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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 70-78, jan./jun.

2010

ESTRUTURAS CLÍNICAS:
TEXTOS QUESTÕES PRELIMINARES1

Eda Estevanell Tavares 2


Maria Lúcia Muller Stein3
Otávio Augusto Winck Nunes 4

Resumo: O artigo trata do desenvolvimento da história da loucura e do conceito


de estruturas clínicas na psicanálise.
Palavras-chave: história da loucura, estruturas clínicas, psicanálise.

CLINICAL STRUCTURES: PRELIMINARY QUESTIONS

Abstract: This article is about the development of the history of insanity and the
concept of clinical structures in psychoanalysis.
Keywords: history of insanity, clinical structures, psychoanalysis.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas freudianas, realizadas em
Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Especialista em Psicologia
Clínica com formação em Problemas do desenvolvimento e da adolescência pelo Centro Lydia
Coriat. E-mail: edatavares@gmail.com
3
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia Social
e Institucional/UFRGS. E-mail: mlpm@terra.com.br
4
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia do
desenvolvimento/ UFRGS; Mestre em Psicopatologia e Psicanálise/ Universidade Paris 7. E-mail:
otaviown@terra.com.br
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70
Estruturas clínicas...

O intuito deste texto é destacar alguns elementos do que vem sendo


discutido em relação ao que chamamos de estruturas psíquicas, na psica-
nálise, em seu desdobramento histórico, mas também, a incidência que eles
exerceram na construção da própria psicanálise. Sabemos que, ao longo da
história da humanidade, a maneira como os homens interpretaram a perda da
razão, ou seja, as manifestações psíquicas que fugiam do funcionamento consi-
derado normal, não se agrupou em torno de uma mesma voz. Na verdade,
tampouco podemos afirmar que atualmente assim o faça.
Na Grécia antiga (Bonfim, 2009), os “perturbados” eram considerados
mensageiros dos deuses, portadores de saber divino, ocupando assim um lugar
socialmente viável e necessário como intermediários entre os homens e seus
deuses. Já na Idade Média, imersa no temor da peste e da morte, regida por
crendices e superstições, estabeleceu-se a ideia de que, para o cristão devoto,
saúde e salvação fossem valores intrínsecos ao homem. Os “perturbados” eram
condenados à fogueira sem apelação, a única terapêutica e saída era arder no
fogo. Seguiam sendo seres possuídos, mas o mestre era outro, não eram mais
os deuses, e, sim, o demônio.
Na Renascença encontraremos duas formas diferentes de abordar os
“loucos ou perturbados”. De início, o antropocentrismo faz com que a loucura
seja interpretada como uma força da natureza, representando o inumano, da
qual advirão “as verdades do mundo”. Trata-se do terror e da atração que a
loucura exerce sobre os homens. Num segundo período, com o predomínio da
razão acompanhando o avançar do Renascimento, a loucura deixa de ser repre-
sentante das forças da natureza e passa a ser concebida como o reverso da
razão. De força divina e força da natureza, a loucura adquire então caráter moral:
o louco começa a ser visto como um ser moralmente desqualificado: avaro,
preguiçoso, indolente.
A imagem na capa desta Revista se enquadra na vertente do segundo
período. Baseou-se na tela A extração da pedra da loucura, de Hieronymus van
Aeken, conhecido como Bosch (obra do acervo do Museu do Prado, Madri,
Espanha). Trata-se de um óleo sobre tela, de 48x35 cm. Ou seja, um pequeno
quadro, mas que, sem sombra de dúvidas, remete a questões fundamentais em
torno do tema do psiquismo, pois, em seus traços, encontramos elementos
importantes relativos ao tratamento, às terapêuticas e às posições subjetivas.
Os personagens, ilustrados satiricamente, expressam uma situação represen-
tativa do tema que desenvolvemos, tanto pela perspectiva histórica (pois
contextualiza uma época) quanto pela psicanalítica, na medida em que a ironia
presente no quadro não deixa de ser uma bela interpretação da loucura. A ilus-
tração, por sinal, já foi reproduzida em diferentes situações, o que só reafirma o
momento de lúcida inspiração do autor.
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Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes

A extração da pedra da loucura, quadro de Bosch, pintado entre 1475 e


1480, retrata o que seria a operação cirúrgica realizada na Idade Média, em que
se retirava uma “pedra” da cabeça do paciente, à qual se atribuía a causa da
loucura. O pseudocirurgião que ali figura, em vez do barrete, usa um funil, sím-
bolo da estupidez, e o que extrai é na realidade uma tulipa (nos Países Baixos
da Europa essa flor é utilizada como metáfora para a loucura) e não a famigerada
pedra.
Outro elemento importante no quadro aparece pendurado na cintura do
pseudocirurgião: um saco onde guarda seu dinheiro, fruto de seu trabalho. Ou seja,
Bosch aproveita o tom satírico que predominava nas produções artísticas do Norte
europeu para ilustrar como a louc ura era tratada: havia os que por ela se interessa-
vam; e havia, também, os que dela se utilizavam de modo um tanto peculiar.
Bosch pontua, assim, o engodo existente entre aquele que ilude por parecer deter
o saber e aquele que acredita na sua técnica. Isso faz mais de 500 anos; contudo,
ainda hoje o panorama da doença psíquica permanece envolto em uma série de
situações que são, por assim dizer, satíricas. E não há mérito algum nisso.
Na referida ilustração, não poderiam faltar os representantes do cristianis-
mo; afinal, na Idade Média, a presença da religião era uma constante na interpre-
tação dos fatos cotidianos. A presença do frade e da freira – ela, com um livro
ferrado acima da cabeça; ele, com um cântaro de vinho na mão – seria uma alegoria
do lugar de ignorância e insensatez, o qual se começava a atribuir ao clero.
Em torno do quadro, uma frase escrita em latim diz: Mestre, extrai-me a
pedra, meu nome é Lubber Das. Frase que resume bem a posição de cada um,
o mestre e seu discípulo. Lubber Das era um personagem satírico da literatura
holandesa que representava a estupidez e o homem simples e humilde. E ain-
da, na série de elementos do quadro, ao que tudo indica, o nome Lubber Das
pode ser traduzido por “baixinho castrado” (Luaces, 2008), por mais incrível que
possa parecer. O certo é que não sabemos a que castração Bosch estava se
referindo, se a relativa ao saber, à altura do paciente, à ausência de razão, ou
ainda, à própria castração. Não importa. É no mínimo curiosa a referência à
palavra ou ao significante que, na psicanálise, tomou relevância tão especial.
O formato circular da cena, alusivo a um espelho, mostra o olho do louco
dirigido ao observador, parecendo devolver ao mundo, aquele que olha o quadro,
sua própria estupidez, ao esperar a cura dessa maneira absurda.
Na vertente, então, que tomamos, é interessante lembrar que as expres-
sões “louco de pedra” ou “doido de pedra” poderiam ter sua origem nessa prática
medieval, tendo se transformado em expressão coloquial com as práticas em
hospitais psiquiátricos, pelo uso excessivo de remédios. Eram tantos os com-
primidos administrados que acabaram sendo chamados de “pedras”. Vale lem-
brar, também, que a palavra “pedra” tomou na psicanálise pelo menos dois sen-
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Estruturas clínicas...

tidos. Freud, em seu texto A história do movimento psicanalítico disse que “a


teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da
psicanálise” (Freud, [1914] 1977, p. 26). Ou seja, o ponto de apoio, o que esta-
biliza as produções psíquicas, o recalque, é a pedra no meio de um caminho
que alude à neurose. Mas, referiu-se ao complexo de castração como a rocha,
por deslocamento metonímico, pedra dura da psicanálise. Aqui, a pedra é a
metáfora do limite; o ponto que não se poderia transpor. Nos dois exemplos,
podemos ver que algo do real já estava presente na psicanálise, como metáfora
da flagrante dureza que é o trato com o inconsciente.
No século XVII (Bonfim, 2009), o moralismo recrudesce, e os “desrazo-
nados” passam à exclusão absoluta. O controle social cresce e todos os desva-
lidos socialmente são relegados aos asilos criados especialmente para receber
os loucos, os libertinos, os inválidos, os mendigos... Como sabemos, tais asi-
los tinham o único caráter de depósito, de afastar os desviantes, os excluídos
da sociedade, sem nenhuma proposta terapêutica.
Com o passar dos tempos, esses “depósitos” de párias passam a enviá-
los de volta aos lares, restando apenas os que se constituíam em ameaça, os
loucos. É no final do século XVIII, com os ideais da Revolução Francesa, que
surge Philippe Pinel e seu “tratamento moral sem correntes” (Bonfim, 2009).
Esses asilos passam a ter caráter médico, não mais apenas de tratamento
moral, e a loucura passa a ser vista como doença. Na verdade, a existência, a
compreensão de doença, do ponto de vista psicológico, começa a existir ape-
nas no século XIX. Segundo Fernandes:

É a alma que sofre, a mente precisa ser tratada, o louco passa a


ser encarado como um ser em conflito com sua própria desordem.
A corrente alienista, tendo como expoente Pinel, na França e Tuke,
na Inglaterra, retomam as práticas médicas do século XVII, acres-
centando-lhe um novo caráter, trata-se de conhecê-la para dominá-
la. Os médicos são os ‘possuidores da razão’, podendo legislar
sobre os sujeitos despossuídos da mesma, surgindo então a psi-
quiatria com a função ambígua de tratar o louco e defender a soci-
edade do mesmo. Ao louco é suprimido o valor de sua fala
(Fernandes, 2009, s/p).

É com esse contexto que o jovem Freud depara-se após sua formação
em medicina. Inicialmente, o encontro com Breuer o leva a aproximar-se de
jovens mulheres histéricas. Desse encontro, uma nova definição é atribuída à
histeria, não mais em seu estatuto médico-místico, pois, ao escutá-las, Freud,
atribuiu vital importância às falas dessas pacientes.
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Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes

Não muito tempo depois, em 1895, um novo encontro e talvez mais defi-
nitivo na vida de Freud: em viagem de estudos a Paris, conhece Charcot, que,
com seu estilo teatral, diagnostica a histeria como uma verdadeira enfermidade, ao
invés do refúgio de doenças imaginárias (Gay, 1989). Charcot era um artista, segun-
do ele próprio, un visuel, ou seja, aquele que vê, denotando assim, a importância
que dava à prática. Essa característica causou tanto impacto no jovem Freud que,
ao escrever o obituário de Charcot, registra uma das máximas de seu mestre: La
théorie, c´est bon, mas ça n´empêche pas d´exister! (Charcot apud Gay, 1989, p.
62). Ou seja, teoria é bom; mas isso não impede as coisas de existirem. O que,
sem dúvida, é uma máxima que não podemos esquecer e, talvez, um estímulo para
que continuemos a debater os problemas que o nosso trabalho apresenta.
Bem sabemos que, deste acento dado por Charcot ao ver, Freud tira as
devidas consequências, produzindo um giro fundamental para a psicanálise ain-
da em gestação: da ênfase dada ao ver, Freud desliza para o escutar (Rickes,
2002). Freud rapidamente aprendeu com Charcot que a ciência, no que tange ao
estudo dos processos psíquicos, substituiria a terminologia religiosa e obscu-
rantista da Idade Média. Mas Freud vai além; constrói a psicanálise, provocando
um giro a mais no eixo que representava o espírito da época: o privilégio da
razão perde força com a emergência do inconsciente e da sexualidade como os
pontos fundamentais da subjetividade.
A princípio, Freud irá tomar o termo neurose, já consagrado, para definir a
doença psíquica das histéricas. Segundo Elizabeth Roudinesco (1998), o termo
“neurose” foi inventado por William Cullen, na metade do século XVIII. Nesse
momento, o olhar clínico se renovava com a dissecação de cadáveres e o olhar
direto para as doenças, em suas manifestações anatomofisiológicas. Assim, o
termo “neurose” surgia para designar as doenças para as quais a medicina não
encontrava nenhuma explicação orgânica.
Phillipe Pinel retomou o termo, o qual um século mais tarde seria popula-
rizado por Jean Martin Charcot ao fazer da histeria uma doença que atinge a
função de um órgão, sem afetar o órgão propriamente dito, ou seja, uma neuro-
se. Mas foi com seu discípulo, Pierre Janet, que influenciaria os clínicos france-
ses, que a neurose tornou-se a doença da personalidade, caracterizada por
conflitos psíquicos.
Freud, após sua temporada com Charcot, também definiu a histeria como
uma neurose, mas a diferenciou das concepções de Janet, desvinculando-a da
presumida origem uterina e atribuindo-lhe etiologia sexual e enraizamento no
inconsciente. Com os Estudos sobre a histeria (Freud, [1895] 1977), a histeria
passa a ser o protótipo da neurose para o discurso psicanalítico. Como bem
sabemos, de início era uma doença nervosa causada por um trauma psíquico: a
sedução. Com o abandono da teoria da sedução, em 1897, a neurose passa a
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Estruturas clínicas...

ser um conflito psíquico inconsciente, de origem infantil e causa sexual. A neu-


rose seria fruto de um mecanismo de defesa contra a angústia e da formação de
compromisso entre essa defesa e a possível realização de um desejo.
Com o surgimento da psicanálise, aspectos da vida psíquica que não
eram considerados pela ciência médica da época foram tomados como mani-
festações cruciais para entender o psiquismo por Freud:

Uma série de fenômenos de nossa vida psíquica adquiria sentido:


os atos falhos, os esquecimentos, os sonhos. O inconsciente im-
punha-se como um outro componente do nosso psiquismo – tal
como a dinâmica libidinal (Bosseur apud Fernandes, 2009, s/p.).

Mais do que isso, ao tomarmos os grandes textos desse início das for-
mulações psicanalíticas, A interpretação dos sonhos (Freud, [1900] 1977) e
Psicopatologia da vida cotidiana (Freud, [1901] 1977), por exemplo, percebe-
mos a genialidade de Freud ao interpretar fenômenos comuns a todos os ho-
mens. Sonhar é uma experiência universal e normal, assim como cometer lap-
sos de linguagem, esquecimentos, etc. Ou seja, os processos inconscientes
são universais e, portanto, a lógica cartesiana de domínio do eu coeso, uno, já
não é mais possível. É aí que as ideias psicanalíticas começam a desalojar o
homem de sua morada. “Todos” os homens, “desrazonados” ou não.
Foi então que, ao se lançar na aventura de escutar suas pacientes histé-
ricas, Freud viu-se impelido a desenvolver um campo conceitual para elaborar
aquilo que experienciava em sua clínica. E assim, como aponta Rickes (2002),
se tecem os primórdios da relação teoria-prática no campo da psicanálise, de-
monstrando que o fazer clínico é fundamentalmente um lugar de investigação.
Investigação que traz em si facetas muito peculiares, como, por exemplo, o fato
de que podemos em psicanálise desenvolver uma série de operadores conceituais
que nos permitem construir generalizações teóricas. Porém, quando transpo-
mos essas generalizações para o campo da intervenção propriamente dita, há a
necessidade de relativizá-las, levando-se em conta a singularidade da situação
clínica à qual são convocadas, a da transferência.
Freud, partindo dos estudos sobre a histeria, classificou os fenômenos
de defesa decorrentes do Édipo (fobia, histeria e obsessões) como neuroses; e
as problemáticas narcísicas pré-edípicas, como psicoses.
Ainda seguindo Roudinesco (1998), Freud ([1905] 1977) viria a introduzir
uma terceira categoria, a perversão, quando, em 1905, nos Três ensaios sobre
a teoria da sexualidade, ele define a neurose como o “negativo da perversão”, por
considerá-la a manifestação bruta e não recalcada da sexualidade. Assim, a
neurose é o resultado de um conflito com recalque; a psicose, da reconstrução
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Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes

da realidade alucinatória; e a perversão, da denegação da castração, com uma


fixação na sexualidade infantil.
Essa classificação freudiana das estruturas clínicas foi questionada nos
anos 50 do século passado, principalmente por Donald Winnicott e Heinz Kohut
com as questões sobre o self e a noção de borderline (Roudinesco, 1998).
Essas proposições, mesmo que importantes historicamente, não tiveram força
suficiente para enfraquecer as considerações freudianas. Embora gozem de
certo prestígio, ao propor uma resposta endereçada a quadros diagnósticos de
difícil apreensão.
Entretanto, se a neurose fazia parte da prática e do vocabulário da psica-
nálise, a psicose era, a princípio, ligada ao saber psiquiátrico e aos manicômi-
os. Freud, mesmo não se dedicando ao atendimento de psicóticos, escreveu
um texto fundamental a partir do qual rompeu o abismo, entre a norma e a
patologia, até então considerado intransponível, abrindo mão de qualquer pre-
tensão nosográfica: o caso Schreber (Freud, [1911] 1977).
Mas foi Jacques Lacan ([1936] 1987) que se dispôs a indagar a psicose a
partir da prática com pacientes. Já desde sua tese de doutorado, Da psicose
paranoica e sua relação com a personalidade, a contribuição de Lacan ([1936]
1987) para a psicanálise passa a ser fundamental. Em sua releitura da obra de
Freud, serve-se dele, para enfatizar aspectos cruciais sobre as psicoses. Freud
situou na fala o lugar privilegiado para as manifestações do inconsciente; Lacan
([1955-1956] 1983), utilizando-se da linguística e do aporte freudiano, foi mais
incisivo, dizendo que é na linguagem que podemos encontrar os fenômenos
necessários para diferenciar as neuroses da psicose. Os registros delimitados
por Lacan do real, do simbólico e do imaginário, mostram-se necessários e
suficientes à compreensão das estruturas psíquicas.
Portanto, se aparentemente o campo da neurose já se encontrava bem
definido, o campo da psicose teve forte impulso com o ensino lacaniano. O
enunciado lacaniano “o analista não deve recuar frente à psicose”, mais do que
prescrição a ser seguida, parece ter sido o caminho seguido por Lacan, resulta-
do do trabalho intenso de muitos anos com a psicose, utilizando-se dos concei-
tos psicanalíticos para dar sustentação a uma prática. Então, Lacan ([1955-1956]
1983), no seminário As psicoses, retoma elementos já presentes no seu trabalho,
acrescentando novos e avançando na delimitação desse campo, ao introduzir os
conceitos nome-do-pai, forclusão parcial do significante primordial, e os registros
real, simbólico e imaginário. É claro que muitos desses pontos de seu ensino,
relativos à psicose, estavam engatinhando e precisariam de mais duas décadas
para com seus Seminários, dos anos 70, ganharem corpo. Assim, é com os
Seminários RSI (Lacan, [1974-1975] s/d) e O sinthoma (Lacan, [1975-1976]
2009) que o autor circunscreve de maneira mais rigorosa o campo da psicose.
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Estruturas clínicas...

