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ANDRÉ BUENO – DULCELI ESTACHESKI

JOSÉ MARIA SOUSA NETO – RENAN MARQUES BIRRO


[ORGS.]

Aprendendo
História:
ENSINO &
MEDIEVO
Página | 1

APRENDENDO HISTÓRIA:

ENSINO &
MEDIEVO
PRODUÇÃO:
LAPHIS – Laboratório de Aprendizagem Histórica da UNESPAR
Leitorado Antiguo – UPE
Projeto Orientalismo

Aprendendo EDIÇÃO:
História: Edições Especiais Sobre Ontens
ENSINO &
MEDIEVO
Página | 2

FICHA BIBLIOGRÁFICA
BIRRO, Renan Marques; BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José
Maria de Sousa. Aprendendo História: Ensino & Medievo. União da Vitória:
Edições Especiais Sobre Ontens, 2019.
ISBN: 978-85-65996-68-6
Disponível em www.revistasobreontes.site
SUMÁRIO

CONVIDAD@S
LITERATURA E HISTÓRIA COMO SABERES COMPLEMENTARES SOBRE O MEDIEVO –
INTRODUÇÃO A UMA DISCUSSÃO
Álvaro Alfredo Bragança Júnior, 6
Aprendendo
A IDADE MÉDIA ENCANTADA DOS ARAUTOS DO EVANGELHO ANALISADA ATRAVÉS História:
DO MEDIEVALISM ENSINO &
Clinio de Oliveira Amaral e João Guilherme Lisbôa Rangel, 11 MEDIEVO
Página | 3
O MEDIEVALISMO NO BRASIL E O SEU POTENCIAL PEDAGÓGICO
Douglas Mota Xavier de Lima, 19

AS TRADUÇÕES E A PESQUISA EM HISTÓRIA MEDIEVAL: REFLEXÕES SOBRE UM


PROBLEMA
Lukas Gabriel Grzybowski, 27

JOGOS ELETRÔNICOS E MEDIEVALISMO: REFLEXÕES E CRÍTICAS NA EDUCAÇÃO


BRASILEIRA
Renan Marques Birro, 37

AUTOR@S
DISCUTIR GÊNERO NO CONTEÚDO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: ALGUMAS
POSSIBILIDADES DE REFLEXÃO A PARTIR DO JOGO “HAGIOGRAFANDO”
Danielle Mendes da Costa e Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira, 47

DO INTERESSE PELA MENTALIDADE MEDIEVAL: A FACE MONSTRUOSA DA


COLONIZAÇÃO E OUTRAS PONDERAÇÕES
Eduardo Leite Lisboa, 55

O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: O CINEMA COMO FERRAMENTA AUXILIAR NO


PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM
Fábio Alexandre da Silva e Graziele Rodrigues de Oliveira, 63

O FENÔMENO DO PODER E DO LEGÍTIMO NA ASCENSÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO


Guilherme Tavares Lopes Balau, 69

HISTÓRIA E IMAGEM: O DIABO NAS REPRESENTAÇÕES VISUAIS MEDIEVAIS


(SÉCULOS VI E XII)
Juliana Gomes Rodrigues e Luciano José Vianna, 75

A INFLUÊNCIA DA ARTE GÓTICA NAS CATEDRAIS DA BAIXA IDADE MÉDIA DO


SÉCULO XII
Leandro de Almeida Costa, 85

ENSINO DE HISTÓRIA E TEMPORALIDADE NA CRÔNICA “BREVÍSIMA RELACIÓN DE


LA DESTRUCCIÓN DE LAS INDIAS” DE BARTOLOMÉ DE LAS CASAS
Luciano José Vianna, 93

LITERATURAS MEDIEVAIS SOB A ÓTICA CONTEMPORÂNEA: A RESSIGNIFICAÇÃO


DE PERSONAGENS MEDIEVAIS NAS OBRAS DE TOLKIEN E ROWLING
Lunielle de Brito Santos Bueno, 100
A IGREJA UNIVERSAL E SUA LUTA CONTRA O SATÃ ATRAVÉS DA INDUMENTÁRIA:
UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO MEDIEVALISM
Marcos Vinícius da Silva Ramos, 108

CONHECER PARA OPERAR: O SABER DOS MÉDICOS-CIRURGIÕES MEDIEVAIS COM


BASE NA OBRA DE HENRI DE MONDEVILLE (FRANÇA, SÉC. XIII – XIV)
Aprendendo Mauricio Ribeiro Damaceno, 115
História:
ENSINO & “TODOS HOMENS DESEJAM SABER!” A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO NO “CONVIVIO”
MEDIEVO DE DANTE ALIGHIERI
Página | 4 Ronny Costa Pereira, 123
CONVI Aprendendo

DAD@S
História:
ENSINO &
MEDIEVO
Página | 5
LITERATURA E HISTÓRIA COMO SABERES COMPLEMENTARES SOBRE
O MEDIEVO – INTRODUÇÃO A UMA DISCUSSÃO
Álvaro Alfredo Bragança Júnior

Aprendendo Por um pequeno debate – Historia e Literatura


História: Retomando antigas reflexões acerca da complementariedade epistemológica
ENSINO & da área de Letras, mais especificamente da Literatura, para os estudos
MEDIEVO historiográficos, percebe-se que, especialmente a partir dos fins da segunda
Página | 6 década do século XX, paulatinamente se cria um diálogo maior no âmbito
das Ciências Sociais, cujo centro de discussão gravitaria ao redor da
possibilidade da Literatura não apenas fornecer subsídios interpretativos
para um conhecimento maior daquilo que convencionamos chamar de
“real”, mas também e principalmente constituir-se como tal. Como símbolo
de uma construção ideal, mas ao mesmo tempo empiricamente passível de
datação, o conceito “realidade” permite diversas formas de entendimento
como background para a formulação de teorias epistemológicas. Seja qual
for, porém, a abordagem hermenêutica, qualquer discurso que afirme ou
negue o real insere-se dentro de uma visão cultural específica, que norteia
o modus faciendi dos discursos científicos específicos.

