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Confins Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia 39 | 2019 Namero 39 Doss Dindmicas Terrtorais © Gestao de Polticas Publicas A meméoria das cidades na sociedade digital: reflex6es para S40 Paulo e o exemplo de ‘Quando a cidade era mais gentil’ ‘The memory of ees inthe dita! society: reflections for Sao Paulo and the example of When the city was gentler” Martin Jayo E DiEGO VASCONCELLOS VARGAS “Tradugdo(Ges) La mémoire des villes dans la société digitale : quelques réflexions pour S40 Paulo et exemple de « Quand la ville était plus douce » Resumos Portugués Francais Bngis Passadas duas décadas de sua publicagio, o ensaio Sobre a Meméria das Cidades, do gedgrafo Mauricio de Almeida Abreu, mantém sua relevincia’'e continua amplamente citado e reconhecido. No entanto, um elemento relativamente novo ¢ quem sabe importante para diseussoes sobre memoria das eidades parece estar recebendo menos atencio do que poderia: a maneira como, no contexto da diitalizacéo da sociedade, tecnologias de informagio comunicagio (TIC) podem alterar as formas de produgio, transmissio © reser shamada memoria urbana. Partindo da discsssao conceitual de Abred, ergumentamos neste §rtigo que Sio Paulo, por suas caracteristicas historias e por sua escasser de lugares de meméria, pode onfigurar-se como um laboratoro prvilegiado de experimentagio de TIC como suport para esse tipo de ‘memoria, Deux dévennies aprés sa publication, Tessai Sur la Mémoire des Ville, du géograplae Mauricio de Almeida Abreu, préserve loute sa relevance el se maintient largement eilé él reeonnu. Cependant, un élément re important en ce qui eoncerne les discussions & propos de la mémoie ire un pet plus envisagé: la maniére dont, dans le contexte de la digitalisation de Ia soci les technologies de Tinformation et de la communication (TIC) ont les moyens daltérer les formes de production, de transmission et de préservation de la soi-disant mémoire urbaine. En partant du débat onceptuel Abreu, on argumente dans cet article que Sao Paulo, cause de ses caractéres historiques et du ‘manque de liewx y voués la mémoire, peut se configurer comme un laboratoire privilégié expérimentation de TIC comme un support pour ce type de mémoire, ‘Two decades after its publication, the essay On the Memory of Cites, by geogragher Mauricio de Almetda Abreu, preserves all its relevance and eontinues to be widely quoted and acknowledged, However, relatively new and potentially important clement, conceraing discussions about the memory of cities, see to be receiving less attention than it could: the way n the context of society digitaliz information and communication technologies (ICT) might alter the forms through which the so-alled rb ‘memory can be built, transmitted and preserved. Starting from Abreu's conceptual diseussion, we argue in this article that Sao Paulo, due to its historical characteristics and its lack of places dedicated to memory, can be configured as a privileged laboratory forthe experimentation of ICT as a support for ths type of memory Entradas no indice Index de mots-clés : mémoire des vills ; mémoire collective, technologies de information ot de la communication ; Si0 Paulo Index by keywords : city memory; collective memory; information and communication technologies: S P i comunicagio; Séo Paulo, lo de palavras-chaves : meméria das cidades; meméria coletiva; teenologias de informagio © Texto integral fsualizar a imagem ‘A valorzagao do passado das cidades 6 uma caracteristica comum as sociedades deste ‘inal de milénio, No Brasil esta tendéncla ¢ inédita e reflete uma mudanga signfcaiva nos valores atiudes sociais até agora predominantes. Depois de um longo periodo em que s6 se cultuava o que era novo, um periado que resultou num ataque constante e sistemético as herangas vindas de tempos artigos, eis que atualmente o cotdiano urbano brasil vé-se invadide por dscursos e projetos que pregam a