Então, palavras impostas, neologismos, frases interrompidas, não será


nesses fenômenos de linguagem que Lacan irá buscar os pontos necessários
para fundamentar as estruturas psíquicas? Se estamos frente a invariantes da
linguagem, não bastarão os fenômenos classicamente aludidos à psicose, como
os delírios, as alucinações ou a perda da noção da realidade para caracterizá-la.
Tais fenômenos podem estar presentes nas neuroses. Então, o que nos resta é
escutar o paciente, escutar sua palavra, escutar sua estrutura subjetiva desdo-
brando-se na transferência. Que outras intervenções, tal como a medicamentosa,
sejam utilizadas para conduzir a cura no tratamento da psicose, não tornam a
intervenção psicanalítica prescindível, uma vez que essa é relativa à palavra.
Uma crítica comum feita à psicanálise lacaniana refere-se ao entendi-
mento de uma possível rigidez, quando se fala em estrutura, ou seja, utilizar-se
das concepções do estruturalismo francês para sustentar sua posição. Mas o
que tal crítica esquece é que esse não foi senão seu ponto de partida para
estabelecer uma concepção bastante inovadora: a estrutura psíquica se cons-
trói em torno de um buraco, em torno de um vazio, e isso é o que separa,
distancia, a psicanálise do estruturalismo propriamente dito. Não há a aplicação
pura e simples de uma concepção à outra. Na psicanálise, os elementos da
linguagem se organizam em torno de um buraco, de uma falta.
Apesar de lançar mão das ideias estruturalistas, pensar na lógica do
inconsciente não significa afirmar a coincidência exata entre esta e a estrutura da
linguagem. O sujeito é falado pela linguagem, cuja lógica se vale do sujeito para
que ele se pronuncie, articulando um ponto de enunciação. É isso o que Lacan
sustenta ao longo de sua obra, ao indicar que há pontos invariantes no psiquismo.
Esses pontos são ligados de diferentes maneiras, como o antigo brinquedo de
revistas infantis, em que um desenho se revela ao se ligar e entrecruzar determi-
nados pontos. O desenho já estava lá, mas precisava ser revelado, um traço de
união entre eles se fazia necessário para então mostrar o que não aparecia. Com
a psicanálise, dizemos: para escutar o que estava silenciado.
Mas, como lembrava Lúcia Mees 5, será que ainda referendaríamos a in-
fluência do estruturalismo? Haveria numa mudança de posição a consonância
com uma cultura em que nada é permanente? As novas manifestações sintomá-
ticas do sujeito contemporâneo falam de uma psique totalmente mutável ou se
manteriam certas invariantes estruturais? O invariante da estrutura desconsideraria
as muitas mudanças que um sujeito é capaz de realizar?

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Trabalho, não publicado, apresentado na Jornada de Abertura da APPOA - Ciúmes, Porto
Alegre, abril de 2009.
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Eda Estevanell Tavares, Maria Lucia Muller Stein e Otávio Augusto Winck Nunes

Ao tomarmos o estudo do seminário das Psicoses (Lacan, [1955-1956]


1983), ou As estruturas freudianas das psicoses, como texto base para o eixo
de trabalho do ano de 2009, na verdade interrogamos muito mais do que a
categoria das psicoses. Os trabalhos aqui apresentados demonstram exata-
mente isto. Versam sobre questões atuais da clínica psicanalítica, sobre nos-
sos impasses teóricos, nossas dificuldades, mas também apontam para novas
reflexões e possíveis desdobramentos. E assim, nos valendo da herança freudiana
de permitir circular a palavra, de fazer emergir novos significantes, seguimos
nossa via associativa. E também nossa vida associativa.

REFERÊNCIAS
BONFIM, Renata. A construção de uma nova clínica em saúde mental. Disponível
em: <http://www.letraefel.blogspot.com> Acesso em: 14 set. 2009.
FERNANDES, Daniel Augusto. Sem título. Disponível em: <http:// www.geocites.com
> Acesso em: 14 set. 2009.
FREUD, S. Estudos sobre a histeria [1893-1895]. In:_____. Obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1977, v. II.
_____. A interpretação dos sonhos [1900]. In:_____. Obras completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, v. IV.
_____. Psicopatologia da vida cotidiana [1901]. In:_____. Obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, v. VII, p. 123-252.
_____. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In:_____. Obras comple-
tas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, v.VII, p. 123-252.
_____. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(Dementia Paranoides) [1911]. In: _____. Obras completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago Editora, 1977, v. XII, p. 15-108.
_____. A história do movimento psicanalítico. [1914]. In: _____. Obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977, v. XIV, p. 13-82.
GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LACAN, Jacques. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade
[1936]. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
_____. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
______. R.S.I. [1974-1975]. Editions de l’Association Lacanienne International. Pu-
blicação não comercial. _____. O seminário, livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
LUACES, Joaquim Yarza. Guia de sala: El Bosco y la pintura flamenca del siglo XV.
Madri: Fundación Amigos del Museo del Prado, 2008.
RICKES, Simone Moschen. No operar das fronteiras, a emergência da função autor.
2002. 179f. Tese (Doutorado em Educação, Faculdade de Educação, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul). Porto Alegre. 2002.
ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.
Recebido em 09/08/2010
Aceito em 11/09/2010
Revisado por Valéria Rilho
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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 79-86, jan./jun. 2010

TEXTOS
QUANDO O NOME
DO PAI NÃO VEM1

Maria Ângela Bulhões 2

Resumo: Este texto apresenta o recorte de um caso clínico que dialoga com a
teoria, na perspectiva de abordar os dois pontos que a autora considera centrais
na discussão: a dialética na clínica e a parcialidade do delírio.
Palavras-chave: dialética, delírio, parcialidade, significante.

WHEN THE NAME OF THE FATHER DOESN´T COME

Abstract: This paper presents the outline of a clinical case which dialogues with
the theory, in the perspective of approaching two points considered by the author
central to the discussion: the dialectic in the clinic and the partiality of delirium.
Keywords: dialectics, delirium, partiality, significant.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas freudianas, realizadas em
Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Psicóloga do ambulatório do HPSP; Supervisora da residência
integrada em saúde mental coletiva. E-mail: mabul@terra.com.br
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79
Maria Ângela Bulhões

A leitura do seminário As psicose (Lacan, [1955-56]1985) fez parte do eixo de


estudo desse ano (2009) em nossa Instituição. A escrita deste trabalho foi
realizada a partir de nosso estudo e ficou centrada em dois pontos: a dimensão
dialética do sujeito e a parcialidade do delírio.

O primeiro ponto: a dialética


Lacan no referido seminário, ainda em seu início, diz:

Em suma, precisamente por sempre ter radicalmente desconheci-


do, na fenomenologia da experiência patológica, a dimensão
dialética, é que a clínica se perdeu (Lacan, [1955-56] 1985, p. 32).

Essa afirmação merece ser destacada, já que ela fornece elementos im-
portantes para nossa reflexão. Devemos reconhecer a dialética como própria da
condição humana, da condição de sujeito, e considerar a contradição inerente
ao humano como possibilidade de recolocar em questão, a cada instante, o
desejo, o afeto e mesmo a significação mais estável de uma vida. Existe, por-
tanto, a constante possibilidade de inversão de signo em função da totalidade
dialética. O sim e o não concomitantes, em estado de tensão dialética, são,
assim, expressão da divisão do sujeito. O Nome do Pai, significante da falta do
Outro, será o que abre a possibilidade do movimento dialético, viabilizando a
emergência do sujeito. A falta simbólica produz a mobilidade necessária para o
lançamento à equivocidade enigmática do significante.
Nesse seminário, Lacan nos propõe que o diagnóstico de psicose seja
definido a partir da forma como o sujeito se apresenta articulado à linguagem, já
que é no eixo com o Outro que se apresentam as distorções.
Na falta do significante Nome do Pai, que vem ocupar o lugar em substi-
tuição do significante do desejo da mãe, a lógica simbólica se organiza diferen-
temente e, com ela, a realidade psíquica do sujeito. Cessa o movimento da
cadeia significante. Sua interrupção lança o sujeito no vazio da significação,
causando assim uma inundação imaginária:

O que é o fenômeno psicótico? É a emergência, na realidade, de


uma significação enorme que não se parece com nada – e isso na
medida em que não se pode ligá-lo a nada, já que ela jamais entrou
no sistema de simbolização – mas que pode, em certas condições
ameaçar todo edifício (Lacan, [1955-56] 1985, p. 102).

Ficamos receosos frente ao diagnóstico de psicose? Parece que esse


diagnóstico indica sempre a ameaça de todo edifício?
80
Quando o nome do pai não vem

O segundo ponto: a parcialidade


Ainda no mesmo seminário, Lacan relata a apresentação da paciente
que o deixou em dificuldades, ao mostrar-se “sã de espírito” (p. 49), no limite do
que poderia ser percebido clinicamente como um delírio. Sua entrevista levou
bem mais tempo do que a média de outras apresentações, pois demorou para
que ela apresentasse sua forma especial de discordância com a linguagem
comum, seu neologismo galopiner (p. 42), e, assim, se mostrasse uma deliran-
te. Nesse caso, ele supõe que estariam lidando com o que chamariam clinica-
mente de delírio parcial, já que tal paciente apresenta o que é designado, no
jargão, de parte sã da personalidade. Nos Escritos, em seu texto De uma ques-
tão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan afirma:

(...) que a relação com o outro como semelhante é perfeitamente


compatível com a relação fora-do-eixo com o grande Outro e com
tudo o que ela comporta de anomalia radical, qualificada na velha
clínica, impropriamente, mas não sem uma certa força de aborda-
gem, de delírio parcial (Lacan, [1966] 1995, p. 580).

Nessa citação encontramos elementos que indicam o reconhecimento


da existência da parcialidade na condição do delírio, da parcialidade do naufrá-
gio acontecido na vida psíquica do paciente, e a condição do paciente de man-
ter-se na via de relação com seus semelhantes.
Pode parecer surpreendente para muitos que um paciente psicótico pos-
sa mostrar-se inteligível, coerente e, acima de tudo, convincente. Entretanto,
essa situação não é incomum e exige que o diagnóstico seja realizado a partir
da escuta da posição do sujeito na linguagem. Sempre haverá pelo menos um
ponto, quando nosso paciente se apresentará preso e tentará insistentemente
se objetivar; ponto em que a dialética encontrar-se-á perdida. Esse ponto pode
servir como bússola em nossa orientação clínica diagnóstica.
A seguir, relato um caso atendido no ambulatório de um hospital público,
na perspectiva de costurar os dois pontos que estou considerando relevantes
para a discussão clínica: a dialética na constituição do sujeito e a parcialidade
na condição do delírio na psicose.

Relato do caso
K. foi encaminhada para tratamento no Ambulatório Especializado em
Saúde Mental com o diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático,
após ter sido acompanhada por certo tempo, pela psicóloga da Unidade Básica.
No ambulatório, foi avaliada pela psiquiatria e encaminhada para minha avalia-
ção.
81
Maria Ângela Bulhões

K. era casada e tinha uma filha, de um relacionamento anterior, que mo-


rava com seus pais. K. trabalhava no comércio de doces e salgados do pai até
o ano em que o estabelecimento foi assaltado. O pai de K. foi baleado e ficou
alguns meses no hospital, mas conseguiu se restabelecer e voltou a trabalhar.
Durante os meses em que o pai esteve no hospital, K. ficou fechada em casa,
período no qual ouvia vozes, gritos dispersos, e risadas (como se rissem dela).
Comenta sobre o sentimento de culpa de não ter podido evitar o que aconteceu.
Aquele Homem3 atirou no pai dela e saiu devagar, como se não tivesse feito
nada. Ela veio de trás da loja e ainda o viu, sendo também, vista pelo assaltante.
Começou a fazer uso de medicação e ter acompanhamento na Unidade
Básica de Saúde, mas mantinha a convicção de que aquele Homem que ela vira
no assalto viria atrás dela para matá-la. Não queria sair de casa, não conseguia
ir até a loja do pai, não podia estar em local com muita gente, tinha sempre
medo daquele Homem. Entrava em pânico quando imaginava-se em situação de
risco.
K. era exímia cozinheira (todos lembram os doces e salgados que ela
fazia), mas, após o assalto, ela apagou completamente de sua cabeça todo
esse saber, não lembrando mais nem que sabia cozinhar.
Nesse período, K. engravidou, mas somente percebeu quando já estava
com quatro meses de gravidez (não planejava ter filhos com o marido, o qual já
tinha um filho de relacionamento anterior). Sua filha nasceu e precisou ficar
algum tempo mais no hospital, por motivo de saúde, ocasião em que K. não
saiu da porta da maternidade, porque o Homem viria roubá-la. Durante o primeiro
mês e meio do bebê, passava a noite toda olhando para que ele não se afogas-
se. Somente quando o médico lhe disse que ela tinha que dormir é que transfe-
riu parcialmente a guarda noturna para seu marido. Quando o bebê estava com
nove meses, seu marido saiu de casa por causa de um relacionamento com
outra pessoa. Novamente K. começou a ouvir a voz do Homem, ameaçando-a,
não queria sair de casa e acabou tomando medicação em excesso, o que a
levou a uma internação psiquiátrica. Após alguns meses de separação, o mari-
do retornou para casa propondo reconciliação.
Pouco tempo depois do regresso do marido, K. é encaminhada para o
Ambulatório e chega para o atendimento comigo. Fiz duas entrevistas de avali-

3
Utilizamos a palavra “Homem”, com letra maiúscula, pois se encontra na série de representan-
tes do Outro não barrado.
82
Quando o nome do pai não vem

ação e saí de férias. No meu retorno, o residente da psiquiatria contou-me que a


filha menor de K. sofrera um acidente e ela (minha paciente) estava bem mal.
Ouvia vozes que a culpavam pelo acidente, mesmo sabendo que não estava
com a filha no momento em que essa se machucou. Naquele momento, eu e o
residente da psiquiatria cuidamos dela, para que ela pudesse acompanhar a
filha no hospital, já que queria muito poder ficar com a menina. Foi um tempo de
suporte químico e emocional.
Nesse momento, é possível perceber que não tomo K. apenas pela situ-
ação do estresse traumático, busco em sua história de vida elementos que
possam dar consistência ao que vinha lhe acontecendo. Ela me conta sobre
seu pai e como o considera seu alicerce de vida, um verdadeiro homem bom,
que sempre demonstrou muito afeto pelos filhos. A mãe é apresentada como
uma mulher que deseja que suas filhas façam somente o que ela quer, não
aceita ser contrariada de forma alguma. K. afirma que a mãe nunca considerou
o valor de suas filhas e sempre mostrou predileção pelos filhos. A partir do
momento em que elas cresceram, passou a denegrir a imagem delas. Ela não
entende esse comportamento da mãe. A história da mãe de K. é repleta de
segredos de família, mas, K. sabe que a mãe foi criada no bordel de sua avó e
que seu pai (avô) abusou sexualmente dos filhos (tendo sido preso). K. não tem
certeza se sua mãe sofreu abuso. Mas conta sobre o comportamento de abuso
de sua mãe sobre os filhos. A mãe de K. proibia os filhos de contarem para o pai
quando ela batia neles e, se algum deles desobedecesse, no dia seguinte apa-
nhava ainda mais.
A mãe desautoriza completamente a maternidade de K. e insiste para
que K. entregue sua filha (menor) para o irmão, que não tem filhos (não pode
ter), alegando que esta não tem condições de ser mãe. Considera que a filha
está brincando de casinha e não pode querer criar uma filha. A filha mais velha
de K. foi criada na casa da avó. Elas moram em casas vizinhas.
Após esse pequeno recorte da história de K., proponho algumas conside-
rações a respeito do caso. Desde o início do tratamento, K. convocou-nos no
4 . A Mãe, que desfaz insistente-
trabalho transferencial ao barramento da Mãe
mente dela, torna-se a ameaça exposta na queda do pai (assalto). Essa, que vai
atrás dela constantemente para dizer-lhe o quanto ela não vale nada, se torna a
perseguição no voto de morte. Como nos diz Antonio Quinet: “O ódio do Outro

4
A palavra “Mãe”, com letra maiúscula, apresenta-se na condição de Outro não
barrado.
83
Maria Ângela Bulhões

da paranoia se manifesta aqui como perseguição do seu olhar vigilante e crítico”


(Quinet, 2002, p. 221). Sem a proteção, é melhor morrer, como vimos na tenta-
tiva de suicídio, na ausência do marido. Marido que faz concretamente o antepa-
ro nessa relação de K. com sua mãe. Ele cuida para manter K. distante da mãe.
Essa proteção concreta acaba sendo necessária, já que K. está presa no
tempo, permanece na cena do pai baleado no chão. O pai está morto? Isso se
tornou questão. O simbólico falseou o nome do pai, não veio em seu socorro,
como sair dali? A dialética está ameaçada e o sentido é unívoco: aquele Homem
quer a sua morte. A culpa do que aconteceu com seu pai e com sua filha menor
é sua, pois não soube cuidar deles e protegê-los. K. traz consigo esse pensa-
mento e, mesmo quando os fatos contradizem a sua versão, a contradição não
possui força. Ela busca anteparos de proteção, mas, a cada situação de
fragilização na sua condição de sujeito, a ameaça de morte reaparece. K. morre
de medo.
A transmissão da lei ficou interrompida e K. vive o apagamento do saber,
na incapacidade de lembrar-se. Como fazia os doces e salgados para a padaria
do pai? Não adiantou tentar usar suas antigas receitas, pois, essas não valida-
ram seu saber, fazia tudo de olho e as transformava. Ana Costa, em seu seminá-
rio Clinicando, nos lembra que inventamos com nosso sintoma:

O sintoma é isso: para psicanalistas, não é algo ruim, é um supor-


te do sujeito. As pessoas vêm procurar o analista quando seu sin-
toma fracassa (Costa, 2008, p. 26).