Nesse sentido, tentamos nos ocupar com a zona de imbricação entre as


ciências histórica e literária e as metodologias para sua aplicação ao estudo
dos textos medievais – em nosso caso preferentemente em língua alemã - a
partir de nossas propostas de entendimento sobre cultura e sobre como
esse processo cultural operacionaliza conjuntamente o fazer literário e o
fato histórico. Para tanto, nesse brevíssimo artigo, reputamos como
indispensável nos debruçar sobre os conceitos de cultura e de discurso por
nós postulado.

Se remontarmos à sua etimologia, cultura deriva-se do verbo latino colere,


cuja acepção primordial seria “cultivar”. Destarte, o cultivo de determinada
área associa-se metaforicamente ao cuidado com algum campo do saber,
que durante gerações frutifica, na medida em que os séculos lhe atribuem
insumos de variados tipos, configurando-lhe posteriormente um novo plano
de existência, inserido dentro de um determinado período e de uma
conjuntura social específica. Uma das formas de chegada a esses
desdobramentos espaço-temporais é o texto escrito. Tanto a ciência
histórica quanto a Literatura, constituídas enquanto epistéme, trabalham
com textos, embora com objetivos diferentes. A uma modelar tentativa de
se “documentar” o passado e o presente de uma junta-se o labor essencial,
mas não integralmente estético da outra. De forma resumida, poderíamos
dizer que ambas vêem na palavra escrita uma fonte de criação e de
recriação de um dado momento. Nesse estágio, a cultura e a realidade
indissociam-se. Testemunho e documento apresentam pontos de
convergência e divergência em seus procedimentos decodificadores do
“real”. Para alguns historiadores, como Chartier (1987, p.16-17), o que
talvez possa uni-los é a visão de uma “história cultural” ao definir o objeto
de estudo desta ciência: “identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a
ler”. Nesse sentido, pleiteia-se uma historicização da obra literária, como
afirmam Pereira & Chalhoub (1998:7), pois pode-se através da mesma,
após sua inserção dentro do movimento social, “investigar as suas redes de
interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à
sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com
a realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo”. Aprendendo
História:
Sabendo-se que uma obra literária se constitui a partir de sua materialidade ENSINO &
textual,verifica-se o pretexto/pré-texto para sua produção, a fim de, à guisa MEDIEVO
de outro procedimento metodológico, investigá-lo como possível patamar de Página | 7
contextualização micro-histórica de um certo dado cultural. Por isso, ao
definir as relações entre cultura e texto literário, Doris Bachmann-Medick
(1996, p.10) afirma que

“Entender cultura como texto significa delimitar um campo comum, que


somente pode ser trabalhado através de questionamentos
transdisciplinares: a cultura é um campo, que – de forma semelhante a um
texto – possibilita diversas formas de leitura. A própria atenção direciona-se
à condensação de significados interpretativos das formas de representação
cultural como, do mesmo modo, às estratégias retóricas na representação
das culturas.”

O texto, com seu repositório cultural, configura-se como discurso sobre uma
dada realidade. Aqui, pois, cabem algumas sucintas palavras acerca do que
podemos sumarizar como discurso. Também falando sobre a origem
etimológica, discurso, cujo termo é oriundo do latim discursus, particípio
passado de discurrere, “correr ao redor”, possui o significado metafórico de
“lidar com um assunto através de vários pontos de vista”, o que conflui para
a zona de imbricação dialógica por nós mencionada anteriormente.

A partir da década de 1960 afirma-se um campo metodológico muito caro


às Letras, mas de teor transdisciplinar, qual seja, a Análise do Discurso.
Postula-se que o discurso pode ser entendido a partir de diversas formas:
como uma estrutura verbal, um evento comunicativo cultural, uma forma
de interação, um sentido, uma representação mental ou um signo, por
exemplo. Interessa-nos, neste pequeno artigo, a segunda acepção. Neste
prisma, as estruturas gramaticais (e.g., sintaxe, semântica), de retórica
com o uso das figuras de linguagem (antíteses, metáforas, eufemismos) e
as tipologias textuais que conformam o discurso (argumentação, exposição,
narração).

Desta maneira, abordagens inter e transdisciplinares entre os discursos


histórico e literário, ao se entrecruzarem, oferecem um campo de visão
mais amplo, embora não único, de um determinado ”sujeito cultural”,
coletivo ou não, consciente ou não de seu papel como agente transmissor
de informações sobre sua geração. Destarte, uma ficcionalização da História
não é o nosso objetivo, mas sim a ficção literária historicamente tratada
como produto cultural.
A Idade Média sob as luzes histórico-literárias
Ao tratarmos neste texto da Baixa Idade Média em regiões do Sacro
Império Romano-Germânico encontramos alguns elementos culturais, cuja
abordagem histórico-literária possibilita-nos um viés para uma tentativa de
reconstrução daquele passado. Poesia, enquanto realidade literária, como
Aprendendo relato histórico presta-se a esse papel. Contudo, com que elementos
História: podemos contar para nos achegarmos às informações presentes naquela?
ENSINO & Os portadores da cultura cortes e caval(h)eiresca dos séculos XII e XIII
MEDIEVO eram, em especial, cavaleiros e ministeriais oriundos da nobreza, que
Página | 8 gradativamente ganharam importância e prestígio e a quem a cultura do
trovadorismo era endereçada. [Em alemão, o termo para “trovadorismo“ é
Minnesang]. Deste modo, as cortes ofereciam aos trovadores a
oportunidade de criar um plano ficcional ideal, no qual aquelas traziam
como expressão modelar para a composição dos textos a veneração da
mulher enquanto frouwe e herrîn. [Frouwe designa a dama cortes,
enquanto herrîn conceitua a senhora, inacessível ao caval(h)eiro.] Ao
mesmo tempo os trobadours entretiam as cortes com histórias de
aventuras. Fala-se, neste caso, da épica cortes.

Quando nos ocupamos com a questão de como teria sido possível, que
tenha se formado no círculo dos bellatores uma consciência literária e de
classe, precisamos, como germanistas, de sólidos pontos de apoio na
historiografia em língua alemã sobre a Baixa Idade Média germanófona. As
fontes literárias e em especial os epos podem e devem ser considerados,
também em sua essência, como testemunhos importantes de uma época
em mudança. Se, no entanto, se trata de um jogo ou de um ideal
pedagógico desejado, conforme as opiniões de Bumke (1999), Althoff
(1997) e Wenzel (1974), dentre outros, tal indagação ficará pendente para
futuras elucubrações.