restauracéo, a preservagao ou a revalorizagao dos mais dversos vestigios do passado. A justificativa apresentada & invariavelmente @ necessidade de preservar @'meméria urbana’ (Abreu, 1998, p.5, aspas no original, Com as consideragdes acima, 0 geOgrafo carioca Mauricio de Almeida Abreu, um dos mais importantes autores da Geografia Historica brasileira, iniciava em 1998 seu ensaio Sobre a ‘Meméria das Cidades. O autor se propunha a compreender um discurso que encontrava eco cada ver maior nos centros urbanos brasileiros naquele momento: o de defesa do patriménio preservacio da "memeéria urbana”. Em um perfodo em que muitas eidades pareciam despertar de repente para a valorizagao dessa meméria depois de décadas ou mesmo séculos de deseaso, Abreu propés uma interpretagio para o coneeito de meméria de locais, especialmente de cidades. Levando em conta que “a cidade nao pode lembrar-se de nada (..) [pois] quem lembra so as pessoas que nela vivem ou viveram” (Abreu, 1998, p. 17), 0 autor conecituou a meméria das cidades como um tipo de meméria coletiva (no sentido otiginalmente dado ao termo pelo socilogo francés Maurice Halbwachs) que se vale de ancoras espaciais - edificagdes, equipamentos urbanos e demais estruturas presentes na cidade — como lugares de meméria (conforme entendidos pelo historiador também francés, Pierre Nora). A memoria da cidade diz respeito ao estoque de lembrangas de tempos passados que esto desta forma ancoradas ou cristalizadas na paisagem, e que podem ser objeto agora de reapropriagio por parte da sociedade, constituindo-se assim como elemento importante da identidade do lugar. Passadas duas d&cadas da sua publicaglo e pouco menos de uma do falecimento do autor, 0 artigo de Abreu continua amplamente citado e reconhecido, Republieado como capitulo em diferentes coletaneas (Carlos et al, Orgs., 2011; Fridman e Haesbaert, Orgs. 2014), ele tem servido de referéncia a numerosos trabalhos em diferentes campos diseiplinares. Em dezembro e 2018, 6poca de redagio do presente texto, o artigo contava com algo mais que 350 citagées no Google Académico. A maior parte (cerca de 60%) datava dos Gltimos cinco anos, evidenciando que a discussio de Abreu se mantém relevante apesar da passagem do tempo. Por outro lado, um elemento relativamente novo e quigé importante para discusses sobre meméria das cidades parece estar recebendo menos atencio do que poderia: a maneira como, neste inicio do séeulo XXI, no contexto de erescente digitalizagio da sociedade, as teenologias de informagio e comunicagéo (TIC) parecem ter o poder de alterar as formas de producio, transmissio e preservagio dessa meméria coletiva associada a paisagem urbana, Embora a digitalizagao da sociedade no seja um fenémeno propriamente novo (sua origem remonta a segunda metade do século XX), sua expansio se viu acelerada no inicio do presente séeulo com 0 advento das redes sociais virtuais, blogs, wikis e outras aplicagées da chamada web 2.0. Se, como afirma Abreu, a meméria das cidades 6 uma meméria coletiva construida por individuos a partir de suas relagdes em dado espago e nele ancorada,cabe entio nos indagarmos se, € de que forma, a produgio dessa meméria se altera quando a interacio entre individuos se digitaliza, deixando de ser confinada ao espago material e expandindo-se a um espago informacional cada vez mais consolidado pelo uso dessas tecnologias. 