K. não consegue mais inventar, essa liberdade foi perdida. A medida do


olhar deixou de ser parcial tornando-se um grande olho.
Desde o início, K. vive o alívio produzido pelos anteparos à invasão de um
Outro não barrado, função exercida pelos que estão a sua volta, bem como pela
equipe de saúde que a atende. A desautorização em relação ao discurso de
desvalia e a interrogação sobre as invasões que a mãe realiza em sua vida
acabaram ampliando sua margem de movimento. Esse movimento lentamente
trabalha para uma mudança de posição, deixando-a mais livre do olhar do Outro
não barrado. Tal transformação lhe possibilitaria ocupar a posição de ser aquela
que poderia dar as costas para o passado, para a Mãe, para o Homem, sem o
medo da violência.
O olhar, nesse caso, ocupa um lugar de destaque. K. não conseguia
pegar o ônibus porque sentia todos olhando para ela, e tinha medo de encontrar
o olhar do Homem e da morte. Quinet (2002) considera que o delírio é uma
tentativa de enquadramento do gozo pela constituição de um Outro que o con-
tém. No caso do delírio de observação, trata-se de um Outro que goza escopica-
84
Quando o nome do pai não vem

mente do sujeito. Quem olha? A mãe? O Homem que abusou da sua mãe (avô)
e barrou a transmissão do nome? O Homem que ameaçou a vida de seu pai?
São todos representações do Mesmo, a partir do momento em que foi perdida a
dialética significante?
Quando o pai estava em casa, a mãe não batia em ninguém. Somente
apanhavam quando o pai não via. Ninguém podia contar. O abuso do avô, o
abuso da mãe, o que não pôde ser contado, falado? O escondido (segredos de
família) retorna retumbante através das vozes, da risada, das ameaças, enfim,
no gozo proibido e mortal.
K. ainda mantém o medo, mas, no seu dia a dia, consegue ocupar-se da
condição de mãe, esposa, dona de casa, ainda que não consiga sentir-se segu-
ra para fazer como fazia antes. Não conseguiu voltar ao trabalho, e cozinhar
ainda mantém-se como um insabido. Poderíamos dizer que ela encontrou uma
falha no alicerce, mas que esta não ameaçou o edifício inteiro?
Ouso dizer que o que desencadeou sua psicose foi produto do acaso de
um acontecimento da vida (o assalto) ligado aos elementos determinantes da
história pessoal. A cena do assalto cristalizou no momento em que repetiu ele-
mentos importantes da história familiar e apresentou o tecido rompido na falha
da amarragem simbólica. O trânsito significante ficou parcialmente interrompido
quando o sexo e a morte se encontraram naquele Homem. Aquele Homem
tornou-se signo de morte.
A aposta clínica é de que o movimento dialético possa ser retomado e o
significante e significado se estabilizem; a certeza da morte podendo dar lugar
às dúvidas e às contradições inerentes à vida e o mundo voltando a ser um lugar
seguro para transitar.
Para concluir, volto ao título que escolhi: Quando o nome do pai não vem.
Esse título destaca a dimensão do movimento dos acontecimentos da vida, os
encontros e desencontros, que podem se suceder. Quando o nome do pai não
vem? O que pode vir no seu lugar? Não é sempre a essa pergunta que fica
remetida a clínica? Quando essa resposta surge no Real estamos frente a uma
condição psicótica. O encontro com o psicanalista pode, a partir de sua escuta
e posição transferencial privilegiada, abrir espaço para o agenciamento de
significantes que participem de uma reinvenção do sujeito ou mesmo da criação
deste. Ana Costa assim precisa:

É quando o significante se situa no mesmo registro de produzir um


nome – que se situa como objeto simbólico – no lugar de um furo
real, ou seja, de possibilitar algo de uma nomeação desse furo
(Costa, 2008, p. 59).

85
Maria Ângela Bulhões

Trabalhamos para que o sujeito possa encontrar alguma forma de incluir


em sua cadeia significante o que até ali se apresentou como signo. Portanto
trabalhamos na perspectiva de criar bordas no Real.

REFERÊNCIAS
COSTA, Ana. Clinicando: escritas da clínica psicanalítica. Porto Alegre: APPOA, 2008.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose.
In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 537-590.
QUINET, Antonio. Um Olhar a mais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

Recebido em 12/09/2010
Aceito em 20/10/2010
Revisado por Deborah Nagel Pinho

86
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 87-94, jan./jun. 2010

TEXTOS
A PSICOSE, SEU
T R A TA M E N T O ,S E U S L IM IT E S 1

Adão Luiz Lopes da Costa2

Resumo: O texto trata da busca de totalização do saber na constituição


paranoica da psicose como modo de eludir a castração, propondo o corte do
nó borromeano como maneira de intervir em tal organização.
Palavras-chave: paranoia, psicose, castração, corte, nó borromeano.

PSYCHOSIS, IT’S TREATMENT, IT’S LIMITS

Abstract: The text deals with the search for totalization of knowledge in the
paranoid constitution of psychosis as a means of eluding castration, proposing
the cut of the Borromean knot as a manner of intervention in such an organization.
Keywords: paranoia, psychosis, castration, cut, borromean knot.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas, realizadas em
Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Médico; Psiquiatra; Psicanalista; Membro da APPOA; Diretor da Hybris – Clínica de Psicanálise
e Psiquiatria. E-mail: allcosta@terra.com.br
87
87
Adão Luiz Lopes da Costa

Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e
as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores
diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça para o total.
Guimarães Rosa, Grande sertão, veredas

E m março de 2003, eu e a colega Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack escre


vemos para o Correio da APPOA um artigo que chamamos A psicose, seu
trabalho, seus limites (Costa; Sudbrack, 2003). Hoje, falo em A psicose, seu
tratamento.
A psicose ou as psicoses? Tem aparecido, ultimamente, certa tendência,
diríamos mesmo a predominância de determinados diagnósticos que não
correspondem ao quadro clínico dos pacientes:

Tanto na CID quanto na DSM, embora sejam listados os critérios


diagnósticos para cada categoria nosológica, não há uma preocu-
pação em se definir precisamente os sinais e sintomas nem em se
explicar como eles devem ser reconhecidos na prática (Cheniaux,
2005, p. 158).

Na verdade, tudo isso importa pouco e, talvez, inclusive importe pouco


também a ideia de estrutura. Porque “se o nó de três, qualquer que ele seja, é
de fato o suporte de toda espécie de sujeito” (Lacan, 2007, p. 52), resta-nos,
isto sim, a pergunta de como interrogá-lo. “Como interrogá-lo de modo que se
trate efetivamente de um sujeito?” (Lacan, 2007, p. 52). Ao interrogá-lo, vamos
nos deparar com a questão do gozo. E é isso o que vale mesmo, é que há só
uma maneira de gozar para cada sujeito. A singularidade da psicanálise ou da
estrutura é que para cada sujeito há um gozo.
A psicose é indiscreta. Indiscreta, remete à condição lógica que diz que:
“não distingue os objetos, não há diferença”. E deixa algo aberto para se fazer
ver, para mostrar com facilidade os desafinamentos, as distonias, os sintomas
das equipes que com ela se ocupam. Mostra também os paradoxos e as incon-
sistências das melhores e piores teorias, dos grandes e pequenos livros. Lacan
([1954-1955] 1985) chega a dizer no seminário O eu na teoria de Freud e na
técnica da psicanálise, “que a literatura analítica constitui, de certa maneira, um
delírio ready-made [...]” (p. 307).
A psicose segue sendo um grande desafio aos pesquisadores e aos
e(x)(s)pertos. Dada sua gravidade, é justificável a enorme variedade de aborda-
gens para a sua terapêutica. É justificável todo investimento, libidinal ou ortopé-
dico, emprestado que seja, ao que falta ao doente. Por exemplo, os remédios
88
A psicose, seu tratamento...

podem curar os sintomas de alguns; mas muitas pessoas seguem o seu curso
de doente mental. Em princípio, tudo vale! Porém, muitos desses recursos cus-
tam caro. E não é raro o doente chegar ao psicanalista já empobrecido. Tanto
sem recursos materiais quantos são os sintomas negativos. Devemos falar tam-
bém nos psicóticos restituídos, organizados em delírios paranoicos e
reivindicatórios terríveis. Talvez essa seja a pior das sequelas para a organiza-
ção social. Penso, no momento atual, se a psicose é tratável ou até mesmo se
deve ser tratada. E se for estrutural à condição do falante, deve ser modificada?
Mas, seguindo a leitura da obra de Lacan, a ideia que decanta é que o
que deve ser tratado é o paranoico da psicose. Isso seria pensar a paranoia
como um saber, um querer saber, a necessidade de ter todas as informações, o
insuportável que é o não saber, o insuportável do saber do outro, a necessidade
de controlar todo o saber, a busca do saber total, a busca da “consciência
cósmica”.
Amamos o saber. O psicótico ama seu delírio, já afirmava Freud ([1895]
1977). O saber, as informações, tanto alucinatórias como interpretativas, são
recolhidas pelo psicótico como um saber que irá sustentar o delírio. O saber e o
delírio se unem no gozo. O saber é paranoico e busca a totalização, busca o
gozo pleno.
As instituições sociais também se organizam no sentido de manter essa
totalização do saber e o fazem pelas mais variadas formas de sabatinas e de
exames. O chamado DNA empresarial3 explicita isso, ao querer preservar as
ideias do fundador. O saber como intocável é uma coisa interessante na organi-
zação social. O intocável do saber é preservá-lo em sua originalidade, sem
modificações, como se ele fosse uma verdadeira estrutura genética nuclear.
Porque o saber não deixa de ser ameaçador, necessitando, portanto, de contro-
le.
Schreber queria uma geração schrebiana. Diria que não são raras as
incursões na esfera social para preservar o DNA de ideias, produzindo gerações
inteiras das mesmas ideias, como se isso fosse hereditário e, portanto, natural.

3
É a forma de gestão de uma empresa, o que define sua cultura e comportamento. Através do
DNA podemos perceber o que circula no “sangue” da mesma, o que se expressa na “pele” e
rege sua sobrevivência. Pelo DNA, podemos estabelecer a identidade da empresa e para isso
precisamos reconhecer quais são seus valores. No entanto, temos de levar em conta que os
valores das pessoas que trabalham na empresa são totalmente diferentes dos valores de seus
diretores, gestores. O DNA vem pra identificar isso, pra dar uma identidade e para que se possa
ajudar o colaborador a se envolver e se comprometer com esta organização.
89
Adão Luiz Lopes da Costa

A mestria ideal do saber é o domínio do corpo. Vai desde o corpo biológi-


co ao corpo social, político, psíquico, etc. Em relação ao corpo biológico, essa
necessidade é tão imperativa que inclusive psicanalistas prescrevem técnicas
que objetivam esse domínio do corpo. A humanidade produz conhecimentos e
treinamentos visando ao domínio do corpo. Porque, por outro lado, a suposta
perda de controle sobre o corpo gera pânicos terríveis. Temos na psicose, por
exemplo, a chamada despersonalização, que é uma fase inicial da doença e
altamente angustiante.
A visada do saber total aponta para o totalitarismo; e os regimes políti-
cos, tanto mais autoritários forem, mais precisam controlar o saber, e tanto
mais paranoicos serão.
O saber pode produzir doenças, transformar-se em psicose? Na esfera
social, sabemos os malefícios produzidos por aqueles que, volta e meia, se
ungem mestres up to date. Isto é, nada é mais terrível do que o apoderar-se do
saber pelo poder. E quando um novo saber vem ao mundo, ele pode produzir
enlouquecimentos? Certamente, quando aponta ao verdadeiro (Lacan, [1972-
1973] 1985).
O saber, como campo do simbólico, constituído pelo significante, na for-
mulação de Ferdinand de Saussure (1986), é uma linha, desenvolve-se no tem-
po e representa uma extensão. Portanto o significante é uma linha temporal,
forma uma cadeia, uma reta. E uma reta estendida no tempo procura a totalização,
fechando-se no infinito.
No seminário As psicoses ([1955-1956] 1985), estudado no cartelão da
APPOA ao longo do ano de 2009, Lacan trabalha as estruturas freudianas da
psicose no campo da fala e da linguagem. Isso possibilita pensar além das
bases biológicas da psicose, tão decantadas por alguns leitores de Freud.
Um dos conceitos propostos por Lacan é a forclusão do nome-do-pai,
que lhe permitiu apresentar o registro do real. Ao apresentar a fala e a linguagem
em seus registros imaginário, simbólico e real, Lacan rompe a reta infinita do
significante saussuriano em segmentos de reta que, paralelas e estendidas ao
infinito, vão encontrar-se num único ponto. Nessa segmentação da reta ele faz
habitar os três registros da fala. E os apresenta pela via do significante. Isso é
uma grande contribuição para a abordagem da psicose, como veremos a seguir.
A ex-pulsão dos registros topológicos da linguagem, o jogar ao lixo os
lugares topológicos constitutivos do sujeito, permite a construção da suposição
de totalidade e do delírio totalitário, da ideia de um saber absoluto fechado na
última palavra. Constata-se, no controle clínico, que o totalitarismo do saber
nem sempre permite a todos poderem ascender à crise psicótica. Há paranoias
que permanecem sem crise, não deixando, porém, de se sustentar em sua
busca do total.
90
A psicose, seu tratamento...

