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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

IX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Nordeste – Salvador – BA

Estudo Comparativo entre Mangás e Comics.1


A Estruturação das Páginas como Efeito de Narratividade.

André Luiz Souza da Silva2


Faculdade de Comunicação – Universidade Federal da Bahia

Resumo: Na perspectiva de um cunho conceitual que saia do âmbito histórico e


geográfico sobre os mangás, que amplie a sua definição para além da idéia do pólo de
produção esse breve texto tenta apontar alguns caminhos para a construção do conceito
de mangá a partir da observação estrutural das suas páginas a fim de proporcionar o
efeito de sentido narrativo. Para tanto usaremos como base teórica às concepções sobre
a decomposição e a integração das vinhetas3 nas páginas de histórias em quadrinhos
denominados respectivamente de Tabularidade (FRESNAULT-DERUELLE: 1976) e
Artrologia (GROENSTEEN: 1999). Nesse texto exibiremos algumas páginas dos
mangás e comics4 como método comparativo com o objetivo de distinguir as diferenças
e assinalar as semelhanças de ambos os gêneros.

Palavras-Chave: Mangás. Comics. Histórias em Quadrinhos.

1. Estruturação – páginas dos mangás e das comics


A questão que devemos considerar para diferenciar os mangás das comics
refere-se à estruturação das páginas, isto é, as maneiras como os quadrinhos são
dispostos, arranjados no espaço de uma revista.
Historicamente lembramos na transição do século XIX para o século XX, as
histórias em quadrinhos começaram a ganhar espaço nos jornais. Esses quadrinhos na
configuração de tirinhas de jornal (comics strip)5 serviram de precursores para a
estruturação das hqs como conhecemos hoje. Isto é, elementos da estrutura básica dos
quadrinhos como a vinheta (o quadro), os balões e as legendas foram desenvolvidos ao
longo do tempo com as publicações das histórias em jornais. Yellow Kid de Richard
Outcault foi à primeira tirinha que se tem notícia. As histórias do menino amarelo
começaram no New York Journal e posteriormente passaram a ser publicadas New

1
Trabalho apresentado ao GT de Produção Editorial e Cultural, do IX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação da Região Nordeste.
2
Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da Bahia. E-mail:
betonnasi@tutopia.com.br.
3
Conhecido também como quadrinho.
4
Denominação dada dos quadrinhos de super-heróis tais como Superman, Batman e outros.
5
Também conhecidas como tira cômica, tira de jornal ou tira diária. Denominações normalmente usadas para
traduzir o termo comic strips. Estruturalmente as tirinhas são caracterizadas por uma série de três a quatro vinhetas
dispostas horizontalmente. Nem sempre a temática das tirinhas são de caractere humorístico. Podemos encontrar
também as de aventura, mistério, espionagem, policial, drama, super-heróis entre outras. Elas geralmente são diárias
publicadas em jornais, revistas ou na Internet, neste último caso denominadas de webcomics.

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York Journal American. Portanto, na soma dessas duas fases de Yellow Kid são treze
anos (1885-1898) entre publicações inicialmente esporádicas e posteriormente
publicações diárias. (fig. 01)
As tirinhas têm como uma das
suas principais características a
horizontalidade. As vinhetas são
dispostas uma ao lado da outra primando
à produção de uma seqüência linear da
esquerda para direita quando nos
deparamos com o ato de leitura. O
formato da tirinha estava atrelado ao
Fig. 01. Tirinhas de Yellow Kid. Nelas podemos
espaço disponível na página do jornal. É observar que a fala do personagem não era representada
de praxe um espaço que possa com os balões, mas colocadas na camisa do mesmo. A
famosa cor amarela da camisa do personagem só foi
comportar várias tiras de autores incorporada em fevereiro de 1885.

diferentes. Mais tarde histórias de outras modalidades de tirinhas como as de aventura e


ficção: Tarzan (Hal Foster), Flash Gordon (Alex Raymond) e das aventuras de Spirit
(Will Eisner) alcançaram grande sucesso e popularidade. Essas tirinhas têm como o seu
principal aspecto a novelização6. Gubern (1989, p. 30), afirma que essas séries em
quadrinhos trazem consigo formas de indexação entre as séries de histórias e é o
elemento que permite a construção de conjuntos de ações interligadas que podem
ocorrer não só entre uma tira e outra do mesmo título, como também entre as vinhetas, a
fim de instaurar o elemento de suspense.7
Dessa maneira imaginamos que a horizontalidade da leitura serve como elemento
de reforço, quase como uma espécie de vetor ou seta para conotar a continuação da
narrativa na vinheta ou tira que virá. (fig. 02)
A disposição espacial dos elementos gráficos nas páginas das histórias em
quadrinhos, com o passar dos anos, saiu de uma estruturação horizontal, como nas
tirinhas de jornal, para uma disposição nas quais os quadrinhos aparecem em tamanhos
diferentes. Como bem observa Fresnault-Deruelle (1976, p. 16), as páginas de hqs

