisão excessiva do
invés de lidar com as falhas da economia de trabalho não apenas leva a uma superorganização na
mercado, assim como do socialismo de Estado). forma de uma enorme burocracia e de gastos
Sem dúvida, teremos de importar mais café para gigantescos de recursos em transporte de materiais a
aquelas pessoas que precisam de ajuda na mesa do grandes distâncias; ela igualmente reduz as
café da manhã, ou importar mais metais exóticos possibilidades tanto de reciclagem dos resíduos de
[exotic metals] para pessoas que querem que seus maneira eficaz, quanto de evitar a poluição (que
bens sejam mais duradouros, do que o lixo pode ter sua origem nos centros industriais e
produzido por uma economia pautada populacionais altamente concentrados), além de
conscientemente pela engenharia do descarte. Mas, reduzir a capacidade de fazer bom uso de matérias-
para além da irracionalidade absoluta de apinhar primas em escala local ou regional.
dezenas de milhões de pessoas em cinturões urbanos Por outro lado, não podemos ignorar o fato de
congestionados, tem a atual e extravagante Divisão que comunidades relativamente autossustentáveis,
Internacional do Trabalho necessariamente que nas quais o artesanato, a agricultura e as indústrias
existir, a fim de satisfazer as necessidades humanas? servem a redes de comunidades organizadas
Ou ela foi criada para proporcionar lucros confederadamente, aumentam as oportunidades e os
extravagantes para as empresas multinacionais? estímulos aos quais os indivíduos estão expostos,
Será que devemos ignorar as consequências levando suas personalidades a se tornarem mais
ecológicas da pilhagem do Terceiro Mundo e dos completas, dotadas de um rico sentido de
individualidade e competência. O ideal grego do

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

cidadão completo, em um ambiente também alimentar por cultivar, pessoalmente, as mesmas


completo – que reapareceu nas obras utópicas de substâncias que se consome para viver e por
Charles Fourier – foi há muito acalentado pelos devolver ao meio ambiente o que se extrai dele.
anarquistas e socialistas do século passado. A comida torna-se assim mais do que uma
A oportunidade do indivíduo para dedicar sua forma de nutriente material. Lavra-se o solo,
atividade produtiva a muitas tarefas diferentes ao cultiva-se e consomem-se os seres vivos, prepara-se
longo de uma atenuada semana de trabalho (ou, na o adubo, e todos se unem em um continuum
sociedade ideal de Fourier, ao longo de um ecológico para alimentar o espírito, assim como o
determinado dia), era visto como um fator vital para corpo, aguçando-se a sensibilidade para o mundo
superar a divisão entre a atividade manual e humano e não-humano que nos rodeia. Muitas vezes
intelectual, para transcender as diferenças de status me divirto com “espiritualistas” zelosos, muitos dos
criadas por essa grande divisão de trabalho, e para quais são espectadores passivos das paisagens
aumentar a riqueza de experiências vindas de um aparentemente “naturais”, ou os devotos de rituais,
movimento livre a partir da indústria, que passa pelo de magia e de deuses pagãos (ou todos estes), que
artesanato e vai até o cultivo de alimentos. Por isso não conseguem perceber que uma das atividades
a autossustentabilidade faz um “eu” mais fértil, mais eminentemente humanas – ou seja, o cultivo de
reforçado por experiências variadas, competências e alimentos – pode fazer muito mais para promover
garantias. Infelizmente essa visão foi perdida pela uma sensibilidade ecológica (e espiritual, se você
esquerda e por muitos ambientalistas hoje em dia, preferir) do que todos os encantamentos e mantras
com o seu deslocamento em direção a um concebidos em nome do espiritismo ecológico.
liberalismo pragmático e pela ignorância trágica do Tais monumentais mudanças, como a
próprio passado visionário do movimento radical. dissolução do Estado-nação e sua substituição por
Nós não devemos, creio eu, perder de vista o uma democracia participativa, não ocorrem então
que significa viver um modo de vida ecológico, e em um vácuo psicológico, onde somente a estrutura
não apenas seguir práticas ecológicas benéficas. O política é alterada. Meu argumento contra Jeremy
grande número de manuais que nos ensinam a Brecher era de que em uma sociedade radicalmente
conservar, investir, comer e comprar de uma inclinada em direção à democracia descentralizada e
maneira “ecologicamente responsável” são uma participativa, orientada por princípios comunitários
caricatura da necessidade mais básica para refletir e ecológicos, a única coisa razoável a se supor é que
sobre o que significa pensar – sim, racionalmente – as pessoas não escolheriam uma tal desobrigação
e viver ecologicamente no sentido mais pleno do socialmente irresponsável a ponto de permitir que as
termo. Assim, eu poderia dizer que a agricultura águas do rio Hudson fossem tão poluídas.
orgânica é mais do que uma boa forma de cultivo e Descentralismo, democracia direta e participativa, e
uma boa fonte de nutrientes. É acima de tudo uma uma ênfase localista em valores comunitários,
forma de colocar a si mesmo diretamente na cadeia devem ser vistos como partes de uma peça única.

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

Eles seguramente têm sido tratados assim na visão


que venho defendendo há mais de 30 anos. Esta Se muitas pessoas pragmáticas estão cegas
“peça única” envolve não só uma nova política, mas para a importância do descentralismo, muitos no
uma nova cultura política que envolva novas formas movimento ecológico tendem a ignorar problemas
de pensar e sentir, e novas relações humanas, reais com o “localismo” –problemas que não são
incluindo as formas como experienciamos o mundo menos preocupantes do que os problemas
natural. Palavras como “política” e “cidadania” levantados por um globalismo que promove o
seriam redefinidas pelos seus ricos significados entrelaçamento da vida econômica e política em
adquiridos no passado, e ampliados para o presente. escala mundial. Como tenho defendido, sem tais
Não é muito difícil mostrar – ponto por ponto mudanças holísticas, tanto culturais quanto políticas,
– como a Divisão Internacional do Trabalho pode noções de descentralismo que enfatizam o
ser bastante atenuada pela utilização de recursos isolamento localista e um grau de autossuficiência
locais e regionais, pela implementação de podem levar a um paroquialismo cultural e ao
ecotecnologias capazes de promover formas de chauvinismo. O paroquialismo pode levar a
consumo humano mais racionais (inclusive problemas que são tão graves quanto uma
saudáveis), e que enfatizem a produção de qualidade mentalidade “global” que é indiferente à
oferecida por meios de vida mais duradouros ao singularidade das culturas, às peculiaridades dos
invés de descartáveis. É lamentável que o estoque ecossistemas e das ecorregiões, e à necessidade de
considerável dessas possibilidades, as quais eu uma vida na escala da comunidade humana, que
parcialmente construí e avaliei em meu ensaio de torna possível uma democracia participativa. Esta
1965 “Rumo a uma Tecnologia Libertadora”, sofram não é uma questão secundária hoje em dia, no
hoje com o ônus de terem sido escritas há muito contexto de um movimento ecológico que tende a
tempo para serem acessíveis à atual geração de oscilar entre pensamentos muito bem intencionados,
pessoas com uma maior consciência ecológica. Na mas que representam extremos (em ambos os casos,
verdade, nesse ensaio, eu também defendi a ingênuos). Nunca é demais enfatizar que precisamos
integração regional e a necessidade de interligar encontrar uma maneira de partilhar o mundo com
recursos entre as ecocomunidades. Para as outras formas de vida humanas e não-humanas, uma
comunidades descentralizadas isto é fundamental, visão que é amiúde difícil de se atingir em
uma vez que elas são inevitavelmente comunidades excessivamente “autossuficientes”.
interdependentes umas das outras. Mesmo eu respeitando as intenções daqueles
que defendem a autossuficiência local e a
autossustentabilidade, tais conceitos podem ser
altamente enganosos. Sem dúvida, concordo com
Problemas do Descentralismo David Morris, do Instituto de Auto-Suficiência
Local, por exemplo, que se uma comunidade pode

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

produzir o que necessita, ela provavelmente deve trabalhadores expropriaram-nas em julho de 1936 –
fazê-lo. Mas comunidades autossustentáveis não uma prática contra a qual a anarcossindicalista CNT
podem produzir todas as coisas que elas precisam – lutou no início da Revolução Espanhola.
a menos que se trate de uma volta à árdua vida em É um fato preocupante que nem
aldeia, que historicamente quase sempre envelheceu descentralização e nem a autossuficiência em si
prematuramente seus homens e mulheres com sejam necessariamente democráticas. A cidade ideal
trabalho duro, permitindo-lhes muito pouco tempo de Platão na “República” foi realmente projetada
para a vida política para além do limites imediatos para ser autossuficiente, mas a sua autossuficiência
da comunidade em si. foi feita para manter uma elite de guerreiros, assim
É lamentável dizer que há pessoas no como uma elite de filósofos. Na verdade, a
movimento ecológico que, de fato, defendem o capacidade da pólis de preservar sua
retorno a uma economia de trabalho intensivo, para autossuficiência dependia da capacidade, como
não falar das divindades da Idade da Pedra. Temos Esparta, para resistir à aparente influência
que dar claramente aos ideais do localismo, “corruptiva” de culturas exteriores a ela (uma
descentralismo e autossustentabilidade um maior e característica, eu posso afirmar, que ainda aparece
mais completo significado. em muitas sociedades fechadas no Oriente). Da
Hoje nós podemos produzir os meios básicos mesma forma, a descentralização em si não fornece
de vida – além de bons negócios – em uma nenhuma garantia de que teremos uma sociedade
sociedade ecológica, focada na produção em alta com uma maior consciência ecológica. Uma
qualidade de bens úteis. No entanto, outras pessoas sociedade descentralizada pode facilmente coexistir
no movimento ecológico ainda, muitas vezes, com hierarquias extremamente rígidas. Um exemplo
acabam defendendo uma espécie de capitalismo flagrante é o feudalismo europeu e oriental,
“coletivo”, onde a comunidade funcionaria como constituído por uma ordem social onde príncipes,
um único empreendedor com um senso de duques, e hierarquias baroniais foram baseadas em
propriedade sobre seus recursos. Esse sistema de comunidades altamente descentralizadas. Com todo
cooperativas mais uma vez marca o início de um o respeito devido a Fritz Schumacher, o pequeno
sistema de mercado de distribuição, com as não é necessariamente bonito.
cooperativas sendo enredadas na teia dos “direitos Nem mesmo o caso das comunidades em
burgueses” – ou seja, nos contratos e na escala humana e das “tecnologias apropriadas” por
contabilidade que incidem sobre os valores exatos si só constituem garantias contra sociedades
que uma comunidade receberá “em troca” do que autoritárias. Na verdade, a humanidade viveu
ela oferece às outras. Essa deterioração ocorreu séculos em aldeias e pequenas cidades, muitas vezes
entre algumas empresas controladas por com fortes laços sociais muito bem organizados e
trabalhadores que funcionavam como empresas formas até comunistas de propriedade. Mas estas,
capitalistas em Barcelona, depois que os por sua vez, forneceram a base material para estados

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 86


O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

imperiais altamente despóticos. Considerando-as em esperar alcançar uma sociedade livre e com
termos econômicos e de propriedade, essas consciência ecológica.
comunidades podem ganhar um lugar de destaque
nas perspectivas do “crescimento zero” de Confederalismo e Interdependência
economistas como Herman Daly, mas elas foram as
pedras fundamentais usadas para construir o mais Descentralização e autossustentabilidade
incrível dos despotismos orientais da Índia e da devem envolver um princípio muito mais amplo de
China. O que essas comunidades autossuficientes e organização social do que um mero localismo.
descentralizadas temiam quase tanto quanto Juntamente com a descentralização, tendências à
os exércitos que as devastaram, eram os fiscais de autossuficiência, comunidades em escala humana e
impostos imperiais que as saqueavam. ecotecnologias, entre outras coisas, existe uma
Se exaltarmos tais comunidades pelo seu alto necessidade premente de formas democráticas e
nível de descentralização, autossuficiência, pequeno verdadeiramente comunitárias de interdependência –
tamanho, ou emprego de “tecnologias em suma, de formas libertárias de confederalismo.
apropriadas”, seríamos obrigados a ignorar a Tenho detalhado há muito tempo, em muitos
extensão em que elas eram também culturalmente artigos e livros (particularmente em A Ascensão da
estagnadas e facilmente dominadas por elites Urbanização e O Declínio da Cidadania), a história
exógenas. Sua divisão aparentemente orgânica mas das estruturas confederalistas da Antiguidade e na
presa à tradição do trabalho, pode muito bem ter Idade Média até as confederações da Modernidade,
formado as bases para os sistemas de castas como os Comuneros na Espanha durante o início do
altamente opressivos e degradantes em diferentes século XVI, o movimento secional parisiense de
partes do mundo, inclusive os que atormentam a 1793, e as tentativas mais recentes de confederação,
vida social da Índia até hoje. sobretudo pelos anarquistas na Revolução
Correndo o risco de parecer contraditório, Espanhola de 1930. Hoje, o que muitas vezes leva a
sinto-me obrigado a ressaltar que a descentralização, sérios mal-entendidos entre descentralistas é seu
o localismo, a autossuficiência e mesmo cada fracasso, em todos os casos, em ver a necessidade
confederação tomada de maneira isolada – não de uma confederação – o que, pelo menos, tende a
constituem uma garantia de que vamos conseguir contrariar a tendência das comunidades
uma sociedade racionalmente ecológica. Na descentralizadas em caminhar para a exclusividade e
verdade, todos eles têm em um momento ou em o paroquialismo. Se nos falta uma clara
outro ajudado comunidades paroquiais, oligarquias, compreensão do que significa o confederalismo –
e até mesmo regimes despóticos. Certamente, sem naturalmente o fato dele ser um princípio chave e
as estruturas institucionais que se aglomeram em fornecer pleno significado ao descentralismo – a
torno do uso que fazemos destes termos e sem agenda de um municipalismo libertário pode
combiná-los uns com os outros, não poderemos