0 objeto de diseussio do presente artigo sio, portanto, as possiveis implicagées da erescente digitalizagio da sociedade sobre as formas de interagao entre individuos na produgio de memoria das cidades. Vale ressaltar que esses dois assuntos ~ de um lado a digitalizagao da sociedade, de outro a valorizagio do passado urbano e da meméria das cidades ~ nfo costumam aparecer discutidos de forma articulada em literatura académica, ¢ no senso comum chegam a ser vistos como manifestagGes de fendmenos antagénicos entte si De um lado, 6 comum considerar-se que 0 avango das TIC e o processo de globalizagio tém propiciado um novo modelo de sociedade: global, intereonectada, “em rede” (Castells, 1999). Este fenmeno tende a homogeneizar diferencas: as comunicagSes se tomiam instant@neas,interages sociais se desprendem do espaco © migram para um ciberespago informacional cada vex mais consotidado (Lévy, 1999). O papel das TIC neste movimento é ponto de consenso desde McLuhan (1964): sfo elas, em tiltima instancia, que tornam possivel a pereepeao do mundo como um s6 espago, uma “aldeia global” cada vex mais homogénea, o outro lado, sabemos hoje que essa homogeneizagio se dé com maior intensidade no campo ‘teenolégico e econdmico do que no da cultura, em que surgem tensdes entre o global e o local (Robertson, 2000; Lourengo, 2014). F nesse eontexto que, desde o final do séeulo XX, vivemos ‘uma época de erescente culto a meméria e as identidades locais (Hyussen, 2002; Waldman- Mitnick, 2006; Baer, 2010). Mais do que em qualquer outra época, as sociedades ocidentais tém valorizado seu passado: preservamos monumentos, desenvolvemos comportamentos saudosistas, valorizamos o patriménio arquiteténico e cultural, retomamos (ou inventamnos) velhas tradicdes locais. Esse comportamento, verdadeira “obsessao pela meméria” (Hlyussen, 2002), leva a um fortalecimento das relagSes identitérias entre individuos e os “conjuntos espaciais que Thes do ancoragem no planeta” (Abreu, 1998, p. 6). O papel das TIC neste movimento tem sido menos discutido. Sera que 0 avango das TIC ¢ a digitalizaglo da sociedade, se de um lado inegavelmente tém contribuido para homogeneizar 0 mundo, de outro também podem instrumentar resisténcias locais? Para responder essa questo com foco na construgdo de meméria das eidades, o presente artigo se desdobra em trés seqdes principais, além desta introducio. Na proxima seco (Meméria das eidades: entendendo o conecito), procuramos sintetizar as conceituagées de Halbwachs para meméria coletiva e de Nora para lugar Ge meméria, para entio abordar a forma como Abreu (1998) as articula, propondo sua interpretagio para a nogio de memiéria das cidades. A segdo seguinte (A curta meméria urbana de Sio Paulo e as promessas digitais) coneentra-se na cidade de Sio Paulo. Procuramos mostrar ali que, embora Sio Paulo, pela forma como se desenvolveu, seja uma cidade carente de lugares de meméria, ao mesmo tempo ela pode ser um laboratério privilegiado de experimentagéo de TIC como suporte & rememoragéo urbana. Uma terceira seco (Uma visita a ‘Quando a cidade era mais gentil’) é dedicada @ analisar um caso particular de eriagio de meméria da cidade com ancoragem propiciada por tecnologia Meméria das cidades: entendendo o conceito ‘A palavra memiéria € empregada de diferentes formas em diferentes campos de estudo. Biologicamente, a meméria pode ser definida como a capacidade de um individuo de registrar, categorizar, organizar, resgatar e reutilizar informagées do meio vivido. Neste sentido, que interessa por exemplo as neurociéneias, a meméria € uma habilidade que diz respeito a individuos. Nao é essa, entretanto, a dimensio da meméria que mais importa quando se discute, como queremos discutir, a meméria como elemento da identidade de um lugar. Para além da dimensao individual, @ meméria também tem uma dimensio social ou coletiva, conhecida nas ciéncias sociais sobretudo a partir das contribuigdes de Maurice Halbwachs (1877-1945). ‘A principal ideia apresentada por Halbwachs (1990) é a de que, embora a dimensio individual exista, a meméria é um fendmeno acima de tudo coletivo e sua construgao é sempre determinada pelo contexto social em que o individuo esta inserido. Isto néo significa que o individuo nao tenha a eapacidade de formar lembrancas em condigoes de isolamento da sociedad, porém memrias que ndo tenham sido formadas a partir da relagdo com o contexto social, com 0 outro, costumam, ser limitadas e tendem a desaparecer com maior faciidade.

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