6
Para Fedel (2004) a novelização seria o caráter folhetinesco o qual promove a divisão das histórias em capítulos,
muitas com duração de quase um ano, pode desenvolver no colecionador novos desejos, compelindo-o a sua compra.
7
Lembramos que quando se trata da continuação de uma tira para outra, de uma mesma série, os jornais têm como
costume a publicação de um trecho da história no dia seguinte. Assim, se aposta na fidelidade do leitor pautado na
sua curiosidade e no intuito de desmanchar o suspense. Ao mesmo tempo em que se desvenda um mistério ocorre
uma nova situação intrigante. Renova-se, portanto, o ciclo, pois o leitor só terá a resposta desse novo momento na
próxima tira.

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evoluíram ao longo da sua história. Elas não são mais agrupamentos horizontalizados
das representações seqüenciais narrativas, dadas pela disposição lado a lado dos
quadros, como ainda ocorre no caso das tirinhas de jornal.
Segundo Fresnault-Deruelle (1976, p. 17), a composição das páginas deve
funcionar através da integração das suas variáveis visuais (forma, cor, linha, etc.).
Assim, o espaço em uma página de hq ganha o patamar de significação para o
entendimento narrativo. Isso implica em uma forma de leitura que sai do parâmetro
linear para um tipo de leitura guiada pela distribuição dos elementos visuais na
superfície da página. O autor denomina essa configuração de estrutura tabular. Assim,
as formas e a disposição desses elementos já servem de instruções para a compreensão
da história.

Fig. 02. Tira de Garth de Steve Dowling. O suspense é instaurado no último quadrinho.

Corroborando com a idéia sobre tabularidade das hqs, Groensteen (1999, p. 3-5)
afirma que, ao invés da fixação na decomposição das unidades construtivas elementares,
os estudos sobre as histórias em quadrinhos deveriam ser ampliados para uma dimensão
que contemplasse a integração e articulação dessas unidades visuais, já que estas
proporcionam a geração do seu discurso narrativo. O autor denomina esta integração
dos elementos visuais das hqs de artrologia8.

Fig. 03. Seqüência de quadrinhos de uma página de Asterix, a decupagem leva a


leitura linear do trecho da história. (Asterix, Le Grand Fossé, p. 39).
8
O termo artrologia vem do grego e significa articulação.

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A artrologia, segundo Groensteen (1999, p. 27), ocorre em dois níveis:

1. De forma restrita, através da decupagem das imagens para fins de seqüenciamento


narrativo linear. Essa seqüência narrativa obedece ao mesmo eixo horizontal,
quando nos deparamos com textos verbais, percorrendo a superfície da esquerda
para direita (leitura ocidental) e de cima para baixo (Fig. 03);

Fig. 04. Página de X-Men na qual a disposição das imagens leva a


uma leitura multilinear (X-Men - Widescreen, 2003, p. 22).

2. De forma geral, através da integração das imagens para fins de seqüenciamento


multilinear. O seqüenciamento multilinear é composto por imagens-chave que
ativam a leitura através das suas unidades visuais mais pregnantes, tais como a
forma e as cores que se articulam. Assim, ocorre uma conexão das diversas imagens
no espaço da página, contribuindo também para o entendimento da narração (Fig.
04).