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

facilmente tornar-se vazia no melhor, ou ser usada comunidades para o fomento de um autêntico
para fins altamente provincianos no pior dos casos. mutualismo com base em recursos compartilhados,
O que é então confederalismo? É acima de produção e formulação de políticas. Se uma
tudo uma rede de conselhos administrativos cujos comunidade, de modo a estar interligada a um todo
membros ou delegados são eleitos a partir do voto maior, não for obrigada a contar com outras
direto em assembleias populares e democráticas, em (geralmente para satisfazer suas necessidades
várias aldeias, vilas e até mesmo em bairros de materiais mais importantes e realizar objetivos
grandes cidades. Os membros desses conselhos políticos comuns), as possibilidades de se cair em
confederalizados podem ter seus mandatos um exclusivismo e um paroquialismo são genuínas.
revogados, além de serem estritamente encarregados Somente na medida em que percebemos que a
e responsáveis pelas assembleias que os escolheram confederação precisa ser concebida como uma
com a finalidade de coordenar e administrar as extensão da forma de gestão participativa – por
políticas formuladas pelas próprias assembleias. Sua meio de redes confederalizadas – é que a
função é, portanto, uma questão puramente descentralização e o localismo podem previnir que
administrativa e prática, e não uma função de as comunidades que compõem corpos maiores de
“formular políticas públicas”, como a dos associação fechem-se em si mesmas num
representantes dos sistemas de governo republicano. paroquialismo, em detrimento de âmbitos mais
Uma visão confederalista envolve uma clara vastos de consociação humana.
distinção entre formulação de políticas e a O confederalismo é assim uma forma de
coordenação e execução das políticas adotadas. perpetuar a interdependência que deve existir entre
Formular políticas é exclusivamente o direito das as comunidades e regiões. Na verdade, ele é uma
assembleias populares da comunidade com base nas forma de democratização que cria
práticas da democracia participativa. A interdependências, sem perder o princípio do
administração e coordenação são responsabilidade controle local. Enquanto uma medida razoável de
dos conselhos da confederação, que se tornam os autossuficiência é desejável para cada localidade e
meios para interligar as aldeias, vilas, bairros e região, o confederalismo é um meio de evitar o
cidades em redes confederalizadas. O poder assim paroquialismo local por um lado, e uma divisão
flui de baixo para cima em vez de de cima para extravagante do trabalho em escala nacional e
baixo, e nas confederações o fluxo de poder de global do outro. Em suma, é uma maneira pela qual
baixo para cima diminui no âmbito do conselho uma comunidade pode manter a sua identidade e
federal, que vai territorialmente da escala local para integridade enquanto participa, compartilhando seus
as regiões, e das regiões para territórios cada vez recursos, do todo maior que constitui uma sociedade
mais amplos. ecologicamente equilibrada.
Um elemento crucial para dar realidade ao O confederalismo como um princípio de
confederalismo é a interdependência das organização social atinge o seu pleno

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

desenvolvimento quando a economia em si é trabalho. Uma vez que isto ocorra, pela primeira vez
confederalizada pela criação de fazendas locais, será necessário transcender os interesses tradicionais
fábricas e outros empreendimentos necessários sob especiais de trabalho, local de trabalho, status e
controle municipal – isto é, quando uma relações de propriedade, e criar um interesse geral
comunidade, grande ou pequena, começa a com base em problemas compartilhados por toda a
gerenciar seus próprios recursos econômicos em comunidade.
uma rede interligada com outras comunidades. Confederação é assim o conjunto da
Neste sentido, forçar uma escolha entre a descentralização, localismo, auto-suficiência,
autossuficiência por um lado, ou um sistema de interdependência – e muito mais. Este “muito mais”
mercado baseado na troca por outro, é uma é a indispensável educação moral e formação do
dicotomia simplista e desnecessária. Eu quero crer caráter – o que os gregos chamavam de paidéia –
que uma sociedade confederalizada e que contribui para uma cidadania ativa e racional
ecologicamente consciente seria uma sociedade em uma democracia participativa, ao contrário dos
fundamentada no compartilhamento, baseada no eleitores passivos e consumidores que nós temos
prazer sentido na distribuição de recursos entre as hoje em dia. No final das contas, não há substituto
comunidades de acordo com suas necessidades, e para uma reconstrução consciente da nossa relação
não aquela em que comunidades com os outros e com o mundo natural.
“cooperativamente” capitalistas ficam atoladas nas Se defendermos que a reconstrução da
confusões geradas pelas relações de troca. sociedade e da nossa relação com o mundo natural
Impossível? A menos que estejamos dispostos só pode ser alcançada pela descentralização ou pelo
a crer que bens nacionalizados (que reforçam o localismo, ou ainda pela autossustentabilidade,
poder político do Estado centralizado com o poder ficaremos com uma coleção incompleta de soluções.
econômico), ou uma economia de mercado privada Tudo o que omitimos entre esses pressupostos para
(cujo mote “crescer ou morrer” ameaça o equilíbrio uma sociedade baseada em municípios
ecológico de todo o planeta) são mais viáveis, não confederados, com certeza deixaria um buraco no
consigo ver o que temos como alternativa viável tecido social que esperamos criar. Esse buraco iria
além da municipalização confederalizada da crescer e eventualmente destruir o tecido
economia. Desta maneira não haverá mais os propriamente dito – como em uma economia de
burocratas privilegiados do Estado, ou empresários mercado que fosse conjugada com “socialismo”,
burgueses gananciosos, ou mesmo capitalistas “anarquismo”, ou qualquer outro conceito que se
“coletivos” nas chamadas empresas controladas tenha da boa sociedade. O buraco acabaria afinal
pelos trabalhadores – todos com seu desejo especial por dominar a sociedade como um todo. Também
em promover quem se depara com problemas não podemos omitir a distinção entre fazer política e
referentes à comunidade, mas somente os cidadãos, administrar, uma vez que quando a formulação de
independentemente de suas ocupações ou locais de políticas escorrega das mãos do povo, ela é

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

devorada pelos seus delegados, que rapidamente se Estado centralizado em geral, e com o Estado-nação
tornam burocratas. dos últimos tempos. Tentei enfatizar que o
O confederalismo deve ser assim concebido confederalismo não é simplesmente uma forma de
como um todo: um corpo conscientemente formado sociedade única, particularmente cívica ou
pela interdependência que une a democracia municipal, de administração social. Ele é uma
participativa nos municípios com um sistema tradição vibrante nos assuntos relativos à
rigorosamente supervisionado de coordenação. Ele humanidade, que possui uma história secular por
envolve o desenvolvimento dialético da trás dele. As confederações por gerações tentaram
independência e dependência para uma forma mais contrabalançar uma semelhante longa tendência
ricamente articulada de interdependência, assim histórica em direção à centralização e à criação do
como o indivíduo em uma sociedade livre cresce da Estado-nação.
dependência na infância para a independência na Se os dois – o confederalismo e o estatismo –
juventude, apenas para negar os dois em uma forma não são vistos como em estado de tensão entre si
consciente da interdependência entre os indivíduos e (uma tensão na qual o Estado-nação tem usado uma
entre o indivíduo e a sociedade. variedade de intermediários, como os governos
O confederalismo é assim uma espécie de provinciais no Canadá e os governos estaduais nos
fluido e uma espécie de constante desenvolvimento Estados Unidos para criar a ilusão de “controle
do metabolismo social, no qual a identidade de uma local”), então o conceito de confederação perde todo
sociedade ecológica é preservada através de suas o significado. A autonomia provincial no Canadá e
diferenças e pela virtude de seu potencial para uma os direitos dos estados nos Estados Unidos são tão
diferenciação ainda maior. O confederalismo, na confederados quanto os “sovietes” ou conselhos,
verdade, não marca o encerramento da história que foram os meios através dos quais o controle
social (como os ideólogos do “fim da história “ dos popular existiu em tensão com o estado totalitário
últimos anos nos querem fazer crer com o stalinista. Os sovietes da Rússia foram retomados
capitalismo liberal), mas sim o ponto de partida para pelos bolcheviques, que os suplantaram com o seu
uma nova história ecossocial marcada por um partido em um ou dois anos após a Revolução de
processo participativo de evolução dentro da Outubro. Enfraquecer o papel dos municípios
sociedade e entre a sociedade e o mundo natural. confederalizados (vistos como um poder contrário
ao Estado-nação), como foi feito de maneira
A Confederação como um duplo poder oportunista pelos candidatos supostamente
“confederalistas” aos governos estaduais e, o que é
Acima de tudo, tentei demonstrar em meus mais terrível, ao governo de estados aparentemente
escritos anteriores como a confederação numa base democráticos (como alguns “verdes” dos EUA2
municipal tem existido em forte tensão com o fizeram), é ofuscar a importância da necessidade de
2 O termo original em inglês é “U.S. Greens” (N.T.).

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

tensão entre o confederalismo e o Estado-nação. município deve ser sempre entendido como o
Aliás, isto obscurece o fato de que os dois não mundo realmente e autenticamente público.
podem coexistir a longo prazo. Comparar mesmo cargos executivos como o de
Ao descrever o confederalismo como um todo prefeito com a posição de um governador nos
– como uma estrutura para a descentralização, marcos das esferas representativas do poder
democracia participativa e localismo – e como uma equivale a, de modo crasso, não compreender a
potencialidade para uma diferenciação ainda maior natureza política básica da vida cívica em si, a
ao longo de novas linhas do desenvolvimento, despeito de todas as suas deformações. Assim, para
gostaria de salientar que este mesmo conceito de os “verdes”, lidar de forma meramente formal e
totalidade que se aplica às interdependências entre analítica (como a lógica moderna instrui, apontando
municipalidades também se aplica ao próprio que termos como “executivo” podem fazer as duas
município. O município, como já assinalei em posições serem intercambiáveis) é eliminar
trabalhos anteriores, é a arena política mais imediata totalmente a noção de poder executivo do seu
do indivíduo, o mundo que está literalmente um contexto, para coisificá-lo, torná-lo uma categoria
passo além da privacidade da família e da simples e sem vida pelos ornamentos externos que
intimidade das amizades pessoais. Nessa arena damos à palavra. Se a cidade deve ser vista como
política primária, onde a política deve ser concebida um todo, e todas as suas potencialidades devem ser
no sentido helênico de, literalmente, gerir as urnas plenamente reconhecidas para a criação de uma
ou a comunidade, o indivíduo pode passar de uma democracia participativa, então os governos
mera pessoa a um cidadão ativo, de um ser privado provinciais e os governos estaduais no Canadá e nos
a um ser público. Dada essa arena crucial que Estados Unidos devem ser vistos claramente como
literalmente torna o cidadão um ser funcional que pequenas repúblicas estabelecidas e organizadas
pode participar diretamente no futuro da sociedade, inteiramente em torno de representação na melhor, e
estamos lidando com um nível de interação humana da oligarquia na pior das hipóteses. Elas acabam por
que é mais básico (além da própria família) do que fornecer os canais de expressão para o Estado-
qualquer outro nível que se expressa nas formas de nação, e constituem obstáculos para o
governos representativos, onde o poder coletivo é desenvolvimento de uma esfera pública genuína.
literalmente transmutado em poder personificado Lançar um candidato “verde” para concorrer
por um ou alguns indivíduos. O município é, em uma eleição para prefeito com um programa
portanto, a arena mais autêntica da vida pública, por municipalista libertário é, em suma,
mais que ele possa ter sido distorcido ao longo da qualitativamente diferente do que concorrer para o
história. cargo de governador, seja provincial ou estadual,
Em contraste, níveis delegados ou autoritários com um programa supostamente libertário do
da “política” pressupõem a abdicação do poder municipalismo. Isto equivale a descontextualizar as
municipal e dos cidadãos em algum grau. O instituições que existem no município, na província