Então, será que o tipo de tratamento dado ao doente paranoico pode ser
sem consequências? Será que é possível a última palavra (uma vez que a última
palavra vai fechar a reta) criadora de um tratamento padrão, seja ele qual for,
para a psicose? São questões que surgem frente ao desafio da psicose.
Na psicose não há hiância no discurso; por mais quebrado, rompido e
desagregado que seja, mostra-se maciço, duro, impenetrável, solidamente ins-
talado na sua certeza. Essa certeza pode ser persecutória, de grandeza ou, a
pior de todas, que muitas vezes permanece sub-reptícia, a certeza reivindicatória.
Isso gera uma reta infinita, imperativamente instalada sobre a exigência de fe-
char-se sobre si mesma. A reivindicação de reconhecimento pode dar a ilusão
imaginária de êxito dessa boa forma. E essa reivindicação pode alçar, ainda,
êxitos de violências, de agressões e de espoliações das famílias.
A solidez do discurso, instalada na macicez do S1S2 toma a cadeia
significante primitiva em massa e não produz sujeito. Não há ligação, não há
bindung entre a dupla significante. É o que parece dar o caráter imperativo da
alucinação. O saber que retorna no real o faz como um saber sem sujeito,
deixando o alucinado louco, à procura do sujeito que lhe fala; e no primeiro que
ele encontra, ele bate. Bate, porque as alucinações são injuriantes. Há, tam-
bém, nesse discurso maciço, muita proximidade com a psicossomática, que
alguns chamam de loucura do corpo, pois nela, o saber advém do corpo. O
corpo também está afetado na psicose.
A busca da totalização do saber empurra para construções espirituais e
filosóficas, empurra para uma condição em que o corpo fica fora e ao mesmo
tempo é afetado. Há quem busque livrar-se do que chamam “a prisão do corpo”.
Em casos graves, o corpo fica abandonado. O investimento volta-se para o men-
tal, podendo chegar até à ideia da chamada “consciência cósmica”,
A totalização é delirante, e é o que garante sua posição sexual no delírio,
porque a incompletude o empurra obrigatoriamente para a mulher e para o ho-
mossexual. Aí temos, como mostra clássica, os delírios de feminizar-se de
Schreber, conforme escrevi no artigo Feminino à Masculino: Acesso ao gozo.
Por que Tirésias não é Schreber? (Costa, 2005).
Esse saber cristaliza-se em significações maciças, duras, impenetrá-
veis, totalizantes. Essa significação implica certamente que ele não possa re-
cusar-se a ela (Lacan, [1964] 1979, p. 239). Atentem para o Luder de Schreber:
significação irrecusável.
O saber que retorna sem sujeito, retorna dando esta significação irrecusável
e sempre injuriante. Alguém escuta uma voz que fala: “Tu és bom”! Ele tem que
responder, tem que pensar algo, e essa resposta será obrigatoriamente também
injuriante. Terá que responder. Assim lhe ocorre dizer: “Tu és bom, bom no u”.
Responde, para completar a frase, mas obrigatoriamente sob forma de injúria.
91
Adão Luiz Lopes da Costa

Uma pessoa pode receber tratamento psiquiátrico e ainda permanecer in-


ternada por vários anos sem melhoras. Lembro de uma situação dessas, na qual
encontrei uma pessoa sem delírios organizados porque a medicação os esbatia,
mas completamente desagregada e sob a angústia de alucinações. Sua fala era
um bloco maciço de palavras ininteligíveis. Acabava por impor à própria linguagem
um tipo de quebra, de decomposição, que fazia com que não houvesse mais
“identidade fonatória”, ao modo que Lacan ([1975-1976] 2007, p. 93) se refere a
James Joyce. Parecia falar uma língua estrangeira, que eu não sabia. Língua
essa, impenetrável e intraduzível. Essa pessoa não escrevia muito, mas desenha-
va pilhas de A4. Pergunta-se: Esse desenhar é arte? Essa arte é sublimação?
Se, por um lado, a arte é um artifício, podendo burlar o que se impõe do
sintoma, isto é, a verdade; por outro, é uma garantia fálica. Frente ao buraco da
forclusão do nome-do-pai, a significação fálica também não se apresenta, não é
eficaz, não responde a contento. Garantias fálicas podem ajudar, mesmo que
de modo ortopédico, como tentativas de produzir alguma significação fálica,
mas não o nome-do-pai.
É sublimação? Podemos cogitar, na situação em questão, que a decom-
posição da linguagem faz com que as palavras tornem-se coisas e sejam ex-
pressas como tais. No caso, os desenhos inclusos no campo de seu sintoma
dizem respeito à função paterna recusada, que se apresenta pelo concreto,
enquanto coisa. Aqui a palavra é coisa. Ou a coisa é a palavra.
Lacan ensina no seminário O sintoma que:

Sem dúvida, há aí uma reflexão no nível da escrita. É por intermé-


dio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a
saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo
saber se é caso de se livrar do parasita roteirista [...] ou, ao contrá-
rio, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente
fonêmica da fala, pela polifonia da fala ([1975-1976] 2007, p. 93).

Vemos aí como a fala, em decorrência de alguma coisa que lhe é impos-


ta, sofre este desmantelamento, essa quebradura até não ser mais que uma
linha desenhada, como no caso do paciente do A4.
Noutros momentos, encontro pessoas que vêm com um delírio constitu-
ído, um saber organizado, porém também impenetrável e imodificável. Às vezes
isso redunda em delírios de reivindicação, com ameaças efetivas.
Nem o esbatimento do delírio, nem a constituição do delírio liberam o
doente de sua certeza retilínea, maciça e impenetrável, de sua necessidade
imperativa de totalização. É do efeito afanísico do saber é do que o sujeito tem
que se liberar (Lacan, [1964] 1979).
92
A psicose, seu tratamento...

É preciso romper essa linha dura, impenetrável e constituinte da paranoia.


É preciso pensar o significante em seus registros e tomá-lo como segmentos
de linha. E tratar de coser cada segmento ao modo lacaniano do significante
morder sua cauda. Ou fechar o fecho, conforme o circuito pulsional (id, ibid., p.
169).
Vou relatar alguns pequenos trechos de situações nas quais ocorre esse
corte da reta. São exemplos breves do processo que opera sobre essa linha
dura e impenetrável que constitui a paranoia. Trata-se do ato de cortá-la, o (des)ato.
O corte é o que permite ao sujeito gozar de outra maneira, mudar seu sintoma,
fazer da linha dura um nó que lhe permita apoiar-se nas leis da diferença dos
registros da linguagem, o que pela totalização busca apagar a diferença.
Determinado casal sustentava um atrito na medida em que um ia diaria-
mente ter sua aula de esportes, enquanto o outro perguntava: “Quando é que tu
vais largar este cara?”, referindo-se ao professor de esportes. O um reclamava
que o tratamento que o partenaire fazia não dava resultados. Ao que eu pergun-
tei-lhe: “Quando é que ela vai largar este cara?”, referindo-me ao terapeuta. Aí
estavam as demandas, em seus circuitos repetitivos. Eu troquei a cena da de-
manda, fechando o fecho.
Outro exemplo vem de um momento em que determinado palestrante
falava sobre a americanização, quando alguém perguntou: “Quando é que você
vai largar este cigarro?”. Esta pergunta propiciou que se rompesse o fio do dis-
curso do palestrante. O significante inscreveu-se em dois lugares. O mesmo
significante (“quando é que você vai”) inscreveu-se em largar este cigarro e em
americanizar-se.
Outra palestrante falava sobre a sexualidade feminina, quando começou
a explicar a necessidade de mulheres conservarem o filho-falo e os malefícios
disso. Nesse momento, ela perdeu o fio e não sabia mais o que estava falando.
Precisou de algum tempo para re-amarrar-se.
E ainda a pessoa, que apresentei em sua angústia alucinada e
desagregada, após um período de cortes sucessivos, ao modo dos exemplos
acima referidos, nessa reta infinita de certezas alucinatórias desagregadas, diz:
“Agora estou reaprendendo a falar”.
Considerando a paranoia em sua busca de totalização do saber, talvez os
tipos de tratamentos dados à psicose não sejam sem consequências sociais.
Como escreve Guimarães Rosa (2005), onde vai dar isso de aumentar a cabeça
para o total? Que infinito é esse? Será linha dura?
O fato é que, em qualquer abordagem terapêutica dos transtornos men-
tais, se não houver algo relativo à queda do objeto a, fica-se, isso sim, no limite
da linha dura, do biológico, do controle e da reivindicação. É questionável a
possibilidade de constituição do sujeito. Mas certamente está no campo do
93
Adão Luiz Lopes da Costa

possível o corte do nó borromeano, fazendo cair o objeto. Então, se houver


objetoa, haverá sujeito. Há que esvaziar os objetos positivados, as significa-
ções irrecusáveis e as relações com o saber. Trata-se de trabalhar no fio
significante e não nas significações.
Existem muitos tratamentos disponíveis para a doença mental. Podemos
dizer que são conhecimentos que estão ao alcance do estudioso: literatura,
cursos, oficinas, palestras, etc. e tal. Mas o que dificulta e interessa é a clínica,
a elaboração transferencial e a direção do tratamento, que não estão na literatu-
ra ao modo da ciência.
Existirá, no entanto, um tratamento padrão? Será possível ter-se o último
grito, ao modo da última palavra que se reserva o bom paranoico?

REFERÊNCIAS
CHENIAUX E. Síndrome de De Clèrambault: uma revisão bibliográfica. Revista Bra-
sileira de Psiquiatria da Associação Brasileira de Psiquiatria. v. 27, n. 2, jun. 2005.
COSTA, A. L. L.; SUDBRACK, M. A. P. A psicose, seu trabalho, seus limites. Correio da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre – As psicoses. Porto Alegre n°. 111, p. 36-
37, ano IX, mar. 2003.
COSTA, A. L. L. Feminino ? masculino: acesso ao gozo. Por que Tirésias não é
Schreber? Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – A masculinidade.
Porto Alegre, n. 28, p.93-98, abr. 2005.
FREUD, S. Rascunho H – Paranóia. In. _____Obras completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Editora Imago, 1977. v. 1. p. 283–291.
LACAN, J. O seminário: livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise
[1954-1955]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
______. O seminário: livro 3: As psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor; 1985.
______. O seminário: livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979.
______. O seminário: livro 23: O sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
SAUSSURE, F. Curso de lingüística general. Buenos Aires: Editorial Losada, 1986.

Recebido em 17/09/2010
Aceito em 10/10/2010
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

94
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 95-103, jan./jun. 2010

TEXTOS
“UM GÊMEO
CHEIO DE DELÍRIO”1
Gerson Smiech Pinho2

Resumo: O presente artigo trata da relação entre irmãos e as particularidades


desta, quando ela se dá entre irmãos gêmeos. Além disso, a partir dessa ques-
tão inicial, aborda o tema da constituição do eu e discute um caso clínico.
Palavras-chave: irmãos, gêmeos, duplo, constituição do eu.

“A TWIN FULL OF DELIRIUM”

Abstract: The present article treats about the relation between brothers and its
particularities, when it happens between twins. Beyond that, from this initial
question, addresses the issue of the constitution of the ego and discusses a
clinical case.
Keywords: brothers, twins, double, constitution of the ego.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas, realizadas em
Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista,Membro da APPOA,Membro do Centro Lydia Coriat,Mestre em Psicoligia Social e
Institucional(UFRGS). E-mail gersonmiech@gmail.com
95
95
Gerson Smiech Pinho

Natividade não tirava os olhos dela,


como se quisesse lê-la por dentro.
E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar
se os meninos tinham brigado antes de nascer.
— Brigado?
— Brigado, sim, senhora.
— Antes de nascer?
— Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado
no ventre de sua mãe; não se lembra?
Machado de Assis, Esaú e Jacó

N as páginas iniciais de Esaú e Jacó(Assis,1998) um dos últimos romances


de Machado de Assis, encontramos o diálogo acima, em que Natividade
consulta uma adivinha, a Cabocla do Castelo, para saber a respeito do futuro de
seus dois filhos gêmeos, de um ano de idade. Na sequência da narrativa, acom-
panhamos a história de Pedro e Paulo, os dois irmãos cuja rivalidade e oposi-
ção, pressentidas pela Cabocla, estarão presentes durante todo tempo.
A relação entre irmãos é um dos espaços em que se inaugura a presença
e a função do semelhante na vida de um sujeito. Por ele, transitam o ciúme e a
rivalidade, bem como se estabelecem as primeiras ligações do “eu” com um
“outro” e os primórdios do laço social.
Poderíamos pensar em alguma particularidade quando essa relação se
dá entre irmãos gêmeos? Neste trabalho, proponho tomar essa questão para, a
partir dela, pensar sobre a relação fraterna em geral e sobre a estrutura do eu.
Meu interesse por esse tema partiu do tratamento de um paciente, do qual trarei
alguns fragmentos clínicos.

I
Iniciei com a citação de Esaú e Jacó, pois penso que os gêmeos protagonis-
tas do romance de Machado exemplificam algumas questões interessantes para
começar esta discussão. Ao longo da narrativa, um traço que é bastante evidente
na relação desses dois irmãos é a permanente oposição entre eles. Como bem
assinalara a Cabocla do Castelo, tal divergência remonta à vida intrauterina.
Pedro e Paulo são, ao mesmo tempo, idênticos e opostos. Divergem em
tudo na vida e manifestam modos de ser diametralmente contrários. Pedro estu-
dou Medicina no Rio de Janeiro. Paulo estudou Direito em São Paulo. Pedro é
dissimulado e conservador. Paulo é agressivo, impulsivo e impetuoso. Pedro é
monarquista e prefere que tudo permaneça como está. Paulo é republicano e
está permanentemente insatisfeito com a situação, querendo mudanças cons-
tantemente.
96
“Um gêmeo cheio de delírio”

A diferença entre Pedro e Paulo pode ser pensada a partir de uma forma
muito específica de negação, presente na relação de alguns irmãos gêmeos,
assinalada por Bergès e Balbo (1997). Ao invés de corresponder a uma oposi-
ção entre dois termos, sugere, ao contrário, sua equivalência.
Por exemplo, quando dizemos que “Paulo é agressivo e Pedro não é”,
sempre se trata de que “um não é e o outro é”. Jamais se faz referência a um
sem que o outro seja também mencionado, pois um equivale ao outro. Haveria
no outro aquilo que falta, negando, dessa forma, que isso faltaria, como se
ambos compusessem uma totalidade. Fica instituída, assim, uma oposição
que é complementar e que não inscreve diferença. Há uma complementação
recíproca entre os gêmeos, fazendo com que o par, em seu conjunto, configure
uma unidade. São “dois” que fazem “um”.
Como sublinha Costa, ao comentar o texto de Machado de Assis,

o que se expressa é essa soldagem do ‘dois’, definindo-se mutua-


mente por contrastes. Nesse sentido, cada um não se define se-
não a partir do outro (Costa, 2008, p. 28).

No romance de Machado, essa questão é muito bem ilustrada pela pai-


xão insolúvel que se desenrola entre a personagem Flora e os gêmeos, o que
inclusive acaba levando-a à morte. Não é que Flora ame a Pedro “ou” ame a
Paulo. Ela ama a Pedro “e” Paulo. Não pode amar a cada um deles em separa-
do, mas somente o conjunto, como se a existência de um sem o outro não
fizesse sentido. O amor da moça pelos dois atinge o extremo, quando chega a
alucinar que os gêmeos fundem-se em uma só figura.
A paixão de Flora indica o quanto Paulo e Pedro são complementares,
compondo uma totalidade em que um é o avesso do outro, como uma imagem
de espelho que aparece invertida. Tal oposição ilustra de modo caricatural a
forma de negação típica de algumas situações entre irmãos gêmeos, como foi
assinalado anteriormente.
É também possível afirmar que Pedro e Paulo compõem um “duplo” no
interior da narrativa, ou seja, personagens que se assemelham em diversos
detalhes e se apresentam como duplicação, como réplica um do outro.
Detenhamo-nos neste conceito pois, a partir dele, seguiremos o desdobramen-
to de nosso problema.
Ao abordar o tema do “duplo”, Rank ([1914] 1976) enumera as diversas
configurações que este pode assumir em uma obra literária: como reflexo do
espelho, imagem da sombra ou de um retrato, os quais passam a se comportar
como uma entidade independente, que se diferencia do eu; como uma pessoa
real, que se assemelha a outro personagem e cruza com ele, como no caso dos
97
Gerson Smiech Pinho

gêmeos do romance de Machado de Assis; ou, ainda, enquanto representação


de estados psíquicos opostos em um mesmo sujeito, separados pela amnésia,
como dupla consciência.
Apesar de assumir formas tão distintas, alguns motivos se repetem de
modo sistemático nas aparições do duplo. Entre eles, destaca-se a constância
com que surge, como obstáculo a seu protótipo, fazendo verdadeira oposição
em relação a ele.
Em seu texto sobre “O estranho” ([1919] 1980), Freud propõe que o duplo
se origina no terreno do amor próprio ilimitado do narcisismo primário. Segundo
ele, a duplicação do eu representa uma defesa contra sua destruição, uma
tentativa de negação do poder da morte. Nessa direção, a alma imortal seria o
primeiro duplo do corpo, preservando-o de seu desaparecimento.
Penso que essa dimensão narcísica do duplo pode ser melhor esclarecida
a partir de alguns elementos trabalhados por Freud em seu texto sobre A nega-
tiva ([1925] 1980). Nesse artigo, fala da distinção e da origem de duas formas de
julgamento – o juízo de atribuição, que permite definir a posse ou não de deter-
minado atributo, e o juízo de existência, que constata ou contesta a existência
de uma representação na realidade.
Freud remete o surgimento do juízo de atribuição à delimitação inicial de
um fora e de um dentro, a partir de um “eu-prazer”. Ou seja, tudo aquilo que é
considerado bom é introjetado, colocado para dentro e considerado como per-
tencente ao eu. De modo contrário, tudo o que se julga ruim é expelido, cuspido
para fora, considerado estranho e exterior ao eu. Nessa polarização, movida
pelo princípio do prazer, se constrói a distinção entre os atributos pertencentes
ao eu e aqueles considerados como estranhos a ele.
Penso que a construção do duplo está fundada em uma lógica semelhan-
te à descrita por Freud nesse texto. A duplicação do eu permite que uma série
de representações sejam “escoadas” para sua réplica, atributos desse “eu-es-
tranho”, o que permite o resguardo da castração e a manutenção da coesão e
do investimento narcísicos. Essa estrutura explica o motivo pelo qual o duplo,
depositário dos aspectos desprazerosos, adquire esse caráter de oposição em
relação ao “eu”.
Além disso, esse artigo de Freud nos ensina que o eu está fundado em
uma divisão inicial, uma cisão tão originária quanto mítica.
Nesse ponto, remeto ao título dado a este trabalho. A expressão “Um
gêmeo cheio de delírio” está presente em uma passagem do seminário As psi-
coses ([1955-56]1988), em que Lacan busca retomar o sentido da noção de “eu”
em seu ensino, destacando dois aspectos.
O primeiro deles é o caráter de duplicidade dessa instância psíquica.
Aqui, podemos retomar a ideia dessa cisão inicial indicada por Freud, bem
98
“Um gêmeo cheio de delírio”

como o papel da imagem do semelhante, no estádio do espelho. Como afirma


Lacan, independente do papel que se queira atribuir-lhe na economia psíquica,
“um ego nunca está totalmente só. Ele sempre comporta um estranho gêmeo, o
eu ideal” (Lacan, [1955-56] 1988, p. 168).
Aqui, me reporto novamente a Bergès e Balbo, que afirmam que “a
gemelaridade é a norma: quem não tem gêmeo ou gêmea a infringe e, de qual-
quer maneira, busca para si seu semelhante, seu par, seu duplo, ou um irmão
‘para derrubar’” (Bergès e Balbo, 1997, p. 135).
O segundo aspecto presente na expressão de Lacan diz respeito ao fato
de que, em sua função de sustentar um discurso da realidade, o eu sempre
comporta um discurso correlato, que nada tem a ver com essa realidade. Esse
discurso, de caráter delirante, é aquele da liberdade, central para o homem
moderno, e que sustenta sua ilusão de autonomia. É a partir dessas duas ideias
que Lacan afirma que não há “ego sem esse gêmeo, digamos, cheio de delírio”
(Lacan, [1955-56] 1988, p.168).
Penso que, a partir do que até aqui foi dito, podemos acrescentar ainda
outro aspecto a esse gêmeo cheio de delírio, que é o eu – o viés persecutório
com que a presença do semelhante pode se apresentar a ele, proporcional a
sua ancoragem no narcisismo. Essa representação é recorrente em muitas das
narrativas trabalhadas por Rank ([1914] 1976), em seu artigo sobre o duplo.
Para citar algumas delas: o filme O estudante de Praga de Stellan Rye, O elixir
do diabo ([1816]1824), O retrato de Dorian Gray ([1891] 2010) de Oscar Wilde e
William Wilson ([1839] 2010) de Edgar Allan Poe.
Apresento, agora, alguns fragmentos de um caso clínico, o qual, na verdade,
foi o ponto de partida para as questões que me levaram a escrever este trabalho.