A historiografia coloca à disposição do pesquisador resultados, os quais


podem lhe proporcionar um olhar “mais realista“ sobre as condições de vida
em um dado momento histórico. Os cavaleiros da alta nobreza e os
ministeriais sentiam-se especialmente como co-participantes das histórias
heróicas dos épico arturianos, já que estas eram bem apropriadas para um
melhor simbolismo dos ideais de cortesia. [Sobre a diferenciação entre
Ritter (caval(h)eiro) e Ministerialen (ministeriais) cf. BUMKE, Ministerialität
und Ritterdichtung.] Ao serviço à dama, efetivamente estimulado pela
Igreja no trovadorismo, associou-se gradativamente nos romances uma
auto-representação aberta e idealisada da cultura cavaleiresca da corte e da
ostentação de poder em alguns pequenos círculos da alta nobreza. Uma
auto-consciência e fausto participavam também na elaboração literária de
um ideal de vida. As aventiuren através de florestas misteriosas, reinos
mágicos, o confronto com criaturas diversas, as lutas e justas por
minnecliche frouwen [Termos em médio-alto-alemão que significam
“damas dignas de serem cortejadas“] e contra contendores com ou sem as
virtudes caval(h)eirescas eram presumivelmente lidas em algumas cortes
determinadas e com isso tornavam-se conhecidas. Nestes pequenos círculos
desenvolveu-se, por conseguinte, este jogo literário de entretenimento, que
possuía simultaneamente um caráter modelar. Uma das tarefas da literatura
caval(h)eiresca e cortes de então é, conforme nosso ponto de vista, o
disciplinar de um estamento de guerreiros e sua reformulação em
caval(h)eiros cristãos da corte. História e Literatura se indissociam.

Por considerações finais (in)conclusivas


De acordo com o exposto retomamos uma antiga indagação nossa, que Aprendendo
poderá servir muito bem como cláusula final deste nosso texto, digamos, História:
provocativo. Quais os limites entre uma poesia que se historiciza e uma ENSINO &
abordagem historiográfica que encontre naquela os traços de uma MEDIEVO
“realidade“ almejada? Página | 9
A Literatura não é, nem deve ser um espelho da realidade histórica. Do
mesmo modo, o documento histórico significa um modelo de percepção e
entendimento de uma dada realidade. Ambos os caminhos podem ser
englobados lato sensu naquilo que entendemos como cultura, i.e., o
complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e
doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e
característicos de uma sociedade. (Ferreira, 1995, p.508). Se, para a
análise do testemunho histórico, como afirmam Pereira & Chaloub (1998:9)
deve-se sempre ter em vista que os sujeitos vivem a história como
indeterminação, como incerteza, como necessidade cotidiana de intervir
para tornar real o devir que lhes interessa, os textos medievais fornecem
elementos histórico-literários, que ao reduzir a escala de observação (Sacro
Império- séculos XII-XIII), proporcionam ao estudioso da Idade Média uma
visão privilegiada através da arte da palavra de suas tensões vivas.

Referências
Álvaro Alfredo Bragança Júnior é Professor Associado da UFRJ e coordena o
NIELIM (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre as Literaturas da Idade
Média)

ALTHOFF, Gerd. Spielregeln der Politik im Mittelalter. Darmstadt:


Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1997.

BACHMANN-MEDICK, Doris. Kultur als Text - Die anthropologische Wende in


der Literaturwissenschaft. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag,
1996.

BOUTIER, Jean & JULIA, Dominique. (Org.) Passados recompostos: campos


e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/FGV, 1998.

BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Medievística Germanística - introdução


a um saber desconhecido no Brasil. Revista Plêthos, n°2,2, 2012. Disponível
em:
http://www.historia.uff.br/revistaplethos/nova/downloads/11%C3%81lvaro.
pdf
BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Poesia histórica e/ou realidade literária
- Walther von der Vogelweide e a Alemanha dos séculos XII e XIII: uma
abordagem culturalista. Disponível em:
http://www.ricardocosta.com/alvaro.html

Aprendendo BUMKE, Joachim. Höfische Kultur – Literatur und Gesellschaften im hohen


História: Mittelalter. 9. Auflage. München: DTV, 1999.
ENSINO &
MEDIEVO CHALOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (Org.) A História
Página | 10 contada:capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.

CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa:


Difel, 1987.

FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio da língua


portuguesa. 2. ed.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

MIETHKE, J & SCHREINER, Klaus. Sozialer Wandel im Mittelalter.


Sigmaringen: Jan Thorbecke Verlag,1994

MÜLLER, Ulrich & WEISS, Gerlinde. Deutsche Gedichte des Mittelalters.


Stuttgart: Philipp Reclam jun., 1993.

THEODOR, Erwin. A Alemanha no mundo medieval. In: MONGELLI, Lênia


Márcia. (Org.) Mudanças e rumos: o Ocidente medieval (séculos XI-XIII).
Cotia: Íbis, 1997.

WENZEL, Horst. Frauendienst und Gottesdienst. Berlin: Erich Schmidt


Verlag, 1974.
A IDADE MÉDIA ENCANTADA DOS ARAUTOS DO EVANGELHO
ANALISADA ATRAVÉS DO MEDIEVALISM
Clinio de Oliveira Amaral
João Guilherme Lisbôa Rangel

Aprendendo
Introdução História:
O período compreendido entre o século V e o século XV, chamado idade ENSINO &
média, foi e continua sendo, desde o século XIV, apropriado/reelaborado de MEDIEVO
diferentes formas. O retorno ao medievo, ocorrido no último quarto do Página | 11
século XX, segundo Paul Zumthor, deve-se, apesar da alteridade, ao fato de
que este período seja apreendido como a base da sociedade
contemporânea. Sustenta-se que, para além desse argumento, trata-se de
uma “base” em um contínuo processo de reinvenção, sobretudo, a partir do
século XXI. Assim, a perspectiva por meio da qual este ensaio foi redigido
compreende o relato hagiográfico de são Raimundo de Peñafort – publicado
no site institucional dos Arautos do Evangelho(https://www.arautos.org/) –
como “medieval”. Esta instituição, deliberadamente, utiliza-se do medievo
com o propósito de autolegitimar e autossacralizar a sua ação
evangelizadora.