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

ou no estado, e no próprio Estado-nação, colocando movimento ambientalista pode exigir, é que as


todos esses três cargos executivos em uma rubrica confederações sejam estabelecidas dentro da área
puramente formal. Pode-se dizer, com a mesma urbana – ou seja, entre bairros ou distritos
imprecisão, que pelo fato dos seres humanos e os determinados –, e não só entre as próprias áreas
dinossauros terem medulas espinhais, eles urbanas. Num sentido bem realista, essas entidades
pertencem à mesma espécie ou até mesmo a um altamente povoadas, vastas e de grandes dimensões
mesmo gênero. Em cada caso, uma instituição – seja devem finalmente ser discriminadas
ela municipal, conselheira, ou uma pessoa institucionalmente como municípios autênticos,
selecionada – deve ser entendida no contexto do sendo apropriados para as dimensões humanas de
município como um todo, assim como um maneira a permitir a democracia participativa. Essas
presidente, primeiro-ministro congressista ou entidades ainda não são plenamente poderes
membro do parlamento, por sua vez, deve ser visto estatais, seja institucionalmente ou na realidade,
no âmbito do Estado como um todo. Dentro deste como podemos encontrar até mesmo nas zonas
ponto de vista, lançar um candidato “verde” para pouco povoadas de alguns estados norte-
concorrer a eleição para prefeito é americanos. O prefeito ainda não é um governador,
fundamentalmente diferente do funcionamento de com o enorme poder coercitivo que um governador
escritórios provinciais e estaduais. Pode-se entrar tem. Nem o Conselho Municipal3 é um parlamento
em infinitas e detalhadas razões, pelas quais os ou uma assembleia que pode, literalmente, legislar
poderes de um prefeito estão muito mais sobre a pena de morte, como está ocorrendo hoje
controlados e sob tutela pública mais próxima do nos Estados Unidos.
que os cargos públicos de governos estaduais e Nas cidades que são transformadas em
provinciais. quase-estados, existe ainda uma boa margem de
Correndo o risco de me repetir, devo dizer manobra para que a política possa ser conduzida
que ignorar esse fato é simplesmente abandonar segundo linhas libertárias. Hoje, o executivo dessas
qualquer sentido da contextualidade e do ambiente entidades urbanas se constituem como um terreno
em que questões como a política, a administração, a extremamente precário – sobrecarregado por uma
participação e a representação devem ser colocados. enorme burocracia, poderes de polícia, poder de
Simplesmente, a prefeitura em uma cidade não é a tributação e sistemas jurídicos, que causam sérios
capital de uma província ou de um estado, nem problemas para uma perspectiva libertária do
mesmo o próprio Estado-nação. município. Devemos sempre nos perguntar com toda
Sem dúvida, existem hoje cidades que são tão a franqueza qual forma a situação concreta toma.
grandes que raiam a ser quase repúblicas pela sua Nas grandes cidades onde os conselhos municipais e
importância. Pensemos, por exemplo, na área de
uma megalópole como Nova York e Los Angeles. 3 No texto, city council. O city council é, grosso modo,
um equivalente das câmaras de vereadores brasileiras.
Em tais casos, o programa mais modesto que um (N.R.)

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O sentido do Confederalismo Murray Bookchin

as prefeituras porventura oferecerem uma arena linhas muito distintas de desenvolvimento


política para a luta contra a concentração de poder parecerem idênticas, ou ainda enredar-las uma com
em um executivo estadual ou provincial cada vez a outra. Municipalistas libertários devem sempre ter
mais forte, e, ainda pior, em jurisdições regionais claramente em mente a distinção entre
que abrangem, muitas vezes, várias cidades (Los descentralização institucional e física, e reconhecer
Angeles é um exemplo notável), concorrer às que o primeiro é totalmente viável, mesmo enquanto
eleições para o conselho da cidade pode ser o único o último possa levar anos para ser atingido.
recurso que temos, de fato, para deter o 3 de novembro de 1990
desenvolvimento das instituições de um Estado cada
vez mais autoritário, e de ajudar a restaurar uma
democracia institucional descentralizada.
Irá, sem dúvida, levar um longo tempo até
que uma entidade urbana como a cidade de Nova
York seja fisicamente descentralizada em
municipalidades autênticas e, em última instância,
em comunas. Tal esforço deve fazer parte do
programa máximo de um movimento ambientalista.
Mas não há nenhuma razão para que uma entidade
urbana de tal magnitude não possa ser lentamente
descentralizada institucionalmente. Devemos
sempre ter em mente a distinção entre a
descentralização física e a descentralização
institucional. De tempos em tempos, excelentes
propostas têm sido apontadas por radicais e até
mesmo por planejadores urbanos para estabelecer a
democracia em tais enormes entidades urbanas e,
literalmente, dar maior poder às pessoas – para
serem, por fim, cinicamente derrubadas por
centralistas que invocam impedimentos físicos para
tal realização.
Isso confunde os argumentos dos defensores
da descentralização, de maneira a tornar congruente
a descentralização institucional com o rompimento
físico destes espaços de grande porte. Há uma certa
traição por parte dos centralistas em fazer essas duas

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Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

– Direto da luta –

Ocupar, resistir, produzir!


A história e as lutas da Ocupação Quilombo das Guerreiras
(Rio de Janeiro)

Entrevista com Ângela de Morais Sant’Anna


Ativista do movimento dos sem-teto da Área Central do Rio de Janeiro;
Moradora da Ocupação Quilombo das Guerreiras

Conduzida em 16 / 10 / 2011

Rua Alcindo Guanabara, Centro do Rio de Janeiro:


Primeira tentativa de ocupação (novembro de 2005)

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 94


Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

Rua Estrela, bairro do Rio Comprido:


Despejo quando da segunda tentativa de ocupação (julho de 2006)

Avenida Francisco Bicalho, Zona Portuária do Rio de Janeiro:


Terceira tentativa de ocupação (outubro de 2006)

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Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

Comunicado da Ocupação Quilombo das Guerreiras

A falta de uma política habitacional que realmente beneficie a população de


baixa renda obriga milhões de famílias humildes a morar sem a mínima dignidade
em barracos, cortiços, nas ruas ou em abrigos. A população pobre sofre sem ter
onde morar, mas não sabe que há milhões de imóveis abandonados, mais de cinco
milhões. Crime tanto do ponto de vista moral, já que tanta gente precisa de
moradia, quanto do ponto de vista legal, já que deixar um imóvel sem uso durante
anos contraria a Constituição Federal (Art. V) e o Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001).

Por isso, nós, 150 famílias de trabalhadores e trabalhadoras sem teto,


ocupamos este prédio abandonado há mais de quinze anos, e batizamos essa
ocupação de Quilombo das Guerreiras em homenagem à resistência daqueles que
lutaram por tantos séculos nas ocupações chamadas de quilombos, e também em
homenagem à luta das mulheres, mães, irmãs e companheiras que tanto sofrem
com a falta de emprego, educação e moradia.

As autoridades não perdem tempo em dizer que ocupar é "caso de polícia".


O que eles procuram esconder com esse discurso é que o verdadeiro caso de polícia
é a especulação imobiliária que permite que tantos imóveis estejam abandonados à
espera do momento certo (e do dinheiro público, é claro!) para que eles sejam
negociados. Caso de polícia é o cinismo de políticos que transformaram a
necessidade de moradia numa promessa de eleição que, se depender deles, nunca
será cumprida. Diante de tanto descaso, ocupar, que é um ato de necessidade, em
hipótese alguma pode ser considerado crime, mas sim um direito e um dever.

Venha se juntar à nossa luta.

Ocupar, Resistir, Produzir!

Ocupação Quilombo das Guerreiras (outubro de 2006)

E
duardo Tomazine Teixeira e Marcelo Ângela de Moraes Sant’Ana: A Quilombo é um
Lopes de Souza: Infelizmente, as lutas processo antigo. Um processo de três tentativas de
sociais urbanas são pouco conhecidas, ocupação. Primeiro, foi em 2005, na [rua] Alcindo
ou são conhecidas apenas em pequenos nichos de Guanabara [Centro do Rio]; a segunda foi em 2006,
ativistas e acadêmicos. Gostaríamos, por isso, que na rua Estrela [bairro do Rio Comprido, não muito
você começasse contando para os leitores e leitoras distante do Centro], em julho; e a última foi aqui
como foi o processo de preparação da ocupação do [Av. Francisco Bicalho, Zona Portuária], foi um
espaço da Quilombo das Guerreiras. processo de 8 de outubro de 2006. Então era um
grupo que já caminhava... é claro que da Alcindo
Guanabara, que foi o primeiro processo, pra

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Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

segunda, ele se motivou por uma modificação muito hoje ela tem um ponto alto que são as assembleias,
grande. Mas o coletivo que ocupou Rio Comprido onde surgem as nossas demandas de resolução pra
de julho pra cá foi o coletivo que permaneceu se dentro do prédio, onde temos também as demandas
reunindo para uma terceira tentativa. Aí, as pessoas do que está acontecendo no Rio de Janeiro, das lutas
que organizavam esse processo eram pessoas que que a gente entende que tem que ser unificadas e
tinham como ideal a autogestão. Então, o processo que a gente participa. E assim, essas equipes somem
foi organizado. A princípio a gente chamava de quando a gente entra, porque elas são equipes dos
coordenação, que é uma coordenação temporária. primeiros dias que vão trabalhar... por exemplo:
São militantes que ficam mais à frente, vendo uma equipe de limpeza, uma equipe de hidráulica,
questões de logística. Na coordenação tem um equipe de elétrica. Então são pessoas que quando
operativo, que já é um grupo mais específico. vão entrar no prédio...são pessoas que cozinham, ela
Agora, nomes, equipes, porque a gente dentro da já vai se preocupar em preparar um café, preparar
reunião do coletivo se dividia em equipes, porque uma comida, porque a gente não sabe quando vamos
como não tínhamos um lugar concentrado, se fosse poder sair do prédio. Normalmente, a gente fica
entrando sempre pra fazer reunião num determinado dois dias sem poder sair do prédio. A equipe de
local, o que sempre chama atenção dos meios hidráulica vai ver se tem água ou se tem condições
repressores... A gente, por isso, se dividia em de instalar uma bica e assim sucessivamente. [A
equipes. E por equipes tinha reunião nas praças, equipe de] elétrica vai ver a possibilidade de instalar
[como o] Campo de Santana, praça pública. E aí a uma luz... E essas equipes já são equipes formadas
gente tinha uma vez no mês ou de quinze em quinze antes da ocupação, que funcionam muito bem.
dias, tinha uma reunião com todo mundo, maior, Algumas ficam, como é o caso da hidráulica e da
num local específico ou numa ocupação, num elétrica, porque normalmente são pessoas que têm
sindicato. Alguns sindicatos a gente pedia espaço ter um entendimentos sobre aquilo; algumas
também pra fazer reunião. E aí é um processo de permanecem. As pessoas que participaram no
ano. Esse coletivo que ocupou aqui já estava há um começo da hidráulica e da elétrica são as mesmas
ano praticamente junto, se reunindo. E dentro desse pessoas que estão lá, hoje. Na comissão de
processo escolheram o nome, escolheram a forma de hidráulica e elétrica são comissões permanentes,
organização. Por mais que tivesse uma certa também. Então, aqui a gente tem portaria, comissão
indicação do coletivo, isso também foi debatido de portaria... que organiza quantas horas de portaria,
dentro do coletivo, qual seria o tipo de organização, que notifica o companheiro que tá devendo
como se daria essa organização dentro do prédio. É portaria .. que computa as horas de portaria. Cada
uma organização que a gente mantém até hoje. Uma um de nós tem que tirar 24 horas de portaria por
organização coletiva. A gente se divide mês, é uma tarefa nossa, além de oito comissões de
coletivamente nos trabalhos, na segurança do trabalho. Sendo que dessas oito comissões de
prédio, a manutenção do prédio e essa divisão, até trabalho, existe uma lavagem no prédio geral, quinto