II
Rafael é um adolescente de quinze anos, que morava com a mãe, um
irmão gêmeo, uma irmã mais velha e os avós maternos. Não conhecia seu pai,
o qual fizera uma passagem ocasional na vida da mãe, desaparecendo antes
mesmo de saber que ela estava grávida. Quando nasceram, os dois meninos
gêmeos foram registrados como filhos de seus avós maternos. Segundo a mãe,
em função de benefícios financeiros que o avô recebia.
A avó materna tinha papel bastante central na vida da família. Era, diga-
mos assim, quem governava o espaço doméstico, tomava decisões e direcionava
as coisas. Tinha rivalidade muito significativa com a filha, mãe de Rafael.
Desqualificava-a sistematicamente, tanto nas tarefas domésticas quanto em
sua condição materna.
Por sua vez, essa avó também tinha uma irmã gêmea, já falecida. Ambas
também haviam sido registradas como filhas de seus avós maternos. Porém,
99
Gerson Smiech Pinho

vieram a saber desse fato somente na vida adulta. Cresceram acreditando se-
rem filhas daqueles que, na verdade, eram seus avós e irmãs daquela que era
sua mãe. Aqui, encontramos um evento que se repete em duas gerações e que,
a cada vez, faz a supressão de uma faixa geracional da família.
Em certa ocasião, recebi a mãe e a avó de Rafael juntas, para uma consul-
ta. A dupla de mulheres trouxe um álbum de fotos, para me contar sobre a infân-
cia de Rafael e de seu irmão. Ao longo das páginas do álbum, havia uma sequência
de muitas fotos dos dois meninos, sempre vestidos de forma exatamente igual.
Nem a mãe, nem a avó conseguiam decidir quem era quem nas fotografias, o
que, obviamente, dava motivo a uma feroz discussão entre as duas.
Segundo elas, as roupas iguais eram uma exigência das crianças. Até o
final de sua infância, não toleravam se vestir de forma diferente. Em certa oca-
sião, ganharam sandálias iguais, porém com cores um pouco diferentes. Uma
era mais clara, a outra mais escura. Após calçarem as sandálias, os meninos
foram deixados sozinhos. Logo a seguir, quando os adultos se deram conta,
haviam trocado um pé do calçado. Assim, cada um deles estava com um pé de
uma cor e outro de outra. Imagino que quem olhasse a cena de fora, vendo-os
um diante do outro, poderia ter a impressão de um reflexo diante de um espelho.
A avó e a mãe contam que, quando crianças, Rafael e seu irmão faziam
tudo juntos. Só comiam se os dois estivessem na mesa. Só tomavam banho se
ambos estivessem embaixo do chuveiro. Os irmãos funcionavam de forma com-
plementar, em bloco, como totalidade.
O relato a respeito da infância dos dois rapazes mostra o quanto, aí,
opera a não inscrição da diferença, fazendo com que o semelhante se perca
através da imagem do idêntico. Nessa situação, a dimensão narcísica do duplo,
apontada por Freud, aparece como correlata da representação da gemelaridade
enquanto totalidade, enquanto “contestação bizarra da diferença”, na expressão
de Bergès e Balbo (1997).
A produção delirante de Rafael se desdobrava em duas vertentes. De um
lado, falava de temas religiosos; de outro, de super-heróis de programas japone-
ses de televisão.
Passada a primeira fase do tratamento, em que a agitação psicomotora
era muito intensa, proporcional a sua angústia (nessa época, boa parte das ses-
sões eram feitas caminhando pela instituição em que eu trabalhava), Rafael co-
meçou a escrever nas sessões. Escrevia muito rapidamente e de forma contínua,
sem colocar intervalos entre as palavras. Seus escritos eram compostos de pe-
quenas narrativas, que falavam dos personagens de suas construções delirantes.
Entre eles, estava Shalivan, elemento central das histórias que contava.
Shalivan é o guardião e guerreiro do espaço. Luta para salvar a Terra de diversos
vilões. Em outro planeta, tem outro nome. Lá, ele se chama Spilven. Shalivan e
100
“Um gêmeo cheio de delírio”

Spilven são o mesmo, mas com outro nome. Segundo Rafael, os dois são o
mesmo porque têm a mesma cara. Aqui, penso que o delírio construído pelo
rapaz traz elementos que tentam dar conta, pela via do discurso, de sua relação
com o irmão; como possibilidade de introduzir ali alguma significação, na forma
de uma suplência, pela via delirante.
Outros personagens com dois nomes e com a mesma cara surgiam em
sua narrativa. Por exemplo, contava que Paulo, que também era Saulo, pôde ver
por causa de um milagre de Jesus Cristo.
Shalivan tem um Santo Protetor, que o ajuda a destruir os inimigos. O
Santo Protetor lhe dá força e entra em seu corpo, o que lhe possibilita lutar com
a força do Santo, em uma espécie de fusão imaginária.
Em oposição, surgia a figura do Diabo, da qual tinha medo. Dizia em voz
baixa: “Não posso falar dele, senão me mata”. A seguir acrescenta: “Meu irmão
é o diabo” e diz, com voz de choro, “Shalivam, por favor, me protege, Shalivam”!
Fica evidente o caráter persecutório que a figura do irmão vai encarnando
no discurso de Rafael, o qual aponta para a ausência de um significante que
possa fazer corte e diferença entre eles. É interessante notar o quanto esse
aspecto persecutório, presente no delírio construído por Rafael em relação à
presença do irmão-semelhante, tem seu funcionamento calcado na estrutura
narcísica do duplo, destacada no início deste texto. É a função simbólica que
permite ao sujeito se destacar dessa ancoragem no narcisismo, com o ingresso
na dimensão da rivalidade com o outro, agora na posição de semelhante.
A esse respeito, Bergès e Balbo (1997) afirmam que “posso permitir-me
ser rival de meu outro, pois existe uma diferença, e essa diferença é até mesmo
a única aposta de nossa rivalidade. Porém, quando não há nenhuma diferença,
como no gêmeo, a rivalidade só pode ser mortal” (p.138). Esses autores acres-
centam, ainda, que “o significante, ao ser diferença absoluta, questiona a
gemelaridade” (p.135).
Para finalizar, vou trazer um pequeno relato, feito por Françoise Dolto
(1991), a respeito de dois irmãos gêmeos.
Dolto fala de dois gêmeos que nunca haviam sido separados, e que não
eram diferenciados pelas pessoas, com exceção da mãe e de um bebê nascido
depois deles, e que já os interpelava com ajuda de fonemas distintos, discrimi-
nando-os sem erro.
Um dia um dos meninos ficou gripado e não foi à escola, ficando distante
do irmão. Quando a mãe volta para casa, escuta uma súplica do filho que brin-
cava sozinho no quarto.

Ela se aproxima da porta entreaberta e vê o menino suplicar sua


imagem no espelho do armário, pegar o cavalo de madeira e subir
101
Gerson Smiech Pinho

em cima. [...]... lhe diz: ‘X (o prenome do irmão), X não quer brincar


com o cavalo’. A mãe, perturbada, entende que a criança tomou
sua imagem no espelho pela presença efetiva do irmão. Ela se
aproxima do espelho, segurando-o em seus braços, pega o cavalo
com eles e fala da imagem que o espelho dá a ver, que é a sua,
mas não é nem ela, nem o cavalo, nem o irmão ausente” (Dolto,
1991, p. 41-2).

Françoise Dolto interpreta essa cena falando da distinção entre a ima-


gem escópica, não-viva, que se dá a ver, e aquilo que denomina imagem incons-
ciente do corpo, absolutamente vital. Esta última opera para além daquilo que
se coloca a nível da aparência, delimitando um lugar próprio para o sujeito. A
imagem inconsciente do corpo tem sua simbolização viabilizada pelas palavras
dirigidas pela mãe ao menino, que assinala a diferença de seu lugar em relação
ao irmão. Concluo com este exemplo, por considerar que ele aponta em uma
direção distinta daquela que abordei ao longo deste texto.
No caso de Rafael, relatado anteriormente, encontramos a posição de
complementaridade com o irmão, em que ambos compõem uma totalidade. Ali,
o fracasso da simbolização impede o descolamento desse lugar indiferen-ciado.
Já na cena apresentada por Dolto, apesar de a criança confundir-se mo-
mentaneamente com o irmão gêmeo, a palavra materna designa uma posição
singular para cada um dos filhos, para além da semelhança entre eles. O lugar
do sujeito é delimitado pela posição desde a qual o Outro o interpela, destacan-
do-o da captura pela imagem do idêntico. Ao encontrar um significante que o
constitua em um lugar próprio, torna-se possível para o sujeito se fazer repre-
sentar no campo simbólico.
Este último exemplo mostra o quanto a palavra que o Outro dirige à crian-
ça pode situar diferença e viabilizar a constituição de um sujeito. Ou melhor, de
dois...

REFERÊNCIAS
ASSIS, Joaquim M. Machado de. Esaú e Jacó. Porto Alegre: L&PM, 1998.
BERGÈS, Jean; BALBO, Gabriel. A criança e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médi-
cas, 1997.
COSTA, Ana. Sobre Esaú e Jacó. Correio da APPOA, Porto Alegre, n. 172, p. 23-30,
set.2008.
DOLTO, Françoise; NASIO, Juan David. A criança do espelho. Porto alegre: Artes
Médicas, 1991.
FREUD, Sigmund. O estranho [1919]. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1980. v. XVII.
FREUD, Sigmund. A negativa [1925]. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro:
102
“Um gêmeo cheio de delírio”

Imago, 1980. v. XIX.


HOFFMANN, E.T.A. The devil’s elixir [1816], Edinburgh: James Ballantyne, 1824.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-56] Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1988.
POE, Edgar Allan. William Wilson [1839]. In: _____. Antologia de contos extraordiná-
rios. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2010.
RANK, Otto. El doble [1914]. Buenos Aires: Orion, 1976.
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray [1891] São Paulo: Abril, 2010.

Recebido em 03/03/2010
Aceito em 03/06/2010
Revisado por Maria Ângela Bulhões

103
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 104-114, jan./jun. 2010

UMA HISTÓRIA IMPROVISADA:


TEXTOS sexo e morte escritos em oficina1

Marieta Madeira Rodrigues 2


Paulo Gleich3
Simone Moschen Rickes 4

Resumo: O texto parte de uma história construída coletivamente em uma ofici-


na de escrita que reúne participantes em condições psíquicas bastante diver-
sas. As formas narrativas com as quais o sexo e a morte se desdobram ao
longo da referida história são concebidas como paradigmáticas dos modos que
os homens encontram para desdobrar, na linguagem, questões que, como es-
sas, tocam o Real.
Palavras-chave: oficina de escrita, sexo, morte.

AN IMPROVISED STORY:
sex and death written in workshop

Abstract: The text has its origin in a story that was collectively constructed at a
writing workshop which gathers participants with very different psychic conditions.
The narrative forms with which the subjects of sex and death are developed
throughout the story are conceived as paradigmatic of the ways people find to
deploy, in language, issues that, like these, touch the Real.
Keywords: writing workshop, sex, death.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA: Estruturas Freudianas, realizadas em
Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. E-mail:
marietamadeira@gmail.com
3
Jornalista; Graduando em psicologia/UFRGS. E-mail: p_gleich@yahoo.com
4
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Professora dos programas
de Pós-graduação em Educação e Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, ambos
da UFRGS. E-mail: cpsrickes@terra.com.br
104
104
Uma história improvisada...

Uma história improvisada


I

S er um homem não é fácil. Ser mulher também. Ser gay então, nem se fala.
Ser hétero é muito melhor. O homem deve gostar das pessoas e também
de si mesmo, não importa a opção sexual que os outros venham a ter. É bem
melhor amarmos uns aos outros. Viu como é difícil ser um homem? Lidar com
seu lado de homem macho e de vez em quando, quando ver uma boneca,
desmunhecar. São coisas, sentimentos que só um homem traz por dentro, mas
não bota pra fora.
Apolinário foi muito jovem para o seminário. Devido a isso, muitos pensa-
mentos e sentimentos que passavam por sua cabeça, sentia-se deslocado, em
certos momentos, entre ser e estar. Mas como saber o que se passa dentro
dessa ilha ambulante? Ele está profundamente analítico e dialogando profunda-
mente consigo mesmo. Ele é introvertido.
Eufrásia trabalhava numa farmácia e se encontrou com Apolinário. Con-
versaram sobre seus pensamentos e chegaram à conclusão de que os dois
eram parecidos. Um romance surgiu. A vida tornou-se rosas, perfumada e cheia
de encontros. E o amor se fez maior que a amizade. Mas o seminarista tinha
um ideal, que era se consagrar ao Senhor. Mas muito perturbada a cabeça dele
por milongas, não sei a cargo que o destino trouxe, quebrou o juramento.
Enquanto Eufrásia voltava pra casa, seus olhos pairaram sobre Lúbio,
que estava tremendo de frio num cantinho da entrada do seminário. E como se
era de esperar, não deu outra: ela o agarrou e levou para casa. Porém seus pais
eram alérgicos. Mediante aquele temporal, o cachorro, com o pelo todo arrepia-
do, exalava um odor tão fétido, inaguentável, que os pais dela entraram em
surto, tamanha a inconformidade com a nova situação. Eufrásia, não sabendo o
que fazer, lembrou da amiga Josefina, que não tem nada a ver com perna fina, e
sim de uma constante inspiração de ser moça menina. Achou que o cheiro que
exalava era a essência do amor. E aí ficou mais contentada.
Josefina se apaixonava fácil. Não teve muitos amores, e sim dissabores.
Seu primeiro amor foi Apolinário, que entrou pro seminário. Seu segundo amor
morreu em vão! De tão azarada que ela era, terminava sempre na solidão, o que
a mantinha viva era o amor pelo Lúbio. Que ordinária!
Apolinário era um amor impossível, em seu pensamento isso era muito
terrível. Transformava-se em tormento. O sonho de Josefina era namorar
Apolinário, mas ele escolheu o seminário para ficar sozinho. Depois apaixonou-
se por Eufrásia, devido às contradições dos pensamentos que tinha, não sabia
se continuava devoto ou se se entregava aos prazeres da vida. As mulheres em
volta dele se debatiam – que coisa! Então ele gostava de todas, mas não
sabia.
105
Marieta Luce Rodrigues, Simone Moschen Rickes e Paulo Gleich