Fig. 05. Esquematização do leitor de leitura do exemplo anterior


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O leitor irá apreender essas figuras não como fragmentos isolados, mas como
imagens que estão interligadas a fim de produzir um sentido único. Essa integração
pode ocorrer tanto pelo uso de cores como de formas similares, proporcionando a quem
observa uma leitura multilinear. É muito comum também o recurso de imagens
entrelaçadas ou fusão das mesmas.
As linhas, por sua vez, funcionam como uma espécie de vetor ou guia para o
direcionamento do olhar. Essa leitura de primeiro nível geralmente ocorre tendo como
ponto de partida alguma imagem mais pregnante, isto é, alguma imagem que se
destaque em relação às outras, seja pela forma diferenciada, pelo seu tamanho, pela suas
cores, seja pela a sua posição na página. A partir daí, o olhar é guiado para as outras
imagens, em uma espécie de reconhecimento para que só posteriormente ocorra a leitura
ordenada tradicionalmente, isto é, uma leitura linear da esquerda para direita e de cima
para baixo. Fig. 05

Fig. 07. Página de The Spirit (Will


Eisner). A forma adquire função
Fig. 06. Página de Valentina, de Guido Crépax, onde o princípio da instrutiva para a compreensão da
“tabularidade” está em jogo a fim de produzir um sentido narrativo. história.

Cabe lembrar que a inventividade dada pela disposição dos elementos visuais na
composição de uma página de histórias em quadrinhos não representa necessariamente
uma exclusividade do universo dos mangás. Artistas gráficos como Moebius, Will Einer
e Guido Crépax já trabalhavam com certa liberdade de exploração do espaço da página
em suas hqs rompendo, portanto, com o paradigma de uma leitura horizontalizada,
herdadas das tirinhas de jornal (Fig. 06).

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Os quadrinhos de Will Eisner, por exemplo, adquiriram um status


representacional considerável no que diz respeito à adequação da configuração dos
quadrinhos e sua disposição na página para melhor contextualizar a fábula. (fig. 07)
O próprio Will Eisner, em seu livro Quadrinhos e arte seqüencial – demonstra,
através de alguns exemplos de páginas, uma possibilidade de ritmo ou de clima
narrativo através do efeito, denominado por ele de metaquadrinho. Isto é, a página é
vista primeiramente na sua totalidade, e só depois o leitor encontra percurso ou vetor
linear.
É preciso ter em mente que, quando o leitor vira uma página, ocorre
uma pausa. Isso permite uma mudança de tempo, um deslocamento de
cena; é a oportunidade de controlar o foco do leitor. Trata-se aqui, de
uma questão de atenção e retenção. Assim como o quadrinho, a página
tem de ser usada como uma unidade de contenção, embora também ela
seja meramente uma parte do todo do composto em si (EISNER, 1999,
p. 63).

Nos quadrinhos norte-americanos,


principalmente as comics produzidas a partir
de meados da década de oitenta por artistas
como Frank Miller, (Cavaleiro das Trevas),
Bill Sienkiewicz (Electra Assassina), Todd
Macfarlane (Homem-Aranha e Spaw), Jim
Lee (Capitão América, Os Vingadores), entre
outros, devem, em parte, o seu renome ao fato
de criarem páginas diferenciadas, através de
uma diagramação assimétrica. (fig. 08)
Também nos mangás maneiras
inusitadas de compor as páginas são tão
freqüentes quanto nas comics. Encontramos
personagens, onomatopéias ou vinhetas
sobrepostas em uma espécie de mosaico na
Fig. 08. Página desenhada por Jim Lee – o
quais as imagens apontam para uma artista procura da o reforço narrativo através
do destaque da personagem
determinada direção sugerindo ao leitor o
caminho para o seguimento narrativo. Nestes casos os balões acompanham os desenhos,
pois são eles os guias principais da leitura e não o inverso. A lógica, portanto, muda de

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uma leitura linear herdada da horizontalidade das tiras para uma diagramação mais
complexa, na qual a imagem-chave é o ponto de partida para uma leitura multilinear.
O que geralmente vemos nesses novos arranjos
são imagens que se destacam graficamente das
demais seja pelo seu tamanho, que normalmente
ocupam boa parte do espaço da página, seja pela sua
posição que necessariamente não precisa se encontrar
no alto para que possamos inferir com desenho
principal.
Portanto, mangás, possuem características marcantes,
principalmente aquelas do ponto de vista gráfico, que
os diferenciam das outras formas de histórias em
quadrinhos. Além daquelas, largamente citadas em
livros e em revistas especializadas, atreladas à
configuração dos personagens, tais como os olhos
grandes, as formas geométricas simplificadas,
existem outras igualmente importantes para o
Fig. 09. Página de “X” do grupo entendimento do mangá, tais como a predominância
Clamp, na qual imagens
geométricas e sobreposições de da produção em preto e branco, a leitura da direita
imagens proporcionam uma
dinâmica visual. para esquerda, a preferência para a construção pela
narrativa que prioriza os elementos visuais em
detrimento dos elementos verbais e a integração dos elementos visuais ao espaço da
página. (fig. 09)
Alguns estudiosos como Sônia Luyten (2000) afirmam que esse apelo visual encontrado
nas histórias em mangás é uma herança de outras mídias tais como o cinema e a tv. Do
cinema, o legado seria algumas formas de enquadramentos de cenas, como por
exemplo, o close-up usado para destacar as expressões faciais dos personagens. Da tv, a
contribuição seria um ritmo narrativo mais acelerado e uma ênfase ao apelo da imagem.