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Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

andar até portaria, que é feita de quinze em quinze moradores que fazem parte do coletivo é não ter
dias. Além disso, tem uma comissão de finanças que casa. Então, todas essas pessoas, de alguma
é tirada dentro do coletivo. É dessa maneira que a maneira, pagavam aluguel. Aí, como a gente
gente se organiza. Embora exista uma associação entende que o sem-teto é alguém, hoje, que se pagar
que a gente fundou em 2008, com o objetivo de ter o aluguel não come, se comprar remédio não come...
um respaldo político, um CNPJ, para estar Não é só a condição mais grave do sem-teto, que é
negociando a água e a luz, para viabilizar a aquele que está na rua, mas aquele que não
negociação da água e da luz, essa associação não consegue sobreviver da sua força de trabalho. Então,
tem corpo aqui dentro, não existe presidente, não esse é o coletivo que compõe a Quilombo. Na sua
existem membros. O que existe é um coletivo; não maior parte, mulheres, o que é até engraçado... As
existe liderança, onde cada morador tem voz e vez mulheres são as que atuam mais, são as que têm
na reunião, onde os pontos de pauta surgem da uma força mais... Não que os homens não atuem,
demanda que o próprio morador traz pra discussão. mas as mulheres puxam mais a bandeira aqui. O
É dessa maneira que a gente se organiza. apoio sempre foi um apoio misto, porque: o que é
Uma coisa importante para entender a um apoio de ocupação? Quando a gente ocupa um
origem, a gênese de um movimento social ou de um prédio, se pressupõe que você ajude outros
espaço específico de um movimento social, como é companheiros a ter o sonho da moradia. E também
o caso da ocupação Quilombo das Guerreiras, é não é só o sonho da moradia, porque não é só a
saber quem são as pessoas que participaram disso moradia que a gente quer. Quando a gente pensa em
De onde elas vêm? Onde elas moravam antes? Qual ocupar um prédio e ficar dentro desse prédio com a
a trajetória política daqueles que eram membros do autogestão, a gente pensa em resgatar outras coisas
apoio que ajudaram a organizar? Você poderia a nível do que as pessoas não tiveram oportunidade
identificar isso? De onde vêm as pessoas, e qual é a de ver como voltar a estudar? Reforço... algumas
trajetória política delas? Tanto dos moradores coisas que as pessoas não tinham tempo e quando a
quanto do pessoal do apoio que ajudou a organizar a gene pra dentro da moradia esse tempo acaba
ocupação... existindo. Esse apoio é muito misturado, pessoas
Primeiro, que é muito misturado. O coletivo que eram moradores de outras ocupações. Uma
da Quilombo é um coletivo muito misto. São juventude muito boa de classe média, o que me dá
pessoas que vieram, uma boa parte, do Nordeste, há muita esperança. Às vezes, quando eu estou muito
algum tempo; já estão há algum tempo no Rio de desesperançosa, eu fico pensando nessa juventude
Janeiro. Vieram para cá para tentar a vida, conseguir que tem CSA e que sempre teve acesso à cultura,
uma profissão e um trabalho. Vivam de aluguel, sempre teve acesso à moradia, saúde, educação mas
com dificuldades de pagar o aluguel. Tem que pensa que tipo de cidade ela quer. O que faz
moradores do Rio, tem moradores que vieram da com que essa juventude apóie diretamente os
Baixada, da Zona Oeste. Um critério para todos os movimentos de ocupação, muitas vezes é isso...

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Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

Pensar que ela não quer uma cidade turística, ela


quer uma cidade onde o trabalhador possa morar Eduardo e Marcelo: No geral, eles [o grupo de
nela. Essa é a composição dessa coordenação, que apoio] não são de partidos políticos...
se dilui depois que acaba acontecendo a ocupação.
O apoio fica um determinado tempo, se ele tiver um Ângela: Não.... Uma coisa que às vezes provoca
projeto para fazer dentro da ocupação ele fica ali muita confusão... A ocupação é apartidária, não
como algumas pessoas estão aqui já há cinco anos, significa que ela é apolítica. Discussões políticas são
se confundem com um morador... E se confundem feitas constantemente, inclusive discussões
com o morador mesmo, pois, embora não more partidárias dentro do coletivo. Quando a gente diz
aqui, o sentimento que o coletivo tem por essas que é apartidário é porque o que está aí como
pessoas é um sentimento muito próximo. É um política não nos contempla, o que está aí, como
sentimento de amigo, não é um sentimento de governo ou como instância de governo 
alguém que venha aqui fazer um projeto, ou alguém prefeitura, estado, governo federal , não nos
que venha aqui “trazer alguma coisa” para esse contempla. A gente percebe que quando essas
coletivo. É um sentimento muito próximo, pessoas vão se eleger elas têm mil projetos para a
sentimento de abrir as casas, de fazer festa, de classe trabalhadora, mas quando estão lá,
festejar junto ou de mostrar desespero junto. Então, simplesmente viram as costas. Varias vezes, em
algumas pessoas ficaram nesse período e alguns outras ocupações, a gente percebeu essa
apoios passaram... Vem, faz um apoio mais focado, proximidade de alguns candidatos, a proximidade de
mais num momento de enfrentamento, que é um alguns parlamentares, para depois usar em suas
momento mais tenso, momento que a gente ocupa o cartilhas: ajudei a ocupação tal e ajudei a ocupação
prédio, momento mais tenso. Tensão com polícia, tal... Então, se é o trabalhador que vai lá, se é ele
sobretudo nesse prédio que é um prédio muito que arromba a porta, se é ele que toma conta do
visado, e a gente também teve um apoio acampado processo, se é ele que enfrenta, é ele que tem que
aqui fora. Foram três barracas ali fora para dar uma ficar ali, não tem?... É ele que se autorrepresenta, se
certa segurança para os moradores. Então, é muito “presenta”. O [Miguel] Baldez costuma dizer [que]
misto. A gente teve apoio do NuPeD também, os não existe representante, existe o “presentante”, que
companheiros também estão aí com o coletivo. é aquele que está presente. É aquele que está na luta.
Alguns companheiros estão aí fazendo projeto como A gente não trabalha com essa representação; então
Luisa, Bruno, que são universitários, Dandara, não existe essa questão partidária, o que é difícil. No
Nenê, são pessoas que são universitários de uma Rio de Janeiro, às vezes é difícil até para você
classe, que eu poderia chamar de classe média, mas negociar e conhecer determinadas pessoas, negociar
que têm essa preocupação, têm essa indagação de com determinados órgãos, que muitas vezes você é
que cidade quer e quer ajudar a construir uma obrigado a fazer isso, porque como se tem essa
cidade mais justa. distância partidária, a gente é mal visto. E é visto

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Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

como anarquista mesmo, é visto como alguém que lados: o quilombo, a luta dos negros, esse resgate
não quer hierarquia, alguém que não quer o que eu acredito que seja quase que uma demarcação
governo, ou que é contra esse governo; e a gente do consciente. Eu acho que as nossas ocupações são
também deixa claro que é isso aí mesmo! Sem uma demarcação do consciente porque todas elas
problema nenhum! tem essa demarcação, demarcam esses nomes:
Quilombo, Manoel Congo, a própria Chiquinha
Eduardo e Marcelo: Mas você falou de uma coisa Gonzaga, que é uma mulher à frente de seu tempo,
muito interessante, que é a participação abolicionista, quer dizer... então é por esse motivo,
proeminente e maciça das mulheres na organização. só que o nome num determinado período, ele trouxe
O próprio nome de vocês é um nome muito problema para esse coletivo porque quando se
sugestivo, “Quilombo das Guerreiras” – inclusive ocupou Alcindo Guanabara e foi despejado, quando
vocês fazem menção à escolha desse nome no se ocupou o Rio Comprido e foi despejado houve
comunicado de vocês, em 2006, quando vocês um ponto de pauta para mudar o nome porque o
entraram no prédio explicando um pouco sobre o nome estava dando azar! “Não, acho que é o nome
nome. Você podia comentar pra gente o porquê que está dando azar, a gente não está conseguindo
desse nome, qual o significado dele, como ele foi ficar”. Isso foi a defesa de um cara, e aí eu lembro
escolhido também... que várias mulheres se inscreveram para defender
Quilombo das Guerreiras. Acho que a defesa mais
Ângela: O nome Quilombo das Guerreiras foi incisiva foi: “Pô, eu sou sem-teto, não tenho
escolhido no primeiro processo, ainda quando era condições de pagar aluguel, não tenho condição de
organizado em Vila Isabel. E foi escolhido por uma viver, então o que está acontecendo? Vou ter que ir
moradora, que nem chegou a ser moradora, no cartório mudar meu nome, meu nome tá dando
defendendo a proposta que deveria ser quilombo azar?” Então eu não posso acreditar nisso, que é o
porque quilombo era um espaço onde os negros nome. Muito pelo contrário, eu acho que esse nome
podiam ter sua cultura, podiam resgatar sua cultura. é o que vai ficar e a gente vai ser conhecido por ele.
Não um espaço de fuga, mas um espaço de Acho que nessa terceira tentativa a gente vai
construção, espaço de identidade. Das guerreiras conseguir ficar e acabou ficando o nome e acabou
porque as mulheres ao longo da história sempre acontecendo. Acho muito forte, um nome bacana.
foram negligenciadas, raramente nos livros de Algumas pessoas passam aqui por conta do nome,
história se conta a luta das mulheres, da vanguarda, para perguntar de quem foi a ideia e o que a gente
de estar à frente da luta, e sobretudo hoje pela explica sobre esse nome.
mulher, pela característica que ela exerce como
mãe, como provedora, na sua grande maioria na Eduardo e Marcelo: Às vezes, quando é escolhido
sociedade. A mulher como pai, mãe... prestar uma por um dirigente, de um coordenador, que tem uma
homenagem à essas mulheres. Então tem esses dois trajetória pela esquerda, ele escolhe o nome de Che

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Guevara, Carlos Marighella, Garibaldi. Quando descobriu o Brasil, nós descobrimos esse prédio da
passa para um morador vem um nome inusitado Rio Docas e eles descobriram uma casa embaixo da
desse, mas tão carregado simbolicamente, poeira abandonada e perdida. Foram lá e deram uma
politicamente, resgata uma parte da história do povo função para aquela casa, um destino.
oprimido no Brasil... acho que é uma lição
importante... Eduardo e Marcelo: Como se dá a relação entre as
ocupações? O que tem de positivo nesse contato? O
Ângela: Tem nomes que são fantásticos. Sou muito que fica deixando a desejar e por quê? Você poderia
fã de Flor do Asfalto, o nome Flor do Asfalto é uma refletir a esse respeito?
poesia. Os caras, quando escolheram o nome,
estavam inspirados, que é uma flor do asfalto né... Ângela: Eu acho que a ocupação é igual a uma
família. Quando o bagulho tá doido, todo mundo se
Eduardo e Marcelo: Uma ocupação dos junta. É muito assim... não estou dizendo que isso
anarcopunks... não aconteça. O irmão, você pode falar mal dele,
discordar dele, mas se é outra pessoa de fora, então
Ângela: ...E que também está para ser removida... É não pode fazer isso. A ocupação tem muito essa
um nome que não faz alusão a nada numa luta, mas relação. Existem momentos que estamos numa
tem uma simbologia tão forte para tudo. Para convivência muito próxima e existem momentos
moradia, para o achado né... muito forte é um nome que a gente está muito distante. A ocupação ela
que eu sou fã... Flor do Asfalto que é uma ocupação, também tem sua vida diária, porque às vezes... se
digamos, prima da Quilombo das Guerreiras. E tem agente procurar dentro da ocupação o que fazer todo
umas ocupações que a gente podia dizer que são dia a gente encontra uma coisa. Ela tem uma vida
irmãs, como Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos diária: o entorno dessa ocupação, a política de
Palmares – que infelizmente acabou... É, a gente remoções que está havendo no Rio de Janeiro, mas
brincava que a Zumbi era pai, a Chiquinha era mãe, ela também tem suas construções do dia a dia, é um
o Quilombo era a filha e a Flor do Asfalto não deu espaço que você quer montar para uma biblioteca, é
nem para ser pai, nem mãe, nem filha, mas era um espaço que você quer montar para uma cozinha,
parente, essa prima aí... porque quando o apoio saiu então todo dia você tem uma demanda, um trabalho
daqui da porta, quando eles levantaram para fazer, você tem uma limpeza, um projeto pra
acampamento e viram que tava mais tranquilo e fazer com as crianças, um tempo seu pra destinar. E
tal...que não precisava mais estar acampado é um trabalho muito difícil. Então essa proximidade,
dormindo aqui, eles foram andando pela rua e aí é isso aproxima e distancia. Porque quando as
como eu costumo dizer: para se fugir da polêmica ocupações estão vivendo muito o seu momento,
ocupação e invasão eles descobriram, foram aquele momento que tá mais voltado para um
descobridores... porque se Pedro Álvares Cabral determinado trabalho, determinada coisa que ela

