You are on page 1of 12
A CIDADE DO RECLAME: Propaganda e periodismo em Sao Paulo — 1890/1915 Heloisa de Faria Cruz* Parece ocioso reafirmar a’ na atualidade. Afinal, as inimeras discussées sobre 0 mundo globalizado vém apontando repetidamente a relevancia da publicidade na articulagao do capitalismo “multimidia’’', Fenémeno pouco estudado pelos historiadores brasilei- ros, a historicidade das relagdes entre propaganda e vida social apresenta-se como um campo aberto a indagag’o e 4 pesquisa. Buscando contribuir para a problematizacao de tal tematica, o presente artigo busca discuti No Brasil televisivo, pds ditadura militar, as estreitas articulagdes entre publici- dade e televisiio parecem obscurecer a importincia do estudo de tais fendmenos nas Neste texto busco dialogar com as perspectivas propostas por Ha- bermas sobre o lugar da imprensa na reestruturacao da esfera publica burguesa e sobre © papel da publicidade no processo de formagao dos publicos e na popularizagao do periodismo e da cultura letrad: No(Brasil) diferentemente da Europa ocidental e mesmo de outros paises da Amé- rica Latina, as interdigdes metropolitanas ao desenvolvimento das artes graficas na co- I6nia, que provocam a chegada tardia de Gutemberg ao Brasil, transformam Em Sao Paulo, seria principalmente nas Ultimas décadas do século XIX, surpreendida pela turbuléncia das transformagdes sociais, que a cultura letrada e impressa comegaria decididamente a avangar para além dos circulos das elites masculinas tradicionais. Nessa época, em ritmo acelerado, no * Departamento de Histéria da PUC-SP. 1 Ver Chesneaux, Jean. Modernidade/Mundo. Rio de Janeiro, Vozes, 1989. Principalmente capitulos 3 ¢ 4. 2. Este artigo tem como base uma pesquisa mais ampla, sobre 0 periodismo paulistano, realizada para minha tese de doutorado. Cruz, Heloisa de Faria. Na cidade, sobre a cidade: cultura letrada, periodismo e vida urbana. Si0 Paulo, FFLCH/USP, 1994. 3. Habermas, Jiirgen. Mudanca estrutural da esfera publica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984. Proj. Historia, Séo Paulo, (13), jun. 1996 81 compasso de um modo de vida que exporta capitais e invade rapidamente inimeros espagos do planeta, a histéria das metrépoles brasileiras multiplica 0 tempo e a expe- riéncia social. O tempo se condensa. As (a aboligdo da escravidao, a proclamagao da Reptblica, os processos de in- dustrializagao, a ampliagao acelerada do mercado interno, a imigragao massiva) langam algumas Agitada por novas formas de viver e pensar, novas situagdes e projetos sociais, questionada pela emer- géncia das linguagens da modernidade e de projetos de contestago 4 sociedade bur- guesa, a cidade letrada, ainda moldada nas tradigées elitistas da colénia, enfrentaria intimeros embates e desafios. Para a reflex4o que lida com a tematica da cidade e do viver urbano em Sao Paulo, o perfodo compreendido entre o final do século XIX e as décadas iniciais deste século emerge como um dos momentos estratégicos para a pesquisa sobre a construgao da identidade cultural da Paulicéia moderna. Na ultima década do século XIX, ao lado dos grupos tradicionais das elites paulistanas, “os herdeiros dos bandeirantes”’, e de levas flutuantes dos estudantes da Academia do Largo de Sao Francisco, homens, mu- theres e criangas, estrangeiros, em sua maioria italianos, trazidos pela corrente imigra- toria iniciada nos meados dos anos 80, j4 compdem 55% da populacao da cidade. Assim também o censo de 1890, realizado logo apés a abolicao, nos informa que 11% da populacdo paulistana é composta por negros e mulatos. Sem aparecer nas estatisticas do periodo, mas com visibilidade na imprensa e nos relatos de época, ai estio inimeros contingentes vindos do interior e que, na cidade, ganham a identidade de caipiras.