II
Certa noite, Apolinário teve um sonho, que ela estava chegando toda linda
e bonita, parecia um anjinho – só faltavam as asas. Isso aí não é nada, pior é
quando a gente espia e olha para todos os lados e nada de bom acontece. Por
isso eu vou repetir sempre: ser homem não é fácil. Apolinário, recluso no semi-
nário, anotava o que sentia no seu diário. Ficava dividido entre dois amores, mas
preferiu escolher um. O problema é que ele não sabia qual escolher.
No sonho, Josefina, virada em anjo, tinha a voz de Eufrásia e dizia: “não
quero mais saber desses amores!” Mas como a sugestão de um amigo fez com
que ele se deparasse com a realidade: não estava preparado para a tristeza.
Recorreu a Deus como sacerdote e Deus mostrou-lhe a razão do bem-estar e
viver. Um amigo se expressou e disse: “você é tudo isso, Apolinário, e Deus
nunca te abandonará”. Dividido em paixões, com o espírito muito abatido, lem-
brou-se: “como fazer da minha vida uma vida conjugal reunindo ambas as coi-
sas? Saibas, Apolinário, Jesus Cristo sempre andará contigo.” Apolinário sorriu
e tudo se modificou na sua vida. Um novo começo de espiritualidade e fé torna-
va-o forte, um ser humano amoroso.
O que Apolinário não sabia é que seu amigo também estava apaixonado
por ele. “Tu sabe, eu guardo por dentro, mas não boto pra fora”, disse ele. O
amigo secreto não compartilhava das dúvidas de Apolinário; ele acreditava que o
amor era possível e não se prendia às atrapalhações divinas. Apolinário tentava
despistar, porém em seu interior não conseguia mais disfarçar sua paixão pelo
amigo secreto. Formava-se uma confusão de sentimentos e povoava seus pen-
samentos.
Apolinário bebeu um cálice de vinho, ele tinha o vício da bebida. Disse ao
amigo: “eu deixei a bebida, o ruim é que eu não sei onde. De certo está escon-
dida em algum lugar.”, e pela primeira vez tomou conhecimento do seu alcoolis-
mo. Refletiu, pensou, e foi em busca de seu sonho, com o coração quebrado,
meio amargurado, foi em busca do amor. Tudo se resolveu. A mulher modificou
o Apolinário. Olhou para o céu e agradeceu a Deus.
Continuando com o sacerdotismo meio abalado, casou-se com Cristina e
teve filhos. Três filhos queridos, sendo uma menina. Quando foi batizá-la, teve
uma surpresa: o padre era o amigo secreto. Padre Paulo olhou com carinho
para Apolinário e saiu do armário em plena igreja, de cueca na mão. Josefina, que
era madrinha, tirou a calcinha. “Viu, Apolinário? Tudo se resolveu em sua vida”. Os
fiéis ficaram constrangidos em meio a tal cena que presenciaram com Apolinário
e Josefina. Ficaram de cabeça baixa naquele exato instante. Lúbio latia. Eufrásia
chorava. O padre, de joelhos, rezava. Foi um batizado inesquecível.
Que destino poderia ter a pequena Jussara, começando com um batiza-
do desses? O padre, atrapalhado, tinha jogado água não na testa, mas nos
106
Uma história improvisada...

olhos, o que deu a Jussara o dom de ver mais que os outros. Começou uma
nova vida. Aos nove anos, teve uma ideia da missão da qual seu pai tinha que-
brado o juramento. Aí entra o milagre da profecia que o padre escolhia: acreditar
num santo sagrado, fazer dele um vestígio para que ninguém descobrisse. Sim,
pois ele ainda era um sacerdote de Deus, apesar de ter sido excomungado por
causa da cueca, que era rosa.
Roubaram a carne que era para a festa da igreja, e o padre amaldiçoou
quem a havia roubado, pois não teve festa. No outro dia, levaram-na de volta,
pedindo que o padre tirasse a maldição. Houve intromissão de Deus, e Deus
usou as pessoas para que se encontrassem satisfeitos pelo desenrolar do mila-
gre, que acabou no pecado. Apolinário se ajoelhou, se redimiu desse seu peca-
do. Clamou a Deus para que derramasse o perdão diante de sua pessoa. Em
silêncio, ficou a rezar para sentir-se purificado. Mas, em vez disso, por um raio
foi fulminado.

III
Bateu na porta e São Pedro atendeu. Apolinário disse que queria entrar e
ver Deus. “Mas não vai tirar a cueca no céu como teu amigo”, disse São Pedro.
Entrou. Lá viu as pessoas viradas em anjo, era cheio de flores e o céu, limpo.
“Pô, eu vim pro céu, que legal!” pensou Apolinário, lembrando-se de todas as
suas dúvidas e confusões. “Deus não é tão crítico assim, eu podia ter ido para o
inferno!” Aí Deus lhe perguntou: “o que você fez de tão falho, para que ocasionas-
se algo de tão confuso, sem tomar uma decisão correta?” Ele respondeu: “pen-
sei, Senhor, pensei demais!” “E por que não procurou um analista, se pensava
tanto?” Apolinário começou a rir. “Agora terminaram suas dúvidas: aqui no céu
os anjos não têm sexo!” disse Deus. “Relaxe e aproveite”.
Então Apolinário foi desfrutar as maravilhas do paraíso. Depois de três
dias, sentiu um tédio tremendo. Quis ir consultar os búzios, mas lá era proibido.
Apolinário ficou angustiado de novo e começou a atazanar todo mundo no céu.
Até que São Pedro disse: “Desce rápido e consulta os búzios, mas volta até
meia-noite! Senão as portas do céu se fecharão para sempre.”
Acordou no hospital. As pessoas em volta dele ficaram felizes ao vê-lo
reagir. “Tudo aquilo era um sonho”, pensou. Lembrou do prazo que São Pedro
lhe disse e correu pro terreiro.
Chegando ao terreiro, se assustou, porque os búzios diziam: “vai saber a
realidade”. Saiu de lá correndo. Sem saber o que os búzios lhe revelavam, ficou
com um dilema povoando seu pensamento. “Tive no céu, voltei pra terra, conver-
sei com Deus, fui no candomblé falar com o diabo: ninguém tem a resposta! O
problema tá comigo e eu é que tenho que saber das respostas. É um labirinto de
ideias e pensamentos e emoções descontroladas”.
107
Marieta Luce Rodrigues, Simone Moschen Rickes e Paulo Gleich

Sem saber mais o que fazer, resolveu colocar seus pensamentos no pa-
pel, para escrever sobre a vida dele, pra ver se era boa ou ruim. Tanto escreveu
que não viu o tempo passar. Quando se deu conta, era quase meia-noite. Escre-
ver ajudou a descobrir seu próprio caso: ele ia para o céu. Subiu, então, sendo
recebido de novo por São Pedro, e deixando a história por terminar.
Jussara, que tinha o dom da visão, encontrou a história escrita pelo pai,
que estava ao lado de seu corpo quando partiu dessa para outra, e foi para baixo
da sepultura. Jussara escreveu no computador as páginas suficientes para rela-
tar as experiências que o seu pai viveu, entre o céu e a terra, ocasionando em
um livro, que tornou-se um grande best-seller, com o qual as pessoas que anda-
vam sozinhas e com dúvidas se identificaram.
Jussara ficou sozinha. Apolinário, desse modo, ficou no céu e na terra
ao mesmo tempo, e suas dúvidas chegaram ao fim. Foi uma existência de
dúvidas.

Uma fraternidade discreta


A surpreendente e divertida história de Apolinário foi escrita a muitas mãos
na Oficina de Escrita que acontece semanalmente no Hospital Psiquiátrico São
Pedro, em Porto Alegre. A ideia de escrever uma história coletiva surgiu no
reencontro, após o curto, mas ruidoso recesso de final de ano, e antes das
longas férias de fevereiro que se anunciavam para dali a três semanas. Habitual-
mente escrevemos no mesmo momento, cada um no seu próprio caderno. Mas
desta vez, pensamos em fazer algo todos juntos – vontade de integração possi-
velmente advinda das saudades causadas pelo afastamento das festas. Assim
configurou-se uma atividade diferente, tanto por tratar-se de um texto coletivo,
quanto porque tinha a definida duração de três encontros, tempo do qual podía-
mos dispor. Desenhamos, assim, um novo contorno.
Essa não foi a única vez que percebemos a Oficina de Escrita reconfigurar-
se. O ato de fazer uns com outros que a cada semana ali acontece faz com que
o espaço seja reinventado constantemente, modificando-se. O trabalho da Ofici-
na, assim como cada um de seus participantes, é matéria maleável, que se
altera com o tempo, com os escritos, as estações do ano, com as diferentes
maneiras de fazer presença. A Oficina teve início em 2004, com um oficineiro e
cada paciente que se punha a escrever. Naquele tempo, o oficineiro precisava
voltar-se para cada um, estabelecer uma a uma a transferência de trabalho. E
cada um exigia dele atenção exclusiva. Era trabalho mesmo trabalhoso. Com o
passar dos anos, foram juntando-se a ele outros oficineiros, permitindo a abertu-
ra de possibilidades distintas de relação. Dali em diante, passaram a trabalhar
cada vez mais em grupo e menos um a um, convidando uns a ouvirem os outros,
colocando a produção de todos na roda, inclusive os escritos dos oficineiros.
108
Uma história improvisada...

Foi-se criando uma espécie de ritual, que acontece toda quarta-feira de manhã,
esteja quem estiver na sala. Toma-se um bom café, conversa-se um pouco
sobre a semana de cada um, faz-se a leitura dos textos escritos em casa (quan-
do há e quando seus escritores querem compartilhá-los), e depois pensa-se
num mote de escrita para aquele encontro.
Desde muito, algo nos intriga: a condição de pessoas tão díspares em
suas histórias, experiências e recursos simbólicos, conseguirem compartilhar
uma produção como a que aqui trazemos. Naqueles três encontros, alternando
presenças, estavam: os dois oficineiros, uma moradora do Hospital cega e anal-
fabeta; um poeta encaminhado à Oficina por um posto de saúde, cujos poemas
de amor platônico têm uma estrutura rigidamente repetida; um homem encami-
nhado pelo ambulatório do Hospital, que experimenta na Oficina dar forma escri-
ta aos pensamentos hipocondríacos que o perturbam; um cancioneiro capaz de
produzir rimas picantes, cuja diversão é incrustar na atmosfera da Oficina co-
mentários despudorados; uma moça cuja presença nos reenvia aos meandros
da primeira infância, território onde qualquer frustração é sempre um grande
obstáculo a transpor; uma anciã que, por sua trajetória recheada de histórias,
ocupa o lugar de “relíquia” do grupo e, por último, uma técnica em enfermagem
do Hospital, que procura a Oficina para exercitar e aprimorar sua escrita, à qual,
apesar da pouca escolaridade, sempre se dedicou com paixão. A esta damos a
alcunha de Ao-menos-um, lugar de dissimetria que permite nomear de forma
contundente aquele espaço como um lugar de escrita, deslocando para o fundo
os “nobres” objetivos terapêuticos. Esse era nosso time, essencialmente hete-
rogêneo, mas capaz de escrever uma única história que, em suas idas e vindas,
conta a trajetória de Apolinário, personagem atormentado pela interpelação se-
xual que experimenta um trânsito sem solução de continuidade entre a vida e a
morte.
Não nos é dado ainda estabelecer os operadores que permitem a um
encontro entre desiguais desta magnitude encerrar a condição do diálogo e da
produção coletiva. Lembramos, contudo, ao refletir sobre esse precioso aconte-
cimento, de uma tocante passagem do texto de Lacan, A agressividade em
psicanálise, no qual ele refere aquele que chega à análise como

(...) vítima comovente, evadida de alhures, inocente, que rompe


com o exílio que condena o homem moderno à mais assustadora
galé social, [é esse] que acolhemos quando el[e] vem a nós; é
para esse ser de nada que nossa tarefa cotidiana consiste em
reabrir o caminho de seu sentido, numa fraternidade discreta em
relação à qual sempre somos por demais desiguais (Lacan,
[1948]1998, p.126, grifo nosso).
109
Marieta Luce Rodrigues, Simone Moschen Rickes e Paulo Gleich

Se vocês lembram, nesse texto, Lacan percorre os meandros da


estruturação psíquica, partindo do Estádio do Espelho e da constituição do eu
ideal como formação primeira a defender o sujeito do iminente despedaçamento
corporal; partirá do especular para ir rumo ao Édipo, estrutura capaz de produzir
uma fenda nessa imagem totalizada que, quando ameaçada, encontra por parte
do sujeito resposta sempre agressiva. A constituição de um ideal do eu, fruto da
passagem edípica, alerta-nos Lacan, tem uma:

(...) função apaziguadora... Nisso jaz, evidentemente, a importân-


cia preservada por uma obra de Freud, Totem e tabu. (...) A identi-
ficação edipiana é aquela através da qual o sujeito transcende a
agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva. Insis-
timos em outra ocasião no passo que ela constitui na instauração
dessa distância pela qual, com sentimentos da ordem do respeito,
realiza-se toda uma assunção afetiva do próximo (Lacan,
[1948]1998, p.119-120).

Ao retomarmos os contornos que o trabalho na Oficina assume, en-


contramos com intrigante frequência a presença do humor. A cada encontro
somos capazes de nos divertir muito, rir, fazer graça, às vezes até fazer troça
da dureza da vida. Esse matiz, introduzido naquela atmosfera sem intenção
prévia, fruto mesmo do encontro que ali se dá, talvez nos fale dessa “distân-
cia pela qual, com sentimentos da ordem do respeito, realiza-se toda uma
assunção afetiva do próximo”, como diz Lacan. Distância possível pela ne-
cessária inscrição do terceiro enquanto motor do mecanismo que faz operar o
humor, como tão bem nos mostrou Freud no livro Os chistes e sua relação com
o inconsciente ([1905] 1969). Terceiro introduzido pelas intervenções dos
oficineiros, que tentam escavar um espaço entre, capaz de propiciar o efeito de
distância que nos oportuniza olhar a vida e narrá-la, assim como nos permite
dirigirmo-nos ao outro como um outro que carrega em si uma ameaça que
pode ser suportável e transponível. Talvez só numa atmosfera de humor pudés-
semos encontrar espaço para desdobrar percurso tão trágico quanto o de
Apolinário, às voltas, de modo tão peculiar, com os grandes enigmas da vida:
a morte e o sexo.

“Agora suas dúvidas terminaram: aqui no céu os anjos não têm sexo”
Retornemos à sala de parto onde nasceu esse personagem, capaz de
dizer das angústias que, mesmo desdobradas de modos muito distintos, per-
tencem a cada um de nós. Naquela manhã de janeiro, tendo sido aceita a
ideia do escrito coletivo, escolheu-se um dos oficineiros como escrivão, e...
110
Uma história improvisada...

Silêncio. Que fazer? Ninguém se propunha a dar o primeiro passo rumo a esse
texto desconhecido, cuja existência até ali era apenas a decisão de fazê-lo.
Surgiu, então, o título: “Uma história improvisada”. Título que falava das
condições de criação daquele escrito, apenas delineando a contingência que
marcava seu nascimento. Após nova pausa, o cancioneiro, tantas vezes inspirador
na Oficina, lançou a primeira frase: “Ser um homem não é fácil”.
A isca lançada pelo cancioneiro funcionou: imediatamente, os demais
participantes puseram-se a falar. A frase que se seguiu, trazida por uma oficinante,
colocou em jogo a dificuldade de ser mulher. E assim foi nascendo o primeiro
parágrafo da história improvisada, que anunciava, já de saída, a intrincada ques-
tão da sexuação como um de seus motes.
A questão do sujeito em torno da posição sexuada está, conforme nos
lembra Lacan, no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose, no cerne da experiência humana. Em suas palavras,

(...) a questão de sua existência coloca-se para o sujeito, não sob


a feição da angústia que ela suscita no nível do eu, e que é apenas
um elemento de seu cortejo, mas como uma pergunta articulada:
“Que sou eu nisso?”, concernente a seu sexo e sua contingência
no ser, isto é, a ele ser homem ou mulher, por um lado, e por outro,
ao fato que poderia não sê-lo, os dois conjugando seu mistério e
enlaçando-o aos símbolos da procriação e da morte (Lacan, [1955-
56]1998, p. 555-556, grifo nosso).

De início, a história coloca a oscilação em seu cerne, não só a oscilação


entre que posição tomar – ser homem, mulher ou gay? – mas também entre
dedicar-se aos prazeres da carne ou aos ritos do Senhor, entre deixar-se levar
pelos descaminhos mundanos ou dedicar-se aos eventos divinos. Tal oscilação
se inscreve de forma contundente através da pendulação entre os sentimentos
de ser e estar. Parece-nos interessante a evocação a essas duas posições,
situadas em “deslocamento”, como se o sujeito pudesse ali fazer uma escolha:
ou ser, ou estar, as opções a deslocarem-se, inquietas. Aqui a dúvida de
Apolinário revela sua particularidade: a escolha sexual podendo situar-se entre
ser homem ou estar homem; Apolinário pode não ser de um sexo, mas estar
nele. A posição sexuada ali não se firma, não se consolida, não encontra seu
ponto de definição. A oscilação de Apolinário encontra solução ao fazer da vida
conjugal algo que reúna ambas as coisas. Não se trata de decidir por um ou
outro e experimentar a perda que toda decisão traz embutida, mas de articular
os meios para reunir ambas – ou bem mais que ambas, todas! – as possibilida-
des: amar um homem, uma mulher, um cachorro; ter um amor hétero e
111
Marieta Luce Rodrigues, Simone Moschen Rickes e Paulo Gleich

homoerótico; dedicar-se a Deus e aos amores terrenos – mais adiante na histó-


ria, estar vivo e estar morto.
Talvez não possamos dizer que Apolinário duvide, mas, sim, que inscre-
ve-se num movimento de deriva no qual a experiência de um lugar limita em
quase nada a experiência de outro. Ele não está propriamente diante da neces-
sidade de uma escolha, ruminando o que ela lhe traria como consequência. Ele
se movimenta, encontra Josefina, Eufrásia, Padre Paulo, São Pedro – o próprio!!!,
o que não é qualquer coisa naquele lugar – sobe e desce dos céus; conversa com
o santo e com o diabo, se consagra ao senhor, joga búzios e procura a macum-
ba. Desloca-se de um ponto a outro sem que isso lhe custe elaboração ou
justificativa – em suas andanças não está tomado por necessidade de coerên-
cia ou integração. Vai e volta na busca de reunir ambas as coisas, de cerzir o
abismo intransponível inscrito na cisão entre Eu e o Outro, o Outro sexo.
Freud, em seu texto de 1925, A negativa, discorre sobre o momento
mítico em que ocorre a operação que funda de modo inaugural a primeira cisão
entre o dentro e o fora, entre o eu e o outro. Trata-se, a seu ver, da expulsão, para
fora do eu-prazer primordial, daquilo que é pelo sujeito percebido como desprazeroso.
É como desdobramento de uma expulsão primeira, de algo que, na sua origem,
foi cuspido, que funda uma descontinuidade intransponível, descontinuidade essa
que diz da inscrição do sujeito nas malhas do simbólico, registro marcado pela
descontinuidade entre significante e significado, entre a palavra e a coisa. Estar
tomado nas malhas do simbólico, tecer-se nesses fios, implica acolher as leis
que organizam esse tear, a saber, a impossibilidade de cerzir o abismo que o
constitui e, com isso, experimentar a vida sempre às partes, nunca absolutamen-
te, nunca totalmente, nunca conjugando ambas as posições.
Apolinário anda às voltas com suspender esse impossível. Sua deriva, de
algum modo, é balizada pela necessidade de conjugar ambas as posições. Sua
chegada ao céu acena com uma solução, talvez a única possível, para esse impasse.