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quer construir dentro do seu espaço, acho que ela tá Chiquinha, aqui da Quilombo, a gente começou a
mais distante ou mais próxima. Então não dá para se trocar essas ideias de como resolver os nossos
prever. Eu acho que a proximidade que eu gostaria problemas, mas no plano da organização de
que tivesse, nós não temos. A gente já tentou fazer autogestão. O que é autogestão? Ideologicamente é
isso com Fórum Contra o Choque de Ordem, com aquilo que a gente quer construir, aquilo que a gente
outros grupos. Que é realmente sentar os moradores não quer representação, a liderança, isso e aquilo,
da ocupação, esses moradores que são camelôs na mas é um exercício diário. Assimilar de fato, viver
sua grande maioria, sentar esses moradores pra autogestão é um exercício diário, todo dia você tem
debater o que está acontecendo no Rio, pra estar se que aprender a viver autogestão de uma maneira. A
fechando pra certas coisas. A própria Zumbi foi um enxergar onde e como vai se dar a autogestão ali. E
processo que foi implodido de dentro pra fora, foi muitas vezes numa assembleia você tem que
um processo em que se abriu as portas pra escolher quais temas você vai discutir, pode
Prefeitura. Então acho que a gente tem que tomar escolher discutir cinco temas e normalmente um
esse cuidado e tem que estar alerta em relação a fofoca, dois fofocam, no começo de ocupação as
isso. Infelizmente hoje a gente não tem um espaço pessoas até se propõe a discutir fofoca. Depois de
de atuação conjunta onde a gente possa se um certo tempo nãose discute mais essas coisas que
encontrar, porque os espaços em que tentamos fazer esvaziam nossas reuniões, nossos Coletivos. Então
isso viraram lista de e-mail, outras coisas e não a por esse motivo a gente andou se encontrando pra
presença física do morador. poder trocar essa ideia. De que maneira fortalecer
Há pouco tempo a gente estava se novamente nossos coletivos? Fortalecer novamente
encontrando. Tinha uma ocupação que estava com nossas assembleias? De que maneira fechar o nosso
um problema interno e a gente estava pensando coletivo para essa intervenção hoje do poder? Pra
coletivamente como resolver esse problema. Aí não esse poder que está se infiltrando, como a Prefeitura
era um problema... não era passar por cima do que vem se infiltrando, alguns órgãos e às vezes até
Coletivo, porque a proposta de se encontrar era uma alguns universitários. Porque quem fez o cadastro na
proposta de trocar ideias. Às vezes a gente passa por Zumbi foram universitários que foram lá fazer um
determinadas coisas que aquele coletivo não passou. levantamento socioeconômico. Esse Coletivo muitas
Como você esvazia uma reunião de moradores? Se vezes é inocente e abre a porta pra todo mundo, a
eu levo assuntos sem importância, se o cara começa gente acha que tem que abrir porque nossos espaços
a pensar na reunião que poderia estar assistindo a coletivos não são nossos, eles têm que estar abertos.
novela, futebol, um filme; quando não interessa a Isso é uma coisa que a gente preza. Mas tem que se
ele, quando ele vê que aquilo ali não tem nada de cuidar, muitas vezes a gente andou se encontrando
útil, descer para aquela reunião. Então como faz pra conversar sobre essas coisas, sobretudo depois
isso? Esse tipo de coisa que a gente começou a que a Zumbi foi despejada e cada uma de nós tinha
discutir...um pouquinho de pessoas da Zumbi, da um problema, a gente trocou ideia de como resolver

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esse problema. Várias coisas, que às vezes a gente condições de denunciar determinadas coisas na base
não consegue pensar ou às vezes acontece aqui e a da solidariedade. E agente não se incomoda muito
gente não consegue pensar direito, mas a Chiquinha com isso, porque nesse sentido a gente é muito
já tinha passado por isso, a Zumbi, e a gente andou seguro, quem dá linha aqui é o Coletivo mesmo.
fazendo isso aí há meses atrás. Então não tem esse problema. Em todas as
ocupações nunca nenhum movimento falou “Eu
Eduardo e Marcelo: Ou seja, tem uma articulação estou aqui e agora vai ser assim!”, embora em
e vocês se comunicam, isso varia de acordo com o algumas ocupações, na Chiquinha Gonzaga por
tempo, mas, não tem nenhuma organização que fale exemplo, a negociação do prédio tenha sido feita
em nome das ocupações. pela CMP , a negociação jurídica do prédio tenha
sido feita pela CMP, mas nem a CMP disse “Eu sou
Ângela: Não, não tem, embora a gente tenha maior interlocutor”, ou “Agora o prédio da Chiquinha
proximidade com alguns grupos. A Chiquinha, Gonzaga é da CMP”. Muito pelo contrário, esses
Zumbi e Quilombo foram processos que foram líderes de movimento, eles queriam autogestão. O
vários militantes da [extinta] FLP (Frente de Luta próprio dirigente da CMP acredita na autogestão,
Popular), da CMP (Central de Movimentos não na coordenação.
Populares) que ajudaram nesse processo também.
Que eram o apoio desse processo, mas não Eduardo e Marcelo: Você já falou sobre o coletivo
representam esse coletivo. Nesse coletivo não existe e mais ou menos como se organiza a ocupação em
representação, existem “presentantes”, pessoas que comissões. A gente pode passar pra parte de
moram dentro dele e que são destacados desse resistência. Todo ato de ocupação é um ato de
coletivo, muitas vezes em assembleia, para falar do resistência e como o próprio nome diz, na
coletivo ou da nossa história em determinados resistência presume-se que tenha algumas forças
locais. Isso pode ser qualquer pessoa que esteja contrárias, algumas dificuldades principais que
disponível no momento, que esteja encaminhado em enfrenta a Quilombo das Guerreiras, por exemplo a
assembleia, que vai. Mas companheiros desses luta contra o choque de ordem, entre outras...
movimentos que ajudam e que são companheiros
próximos, assim como outros apoiadores, podem Ângela: A dificuldade maior, não só para
falar sobre a ocupação. Eu falo sobre a favela, eu Quilombo, mas para todas as outras, é se manter,
estou representando a favela, mas se eu tenho não ser expulsa, não ser despejada. Essa é a grande
possibilidade de denunciar alguma coisa que está dificuldade das ocupações. É o que tira o sono dos
acontecendo, eu não vou perder essa oportunidade; moradores, a iminência de despejo, sobretudo nessa
mas isso não significa que eu estou ali atual conjuntura do Rio de Janeiro, a gente tem visto
representando a favela. Significa que às vezes o que de tudo o que a gente havia aprendido para
assunto faz com que a gente denuncie e tenha negociar com as instâncias de governo, todos os

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mecanismos que acionávamos ainda existem, mas país – o que eu acho que é a única possibilidade
não são mais cumpridos. Hoje se despeja à noite, hoje, e é o que a gente tem procurado fazer. Fazer
final de semana, se despeja sem a presença do denúncias para fora do país, que as denúncias para
conselho tutelar, sem estatuto do idoso, sem fora do país chegam aí e os caras seguram um pouco
reintegração de posse, se despeja de qualquer a bola. Mas aqui dentro é muito difícil.
maneira. Se despeja metendo o pé na porta e dando A gente tem trabalhado, tem vendido
porrada e coisas que não aconteciam bem pouco mercadoria. Pouco tempo atrás a gente recebeu uma
tempo atrás. Então, isso aí é um momento que a intimação de Docas pra deixar o prédio em quinze
gente percebe que nossa correlação de força é dias, porque eles iam fazer o despejo e a gente
nenhuma, porque você pode ser surpreendido a perdeu juridicamente, perdeu em primeira instância,
qualquer momento dessa maneira. Só que a gente perdeu em segunda instância. Então a gente sabe
decide que quer ficar e vai sair arrastado, e decide que a gente está aqui e ficou nesse prédio muito
que é nossa casa que estava aqui, que a gente mais por uma resistência e por um fato político que
ocupou, limpou e construiu esse espaço. A gente a gente criou do que qualquer outra coisa. A gente
decide isso. Então hoje é um momento muito difícil conhece bem o sistema, sabe como a cidade se
para se viver no Rio de Janeiro, para trabalhar aqui. processa, então não foi pelos meios jurídicos que a
Essa semana mesmo, anteontem, a guarda bateu em gente tem conseguido resistir, mas pela mobilização.
várias pessoas, no camelódromo ali, pessoas que E mais uma vez a gente teve que procurar a SMU
estavam passando e apanhando. Esse é um momento (Secretaria Municipal de Urbanismo) para dizer que
difícil para preparar esses megaeventos aí. É uma a gente tinha um projeto de reassentamento, porque
limpeza étnica mesmo. O pobre sempre foi a gente briga pra ficar nesse prédio mas Docas
considerado feio, então tirar o feio da cidade, tirar o nunca abriu uma possibilidade de diálogo. E pelo
feio desses espaços é distanciar a classe que eles dizem o que vai acontecer aqui vai ser uma
trabalhadora, é distanciar o pobre. É a limpeza construção de um prédio de 40 ou 50 andares e que
mesmo e a gente vê que não tem como... pela esse prédio não vai servir para moradia. A partir de
primeira vez na história também, não sei se eu estou então a CMP e a União de Moradia apresentaram
exagerando, Prefeitura, governo do Estado e um projeto de reassentamento no âmbito do qual a
governo federal – que a gente pode chamar de um CMP incluiu a Quilombo, junto com outras
governo só – estão ali emparelhados, estão se ocupações, e nós estamos nos reunindo há mais de
autoajudando, e o que está acontecendo é isso. Por um ano para formar esse reassentamento conjunto
exemplo, se antigamente a Prefeitura fizesse alguma que será chamado Quilombo da Gamboa.
coisa contra nós, a gente podia recorrer ao Estado ou Foi isso que freou essa reintegração aí né...
ao governo federal. Você não tem mais para quem a SMU ficou sabendo que a gente já estava dentro
recorrer. Ou então você cria um quadro social, uma de um projeto de reassentamento, que foi acessado
comoção social internacional e joga isso pra fora do através do FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de

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Interesse Social) e aprovado, faltam aquelas coisas, muitos dos moradores que residem em ocupações,
aval disso, daquilo, para começar a obra. Então eles eles vêm de favelas e muitos deles saem das favelas
se comprometeram através de correspondência. por conta da violência exacerbada lá. Porque eles
Veio aqui um cara da SMU e prometeu que a gente vêem aqui na ocupação, em geral isso muitos já me
não ia ser despejado e, se por ventura precisasse disseram, um espaço mais tranquilo que você não vê
desse prédio, em qualquer período eles se se armas cotidianamente, as crianças podem ficar
comprometeriam a reassentar a gente num imóvel brincando sem os pais terem preocupação de ficar
único (que a gente não gostaria de ter aluguel social, envolvido com o tráfico de drogas ou ser ameaçado
isso sempre foi uma defesa nossa) mas num prédio pela polícia.
da prefeitura até que o Quilombo do Gamboa ficasse
pronto. Então a gente fica nessa situação, a gente Eduardo e Marcelo: Mas de todo modo, tem
tenta fuçar de alguma maneira onde achar uma porta conflitos aqui dentro da ocupação? Existe algum
para negociar, que a maior parte do Coletivo tipo de violência aqui? Como esses conflitos são
gostaria de ficar aqui, mas não vê essa possibilidade. geridos? São mediados? São resolvidos?
Por enquanto não existe essa possibilidade, mas a
gente não deixa de fuçar não, vai fuçando por Ângela: Todo espaço tem conflito, né? Só que antes
Brasília, vai vendo quem conhece, vai vendo com de você ocupar o prédio é discutido o regimento
quem a gente pode estar conversando e de repente interno, aquilo que a gente vai criar como norma,
sempre surge um “cala-boca”, sempre alguma coisa não as leis de fora, mas uma espécie de lei que a
que sobra para o trabalhador no meio de tanta gente vai seguir aqui dentro. É obvio que esse
especulação... o governo sempre tem que ter regimento interno muda com o tempo, porque por
alguma coisa para mostrar “Nós fizemos isso” e aí exemplo: no começo, quando a gente ocupa o
ele se utiliza da luta do trabalhador, se utiliza da luta prédio, a gente dorme coletivamente, é proibido o
dos movimentos, muitas vezes coloca lá suas placas, uso de bebida, pessoas não podem beber. Então esse
como vai colocar lá na Chiquina fatalmente depois regimento interno é o que norteia a gente. Uma
da obra (no prédio que foi arrombado depois de coisa construída por nós. Nele, inclusive, a expulsão
vinte anos fechado) como vai colocar lá “Prédio de moradores está prevista também. Já tivemos que
requalificado pelo governo do Estado”... expulsar companheiros aqui. E não é uma coisa da
qual nos orgulhamos, já chamamos de volta
Eduardo e Marcelo: Como se fosse uma concessão companheiros que expulsamos, o coletivo refletiu
do Estado... sobre algumas expulsões e chamou de volta. Acho
que foi um amadurecimento muito grande desse
Ângela: Ainda bem que normalmente é uma placa coletivo, mas assim, uso de drogas é expulsão
de cobre, uma placa de metal nobre e sem utilidade! sumária, porte de armas é expulsão sumária, roubo é
Quanto à violência, a gente sabe que a maioria, ou expulsão sumária. E não quer dizer que a gente está