Portanto, defende-se a hipótese de que, em uma cultura marcada pelo


cristianismo como a brasileira, a utilização de uma estratégia discursiva,
pautada em uma narrativa de volta ao medievo, confere legitimação a
quem a profere. Assim, utilizar-se-á a teoria do medievalism que pode ser
definida, entre outras formas, pela apropriação e pela recepção feita do
medievo. E, segundo Francis Gentry e Ulrich Müller, um dos quatro modelos
distintos de recepção medieval é, especificamente, a “political-ideological
reception of the Middle Ages” significando como: “medieval works, themes,
‘ideas’ or persons are used and ‘reworked’ for political purposes in the
broadest sense, e.g., for legitimization or for debunking (in this regard, one
need only recall the concept ‘crusade’ and the ideology associated with it)”
(Gentry and Müller 1991).

Algumas informações sobre os Arautos do Evangelho


Segundo a própria descrição do grupo, os Arautos do Evangelho são uma
associação internacional privada de fiéis para o direito pontifício
(http://www.arautos.org/secoes/arautos/quem-somos/Arautos-do-
Evangelho-136523) que foi reconhecida pela Santa Sé em 22/02/2001; está
presente em 57 países espalhados pelo mundo, tais como EUA, Canadá,
Itália, África do Sul, Brasil (local de origem), Argentina, Chile, Hungria,
entre outros.

Os Arautos, como são reconhecidos, foram fundados pelo Monsenhor João


Clá que possui doutorado em direito canônico pela Pontifícia Universidade
São Tomás de Aquino, de Roma e em Teologia pela Universidade Pontifícia
Bolivariana de Medellin. Assumidamente de orientação teológico “tomista”,
Mons. João Clá também fundou o Instituto Filosófico Aristotélico Tomista
(IFAT) e o Instituto Teológico São Tomás de Aquino, assim como o Instituto
Filosófico-Teológico Santa Escolástica, para o ramo feminino:
(http://www.joaocladias.org.br/curriculum.asp).

Em sua maioria, os membros dos Arautos não professam votos, à exceção


dos que seguem o sacerdócio, permanecendo leigos. Além disso, existem os
“cooperadores” que aderem a diretriz espiritual, político e filosófica da
Aprendendo associação, mas permanecem com suas atribuições profissionais e
História: cotidianas.
ENSINO &
MEDIEVO Como síntese de sua “missão” e de sua finalidade, os Arautos, em um dos
Página | 12 primeiros artigos do seu estatuto, afirmam que:

“Esta Associação (…) nasceu com a finalidade de ser instrumento de


santidade na Igreja, ajudando seus membros a responderem
generosamente ao chamamento à plenitude da vida cristã e à perfeição da
caridade, favorecendo e alentando a mais íntima unidade entre a vida
prática e a fé. (…) Além disso, a Associação tem como fim a participação
ativa, consciente e responsável de seus membros na missão salvífica da
Igreja através do apostolado, ao qual estão destinados pelo Senhor, em
virtude do Batismo e da Confirmação. Devem, assim, atuar em prol da
evangelização, da santificação e da animação cristã das realidades
temporais”(http://www.arautos.org/secoes/arautos/quem-somos/Arautos-
do-Evangelho-136523).

No que se refere à “evangelização”, os Arautos utilizam-se de atividades


artísticas e culturais, sobretudo, relacionadas à música, bem como
atividades intelectuais, tais como a publicação de revistas e de artigos
online. Dentre estes artigos, publicados em forma de pequenas
hagiografias, destacam-se os referentes aos santos de origem medieval.
Devido aos limites deste ensaio, optou-se por analisar duas destas
hagiografias, analisadas a seguir.

O uso da santidade medieval: as hagiografias de são Raimundo de


Peñafort
Definir uma hagiografia apenas como escritos que tratam dos santos ou da
santidade é um simplismo, o seu estudo está para além do culto aos santos
(Philippart 1998: 11). Ao se escrever sobre as hagiografias, mencionam-se
as vidas dos santos e as paixões (Vita/Passio). Contudo, não são os únicos
tipos existentes, pois são conhecidas através de calendários, martirológicos,
inscrições, livros litúrgicos, litanias, hinos, iconografias etc. (Gaiffier 1977:
140). Embora a hagiografia não seja um gênero literário particular,
apresenta especificidades, porque as vidas são baseadas no modelo de
Cristo e em outros modelos bíblicos (Goullet 2004: 8-22). Elas não podem
ser vistas como algo “realista”, mas devem ser entendidas como um modelo
a ser seguido, considerando a edificação.

Ao modelo bíblico e de Cristo, base “imóvel” da hagiografia medieval, é


acrescentado um ideal de santidade que varia segundo a época. Para cada
período histórico, seria possível delimitar uma série de topoi recorrentes ao
discurso de santidade. Tais lugares-comuns são estereotipados, e, no caso
da santidade medieval, considera-se a existência dos modelos, infra, em
torno dos quais a narrativa era elaborada. Os hagiógrafos davam ênfase em
um ou mais elementos, mas, no caso do medievo, as temáticas giram,
frequentemente, em torno dos seguintes estereótipos:

1) O nascimento como fruto da vontade de Deus;


2) O nascimento, geralmente, está envolto no maravilho, como, por Aprendendo
exemplo, a presença de sinais providenciais; História:
3) O santo é um precoce do ponto de vista intelectual e espiritual; ENSINO &
4) Frequentes complôs do diabo, que sempre tenta desviar o santo do seu MEDIEVO
caminho (geralmente, o diabo encarna-se em pessoas, e.g., inimigos dos Página | 13
santos);
5) O santo é dotado de virtudes, são uma espécie de catálogo de virtudes;
6) A exemplaridade da sua vida é incontestável, expressa por atos
concretos tais como a caridade, a esmola e, principalmente, os milagres,
que revelam a virtude ou o poder dos santos de conseguirem obter junto a
Deus a realização de fatos sobrenaturais;
7) Passam por humilhações, sofrimentos, rebaixamentos: têm uma
espiritualidade caracterizada pela dualidade entre o corpo, o espírito e pelo
caráter transitório das coisas;
8) Há, às vezes, uma tensão entre as solicitações do mundo e o desejo de
retirar dele;
9) O santo é, frequentemente, avisado da sua morte por uma visão (Goullet
2004: 17-18).