* No ambiente urbano, as experiéncias vividas e pensadas por esses diferentes grupos sociais manifestavam-se nos processos de construgao dos modos de viver. Instituindo espagos novos de convivéncia, ruas movimentadas, fabricas, oficinas, lojas, associagdes recrea- tivas, culturais e politicas, cafés, teatros, cinematégrafos, escolas, etc., as experiéncias sociais desses sujeitos se confrontam no desenho da nova cidade. Nessa conjuntura, a cultura letrada paulistana, moldada nas arcadas do Largo de Sao Francisco, é questionada pelas novas situagdes e desafios sociais colocados pela cia, Envolvda pelos novos modes de vives, acl impress ransfomase. Nesses novos espacos da vida urbana, de inameras e complexas maneiras, a escrita, e princi- palmente a palavra impressa, estabelece novas articulagdes na vida cotidiana da cidade. Misturada as necessidades colocadas pelo desenvolvimento das escritas e controles mer- cantis, obedecendo aos ditames de “vulgarizagao” impostos pela propaganda, transpor- 4 Dados colhidos no Recenseamento de 1890 e no Relatério apresentado ao Secretério de Negécios do Interior de Sao Paulo pelo Diretor da Repartigio de Estatistica © Arquivo. Rio de Janeiro, Tip. Lenzinger, 1894. 82 Proj. Histéria, Sao Paulo, (13), jun. 1996 tada na velocidade dos novos servicos de correios e telégrafos e articulada as novas linguagensvisuns da medcmidae, = ti esod pede one ainda ue oat do centro da cidade, a escrita, assumindo a verticalidade dos letreiros € tabuletas dos estabelecimentos comerciais, passa progressivamente a compor 0 novo cenario urbano. A leitura dos jornais passa a integrar 0 dia-a-dia da cidade, em que, segundo Raffard, antes de clarear 0 dia sao oferecidos ao publico os jornais da terra €, depois da chegada do expresso do Rio, “Id pela noite”, as folhas de fora, que nos quiosques, botequins de praga € outros pontos, podem ser lidos comodamente. Nas Portas das redacées, telegramas e noticidrios chamam a atengao da populacao e das tipografias saem “‘numerosos bambini que chamam a si o monopdlio da venda dos diversos 6rgaos da imprensa, cujos titulos gritam com pronuncia fortemente italianizada”5 € 0 periodismo emerge como um importante espaco cultura letrada. Mais ai O movimento de crescimento e circulagao dos materiais impressos em Sao Paulo, prinipalmente da Qi erie, aay (GhGdaME. Nas duas ultimas décadas do século XIX, vieram a publico mais de seiscentas publicaces paulistanas, 0 quintuplo das quatro décadas anteriores. A imprensa diver- sifica-se chegando ao ptblico por meio de um grande mimero de periddicos das mais variadas modalidades. Articulando-se as novas linguagens, num ambiente social livre das relagdes es- cravistas, fazendo da cidade seu ambiente, na imprensa periddica, a palavra escrita e impressa parece buscar transpor os limites impostos por suas fungées de cédigo e lin- guagem de uma reduzida elite proprietaria e letrada, ligada diretamente aos circulos do poder na provincia e oriunda da Faculdade de Direito. A cidade intromete-se na im- prensa. O crescimento da cidade, a diversificago das atividades econémicas, a amplia- ¢40 do mercado e 0 desenvolvimento da vida mundana sao incorporados as formas e contetidos dessas publicagées. Através das novas temiticas, personagens ¢ linguagens, © processo social que transforma a cidade passa também a configurar essas publicagées, e elas, a cidade. 5 Raffard, Henrique. Citado por Bruno, Emani da Silva (org). Meméria da cidade de Séo Paulo: depoimentos de moradores e visitantes ~ 1553/1958. Sao Paulo, SMC/DPH, 1981, p. 107. Proj. Historia, Sao Paulo, (13), jun. 1996 83

You might also like