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querendo criar um Coletivo cristão, um Coletivo que caso do álcool. Isso já foi ponto de pauta várias
viva de uma aparência ou que esteja querendo vezes no nosso coletivo. Já foi, já resultou em
implementar uma lei de tortura. Quer dizer que a expulsão. Porque para expulsar a pessoa passa em
gente já é marginalizado para a maior parte da uma série de etapas: é advertido em assembleia, aí
sociedade, a gente é tido como bandidos, como tira um grupo para ajudar aquela pessoa, depois ela
invasores, vagabundos, pessoas que querem morar fica uma semana fora para ela entender que ela não
sem pagar. A gente sabe que a droga é uma pode mais continuar daquele jeito, depois quinze
discussão tratada de maneira hipócrita na nossa dias fora, depois no máximo 30 dias e se não tiver
sociedade, as pessoas não estão aí para discutir jeito ela é expulsa. Então o álcool é uma droga
verdadeiramente a questão da droga. A droga até muito difícil, é uma dependência muito difícil de se
hoje é pressuposto da pobreza, ninguém pensa na largar. Atualmente a gente tem um encaminhamento
classe média drogada, ninguém pensa no médico coletivo de um companheiro que está fazendo
drogado, no advogado drogado, no juiz drogado. Só tratamento para não ser expulso. Vai se internar
pensa no favelado drogado, no sem-teto drogado, só agora, foi decisão dele se internar. Não estava dando
nessas camadas sociais mais pobres. E a droga, jeito, ele teve algumas recaídas. Se o companheiro
como é ilícita, você não compra na padaria, você está precisando de um tratamento a gente tenta
tem que ter um certo contato. E a gente sempre tem convencer ele em assembleia e aí, se ele é
outros espaços coletivos que foram destruídos por convencido, a gente encaminha. Tem sempre
conta da droga. Primeiro se usa, depois se vende, alguém que vai junto, um morador, um ou dois
depois se trafica e muitas pessoas, como você moradores que vão ficar mais ligados àquela pessoa,
mesmo falou, vieram de comunidades, não querem ajudando, participando também daquela reunião
ter esse contato aqui. Então se a pessoa tem um junto. Então a gente tenta resolver dessa maneira,
vício, ninguém vai dizer “Olha, você tem que largar agora todas as questões são resolvidas
seu vício”. Ele trabalha, mantém o vício dele, a coletivamente, todas! Todas são passíveis de
gente não faz uma discussão hipócrita com relação a discussão em Coletivo. Então se ela causa problema
isso. Mas ele vai se utilizar desse recurso fora da para o Coletivo, vamos tentar arrumar uma solução
ocupação. Se ele quiser se drogar ele vai usar fora que a gente não perca aquele companheiro, mas
da ocupação. É obvio que ele não vai matar nem também satisfaça o Coletivo para continuar com sua
roubar, porque isso não é tolerado aqui. Mas em segurança e sua tranquilidade, que não agrida
relação a vício, é claro que não pode usar, não pode nenhuma das duas partes.
roubar, não pode ter porte de arma. Então esse
regimento interno que faz a gente ter discussão. É Eduardo e Marcelo: A droga, ela remete a outro
obvio que a gente tem discussões inversas. A gente problema, que é o tráfico de drogas. E a gente sabe,
tem drogas que são lícitas que prejudicam tanto inclusive, que algumas ocupações já foram, digamos
quanto, ou ainda mais que as drogas ilícitas, que é o assim, tomadas pelo tráfico de drogas. E assim

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como nas favelas, e também em lugares onde mora armada pra matar outra pessoa que tinha brigado
classe média, a gente sabe que tem áreas que são com ela. Aí a gente teve que parar na polícia e tal.
dominadas pelo tráfico de drogas. Então, tem um Mas é uma coisa que sempre tivemos uma discussão
assédio do tráfico sobre o movimento das tranquila e muito corajosa. Acho que todas as vezes
ocupações. Vocês sofreram esse assédio aqui na que a gente foi de alguma maneira assediado ou
Quilombo das Guerreiras? Como é que vocês procurado, a gente deu uma resposta a altura. Se ele
lidaram com isso? é o dono ele não precisa, se ele é o dono do morro
ele não precisa de um quarto aqui, porque isso aqui
Ângela: Pouco. A gente sofreu pouco até pela é para sem-teto. Então ele não é sem-teto. A
geografia, por estar mais distante das comunidades. condição para estar aqui é ser sem-teto. Então, de
A gente sofreu pouco, mas sofreu. A gente também resto, o que a gente tem mais cuidado aqui é com
sabe quem são os cantadores, né... isso, com uso de drogas aqui dentro, porque
infelizmente o uso de drogas pressupõe a venda
Eduardo e Marcelo: Cantadores? O que é isso? mais tarde, e a gente tem esse cuidado de não
permitir. E os moradores também têm essa
Ângela: O cantador é aquele cara que mora na consciência de estar sempre aí na atividade com
comunidade e vem dizendo: “Eu sou o cara e o cara relação a isso, porque é problemático. Você acaba
me mandou aqui”; “Eu sou do movimento”. E a trazendo pessoas, você acaba trazendo a droga para
gente também é maluco, a gente vem e arromba a dentro da ocupação e a gente não quer isso.
porta. Para um cara aí de moto e fala: “O dono quer
dois apartamentos aí”. O dono de onde? “O dono do Eduardo e Marcelo: Estou só insistindo nesse
morro”. Mas se ele é dono do morro ele não precisa aspecto porque geograficamente a Chiquinha
de dois apartamentos aqui. E aí a gente tem um Gonzaga está muito mais próxima de uma
diálogo muito direto em relação a isso. E é óbvio comunidade que até há pouco tempo não tinha UPP
que o tráfico vai querer um espaço no asfalto; e não e era controlada pelo tráfico. E a Chiquinha resiste.
vai querer mais um espaço no asfalto, o tráfico está A gente sabe que a Chiquinha não tem tráfico de
no asfalto. Porque se as favelas estão ocupadas, ele drogas. O pessoal lá resiste bem. Você acha que o
está no asfalto, é fato. As favelas estão aí com tipo de organização e de gestão da ocupação, por
UPPs, isso implica que as pessoas tenham que fazer exemplo, de ser por Coletivo e de não ser
suas atividades em outros locais. Também é uma organizado e gerido por direções, isso faz diferença
hipocrisia dizer que o tráfico está só na favela. O na hora de resistir ao assédio do tráfico de drogas?
tráfico sempre esteve no asfalto. Mas a gente teve
pouca intervenção, pouca ligação. Uma vez, sei lá, Ângela: Acho que a diferença está muito mais em
uma senhora brigou e ela era de uma comunidade e você decidir por um regimento interno no qual quem
o filho ou uma pessoa da comunidade veio aqui cuida dos nossos problemas somos nós, e não o

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 107


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parlamentar, e não um dirigente de movimento, e Eduardo e Marcelo: Chegamos agora ao último


não o tráfico. Por exemplo, se alguém sair daqui tópico da entrevista, que diz respeito à produção
para dialogar com o tráfico para resolver um dentro da ocupação. Uma das divisas que vocês têm,
problema interno, ele está expulso, isso é claro para um grito de guerra, é “ocupar, resistir e produzir”.
qualquer morador aqui. Não é o tráfico que resolve Ocupar, vocês ocuparam, e estão aqui resistindo; e o
nossos problemas, assim como não é a polícia. A produzir? A gente sabe que vocês tentaram e tem
gente não pode chamar a polícia, mas a gente algumas cooperativas que em alguns momentos não
também não pode chamar o traficante para resolver funcionam, que estão, digamos, um pouco
nossos problemas. Acho que é muito mais o cambaleantes. Por que você acha que tem essa
discernimento de que eu sou o responsável por esse dificuldade de prosperar em atividades econômicas
Coletivo; eu, cada um de nós é que somos alternativas e sustentáveis aqui nas ocupações?
responsáveis por esse coletivo. Porque nossa vida
inteira a gente delega, nossa vida inteira a gente tem Ângela: A Quilombo é uma ocupação que se difere
representação. A gente tem o nosso padre, o nosso um pouco das outras ocupações. A maior parte do
pastor, nosso pai de santo, nosso pai, nossa mãe, nosso coletivo é trabalhador formal. Uma boa parte
nosso professor... E aqui é o momento de a gente é camelô... Mas a maior parte é trabalhador formal,
dizer: “Não, isso aqui é meu”; “Eu tenho que que conseguiu ser trabalhador formal por causa do
construir essa história, eu que respondo por ela”. endereço – por morar mais próximo conseguiram ter
Nossos problemas, por mais graves que sejam, todas um emprego. Agora, a dificuldade maior é a
as vezes que a gente foi parar na polícia, a gente foi dificuldade financeira. Primeiro, para você montar
parar na polícia muito mais por questões externas do alguma coisa, você vai montar o quê? Que tipo de
que internas. A polícia nunca veio aqui por uma maquinário você precisa? Espaço não é o nosso
questão interna, quer dizer... veio aqui uma vez, um problema, mas sim os equipamentos, que hoje
morador, infelizmente, que foi expulso e ele chamou normalmente são mais caros. A gente tentou montar
a polícia porque ele não queria sair. E a polícia falou uma cooperativa de chinelos, mas o recurso saiu do
“Não, ele fica” e a gente falou “não, ele sai”. Agora, nosso próprio bolso, um recurso que nunca voltou,
no momento em que acontece um problema na porque pra você montar uma cooperativa você faz
ocupação e esse coletivo permite que alguém chame um produto, você vende aquele produto, mas você
a polícia ou vá dialogar na boca, seja lá onde for, tem que se preocupar em repor aquela mercadoria.
esse coletivo começa a ser destruído, a perder sua Então você não trabalha com aquilo que você
força porque isso já é indício de que a gente tá ganhou, aquilo que sobrou. E aí você fica sempre
trabalhando com uma representação e que a gente pensando se você tem que ter o material. E como o
não está entendendo o que é autogestão. dinheiro era pouco, a gente nunca conseguiu ter de
volta aquilo que a gente aplicou, que foi R$50,00 de
cada um para fazer chinelo. Uma coisa que ficou

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 108


Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

adormecida, ainda é um projeto hoje. Estamos contados por nenhum projeto de governo. Eles não
querendo estampar camisa e voltar a fazer sandálias. estão nem aí como vai viver o camelô. Ele quer
Mas a gente está na rua e a gente tá perdendo cadastrar o camelô pra receber esses R$120,00 que
mercadoria. Ou perde mercadoria ou paga propina! cada camelô teve que pagar agora para se cadastrar,
E eu não sei nem se na atual conjuntura pagar mas onde esse camelô vai trabalhar é fictício. É um
propina vai dar jeito. Pelo que tem acontecido essa local que ele escolhe de uma maneira fictícia. Mas
semana aí... a guarda está sendo forçada a ser se você for para rua hoje e produzir com seu próprio
corrupta também né... num momento em que o recurso e colocar uma mercadoria, fatalmente você
sistema às vezes força, ele te joga numa situação em vai perder essa mercadoria. Foi o que aconteceu. A
que ou você paga a propina ou perde a mercadoria. gente foi pra rua com chinelo e com sandália e
É melhor ele dar 15 Reais por semana ou perder tivemos que correr da guarda. E às vezes é uma
todo dia a mercadoria dele? E aí você acaba mercadoria pesada e você não tem condição de
desmobilizando a classe. Você acaba tendo uma correr. A maioria dos camelôs trabalha com uma
série de problemas. A gente tem um problema no mercadoria leve. Agora a gente começou a trabalhar
Rio de Janeiro também, de que a vida do camelô também com alimentação, que dá mais certo.
nunca está definida. Teve um incêndio no Porque alimentação ela já trabalha de uma outra
camelódromo da Central, um incêndio criminoso, maneira na sociedade. Digamos que um sindicato
um incêndio que o bombeiro chegou uma hora saiba que a Quilombo faz alimentação e aí ele tem
depois sem água... São coisas que vão passando e a uma festa e um encontro, então ele vai e encomenda
gente vai deixando para lá, mas que os movimentos comida. As universidades, um grupo sabe que a
tinham que continuar denunciando isso, procurar os comissão de alimentação da Quilombo trabalha
culpados por isso. Porque aquilo foi incêndio dessa maneira. Digamos que o curso de pedagogia
criminoso! Imagina um bombeiro chegar uma hora da UFRJ vai fazer um encontro de pedagogia, eles
depois e sem água! E ter que furar o chão para cavar pedem alimentação na Quilombo e nós preparamos
a água e apagar o incêndio! Um incêndio criminoso os alimentos. Então a alimentação é uma coisa que
onde agora os camelôs não estão mais aquele espaço deu mais certo para gente. Porque é um contato
ali. Aqui na rodoviária, vão tirar o camelô também. direto, mais útil, a gente faz uma negociação direta,
Agora existe um projeto pra tirar a rodoviária daqui. um preço mais justo e sem esse perigo, você não
Agora você imagina, se tirar a rodoviária daqui, o tem o perigo de perder uma comida. O cara manda o
camelô vai trabalhar onde? Porque ele vive do fluxo carro, a gente entrega a comida ou a gente leva a
da rodoviária. Então a gente está sempre atrás, o comida. Teve uma ajuda de um companheiro que
trabalho é informal, a produção é precária, falta de estava na França, conseguiu uma verbazinha aí e a
espaço para escoar a mercadoria, para vender gente comprou um fogão, estamos comprando umas
mercadoria. A gente está sempre em função desses panelas para dar uma acelerada e criar uma cozinha
espaços ilegais e esses espaços ilegais nunca são com mais infraestrutura para atender melhor, porque