A mídia impressa, ao sentir-se ameaçada, soube tirar proveito da televisão e


adaptou-a aos quadrinhos. Isso, no Japão, se deu de modo mais intenso do que
em outros países. A nova geração de desenhistas pós-televisão desenvolveu uma
linguagem visual com o uso mínimo de palavras. LUYTEN (2000, p. 168)

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Ainda que possamos admitir essas influências vindas de outros meios de


comunicação de massa, cabe dizer aqui que essas afirmações precisam ser relativizadas
com outras possíveis influências assimiladas pelos artistas dos mangás ao logo da
história. Não podemos nos esquecer que a cultura e a arte japonesa de um modo geral,
da qual os mangás são originários teve sempre um forte apelo gráfico.
Partimos do pressuposto que nos mangás a ênfase em uma narrativa que
qualifica o texto visual em detrimento do texto verbal não é uma mera apropriação ou
transposição de um ritmo narrativo oriundo dos animês. Assim, não se trata de uma
simples estratégia encontrada pelos produtores para competir com outras manifestações
narrativas.
Só para exemplificar, a escrita do Japão, descendente do mandarim chinês, é
representado por grafismo com um forte valor icônico. Determinados ideogramas
(kanji) são representações dos seus referentes como uma árvore, um homem e assim por
diante. Mesmo tendo em conta que muitos desses ideogramas possuem um elevado grau
de abstração e que em
muitos casos são uma
combinação de um
grafismo com outro.
Assim, não podemos
ignorar a sua referência
imagética como fonte
estrutural.9 (fig 10)
O traço descritivo
acompanhou a arte Fig. 10. 1ª seqüência (acima), representações de árvore, bosque e
floresta respectivamente. A estrutura do ideograma da árvore seria
japonesa desde os seus uma alusão, com certo grau de abstracionismo composto pela
copa, tronco e raiz. Os outros ideogramas são a representações da
primórdios, principalmente árvore em valores quantitativos. 2ª seqüência (abaixo) é (1)
representação de força, conota uma figura humana arando a terra,
as ilustrações que (2) arrozal; solo dividido e cultivado e (3) homem, junção dos dois
primeiros ideogramas.
objetivavam delinear cenas
do cotidiano no país. Podemos citar, por exemplo, uma série de xilogravuras do século
XVII ao XIX de artistas japoneses, como Torii Kiyonobu e Nakajima Matabei, que

9
A escrita japonesa é composta de três sistemas: o kanji (ideograma), que conota figuras que possuem o referente às
coisas do real, árvore, homem e etc, o katakana alfabeto silábico que representa palavras estrangeiras e o hiragana é
usado para todas as palavras para as quais não existe kanji e terminações dos verbos e adjetivos.

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construíam imagens nas quais os efeitos de simultaneidade entre o narrativo e o


descritivo aparecem (fig. 11).

Fig. 11. Três exemplos de Xilogravuras,


mostrando cenas do cotidiano japonês: Torii
Kiyonobu. (Courtesan painting a screen -
1711), Nakajima Matabei (Shintoku's
Souvenirs from Nara – 1713) e um desenho
anônimo (Kume spies on a gir - 1688-
1704), onde encontramos tanto os aspectos
descritivos como também a possibilidade
das imagens poderem contar histórias.