Dos elementos relacionados acima, os itens 1, 3, 5 e 7 encaixam-se,


perfeitamente, à vida de são Raimundo relatada no site dos Arautos do
Evangelho, além de se poder ainda relacionar a sua vida à de várias
hagiografias medievais de membros da ordem dominicana, devido à grande
ênfase data em sua erudição, usada na conversão e no combate às
heresias. Outrossim, é importante destacar que, no medievo, não havia
uma perspectiva crítica em relação às vidas narradas. Assim, os elementos
de uma religião encantada, mágica e maravilhosa pululam nas hagiografias
desse período. Notou-se a mesma perspectiva acrítica nas hagiografias
publicadas pelos Arautos do Evangelho.

Especificamente, no que diz respeito às hagiografias publicadas pelos


Arautos sobre Raimundo de Peñafort, consideram-se os dois artigos
expostos no site referente à sua “vida”. Em razão dos objetivos deste
ensaio, não se realizará uma análise comparativa entre eles; ao contrário,
estes serão tomados em conjunto a fim de investigar a construção e
elaboração discursiva contemporânea que se formula em relação à idade
média, sobretudo, no que se refere às apropriações do medievo para
legitimar esta associação.

O início da hagiografia de são Raimundo mantém os topoi das hagiografias


medievais. Trata-se de um santo de beata estirpe (Vauchez, 1974: 398),
filho dos reis de Aragão, que, desde a infância, aparece predestinado
mediante sua vocação para o “estudo e oração”, como também de sua
linhagem. Ora, trata-se de um santo dominicano, portanto, afeito ao ensino.
Outra característica importante que as hagiografias ressaltam, é a sua
“genialidade”, pois, com apenas com 20 anos, já era professor de artes
livres em uma universidade em Barcelona.

Dando continuidade ao relato de Raimundo de Peñafort, um novo topos, da


santidade da baixa idade média, é utilizado na narrativa. Enfatiza-se a sua
Aprendendo relação com a pobreza; ele é apresentado pelos Arautos como alguém que
História: jamais se esqueceu dos pobres e que sempre cuidou pessoalmente deles.
ENSINO & Além disso, as suas características como professor, erudito e defensor da
MEDIEVO ortodoxia são sempre reafirmadas pela narrativa. Esses aspectos são
Página | 14 fundamentais, uma vez que servirão de base para sua ação evangelizadora,
cujo resultado foi a conversão de muitos “árabes e judeus”.

Por volta de 1220, são Raimundo foi convocado para ser confessor do então
papa Gregório IX. Nesta parte do relato, é apresentada a importância,
exercida por este santo, junto à promoção do direito canônico, através de
sua atuação na redação das “Decretais de Gregório IX”. Ora, esta ênfase
não é obra do acaso, pois, em sua formação, João Clá, era um doutor em
direito canônico. Conforme o texto destaca, estas são importantes para o
direito canônico até os dias de hoje. Ou seja, há o estabelecimento direto
de uma continuidade entre o legado do santo medieval e o presente
representado pela trajetória e pela atuação intelectual dos Arautos, através
do direito canônico, visto como um patrimônio da Igreja, estabelecido no
medievo, a vida de são Raimundo une-se à de João Clá.

O 1º Artigo não apresenta a data certa de entrada do santo na ordem


dominicana, já o 2º afirma que foi em uma Sexta-feira Santa de 1222. Além
disso, ambos relatam que Raimundo foi eleito superior geral da Ordem.
Independentemente, da questão da data, destaca-se o peso simbólico da
data da Sexta-feira Santa para o contexto do cristianismo, grosso modo,
representa uma passagem e um renascimento. Após percorrer todos os
conventos dominicanos a pé (prática comum desta ordem no medievo,
porém, na forma como isso foi relatado pelo site dos Arautos, nota-se uma
intenção de se utilizar da função exemplar do santo, tal como na idade
média), são Raimundo retira-se a fim de “se dedicar à vida solitária de
orações e penitência”, mas permanece sempre atendendo aos pobres.
Como recompensa, a sua fama de santidade, bem como os dons dados por
Deus aumentam cada vez mais.
(http://www.arautos.org/secoes/servicos/santodia/sao-raimundo-de-
penafort-139968)

No final do Artigo 1, a narrativa dos Arautos retoma uma série de aspectos


essenciais das hagiografias medievais, notadamente, das obras dominicanas
do século XIII, como, por exemplo, a “Legenda Áurea” (mais notável entre
todas as compilações de santos do medievo em função de sua imensa
popularidade), cita-se:

“Por inspiração, aos setenta anos, Raimundo voltou ao ensino. Fundou dois
seminários onde o ensino era dado em hebraico e árabe, para atrair judeus
e mouros ao Cristianismo. Em pouco tempo, dez mil árabes tinham recebido
o batismo. Foi confessor do rei Jaime de Aragão, ao qual repreendeu pela
vida mundana desregrada. Também o alertou sobre o perigo que o reino
corria com os albigenses, facção da seita dos cátaros, que estavam
pregando uma doutrina contrária e desta maneira conseguiu que fossem
expulsos. Era um escritor valoroso, a sua obra, ‘Suma de Casos’, continua
sendo usada pelos confessores”.
(http://www.arautos.org/secoes/servicos/santodia/sao-raimundo-de- Aprendendo
penafort-139968). História:
ENSINO &
Aqui, elementos como: ensino, evangelização, combate aos “heréticos”, MEDIEVO
apresentados somente pelo nome, conversão de árabes e judeus, bem Página | 15
como embate com o poder temporal são retomados, finalmente, o rei Jaime
é repreendido por são Raimundo. O artigo 2 também apresenta tais
elementos, contudo, no que se refere à relação entre o rei Jaime e são
Raimundo, mais detalhes são apresentados. Menciona-se que Jaime era
senhor da ilha de Maiorca, localizada a 360km de Barcelona. Este convida
Raimundo para uma viagem até a ilha, todavia, durante a viagem, o
“procedimento moral” do rei deixava a desejar e, por isso, Raimundo o
repreendia a ponto de exigir que se parasse o barco para que ele, pela fé,
pudesse descer e caminhar sob as águas tal como Pedro.