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 109


Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

você depende também de ter uma infraestrutura. A também votou há pouco tempo que não queria esses
gente também tem uma política (a comissão de 10% mas que isso fosse investido na cozinha. Que
alimentação) de abolir o descartável, a gente não também não é muito dinheiro, mas dá para comprar
gosta de descartável. Não adianta a ocupação estar uma vasilha, comprar uma coisa ou outra. Então
preocupada com a produção e não estar preocupada acho que isso é legal, essa proximidade política que
com o lixo, não estar preocupada com outras a gente vai tendo com esse outros espaços, com as
questões. A gente não gosta... Quando a gente pode, universidades, com os encontros. A gente vai tendo
a gente trabalha com panela, com pratos, com essa proximidade, a gente acaba tendo contato com
talheres que não são descartáveis, e para isso você a UFRJ, contato com IFCS, contato com outros
precisa criar um infra-estrutura boa de cozinha. grupos universitários. Depois de algumas
Agora, estamos estudando os outros projetos alimentações esses grupos vêm aqui conhecer o
de geração de renda. Que é a confecção de camisas, coletivo, saber como a gente se organiza.
voltar a ver, voltar a estudar, como fazer isso, voltar
os passos, sobretudo ter uma verba para fazer isso. Eduardo e Marcelo: A Internet permite tanta coisa
Porque aquilo que a gente ganha, infelizmente a né... eu acho que isso tem potencial de ser
gente não tem condições de tirar um valor X para expandido e essa rede se alastrar, não é verdade?
aplicar, para comprar maquinário...
Ângela: Sim, para isso a gente tá tentando construir
Eduardo e Marcelo: Falta espaço para colocar uma cozinha com mais estrutura, porque não adianta
mercadoria na praça, falta dinheiro para poder divulgar o que você não tem condição de fazer.
produzir mercadoria e o que sobra, na verdade corre Imagina se o cara chega aqui e pede: “Eu quero
o risco da mercadoria ser apreendida. No final das quatro mil refeições!”
contas o que mantém de pé essas experiências
alternativas econômicas das ocupações é a demanda Eduardo e Marcelo: O capital faz isso, né? Ele
dos movimentos sociais. Acaba criando uma oferece a construção de uma ponte, depois vai lá no
demanda que mantém... BNDES e pega o dinheiro para construir. Se a gente
quiser 5 mil pra fazer 500 quentinhas, não pode!
Ângela: Isso é uma coisa legal. Quando eu falo da
alimentação é uma coisa legal. Porque eles gostam Ângela: Realmente tem que ter uma infraestrutura e
de saber que vai fazer uma alimentação na ocupação uma paciência, mas é bacana trabalhar aqui dentro,
que vai reverter 10% para o Coletivo e que tem uma com os companheiros produzindo alimentação, faço
proposta diferente. Que não tem essa perspectiva de isso de vez em quando. Você está ali, falando do
lucro, que não chega a ser uma cooperativa, mas o coletivo, falando dos problemas, produzindo
trabalho é dividido, o dinheiro é dividido, uma parte alimentos, vendo como o companheiro cozinha,
é revertida para esse Coletivo. E aí o Coletivo você passa a saber da vida dele muitas vezes. Me

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 110


Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

lembro da minha infância, ele vai falar alguma coisa coletivo, não ter liderança, é possível tanta coisa que
da infância. Então tudo contribui para essa a sociedade desconhece. Isso é possível. Acho que
intimidade que eu acho que é necessária dentro do essa é a grande ideia pela qual eu queria ver várias
Coletivo. ocupações lutando. O Rio de Janeiro estaria
diferente! Porque você acaba influenciando as
Eduardo e Marcelo: Porque a dimensão do pessoas. A Quilombo, ela é fatalmente
trabalho, da política, das relações afetivas como um marginalizada por muita gente que passa, mas
todo elas convergem, não são fragmentadas. muitos camelôs nossos trabalham aqui na calçada e
quando o cara pede um refrigerante ele pergunta o
Ângela: Porque o capitalismo afasta, afastou o que é isso aqui? O camelô que mora aqui, ele não
trabalho da moradia, da casa, da vivência, da vai dizer que é uma ocupação, ele vai dizer é a casa
cultura. Quando a gente pode experimentar trabalhar dele. E você acaba tendo um contato, explicando
no espaço que mora, com as pessoas que você porque se ocupa, porque vai, porque mora aqui,
convive, você vê o quanto que a sociedade poderia como é a organização e você vai difundindo isso
ser diferente. para sociedade, que é possível se organizar, que é
possível resgatar algumas coisas, não só a moradia,
Eduardo e Marcelo: Pra terminar, outra pergunta: o mas uma preocupação mais plural com a saúde.
que você acha que poderia ser a lição da Quilombo Outras lutas que a gente procura estar
das Guerreiras para a cidade do Rio de Janeiro ou ingressando: saúde, educação, outras lutas que
para as cidades de maneira geral? O que você acha também são nossas e a gente também participa e
que se pode tirar daqui para construir uma cidade está junto. Mas eu acho que essa é a ideia, a ideia de
melhor? podermos nos organizar coletivamente e que temos
força. Porque na história, todos os fracassos
Ângela: Pra construir uma cidade melhor, eu acho históricos foram em decorrência do povo achar que
que é a ideia da autogestão, do coleivo, porque é não tinha força, ou ser manipulado ou conseguir
uma ideia tão difícil, ou melhor, uma postura difícil. determinadas revoluções mas as lideranças se
Porque a ideia não é difícil de assimilar, mas o que é corromperam, as lideranças se venderam e talvez
a ideia? A ideia é subjetiva, a prática é que conta. O esse seja o nosso medo. Aquilo que a gente quer
que adianta dizer “coletivo” e “autogestão” e não deixar para a sociedade do Rio de Janeiro é que é
agir como coletivo e não estar dentro da autogestão. possível não ter liderança. A gente também não tem
Óbvio que quando a gente fala “autogestão” a gente problema com a palavra liderança, temos problema
exagera, porque a gente também não vive da nossa com a palavra dirigente, porque liderança nós temos
produção, mas o desejo da autogestão é tão grande. várias aqui dentro. Lideranças informais, tem uma
Eu acho que para o mundo é isso, é possível viver pessoa que puxa uma liderança mais pra
junto, é possível se organizar, é possível ser manifestação de rua, outra puxa uma liderança mais

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Ocupar, resistir, produzir! Entrevista com Ângela de Morais Sant'Anna

para educação. São pessoas que, quando eu quero enlouquecendo junto com os textos, com os
falar sobre educação, eu tenho uma pessoa de trabalhos e isso é tão bacana! Você descobrir que
referência aqui dentro. Quando eu quero falar sobre não precisa competir com o cara, não está
a luta que está acontecendo lá fora, o camelô tem... competindo, você está crescendo junto, você está
Então são líderes, a gente não tem essa preocupação. partilhando aquilo que você sabe e essa sociedade
Pega o exemplo lá dos zapatistas: quem é dentro do universo capitalista que estimula a gente a
Subcomandante Marcos? Ninguém sabe! Então competir é uma sociedade que tem que ser
quem é Anginha? Anginha é uma pessoa que faz destruída. Eu espero que um dia a gente possa estar
parte desse coletivo, que “presenta” esse coletivo, discutindo isso e ganhando espaço para discutir essa
mas que não é líder desse coletivo, jamais decide! coletividade, essa riqueza de trabalhar com a
Eu tomo “toco” em assembleia – eu amo quando coletividade e com o coletivo para essa sociedade.
isso acontece, às vezes eu polemizo também isso!
Acho que faz parte do crescimento do coletivo, Eduardo e Marcelo: Você está certa. Vocês, com
identificar que ninguém manda aqui, não é uma muito pouco recursos, quase nada, têm uma
pessoa só que manda. Isso é maravilhoso, perceber o biblioteca, trabalho de reforço escolar, uma
quanto o coletivo cresce e eu queria uma sociedade cooperativa que faz alimentos e que não funciona
assim, onde a gente pudesse se organizar bem, mas funciona! Moradia para 46 famílias que
coletivamente, descobrir que a gente não precisa estão morando há cinco anos sem pagar aluguel.
competir com o outro. Porque a gente é estimulado a Resistem à violência, resistem ao tráfico de drogas,
competir desde pequeno, mas o outro é nosso participam politicamente de outras lutas. Ou seja,
companheiro, pode ser nosso companheiro, deve ser esse tipo de gestão dá certo, é eficaz. Tem sido uma
nosso companheiro, que a gente deve crescer junto. fonte de inspiração há cinco anos.
E a gente tem percebido isso aqui na Quilombo e
tem sido tão prazeroso! Depois de estar aqui, os Foi um prazer enorme fazer essa entrevista, Ângela!
companheiros que foram trabalhar, descobrem um Muito obrigado.
local pra trabalhar e avisam para o outro. Os
companheiros estão fazendo universidade agora,

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Anarquismo: crítica e autocrítica (Murray Bookchin) – Comentário bibliográfico Rafael Zilio

– Resenhas –

Comentário bibliográfico

BOOKCHIN, Murray. Anarquismo: crítica e autocrítica. Primitivismo,


individualismo, caos, misticismo, comunalismo, internacionalismo, antimilitarismo
e democracia. [Tradução de Felipe Corrêa e Alexandre de Souza]. São Paulo:
Hedra, 2011.

Rafael Zilio
Núcleo de Pesquisas Sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD) / UFRJ
rafael.zilio@yahoo.com.br

T
rata-se de um livro composto por dois a classe operária no fim do século XIX e início do
textos de Murray Bookchin: século XX, fazendo uso de extravagâncias
“Anarquismo social ou anarquismo de individuais, de uma vida boêmia e reivindicativa do
estilo de vida: um abismo intransponível”, de 1995; “amor livre”, bem como do gosto exacerbado por
e “A esquerda que se foi: uma reflexão pessoal”, de questões estéticas e comportamentais.
1991. O livro traz também uma introdução de Felipe Contemporaneamente, os anarcoindividualistas
Corrêa, onde é oferecido um breve histórico do ganham terreno ao deixarem de focar a esfera
anarquismo e realizada uma contextualização da pública e passarem a sobrevalorizar o ego, o que
vida e da obra de Bookchin a partir de suas esvazia o espírito socialista da tradição libertária,
contribuições ao pensamento anarquista. deixando de lado uma revolução social e buscando
No primeiro texto, Bookchin elabora uma uma “insurreição pessoal”.
reflexão sobre o que ele chamou de “anarquismo de Outro ponto importante no texto de Bookchin
estilo de vida” (lifestyle anarchism), em diz respeito ao sentido do termo liberdade. Como a
contraposição ao anarquismo social. Segundo o língua inglesa permite a distinção entre liberty
autor, o anarquismo de estilo de vida se vale não (associado à “liberdade” do indivíduo) e freedom
somente de um esvaziamento de conteúdo de ideias (uma liberdade ampla, ligando o indivíduo à
anarquistas clássicas como também do abandono de sociedade), o autor faz uso dessa diferenciação para
conteúdo programático com vistas à transformação mostrar de que maneira as correntes individualistas
da sociedade. São abordadas e criticadas diferentes do anarquismo privilegiam a busca da “autonomia
“correntes” do anarquismo de estilo de vida, como o pessoal”, realizando uma crítica principalmente a
anarcoindividualismo, o anarquismo místico e o Emma Goldman, que vê o anarquismo como a
primitivismo. Para Bookchin, os realização desse tipo de autonomia. A partir da
anarcoindividualistas tiveram pouca influência sobre crítica a Susan Brown, Bookchin se opõe à falácia