Nesses casos, há certa discrição no que diz respeito aos detalhes das
indumentárias, dos lugares e dos objetos. Entretanto, ainda assim, as pessoas
representadas desempenham algum tipo de ação, o que conota a uma possibilidade de
contar história.10
Assim, os artistas dos mangás, tendo este legado histórico e cultural, incorporam
graficamente nas suas narrativas momentos em que a ação efetivamente fica em
segundo plano, dando lugar a um caráter que sugere ao leitor mais uma contemplação
através de descrições de personagens ou ambientes. Isso reafirma as observações de
Mccloud (1995, p. 79) de que nos mangás as transições aspecto para aspecto ocorrem
com muito mais freqüência do que em outros tipos de histórias em quadrinhos (fig. 12).
As transições aspecto para aspecto incidem entre os quadrinhos. Uma cena inteira,
por exemplo, de um ambiente pode ser fragmentada em pedaços menores como se fosse
sugerido ao leitor, através de cada uma das imagens, que percorresse por meio da
vetorização do olhar cada quadro. Dessa forma, podemos contemplar a imagem inteira,
com a junção de todos os quadros.

10
Sobre essa possibilidade das imagens contarem histórias, podemos indicar a dissertação de Greice Schneider,
intitulada O Olhar Oblíquo: narrativa visual na fotografia de Robert Doisneau, na qual aborda a possibilidade que
certas imagens, no caso as produzidas por Doisneau, têm de suscitar a narratividade (SCHNEIDER, 2005).

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Esta transição aspecto para aspecto, que tem como objetivo mais evidente a
contemplação do que a narração gera, nesses casos, um retardo ou, ao menos, uma
diminuição no fluxo narrativo, servindo, portanto, para explicar ou descrever um
personagem ou uma situação. Podemos, então, considerar esta transição como uma
espécie de parênteses dentro do encadeamento das ações narrativas, visando oferecer ao
leitor subsídios, através da contenção, para entender melhor os personagens e a história.
Esta característica mais descritiva
nos mangás gera um paradoxo,
principalmente se levarmos em conta
que este tipo de histórias em
quadrinhos, na maioria das vezes, tem
um ritmo de leitura muito rápido. O
seqüenciamento narrativo dos mangás
por meio de imagens que geralmente
estão sem o acompanhamento do texto
verbal leva ao privilégio do movimento,
da ação dos personagens.
Entretanto, devemos considerar
que, em alguns momentos, este ritmo
narrativo acelerado dos mangás é
substituído por uma velocidade mais
lenta. Esse ritmo cadenciado tem o
intuito de descrever lugares, pessoas ou
Fig. 12. Mccloud mostra, em seu livro, a transição
de criar determinadas situações aspecto-para-aspecto encontrado freqüentemente
narrativas na qual o estado de tensão ou nos mangás (MCCLOUD, 1995, p. 79).

de expectativa prepondera (fig. 12).

2. Considerações finais
A proposta desse artigo foi apontar alguns traços distintivos do gênero do mangá
com as histórias em quadrinhos de super-heróis denominadas de comics. Além da
possibilidade de distinção entre esses dois gêneros procuramos também levar em conta
que, assim como já acontece com outros gêneros midiáticos tais como as mini-séries

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televisivas e a telenovela11, por exemplo, esses dois tipos de histórias em quadrinhos são
influenciados mutuamente.
Se no primeiro momento os mangás sofreram a influência dos ilustradores
ocidentais nos primórdios do século XX, recentemente encontramos diante de um
fenômeno de “manganização” dos quadrinhos de super-heróis. Se retirarmos algumas
passagens em que à influência do mangá nos parece fruto de certo modismo, motivado
talvez pela possibilidade de aumento das vendagens, poderíamos nos arriscar em dizer
que os quadrinhos de super-heróis incorporaram em definitivo e de maneira mais
genérica a representação de imagens articuladas entre si; tão comuns aos mangás. Hoje
em dia é corriqueiro encontrarmos nas comics desenhos com um forte apelo visual
diagramados com o objetivo de aproveitar todo o espaço da página e levar ao leitor a
uma compreensão imagética da narrativa que antecede
o entendimento verbal.
Assim o efeito da tabularidade estudado por
Fresnault-Deruelle (1976) não é uma exclusividade dos
mangás e nem tão pouco é uma novidade das histórias
em quadrinhos em geral. Para isso basta relembrar os
trabalhos de Will Eisner e Guido Crepax
respectivamente realizados na década de 40 e 60.
Entretanto, a propagação de páginas com
composições mais arrojadas é um capítulo recente da
trajetória das comics. Já no mundo dos mangás o apelo
visual sempre este presente. Só para ilustrar podemos
citar um dos primeiros trabalhos de Osamu Tezuka em
1947 – a Ilha do Tesouro – que já continham
seqüências em quadrinhos sem a presença do texto
verbal semelhantes a fotogramas. (fig. 13)
Fig. 13. Seqüência narrativa do
O outro objetivo desse trabalho foi tentar mangá a Ilha do Tesouro de
Osamu Tezuka (1947) sem a
definir o mangá como gênero através das suas necessidade do texto verbal. Os
quadrinhos lembram fotogramas.