O rei, no entanto, não consente e ameaça o santo de modo que, ao chegar


a ilha de Maiorca, este último passou a ser constantemente escoltado. São
Raimundo, todavia, pede para caminhar sozinho na praia quando tal
situação é apresentada:

“Sob o olhar estupefato dos soldados, ele estendeu seu escapulário de lã


sobre as águas do mar, e nele ‘embarcou’. Após agasalhar-se com parte de
seu manto, içou a outra ponta ao seu bastão, constituindo uma vela. O
resto… foi só invocar o santo nome de Maria, a Senhora dos ventos, de
quem era fiel devoto. Um sopro suave, mas veloz, impulsionou o veleiro de
Deus e em menos de seis horas ele chegava ao porto de Barcelona,
vencendo milagrosamente a distância de 360 km que separam a Ilha de
Maiorca dessa cidade espanhola”.
(http://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/sao-raimundo-de-
penafort-um-homem-para-todas-as-missoes-143534.).

Este relato deixa claro a atuação de Deus em prol do poder sagrado quando
este é confrontado pelo rei, representante do poder temporal. A
consequência desta viagem milagrosa é o reconhecimento do rei da
autoridade de Raimundo e, portanto, da própria Igreja e dos que dela
participam. Nesta parte da narrativa, é importante pensar os papéis da
exemplaridade e da moral subjacente à historieta, ou seja, Deus, para
provar que o temporal deve se submeter ao espiritual, faz coisas
inacreditáveis. Portanto, todos, sem exceção, devem se submeter à
autoridade da Igreja, aqui, sutilmente, evoca-se o princípio da auctoritas
medieval.

Conforme apontado anteriormente, elementos como o embate entre os


poderes temporal e o espiritual, bem como combate à heresia, a
evangelização, a caridade, etc., cumprem rigorosamente aspectos presentes
em obras e hagiografias medievais, como na “Legenda Áurea”. O
importante, a ser destacado, todavia, é a operação narrativa que estas
hagiografias servem em pleno século XXI, no momento em que são
inseridas em um site altamente elaborado de uma associação religiosa.

Aprendendo Como fora destacado, por um lado, existe um aspecto de legitimação da


História: atuação dos Arautos, visto que a vida apresentada de são Raimundo de
ENSINO & Peñafort enquadra-se perfeitamente aos propósitos e aos objetivos atuais
MEDIEVO da Associação, seja em razão de seu impulso evangelizador, seja em razão
Página | 16 da afeição aos estudos e proeminência do direito canônico (tal como o
defendido pelo seu fundador João Clá). Finalmente, sublinha-se ainda um
aspecto indicado pelo artigo 2 acerca da vida de Raimundo – ele é um santo
“factótum”, isto é, um santo “faz tudo” na obra de Deus. Em outras
palavras, Raimundo é chamado para acudir a Igreja em todas suas
necessidades, trata-se de um santo universal tal como a Associação dos
Arautos.

Além disso, há o aspecto da memória, ou melhor, do discurso acerca do


passado medieval veiculado no site dos Arautos, especialmente, por meio
destas hagiografias. Através da hagiografia de um santo medieval, a idade
média é reapresentada e reelaborada, mas com contornos próprios, os
quais não se pode, necessariamente, serem chamados de “medievais”.
Tem-se, portanto, uma “outra” idade média. Neste caso, um medievo
encantado, espaço de submissão da agência humana aos desígnios da
Providência, logo, nem obscura, nem intolerante, mas, literalmente,
encantada e, por conseguinte, uma idade média afeita aos Arautos e a sua
missão no mundo.

O dado mais relevante destas narrativas é que, por meio da teoria do


medievalism, pode-se repensar o próprio lugar da religião no mundo
contemporâneo. Todo o discurso acerca do desencantamento do mundo,
nascido no século XVIII, reafirmado no final do século XIX e em boa parte
do século XX, pode ser questionado por um movimento, em diversas
frentes, de séries de televisão, passando pelos jogos de vídeo game, até
chegar a grupos religiosos como os dos Arautos, cujo propósito é se
autolegitimar trazendo para o aqui e agora a idade média. Esta
temporalidade, ou melhor, esta atemporalidade, passou a ser
constantemente reelaborada, tal como no caso das hagiografias analisadas
neste texto, a fim de oferecer ao homem do século XXI um lugar encantado
e mágico no qual tudo é possível, principalmente, em termos religiosos.

No limite, este movimento amplo de reapropriação/reelaboração da idade


média coloca mesmo em cheque os grandes paradigmas das ciências sociais
nascidos no iluminismo. Ironicamente, a própria forma de corroborar a
santidade de são Raimundo, jamais seria aceita pelos pressupostos
católicos, nascidos no contexto da contrarreforma. Essa forma maravilhosa
como são Raimundo consegue retornar a Barcelona seria, certamente,
rechaçada por qualquer jesuíta da contrarreforma, afinal é demasiadamente
maravilhosa, mesmo para um santo. Sublinha-se a ausência da crítica
histórica em relação ao texto da hagiografia, ele é tomado como um dado
inquestionável; sustentada, única e exclusivamente, pela autoridade do
autor da hagiografia, ou seja, uma completa submissão da história à
teologia, tal como no medievo.

Dessa forma, abandona-se toda a reflexão teológica após a contrarreforma,


ocasião em que o paradigma da representação dos santos nas hagiografias Aprendendo
foi modificado devido às críticas aos elementos maravilhosos. Desde então, História:
o debate sobre a santidade e a forma “correta” para se escrever uma ENSINO &
hagiografia estão diretamente ligados ao trabalho dos bolandistas belgas, MEDIEVO
que, desde o início do século XVII, produziram um “método científico” para Página | 17
os estudos de hagiografias (Peeters 1961). Todo o procedimento crítico
proposto por estes jesuítas foi abandonado pela narrativa trazida pelo site
dos Arautos do Evangelho.