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Anarquismo: crítica e autocrítica (Murray Bookchin) – Comentário bibliográfico Rafael Zilio

da contradição entre indivíduo e sociedade, A partir das visões antitecnológicas e


sustentando que uma abordagem coletivista do anticivilizacionais, destacam-se ideias primitivistas,
anarquismo não implica uma subordinação do onde o retorno à inocência de uma pré-história é o
indivíduo, e que um grupo não é simplesmente um mote para livrar-se da dominação contemporânea.
conjunto de indivíduos. Para os primitivistas, a raiz dos problemas da
Mais à frente, Bookchin aborda as ideias que sociedade atual está na contaminação das pessoas
vinculam o anarquismo com o caos. Para criticar pelas modernas técnicas e pela civilização em geral.
posturas que ele chama de “modernas e yuppies”, é Nesse sentido, a busca por um “paraíso” perdido e
realizada uma crítica a Hakim Bey e sua Zona por uma involução histórica é o foco dessa corrente.
Autônoma Temporária. Para o autor, Bey propõe o Bookchin analisa esse pensamento questionando se
abandono da revolução social e a não-confrontação nas sociedades ditas primitivas não
com o poder estabelecido, numa postura apenas de existem/existiram formas hierárquicas de poder e
espera e desejo. Bookchin afirma que Bey cria um dominação, desigualdades, mazelas e formas de
“mundo de sonhos” governado apenas por amor e corrupção, o que se contrapõe aos argumentos
feitiçaria, negligenciando assim as ações sociais primitivistas.
concretas e libertárias, destacando que Bey Ao final desse texto, Bookchin realiza uma
considera explicitamente o anarquismo como avaliação do anarquismo de estilo de vida à luz das
sinônimo de caos. críticas às correntes supracitadas. É destacada a
O anarquismo enquanto misticismo é valorização do imediatismo e a recusa da reflexão,
retratado por Bookchin como privativo, hedonista, do planejamento a médio e longo prazos e da visão
aconchegante e vazio de conteúdo social. A partir de sociedade do pensamento libertário. As ideias
do periódico Fifth State, o autor se opõe às ideias de fantasiosas, místicas, individualistas/personalistas e
que o anarquismo deva se entregar à magia e que primitivistas somente contribuem, segundo ele, para
esta dissipa o poder, entendendo que estas possuem desmobilizar o anarquismo, caricaturá-lo e esvaziar
uma forte base irracionalista e socialmente de espírito socialista seu conteúdo. Em seguida,
desmobilizante. Seguem-se a isso posturas aborda o que ele chama de comunalismo
antitecnológicas e anticivilizacionais, que enfatizam democrático – o anarquismo social a serviço da
a tecnologia como tal em detrimento do uso administração majoritária da esfera pública. O
capitalista da tecnologia. Segundo Bookchin, a compromisso com a proposição de respostas aos
postura antitecnológica defende a extinção do problemas sociais e o espírito de uma democracia
avanço tecnológico, que por si só seria a causa da radical são o mote de uma sociedade libertária, onde
exploração ou do desemprego estrutural, sem o poder, que sempre existiu e sempre existirá,
considerar as relações capitalistas de exploração que pertencerá ao coletivo em uma democracia
se utilizam da técnica como instrumento da devidamente institucionalizada.
dominação capitalista.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 114


Anarquismo: crítica e autocrítica (Murray Bookchin) – Comentário bibliográfico Rafael Zilio

O texto seguinte, “A esquerda que se foi”, foi concedido apoio ao militarismo e à defesa dos
vem a complementar as reflexões de “Anarquismo respectivos Estados nacionais. No contexto da
social ou anarquismo de estilo de vida...”. Aqui, Guerra Fria, Bookchin questiona o caráter
Bookchin resgata aspectos considerados por ele antiimperialista adotado por parte da esquerda,
inspiradores e essenciais para a esquerda, e que com posto que esse antiimperialismo fomentaria o
o passar do tempo foram em grande parte deixados etnocentrismo e o surgimento de mais aparelhos de
de lado. O compromisso com o social, a Estado.
independência política, o espírito revolucionário e a Bookchin faz uma reflexão sobre as virtudes
oposição ao capitalismo são virtudes apontadas pelo da esquerda que se foi, propondo uma retomada de
autor como fundamentais, atribuindo à esquerda sua suas características anticapitalistas e militantes para
distinção de outras correntes. O estatismo / a transformação social radical, mas
nacionalismo, o niilismo sob a égide do pós- recontextualizando-a para o mundo contemporâneo.
modernismo e diferentes provincianismos, além O reformismo, o nacionalismo, o individualismo e o
propriamente do individualismo criticado no texto etnocentrismo, dentre outros aspectos, devem ser
anterior, foram pontos em que a esquerda tradicional combatidos e substituídos por princípios
apresentou um recuo qualitativo, um verdadeiro elementares próprios de uma esquerda de cunho
retrocesso em matéria de pensamento social crítico. libertário, como o internacionalismo, a democracia e
Nesse sentido, Bookchin aborda o internacionalismo o confederalismo.
e o espírito confederalista que animaram grande Nesse livro, Murray Bookchin nos instiga a
parte da esquerda no século XIX e início do século refletir sobre ideias e práticas que emergiram ao
XX, destacando suas características universais onde longo do século XX e que descaracterizam alguns
as fronteiras estatais eram vistas como obstáculos ou dos princípios mais elementares da esquerda
amarras. É retomada a distinção entre as visões libertária. As orientações individualistas,
marxiana (e posteriormente marxista), e anarquista mistificadoras da ordem social, antitecnológicas e
(notadamente a partir de Bakunin) em relação aos anticivilizacionais, o primitivismo, o hedonismo e a
nacionalismos e quanto à democracia – vista pelos falta de conteúdo social são, segundo o autor,
anarquistas como um dado substancial na responsáveis por tal descaracterização. No decurso
organização social. O antimilitarismo, por sua vez, é do livro, depreende-se que o autor não realiza uma
distinguido do pacifismo ingênuo na medida em que simples exaltação de um passado “glorioso”, uma
seria necessário armar o movimento popular para vez que as críticas a esse passado permeiam o corpo
assegurar a democracia direta e defendê-la do do texto. Porém, os princípios democráticos,
aparato repressor do Estado. internacionalistas e confederalistas devem ser
Com a Primeira Guerra Mundial, o revigorados, recontextualizados e servir de aporte
internacionalismo da esquerda foi esvaziado em para essa (re)construção do pensamento libertário
detrimento de nacionalismos e patriotismos, onde socialmente comprometido com o combate tanto ao

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Anarquismo: crítica e autocrítica (Murray Bookchin) – Comentário bibliográfico Rafael Zilio

capitalismo quanto ao socialismo burocrático


advindo do marxismo.

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Orientação para publicações

Orientação para publicações

A
revista Território Autônomo é uma publicação mantida pela Rede Reclus-Kropotkin de
Estudos Libertários – ReKro. Ela possui periodicidade semestral. Podem ser propostos para
publicação textos que se enquadrem em uma das seguintes seções:

• Críticas & alternativas: artigos (5.000-8.000 palavras) sobre questões políticas (mas que não se
esgotem completamente na conjuntura imediata) e teóricas (mas com uma clara relação
com/inspiração na práxis); artigos baseados em estudos empíricos (mas teoricamente lastreados e
politicamente dotados de uma clara linha libertária). Não serão acolhidos trabalhos empiristas,
intervenções politicamente ambíguas (isto é, não claramente libertárias) ou reflexões teóricas
herméticas e desconectadas da práxis.

• Direto da luta: entrevistas com/falas de lutadoras e lutadores que animem movimentos sociais
emancipatórios, relatando experiências e expectativas. Os depoimentos não precisam ser
necessariamente de militantes que se definam explicitamente enquanto libertários. Porém, tampouco
se trata de colher depoimentos daqueles que cultivem valores político-filosóficos e/ou vínculos
organizacionais (partidos políticos e organizações verticais em geral) incompatíveis com a
identidade libertária. Os textos devem ter, no máximo, 8.000 palavras.

• Encontro com os clássicos: trabalhos de autores clássicos em sentido estrito (vale dizer, vinculados
ao anarquismo clássico) ou, eventualmente, também de autores considerados como “novos clássicos”
(a exemplo do neoanarquista Murray Bookchin ou do autonomista Cornelius Castoriadis). Contudo,
a prioridade será dada para textos de difícil acesso, por serem muito antigos e/ou por não terem,
ainda, tradução para o português. Não há limite fixo em matéria de quantidade de palavras.

• Resenhas: análises e comentários sobre artigos e livros que versem sobre temas de interesse para o
pensamento e a práxis libertários. Os textos das resenhas não devem ultrapassar 3.000 palavras.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 117


Orientação para publicações

Os textos devem ser digitados em formato Microsoft Word, com espaçamento 1,5 entre as linhas,
fonte Times New Roman tamanho 14 e sem recuos e espaçamento de parágrafos. No total de páginas, devem
ser computadas tabelas, figuras e referências ou bibliografia.
Todos os textos podem ser enviados para o endereço eletrônico
revistaterritorioautonomo@gmail.com, sem o(s) nome(s) do(s) autor(es), acompanhados de uma página
(arquivo separado) em que conste o seguinte: nome(s) do(s) autor(es), filiação acadêmica ou vínculo com
movimentos sociais, data de elaboração do artigo e endereço para correspondência (postal e eletrônico).
Os artigos não necessitam de resumo em português ou palavras-chave, mas devem,
preferencialmente (não é obrigatório), vir acompanhados de abstract e/ou resúmen expandido (cerca de 400-
500 palavras) visando a facilitar sua disseminação fora do Brasil.
As referências a autores, nos textos a serem publicados na revista, deverão ser feitas no corpo do
texto, indicando-se o sobrenome em caixa alta ou caixa alta e baixa, segundo os casos, seguido do ano de
publicação da obra. Exemplo: (CASTORIADIS, 1990), Castoriadis (1990). Havendo mais de uma obra com
o mesmo sobrenome, publicada no mesmo ano, deverão ser acrescentadas as letras do alfabeto em
minúsculo, após o ano da publicação, por ordem de citação nas referências apresentadas ao final do texto.
Exemplo: (CASTORIADIS, 1990a), (CASTORIADIS, 1990b), (CASTORIADIS, 1990c).
As citações literais de trechos de textos de outros autores, se tiverem até três linhas, devem manter-se
no corpo do texto entre aspas e, se tiverem mais de três linhas, deverão ser destacadas com recuo de 1cm de
cada lado, em fonte Times New Roman 12, sem aspas.
Expressões ou trechos de seu texto, aos quais o(a) autor(a) queira dar destaque, deverão ser escritos
em itálico. O itálico também deverá ser utilizado para as expressões em língua estrangeira. Exemplos: tout
court, a fortiori, Weltanschauung, a priori.
As figuras deverão ser encaminhadas no seu formato digital (JPG, GIF, TIF), em uma resolução
mínima de 300dpi; elas não poderão exceder o tamanho de 23 x 16 cm. Os originais devem ser enviados sem
molduras, com escala gráfica (no caso de mapas) e legendas legíveis.
As notas devem ser inseridas no rodapé da página em que forem indicadas.
As referências e citações, ao final do texto, devem seguir o modelo abaixo. É fundamental que os
nomes dos autores venham completos na bibliografia. Quando se tratar de somente dois autores, os nomes de
ambos devem ser mencionados; em se tratando de três ou mais autores, apenas o primeiro será referido. Os
títulos dos livros devem vir destacados em itálico; não é necessário pôr em itálico os subtítulos e os títulos de
capítulos específicos e de artigos. É necessário indicar as páginas inicial e final dos artigos. Exemplos:

CASTORIADIS, Cornelius e COHN-BENDIT, Daniel (1981 [1981]): Da ecologia à autonomia. São Paulo:
Brasiliense.

Revista Território Autônomo | nº 1 | Primavera de 2012 118


Orientação para publicações

BOOKCHIN, Murray et al. (1991 [1989-1990]): Defending the Earth. A Debate Between Murray Bookchin
and Dave Foreman. Montreal e Nova Iorque: Black Rose Books.

KROPOTKIN, Piotr (1987 [1887]): As prisões. In: Kropotkin: textos escolhidos [seleção de Maurício
Tragtenberg]. Porto Alegre: L&PM.

RECLUS, Élisée (1864): L’Homme et la Nature: De l’action humaine sur la géographie physique. Revue des
Deux Mondes, vol. 54, pp. 762-771.

Será responsabilidade do(a) autor(a) a correção ortográfica e sintática do texto. Nos casos em que o
Coletivo Editorial indicar a necessidade de revisão, o(a) autor(a) precisará atender à solicitação e,
posteriormente, submeter o texto para nova apreciação.
A avaliação dos textos será realizada por dois membros do Coletivo Editorial. Nas situações em que
não houver consenso no parecer, a arbitragem será decidida por meio de um terceiro membro do Coletivo.
Eventualmente, em casos especialmente polêmicos, será feita consulta a todos os seus membros. No processo
de seleção, consideram-se três situações: texto aceito sem restrições; texto aceito com sugestões de
modificação; texto recusado. Os trabalhos, após modificados pelos autores, serão encaminhados aos mesmos
pareceristas que avaliaram a primeira versão.
A revista Território Autônomo opera em regime de copyleft. Não são pagos direitos autorais, e os
textos podem ser reproduzidos livremente sem quaisquer ônus, bastando citar a fonte.

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