11
Apesar de ser citado como exemplo e de reconhecermos sumariamente o borramento das fronteiras entre os
gêneros televisivos não entraremos no mérito da questão. Neste caso são abordagens com características peculiares
localizados em um universo que está fora do campo de pesquisa sobre as hqs em um primeiro momento. Para
entendermos melhor as semelhanças e diferenças entre telenovela e mine-série sugerimos a pesquisa de doutorado da
Faculdade de Comunicação da UFBA de Fernando Carrasco (2005), intitulado O personagem histórico “Giuseppe
Garibaldi” e suas necessidades dramáticas na obra de ficção televisiva “A Casa das Sete Mulheres”. Que se
encontra em andamento.

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características internas como a morfologia dos personagens e tipo de ambientação.


Evidentemente fica a predominância de uma construção física dos personagens mais
conhecidas como figuras cartunizadas de aparência geometrizada, olhos grandes e boca
pequena. Assim, com essas características, fica fácil perceber a diferença entre os
personagens de mangá e os das comics.
Entretanto, não podemos nos
esquecer que vários artistas que
desenham mangás procuram desenvolver
o seu estilo próprio e em alguns casos
costumam sair dos dogmas da construção
morfológica que consagrou esse gênero.
Por exemplo, Frédéric Boilet optou por
uma representação mais realista dos seus
quadrinhos como a configuração de tipos
e ambientes que beira ao fotográfico.
(fig. 14)
Essa nova maneira de desenhar os
mangás denominou-se de nouvelle
manga.12 Assim sendo, preferimos optar
com a caracterização de um ritmo
narrativo rápido e de ênfase visual para
Fig. 14. Em o Espinafre de Yukiko de Frédéric
eleger como características mais Boilet (2001), os traços cartunizados dos
personagens são substituídos por desenhos mais
marcantes, porém não exclusivas, na realistas, quase que fotográficos. Entretanto, o
ritmo narrativo permanece com um forte apelo
definição dos mangás como um gênero de visual mais comum aos mangás.
histórias em quadrinhos. A narração acelerada com o seu seqüenciamento basicamente
composto por imagens parecer ser a chave-mestra para o entendimento dos mangás
como gênero específico do universo das histórias em quadrinhos e o diferencial
primordial entre os mangás e as comics.

12
Segundo o manifesto encontrado no site oficial de Frédéric Boilet
http://www.boilet.net/fr/nouvellemanga_manifeste_1.html o nouvelle manga procurar privilegiar o cotidiano em
detrimento as histórias de ação de super-heróis e incorpora o penso da narrativa visual em suas histórias.

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Referências
BOILET, Frédéric. Manifeste de la Manga. Disponível em : <http://
http://www.boilet.net/fr/nouvellemanga_manifeste_1.html> Acesso em: 01 de dez. 2006

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.

FEDEL, Agnelo. O Desejo de Colecionar histórias em Quadrinhos. Disponível em :


<http://www.mundocultural.com.br/artigos/artigo.asp?artigo=777> Acesso em: 27 de nov. 2006

FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. Du linéaire au tabulaire. Communications. n. 24, p 7-23,


Paris, SEUIL, 1976.

GRAVETT, Paul. Mangá – Como o Japão Reiventou os Quadrinhos. São Paulo: Conrad,
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GROENSTEEN, Tierry. Système de la bande dessinée. Paris: PUF, 1999.

GUBERN, Román. La narration iconique au moyen d’images fixes. In : Degrés. 59 (1989) :


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LUYTEN, Sônia. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000.

MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Markon Books, 1995.

PICADO, José. Os Desafios Metodológicos da Leitura de Imagens: Um Exame Crítico da


Semiologia Visual. Revista Fronteiras Estudos Mediáticos, Porto Alegre-RS, v. 4, n. 2, p. 56-
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SCHNEIDER, Greice. O Olhar Oblíquo: narrativa visual na fotografia de Robert


Doisneau. 2005. 147 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação,
Universidade Federal da Bahia, Salvador.

SILVA, André. O Herói na Forma e no Conteúdo: Análise Textual do Mangá Dragon Ball
e Dragon Ball Z. 2006. 133 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de
Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

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