Bateu na porta e São Pedro atendeu.(...) Entrou. Lá viu as pessoas


viradas em anjo, era cheio de flores e o céu, limpo. “Pô, eu vim pro
céu, que legal!” pensou Apolinário, lembrando-se de todas as suas
dúvidas e confusões. (...) “Agora terminaram suas dúvidas: aqui no
céu os anjos não têm sexo!” disse Deus. “Relaxe e aproveite” (tre-
cho de Uma história improvisada).

É em um lugar onde não se tem sexo que a conjugação de ambas as


posições, sem restos ou perdas, poderia acontecer. Somente em um lugar como
esse a imparidade poderia ser superada pela anulação da distância que separa
aquilo que se situa em registros heterogêneos, como a vida e a morte.
112
Uma história improvisada...

A impossível escrita da morte


Para Epicuro, filósofo grego, a maior fonte de sofrimento humano remonta
ao medo da morte. Medo que ele tentou exorcizar com sua sabedoria. Ao propor
a mortalidade da alma, em oposição ao colega que lhe antecedeu, Sócrates,
Epicuro encontra uma saída para temor tão avassalador: a morte nunca poderá
ser percebida. Onde eu estou, a morte não está; onde ela está, eu não estou.
Entre eu e a morte não há coexistência absoluta. Séculos antes, Epicuro colo-
ca luz sobre a questão que Woody Allen retoma com seu característico humor:
“Não tenho medo da morte, apenas não quero estar lá quando ela acontecer”.
Epicuro, em sua sabedoria ancestral, nos diz da impossibilidade, tão
cara a Freud, de simbolização da morte. Ela, a morte, representa um lugar
impossível de estar como sujeito, é o ponto de exclusão, de negação, que, por
sua existência nessa condição de não simbolizável, põe em marcha a necessi-
dade de inventar artifícios que permitam abordá-la. Diferentemente de Epicuro,
Schreber, em suas Memórias de um doente dos nervos, vive e narra sua morte:
imerso em suas certezas, ele nos conta que morria várias vezes ao dia, chegan-
do a ver no jornal o anúncio de sua própria morte. Ela lhe aparecia escrita.
Diante dessa experiência, Schreber profere a famosa frase “Eu sou o primeiro
cadáver leproso e conduzo um cadáver leproso” (Schreber, 1903, p. 106). Inte-
ressante que não é como vivo que Schreber se vê na condição de narrar sua
morte, mas como um morto que carrega outro morto. A fórmula de Schreber
permitiu a Lacan ver nessa enunciação a materialização desse estranho gê-
meo, o eu ideal, instância que em sua petrificação totalizante se apresenta
sempre um pouco morta; instância que acompanha o eu, sem o qual este não
ganha existência, e que, na psicose, como lembra Lacan, sai de seu mutismo
para estranhamente falar ao sujeito.

‘Um cadáver leproso conduzindo outro cadáver leproso’, descrição


brilhantíssima, convenhamos, de uma identidade reduzida ao con-
fronto com seu duplo psíquico, mas que além disso, deixa patente
a regressão do sujeito, não genética, mas tópica ao estádio do
espelho, na medida em que a relação com seu outro especular
reduz-se aí a seu gume mortal (Lacan, [1957-58]1998, p.574).

Da mesma sorte, Apolinário experimenta essa passagem na lucidez de


seu ser: “Tive no céu, voltei pra terra, conversei com Deus, fui no candomblé
falar com o diabo: ninguém tem a resposta! O problema tá comigo e eu é que
tenho que saber das respostas. É um labirinto de ideias e pensamentos e emo-
ções descontroladas”. Através de sua narrativa, Apolinário encontra as condi-
ções de escrever a sua própria morte – sendo que seu trânsito só será barrado
113
Marieta Luce Rodrigues, Simone Moschen Rickes e Paulo Gleich

por um pequeno interdito que ele não descuida de transpor – as portas do céu
se fecham à meia-noite; depois disso São Pedro não o receberá mais. Interes-
sante que, ao contrário de Schreber, Apolinário parece entrar vivo no reino dos
mortos, e o que é mais surpreendente, sair também vivo desse lugar de onde
não se retorna.
Tomamos o rumo do desfecho da história. Apolinário:

sem saber mais o que fazer, resolveu colocar seus pensamentos no


papel, para escrever sobre a vida dele, pra ver se era boa ou ruim (...)
Escrever ajudou a descobrir seu próprio caso: ele ia para o céu.
Subiu, então, sendo recebido de novo por São Pedro, e deixando a
história por terminar (trecho de Uma história improvisada).

A filha Jussara, tão particularmente batizada, assume a herança deixada


pelo pai: “escreveu no computador as páginas suficientes para relatar as expe-
riências que o seu pai viveu, entre o céu e a terra”. Não é de estranhar que o
desfecho proposto na narrativa tenha sido o da escrita... Não deixamos de ob-
servar que, se Apolinário deixa a história por terminar, Jussara pode tomá-la
para si, lembrando-nos de que a “existência de dúvidas”, por mais confusa e
dolorosa, pode ser transmitida. A escrita se mostra para Apolinário como a que
experimentamos na Oficina: possibilidade de encaminhamento das difíceis
temáticas que nos habitam.

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente [1905]. In: ______.
Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1969. v.VIII.
FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso
de paranoia [1911]. In: ______. Edição standard das obras completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.XII.
FREUD, Sigmund. A negativa [1925]. In: ______. Edição standard das obras comple-
tas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v.XIX.
LACAN, Jacques. A agressividade em psicanálise [1948]. In: ______. Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.104-126.
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose
[1955-56]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.537-590.
SCHREBER, Daniel. Memórias de um doente dos nervos [1903]. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1984.

Recebido em 21/09/2010
Aceito em 18/10/2010
Revisado por Deborah Nagel Pinho
114
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 38, p. 115-125, jan./jun. 2010

TEXTOS
BODERLINE:
NAS BORDAS DE QUÊ?1
Eduardo Mendes Ribeiro2

Resumo: A constituição do conceito de borderline no campo psicanalítico é


relacionada com o processo de produção do que se costuma denominar, gene-
ricamente, de “patologias contemporâneas”. Neste artigo é defendida a tese de
que as transformações por que passam os laços sociais na contemporaneidade
são determinantes das formas atuais de produção e manifestação do sofrimento
subjetivo.
Palavras-chave: borderline, patologias contemporâneas, psicanálise, laço so-
cial.

BORDERLINE: WHAT BORDER?

Abstract: The constitution of “borderline” concept at psychoanalytical camp is


related with the production process of what is used to be known, generically, as
“contemporary pathologies”. This article defends the thesis that the comprehension
of contemporary social laces transformations needs to take care of the actual
forms of subjective sufferance production and manifestation.
Keywords: borderline, contemporary pathologies, psychoanalysis, social lace.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA Estruturas Freudianas, realizadas em
Porto Alegre, outubro de 2009.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Doutor em Antropologia Social (UFRGS); Consultor do Minis-
tério da Saúde. E-mail: eduardomribeiro@uol.com.br
115
115
Eduardo Mendes Ribeiro

N o contexto da clínica das patologias contemporâneas, pode ser interessan-


te analisar esta noção ou conceito de borderline, na medida em que ele
apresenta uma zona de fronteira, como o próprio nome indica, em relação à qual
somos convocados a tomar algumas posições teórico-clínicas, se não quiser-
mos apenas dar nome para algo que não compreendemos bem.
A abordagem desse conceito, que também recebe o nome de “estados-
limite”, exige que se faça inicialmente o questionamento acerca da natureza do
“limite” que está sendo referido. Pode se tratar do limite entre determinadas
modalidades de sanidade e de loucura ou, no âmbito nosográfico, entre neurose
e psicose; mas pode também estar referido ao limite das classificações
nosográficas, cujas generalidades mostram-se incapazes de dar conta, tanto
das singularidades, quanto das transformações na dinâmica dos processos de
constituição subjetiva. No primeiro caso, trata-se de limites nosográficos e, no
segundo, dos limites da própria nosografia.
Uma interrogação sobre os estados-limite situa-se, ao mesmo tempo, no
campo metapsicológico, ou seja, no da fundamentação teórica da prática analí-
tica, e no campo mais estrito da clínica, em que uma diversidade de “novas
patologias”3 demanda compreensões e intervenções diferentes das que cons-
tam nas referências clínicas clássicas.
Atualmente, é possível identificar ao menos três linhas de entendimento
distintas sobre o que seria uma subjetividade borderline4 : 1. Como uma estrutu-
ra específica, entre a neurose e a psicose, em que ocorreriam respostas flutuan-
tes aos conflitos psíquicos; 2. Como uma indefinição estrutural, ou seja, a per-
manência em um estado infantil, anterior à assunção de posição relativamente
estável frente à castração; 3. Como uma descrição de determinados comporta-
mentos, da forma como é elaborada, por exemplo, pela nosografia psiquiátrica
norte-americana (DSM).
Mas, antes de retomar essas indicações, especialmente as duas primei-
ras, é interessante acompanhar a forma como surgiu a noção de borderline, ou
seja, a que lacunas ou impasses teóricos ela veio responder.
Na primeira metade do século XIX, apareceram as primeiras categorias
diagnósticas atribuídas a um conjunto de distúrbios mentais graves, mas que

3
Costuma-se designar por “novas patologias” um conjunto de quadros clínicos que, mesmo não
sendo novos, têm ganhado visibilidade na sociedade contemporânea. Fazem parte desse con-
junto as toxicomanias, os distúrbios alimentares, as crises de ansiedade (muitas vezes chama-
das de “crise de pânico”), certas modalidades de estados depressivos, os diagnósticos psiqui-
átricos de bipolaridade e o déficit de atenção com hiperatividade, entre outros.
4
Devo essa indicação a Alfredo Jerusalinsky.
116
Boderline...

não vinham acompanhados de sintomas explícitos de “loucura”. É nesse con-


texto que foram propostos os conceitos de “insanidade moral” por Pritchard, de
“mania sem delírio” por Pinel e de “monomanias” por Esquirol, 1838. Pouco
depois, na virada do século, um alienista chamado Chaslin descreveu um territó-
rio fronteiriço entre a loucura e a sanidade, que ele chamou de borderland of
insanity (Dalgalarrondo e Vilela, 1999).
Mas foi um psicanalista, Adolf Stern, o primeiro a utilizar o termo borderline
em um artigo intitulado “Terapia e investigação psicanalítica do grupo das neuro-
ses borderline”, referindo-se a pacientes que apresentavam um comportamento
extremamente instável e impulsivo (Pereira, 1999). Depois dele, vários outros
analistas, como Kohut, Bergeret e André Green, dedicaram-se a esse tema.
Mais recentemente, outro psicanalista, Jean-Jacques Rassial, apresentou
um entendimento sobre essa questão que avança na compreensão da relação exis-
tente entre esses estados subjetivos que não se enquadram na nosografia clássica
e os processos de transformação social vivenciados atualmente (Rassial, 2000).
Para Rassial, “o estado-limite é, em primeiro lugar, uma resposta ade-
quada a uma incerteza das referências que caracteriza o laço social contempo-
râneo” (Rassial, 2000, p. 27). Ele se refere ao que costuma ser chamado de
declínio da função paterna, ou declínio dos significantes dos Nomes-do-pai. Seu
entendimento é o de que a forma específica como cada um se relaciona com
esses significantes, se os aceita e recalca, recusa ou forclui, define a
especificidade de sua relação com o Outro; e que a perda de eficácia simbólica
desses significantes tende a produzir modalidades subjetivas que não se en-
quadram bem nas antigas estruturas subjetivas.
Levando adiante essa interpretação, Rassial entende que o sujeito em
estado-limite é o sujeito pós-moderno, e que esse sujeito experimenta um esta-
do prolongado de adolescência.
Retomando a proposta das três possibilidades de entendimento do que
seja uma subjetividade borderline – indefinição estrutural, estrutura específica e
transtorno de personalidade –, podemos dizer que, enquanto Rassial representa
a primeira alternativa (indefinição estrutural), as duas outras foram fortemente
influenciadas pelas ideias de outro psicanalista, chamado Otto Kernberg.
Kernberg (1967), propôs a noção de “organização borderline da persona-
lidade”, entendida como uma estrutura psicopatológica específica, situada entre
a neurose e a psicose. Partindo da compreensão etiológica desses quadros, ele
descreveu uma ampla gama de elementos diagnósticos fundamentais que, jun-
tamente com a descrição de outras manifestações psicopatológicas, passaram
a constituir a entidade nosográfica apresentada no DSM-IV e no CID-10.
Frente a esses diferentes entendimentos, algumas questões se produ-
zem:
117
Eduardo Mendes Ribeiro

– As estruturas subjetivas, tal como as concebemos, constituem modali-


dades de relação com a instância paterna, com a lei e, portanto, com a castra-
ção (recalcamento, renegação e forclusão). Considerando que essas instâncias
(paternas) e suas funções sofreram transformações importantes na
contemporaneidade, não seria razoável supor que os processos de constituição
subjetiva também possam assumir outras configurações?
– É importante ter presente que o processo de constituição subjetiva se
dá em ao menos dois tempos: o primeiro, universal, é marcado pelo ingresso
no simbólico, no campo da linguagem; enquanto o segundo, de caráter contin-
gente, define nossa relação aos discursos que organizam nosso laço social.
Qual o fundamento e qual o proveito clínico que teríamos em manter cristaliza-
da uma nosografia refratária à consideração de novas modalidades de relação
com o Outro? Devemos manter intacto nosso velho “mapa”, e continuar consi-
derando que cada novo paciente neurótico que chega a nossos consultórios
deva ser tratado como se fosse ou um obsessivo, ou um histérico ou um
fóbico?
– Será necessário enquadrar as “novas patologias”, entendidas como for-
mas específicas de sofrimento psíquico, em estruturas clínicas predefinidas? O
fato de que nem todas as patologias encontram-se associadas a uma única
estrutura contraria essa posição. É o caso das toxicomanias, das depressões e
dos distúrbios alimentares.
– Por que considerar que as modalidades de sofrimento psíquico que não
se enquadram nas estruturas nosográficas tradicionais sejam “apenas” senti-
mentos, humores e-ou sintomas? O que seria necessário para que eles fossem
compreendidos em sua singularidade?
Essas questões nos remetem à problematização do diagnóstico, na teo-
ria e na prática psicanalítica. Qual a natureza das estruturas subjetivas? Terão
elas um caráter ontológico, ou seja, a partir de qual pressuposto podemos dizer
que tal sujeito “é um psicótico”, ou “é um neurótico obsessivo”? Esse atributo
constitui um elemento de seu ser?
Um primeiro encaminhamento de resposta consiste em reconhecer que o
diagnóstico é um ato médico efetivado a partir de uma prática de observação e
classificação. É nessa vertente epistemológica que o diagnóstico se situa. Algo
diferente ocorre no campo da psicanálise, em que a compreensão etiológica
dos principais sintomas psíquicos produziu certo mapeamento das estruturas
subjetivas que tem a função de orientar as intervenções clínicas. Ou seja, partin-
do do exercício clínico, e considerando principalmente a forma como se estabe-
lece a relação transferencial, Freud e seus seguidores produziram um corpo
teórico-conceitual que procura apresentar uma interpretação da lógica através
da qual se constituíram determinadas modalidades subjetivas, de onde podem,
118
Boderline...

ou não, decorrer sintomas específicos. É importante ressaltar que essas dife-


rentes modalidades subjetivas podem mostrar-se, mais, ou menos, estáveis5 .
Entretanto, a dificuldade que o campo psicanalítico muitas vezes apre-
senta para manter essa prática clínico-epistemológica de submeter a teoria à
clínica parece derivar de dois fatores distintos, mas complementares, ao menos
para a psicanálise referenciada a Freud e Lacan: por um lado, herdamos um
primeiro quadro nosográfico (com suas várias modificações), produzido a partir
da escuta dos pacientes que chegavam aos consultórios psicanalíticos no início
do século passado, muitos deles mulheres histéricas. Não é necessário insistir
no argumento, amplamente comprovado por todos os psicanalistas, de que não
são essas mulheres com conversões histéricas espetaculares que, atualmente,
ocupam nossas salas de espera. Temos razões para acreditar que, se o
mapeamento das patologias psíquicas fosse iniciado nos dias de hoje, ele teria
uma configuração muito diferente daquela que estamos acostumados a tomar
como referência.
E, por outro lado, o paradigma estrutural adotado por Lacan para funda-
mentar e avançar no desenvolvimento dos achados freudianos apresenta dificul-
dades para apreender, através de estruturas simbólicas, os fenômenos contem-
porâneos, sejam eles no âmbito da cultura, sejam no âmbito das subjetividades.
Isso se dá por várias razões, muitas delas explicitadas pelos pós-estruturalis-
tas, hermeneutas, e partidários de outras correntes, que entendem que o estru-
turalismo não tem como produzir uma compreensão de universos simbólicos
em processo contínuo e acelerado de mudança, e sem limites precisos.
Mas, retomemos um pouco mais detalhadamente esses argumentos,
iniciando pela herança freudiana...
Freud, como todos os grandes pensadores, é herdeiro e intérprete de seu
tempo, o que, no final do século XIX, representava vivenciar uma tensão entre os
ideais iluministas, que se manifestavam nos campos político, científico e filosó-
fico, e a moral tradicional que, com o enfraquecimento da religião e da monar-
quia, constituía a principal referência para orientar os comportamentos sociais.
Fois nesse contexto, fortemente puritano, em que a repressão sexual se apre-
sentava como elemento central nos conflitos psíquicos, que Freud tomou como
elemento central na etiologia da histeria.