Esses jesuítas que reescreveram a história dos primeiros mártires cristãos,


desprezaram aquilo que consideravam como a linguagem ingênua dos
medievais, especificamente os elementos de uma religião encantada
marcada pela ação do maravilhoso. Acreditavam que, para promover as
virtudes dos santos, era necessário que os textos fossem estabelecidos de
forma “científica”. A forma como são Raimundo retorna a Barcelona em sua
hagiografia seria considerada, pelos bolandistas, como um traço
medievalizante capaz de desmerecer as suas virtudes de santo. Contudo,
para os membros da Associação dos Arautos é um traço importante da
santidade de Raimundo que deve ser enfatizado para promover a ação
evangelizadora deste grupo. Ora, não se trata de um grupo qualquer, muito
menos de um site “ingênuo”, cada detalhe, da iconografia às hagiografias
disponíveis, passou por um processo de “criação”, ou seja, as informações
dadas estão de acordo com um tipo de espiritualidade (Vauchez, 1995) e de
um tipo de santidade cujo medievo é o carro chefe.

O site utiliza, deliberadamente, uma série de elementos medievais com o


objetivo de plasmar a imagem dos Arautos ao medievo, como um tempo
em que a sociedade vivia de forma “correta”, portanto, sob a tutela da
Igreja. Assim, os Arautos apresentam uma idade média, que não é nem a
do obscurantismo, cara ao imaginário ocidental do século XVI, nem uma
idade média “nacionalista”, do século XIX e de grande parte do século XX,
e, muito menos, uma idade média das “minorias” e do “exotismos” à moda
francesa dos Annales, mas sim uma idade média encantada, na qual o
poder de Deus tudo pode, e os santos estão lá para provar isso.
Certamente, as idades médias do obscurantismo, do nacionalismo, dos
franceses já foram demasiadamente estudadas, porém, são todas, quer
gostem ou não os medievalistas, tais como o medievo encantado,
apropriações discursivas cuja proposta teórica do medievalism surge como
uma forma interessante de apresentar problemas contemporâneos,
sobretudo, de se questionar o porquê de se retomar a idade média para
legitimar movimentos religiosos como os dos Arautos.

Referências
Clinio de Oliveira Amaral é professor associado de história medieval da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil, pesquisador do Linhas
(Núcleos de estudos sobre narrativas e medievalismos, cf. https://linhas-
ufrrj.org/) e coordenador do LABEP (Laboratório de estudos dos
protestantismos).

João Guilherme Lisbôa Rangel é mestre e doutorando pelo PPHR-UFRRJ,


Aprendendo pesquisador do Linhas (Núcleos de estudos sobre narrativas e
História: medievalismos, cf. https://linhas-ufrrj.org/) e do LABEP (Laboratório de
ENSINO & estudos dos protestantismos). O trabalho foi realizado com apoio da
MEDIEVO Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil
Página | 18 (CAPES) – Código de financiamento 001.

Gaiffier, Baudouin de (1977) Hagiographie et historiographie. Quelques


aspects du problème. Collection Subsidia Hagiographica. Bruxelles: Société
des Bollandistes, nº 61 Recueil d’Hagiographie (1967-1977), p. 139-196,
1977.

Gentry, Francis G. and Müller, Ulrich (1991) ‘The reception of the Middle
Ages in Germany: an overview’. Studies in Medievalism. III/4. p. 401.
Disponível em: <http://medievallyspeaking.blogspot.com/2010/04/what-is-
medievalism.html>. Acesso em 24 de julho de 2018.

Goullet, Monique (2004) ‘Introduction’. In: Wagner, Anne. Les saints et


l’histoire. Sources hagiographiques du Haut Moyen Âge. Paris : Éditions
Bréal, p. 8-22.

Peeters, Paul (1961). L’œuvre des Bollandistes. Bruxelles : Société des


Bollandistes.

Philippart, Guy (1998) ‘L’hagiographie comme littérature: concept récent et


nouveaux programmes?’, Revue des Sciences Humaines, nº 251, p. 11-39.
juillet-septembre.

Vauchez, André (1974). ‘Beata Stirps’ : Sainteté et lignage en Occident aux


XIIIe et XVe siècles. In : ÉCOLE FRANÇAISE DE ROME. Famille et parenté
dans l’Occident médiéval. Actes de : Colloque de Paris organisé par l’École
Pratiques des Hautes Études en collaboration avec le Collège de France et
l’École Française de Rome. Paris, 6-8 juin 1974. Paris : École Française de
Rome et Palais Farnèse, pp. 397-407.

Zumthor, Paul (1980). Parler du moyen âge. Paris: Les Éditions de Minuit.

Sites :
http://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/sao-raimundo-de-
penafort-um-homem-para-todas-as-missoes-143534
http://www.arautos.org/secoes/servicos/santodia/sao-raimundo-de-
penafort-139968
http://www.joaocladias.org.br/curriculum.asp
https://www.arautos.org/
O MEDIEVALISMO NO BRASIL E O SEU POTENCIAL PEDAGÓGICO
Douglas Mota Xavier de Lima

“Por três dias o Jardim Botânico [Brasília/DF] vai se transformar num tipo
de túnel do tempo que levará o público a um universo de cavaleiros, Aprendendo
armaduras, espadas e dragões. Entre os dias 17/6 e 19/6, o Festival História:
Medieval Brasil 2016 leva ao local uma reconstituição histórica, com ENSINO &
cenários temáticos e uma programação de apresentações artísticas, MEDIEVO
esportivas e gastronômicas que remetem à Idade Média” (Metrópoles, Página | 19
2016)

O Festival Medieval Brasil (FMB), realizado anualmente em Brasília, é


exemplo de uma programação cada vez mais comum nas capitais
brasileiras, especialmente no centro-sul, que envolve festas, danças,
comidas, lutas e encenações relativas ao medievo. Grupos fantasiados de
bruxas, cavaleiros, elfos e outros seres fantásticos, pessoas usando
armaduras em combates medievais, tendas vendendo hidromel, grupos
tocando músicas celtas, restaurantes oferecendo banquetes medievais,
grupos reunidos em acampamentos vikings, são inúmeras as atividades que
permitem ao público brasileiro experienciar a época medieval num misto de
história e fantasia. No próprio site do FMB, por exemplo, descreve-se que a
programação do evento abarca:

“Museu de Artefatos Medievais FMB; artesãos; forjas; Mercado Medieval


Excalibur; Campeonato Brasileiro de Hema (Esgrima Histórica); arqueria;
esgrima e artes asiáticas; softcombat; larp; boffering; equitação;
RPG/Board Games; falcoaria; e várias outras como o novo Bestiarum
(Museu de espécies e feras coordenado pelo Departamento de Zoologia da
UnB), e a Vila dos Magos.”