5
Assumindo este entendimento, em várias passagens deste texto foram utilizadas as designa-
ções “modalidades subjetivas”, “subjetividades” ou “estados subjetivos”, em detrimento da usu-
al “estruturas subjetivas”. O objetivo é buscar maior compreensão dos casos que não se
enquadram em nenhuma das estruturas predefinidas.
119
Eduardo Mendes Ribeiro

Mas, hoje, com certo distanciamento temporal, também é possível pen-


sar esse fenômeno na direção inversa, ou seja, que um enfraquecimento do
recalcamento estivesse contribuindo para a manifestação desses conflitos psí-
quicos resultantes da repressão do desejo sexual. Se assim for, teríamos, já no
tempo de Freud, alguns efeitos da fragilização das instâncias paternas. De qual-
quer forma, na teorização freudiana, o tema da repressão sexual é central, tanto
em suas formulações ontogenéticas, quanto filogenéticas.
Ainda relativamente aos determinantes sociais do pensamento freudiano,
é importante notar que, ao contrário do que ocorre atualmente, no início do
século passado vivia-se uma época de restrições e muito trabalho, pois a Revo-
lução Industrial ainda não produzira seus efeitos e havia um grande contingente
populacional convivendo nas grandes cidades. Eram tempos de controle do gozo
(André, 1996).
Com o desenvolvimento do capitalismo, a situação se inverte: é necessá-
rio aumentar o consumo para sustentar o crescimento da produção e do merca-
do. As formações discursivas tradicionais são substituídas pelos discursos
midiáticos hegemônicos, que afirmam como valor o gozo dos objetos, que pas-
sa a ser sinônimo de sucesso e felicidade. Dessa forma, passou-se do controle
do gozo para o imperativo do gozo. Só essa constatação já seria suficiente para
fazer-nos supor que essas duas sociedades (a do século XIX e a do século XXI)
tendem a produzir conflitos psíquicos distintos.
É nesse sentido que algumas interpretações psicanalíticas retomam as
teorias econômicas da libido e entendem as novas patologias como estratégias
para dar conta desse excesso pulsional.
Se, por um lado, existe a especificidade de um contexto social influindo
na formalização inicial da teoria psicanalítica, por outro lado, sua fundamenta-
ção epistemológica estruturalista produziu, ao mesmo tempo, uma base teórica
consistente e alguns impasses a serem superados.
Sabemos que a grande sedução exercida pelo paradigma estruturalista
derivou do entendimento de que finalmente se teria produzido uma forma rigoro-
sa de teorizar, como as epistemologias utilizadas pelas ciências da natureza
(ou, mais ainda, pelas ciências exatas), que poderia ser aplicada às ciências
humanas, como a linguística, a antropologia social ou a psicologia.
É verdade que não se pode falar em um único estruturalismo, mas, sim,
em várias teorias que, sob esse mesmo paradigma, apresentam diferenças es-
senciais. Umberto Eco (Eco, 2007), que realizou um estudo rigoroso dos diver-
sos estruturalismos, propunha uma distinção entre eles: havia os que defendi-
am o estatuto ontológico de seu objeto, como vários linguistas; e havia os que
afirmavam o estruturalismo enquanto método de investigação. Outros ainda,
como Lévi-Strauss, muito admirado por Lacan, teria iniciado suas pesquisas
120
Boderline...

utilizando o método estrutural, para depois “descobrir” a existência de uma


homologia entre as estruturas do mundo físico, das culturas e das subjetivida-
des. Ou seja, uma forma de direcionamento do pensamento (método) que, inici-
almente, constituía uma possibilidade (dentre outras possíveis) de compreender
os fenômenos humanos, em determinado momento “revela” a própria natureza
desses fenômenos: a universalidade da lógica que os determina, e as possibili-
dades e limites de suas variações.
Trata-se de uma diferença importante: se a realidade é assim, o que
podemos e devemos fazer é tentar decifrá-la, desvendá-la; mas se o estrutura-
lismo é apenas um método de apreensão dos fenômenos, sua aplicação em
determinados universos e contextos de relações é possível, mas em outros não.
E Lacan? Qual sua posição?
Lacan elabora uma teoria que, apesar de pagar tributo à onda estrutura-
lista, apresenta características únicas, a principal delas derivada do fato de que
coloca na raiz (ou no centro) das estruturas subjetivas uma ausência, ou uma
falta. Não se trataria, portanto, apenas de pensar que não existem positividades
e que os elementos de uma estrutura se definem pelas diferenças que mantêm
entre si, como na linguística estrutural, mas, de ir além, e propor que esses
elementos se organizam em função de uma ausência. Essa proposição man-
tém seu caráter contra-hegemônico em relação à ciência positivista e seu po-
tencial revolucionário no que se refere à compreensão do processo de constitui-
ção e da dinâmica das subjetividades.
Aproveitando a distinção proposta por Umberto Eco (Eco, 2007), é possí-
vel afirmar que, para Lacan, o caráter estrutural do sujeito humano é ontológico,
estrutura essa representada pela articulação dos três registros (Real, Simbólico
e Imaginário), enquanto os arranjos através dos quais as subjetividades se cons-
tituem e se exercitam são múltiplos, contingentes e relacionados com a
especificidade dos laços sociais em que se produzem.
Trata-se de um entendimento semelhante ao que foi manifestado por Lévi-
Strauss (1987) em determinado momento de sua obra: a condição estrutural é
formal e universal, enquanto os modelos (as diferentes formas como as estrutu-
ras se atualizam) são empíricos e contingentes.
Aceitando essas considerações, que reflexos podem ter as mudanças
sociais contemporâneas nos processos de constituição subjetiva, de uma for-
ma geral, e na manifestação de novas patologias, em particular? E, que relação
pode haver entre essas novas patologias e os quadros clínicos chamados de
borderline?
Em primeiro lugar, constata-se que tanto esse conjunto de fenômenos
psíquicos englobados na designação “novas patologias”, e que inclui realidades
tão díspares quanto as toxicomanias, os transtornos alimentares, as depres-
121
Eduardo Mendes Ribeiro

sões e a síndrome do pânico, quanto os fenômenos borderline, apresentam-se


como quadros clínicos que não se ajustam bem à nosografia psicanalítica clássi-
ca, seja por manifestarem características de mais de uma dessas estruturas
subjetivas, seja por estarem presentes em sujeitos com diferentes estruturas.
Como uma hipótese a ser desenvolvida, e aceitando o entendimento de
que borderline é um termo que designa subjetividades que, pelas razões mais
diversas, não “se definiram” por nenhuma das estruturas clássicas, é possível
propor uma forma de articulação entre essa realidade e as que se manifestam
nas “novas patologias”. Isso não implica a defesa de nenhuma forma de causa-
lidade ou continuidade entre uma e outra, como se um estado de indefinição
estrutural tendesse a produzir determinadas modalidades de sofrimento psíqui-
co, mas simplesmente que novas formas de relações sociais podem levar a
diferentes conflitos psíquicos, a partir das novas relações e tensões que se
estabelecem entre as subjetividades singulares e o Outro.
Evidentemente, nem todos os toxicômanos ou anoréxicas são borderliners,
mas talvez se possa afirmar que os mesmos fatores determinantes do aumento
do número de sujeitos com estruturas subjetivas indefinidas contribuem para o
surgimento de disseminação destas novas patologias.
Dentre esses fatores, dois se destacam e se articulam entre si, e têm
sido objeto de muitos estudos, de diversos campos, como os estudos culturais,
a sociologia, a antropologia social, a psicologia social e a psicanálise. Trata-se
do que, em termos psicanalíticos, podemos chamar de esvaziamento do lugar
do Outro e declínio da eficácia simbólica das instâncias paternas.
Na maioria das sociedades conhecidas anteriores à nossa, as relações
que se estabeleciam entre cada pessoa e a sociedade abrangente era orienta-
da, e muitas vezes definida, tomando como referência um conjunto de textos e
narrativas tradicionais. É a isso que chamamos de Outro: esses lugares organi-
zados pela linguagem, que orientam nossas condutas e pensamentos.
Ora, como muito bem afirmou Lyotard (1986), uma das marcas de nossa
pós-modernidade é o fim das grandes narrativas, das grandes ideologias, o que
representa uma forma de forclusão do Outro enquanto instância unitária e repre-
sentativa da alteridade dos sujeitos, uma forma de não reconhecer sua inscri-
ção, ao menos com o mesmo estatuto e eficácia de antes (Melman, 2003). No
mundo contemporâneo não há mais espaço para visões de mundo e projetos
coletivos amplamente compartilhados, o que tornou o Outro menor e plural. E é
importante notar que eram essas mesmas narrativas que sustentavam a potên-
cia dos lugares paternos, legítimas fontes de autoridade e instâncias nas quais
se buscava reconhecimento e testemunho.
Fazendo parte desse mesmo processo, se desenvolveram transforma-
ções radicais em todos os setores da vida social: democracia liberal, capitalis-
122
Boderline...

mo, globalização, etc., que produziram alterações fundamentais nas formas


através das quais os sujeitos se constituem a partir de sua relação com o Outro.
Vivemos em um mundo de relações muito mais horizontalizadas do que
as que ocorriam em épocas anteriores, vide relações entre pais e filhos, entre
professores e alunos, etc. A constatação e a afirmação dessas transformações
não trazem consigo nenhuma forma de nostalgia de um pai forte, mas, apenas,
o reconhecimento de uma mudança social, que nos convoca a analisar seus
efeitos. O fato de não haver mais um lugar, ou uma instância à qual se atribua
um saber que nos concerna, produz a diluição das relações transferenciais,
gerando efeitos em todos os âmbitos da vida social.
Se, em uma sociedade de consumo, o ideal está relacionado à supera-
ção de todos os limites e restrições ao gozo, os Nomes-do-Pai (as instâncias
paternas) caem em descrédito. Eles deixam de serem organizadores do campo
de gozo para se tornarem obstáculos obsoletos.
Fenômenos como a globalização econômica e a disseminação de comu-
nicações desterritorializadas, através da internet, também contribuem para a
progressiva perda de valor das particularidades de cada cultura, esvaziando as
narrativas estruturantes de suas referências simbólicas.
Mas, se não é mais no campo de um Outro, organizado em torno de
referências paternas fortemente constituídas, que o sujeito busca encontrar-
produzir seu lugar, onde ele encontrará os sentidos que possam orientar seus
pensamentos e ações?
Mesmo que as teorias conspiratórias mais paranoicas afirmem a existên-
cia de grandes interesses políticos e empresariais na manipulação de crenças e
comportamentos, e certamente elas possuem algum fundamento empírico, o
fato é que, no âmbito da vida cotidiana do homem comum, o que se apresenta
como referência de saber é, ou um senso comum instável e frágil, ou alguns
discursos autorizados, como o da ciência. Em nenhum dos casos é considera-
da a herança simbólica de cada um.
Nesse cenário, o que se percebe é uma tendência ao “achatamento” da
subjetividade, sendo que, no contexto da divisão subjetiva, o sujeito do incons-
ciente perde terreno, e o que assume o primeiro plano é um sujeito totalmente
explícito, que se situa em um campo de representações conscientes e orienta
seu desejo para objetos definidos a partir de um determinado “senso comum”.
Atualmente, são muitos os textos psicanalíticos que testemunham e re-
fletem acerca de casos em que são constatados fenômenos de “pobreza psíqui-
ca”, “falha grave na simbolização”, “incapacidade de fantasiar”, “pobreza imagi-
nativa”, etc.
Percebe-se ainda que um sentimento de anomia social pode levar à cons-
tituição de subjetividades atópicas, ou seja, sujeitos que não conseguem en-
123
Eduardo Mendes Ribeiro

contrar um lugar a partir do qual possam manifestar seus desejos e seus proje-
tos. Alguns psicanalistas nomeiam esse fenômeno de “patologias do desejo”.
Essa sensação de não-lugar faz com que crianças e adultos tenham que
se manter em permanente movimentação, o que produz novos quadros
psicopatológicos, acompanhados de novas propostas terapêuticas, comporta-
mentais e medicamentosas. Estamos no terreno da hiperatividade, da instabili-
dade e da impulsividade, próprio dos quadros denominados borderline.
Muitas vezes, pacientes com essas características manifestam grande
temor de separação, de abandono, de desamparo, mantendo uma sequência de
relacionamentos intensos e instáveis, em que o objeto de seu amor, fortemente
investido, acaba por decepcioná-los, nunca retribuindo seu amor da forma espe-
rada. Essa situação se repete na relação analítica, com a produção de transfe-
rências massivas, exigentes e, não raro, conflitivas.
Também estamos no contexto em que se produzem muitas depressões,
na medida em que o sujeito não se percebe como tendo-sendo um valor para o
Outro, ou toxicomanias, quando se assume uma estratégia de prescindir do
Outro, na tentativa de controlar a oscilação entre falta e gozo, através da relação
com o objeto-droga.
São muitos os exemplos em que, contemporaneamente, torna-se prática
comum a desconsideração do Outro enquanto mediador das relações sociais:
respeitamos as leis de trânsito somente quando achamos conveniente ou ne-
cessário, pagamos apenas os impostos que não conseguimos sonegar, etc.
Ou, por outro lado, a ocorrência de fenômenos como a progressiva judicialização
das relações sociais, em que o confronto entre as autonomias de cada indivíduo
exige cada vez mais o arbítrio de um terceiro, que exerce seu poder a partir da
positividade de leis universais, objetivas e convencionais.
Entretanto, essa autonomia cobra seu preço, e algumas dessas “novas
patologias” e desses novos entendimentos do que seja a subjetividade borderline
parecem estar relacionados a essas novas modalidades de relações sociais,
em que a herança simbólica de cada um, além de nossa história comum, são
dificilmente reconhecidas e valorizadas. Poucos de nós gostariam do retorno
das antigas formas de imposição de autoridade e de assujeitamento das cons-
ciências e dos desejos, mas todos nos deparamos com o desafio de nos fazer-
mos sujeitos em um mundo diferente do de nossos pais. Trata-se da difícil tarefa
de conciliar o reconhecimento de uma herança simbólica e a necessária inven-
ção de novos modos de ser. É evidente que a sucessão das gerações sempre
se deparou com essa questão, mas, certamente, não com a radicalidade de
nossos tempos.
É provável que, em muitos casos, estejamos nos deparando com um
desafio inverso àquele enfrentado no início da psicanálise: em vez de procurar
124
Boderline...

ajudar o sujeito a libertar seu desejo das forças sociais de repressão, temos que
conduzi-lo em um processo através do qual ele consiga produzir uma inserção
social com referências simbólicas capazes de organizar seu campo de gozo.

REFERÊNCIAS
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1996.
DALGALARRONDO, Paulo; VILELA, Wolgrand Alves. Transtorno borderline: história
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KERNBERG, Otto. Borderline personality organization. Journal of the American
Psychoanalytic Association, vol. 15, 1987, p. 641-685.
LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
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LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio,
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MELMAN, Charles. O homem sem gravidade – gozar a qualquer preço. Rio de Janei-
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PEREIRA, Mário Eduardo Costa. A introdução do conceito de “estados-limítrofes” em
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RASSIAL, Jean-Jacques. O sujeito em estado limite. São Paulo: Companhia de Freud,
2000.

Recebido em 30/06/2009
Aceito em 05/08/2009
Revisado por Sandra D. Torossian

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