Esse ‘gosto pela Idade Média’ vivenciado no Brasil, para remetermos à


instigante obra de Christian Amalvi, é indício de um movimento
internacional muito mais amplo e que se exemplifica no significativo volume
de livros, jogos, filmes e séries de Tv lançados nas últimas décadas,
movimento que, talvez, tenha sua melhor expressão contemporânea no
sucesso recente da série de livros ‘A Song of Ice and Fire’ (‘As Crônicas de
Gelo e Fogo’, em português) de George R. R. Martin, e da adaptação desta
para a televisão com a série Game of Thrones. Pode-se ainda lembrar das
obras de J. R. R. Tolkien e de C. S. Lewis, fundamentais para a construção
da fantasia medieval; do universo Disney, permeado de cavaleiros,
príncipes, princesas e castelos; do sucesso literário de Bernard Cornwell,
explorando o universo saxônico; ou da série Vikings, ícone do frenesi
escandinavo presente na mídia. São inúmeros os exemplos de uma Idade
Média presente no cotidiano contemporâneo.

Diante da atualidade e relevância do tema, este texto estrutura-se em três


eixos: primeiramente, procura-se apresentar alguns apontamentos acerca
da noção de medievalismo e da diversidade de estudos na temática; em
segundo lugar, busca-se caracterizar o cenário nacional do medievalismo,
enfatizando os festivais e a vertente do recriacionismo; por fim, discute-se
o potencial pedagógico do medievalismo, situando, em especial, atividades
realizadas com graduandos de Licenciatura em História.

Medievalismo: breves considerações


Aprendendo A Idade Média constitui um tempo e um objeto de investigação reinventado,
História: sonhado e difundido por diferentes veículos. Nas últimas décadas assiste-
ENSINO & se, em especial nos Estados Unidos e em algumas historiografias europeias,
MEDIEVO como a francesa e a inglesa, o desenvolvimento de estudos acerca da
Página | 20 recepção da Idade Média pelos séculos posteriores, reapropriação presente
na literatura, na arquitetura, no cinema, na música, nas histórias em
quadrinhos, etc.

Este campo de estudos tem sido denominado de medievalism, em inglês,


sendo a expressão utilizada como referência da Society for the study of
medievalism, fundada em 1976, e da principal publicação da área, a revista
Studies in Medievalism, publicada desde 1979; em francês, o termo
médiévalisme tem se afirmado, diferenciando-se dos termos médiévisme
ou médiévistique (Ferré, 2010), e orientando as pesquisas da Association
Modernités Médiévales, fundada em 2004. Em português e espanhol o
campo ainda não conseguiu afirmar sua especificidade, sendo expressão
disso a diversidade de termos utilizados para tratar do uso do passado
medieval, ora entendido como reminiscências medievais ou
medievalidade (Macedo, 2009), como ressurgências (Nascimento,
2015), ora como medievalismo (Porto Júnior, 2018a; 2018b). Nas
historiografias ibéricas e brasileira, este termo é utilizado, por vezes, para
referenciar os estudos medievais em geral (cf.: Aurell, 2008; Rosa & Bertoli,
2010; Amaral, 2011), sendo emblemático o seu uso como título da
publicação Medievalismo, revista que tem o objetivo de publicar
investigações sobre o período medieval, com especial atenção ao medievo
hispânico. Cabe ainda acrescentar o termo neomedievalismo, cunhado por
Umberto Eco (1986) e que ganhou apropriações recentes nos estudos
medievais (Fugelso, 2010), frequentemente associado a trabalhos teóricos e
de política internacional.

Em linhas gerais, observa-se que, apesar da historiografia anglófona e


francesa apresentarem contornos mais definidos acerca da noção de
medievalismo, sobressaem nos estudos atuais diferentes usos da
terminologia, os quais abarcam, por exemplo, investigações sobre a
construção de identidades nacionais mobilizando o passado medieval; a
relação entre a medievalística (a história medieval científica) e o
medievalismo; e os usos não científicos da Idade Média entre o século XIX e
a atualidade (Rosa, 2017). No presente trabalho, o termo Medievalismo
será utilizado no intuito de remeter às recepções da Idade Média pelos
séculos posteriores, especialmente presentes na cultura de massa
(quadrinhos, séries e filmes), na literatura, nos jogos (games e board
games), na arquitetura, em festivais e no recriacionismo, afastando-se,
desta maneira, a noção de Medievalística, entendida aqui como o campo de
pesquisa dedicado ao estudo da Idade Média em diferentes áreas do saber,
como a História, as Letras, as Artes, a Filosofia e o Direito.
O medievalismo no Brasil
Especificamente em relação ao Brasil, pode-se afirmar que tanto a
medievalística como o medievalismo têm conhecido um significativo
crescimento nas últimas décadas. Como indícios desse movimento, lembra-
se, no primeiro caso, que desde as décadas de 1980 e 1990, com a Aprendendo
institucionalização da área em Programas de Pós-graduação, com a História:
vertiginosa formação de especialistas e com a crescente publicação das ENSINO &
investigações o campo se fortalece; paralelamente, no segundo caso, a MEDIEVO
partir dos anos 2000, com a organização de festas e festivais, fabricação e Página | 21
comércio de diversos produtos, formação de bandas e surgimento de novos
sites, páginas nas redes sociais e conteúdo web sobre o medievo, a Idade
Média se populariza.

O crescimento do medievalismo pode ser notado em sites como Cena


Medieval, criado em 2015. Ele se define como espaço para centralizar e
divulgar informações sobre o meio medieval no Brasil, estando diretamente
relacionado a grupos recriacionistas, grupos de luta, artesãos, ferreiros,
fabricantes de hidromel e outros grupos ligados direta ou indiretamente ao
medievalismo. Em levantamento feito no próprio site é possível identificar
que no ano de 2017 ocorreram quarenta e três (43) eventos relacionados
ao medievo, e no ano de 2018 ocorreram trinta (30) eventos, entre festas,
feiras, banquetes, oficinas de música, torneios, etc. Destarte, somando os
eventos nacionais registrados no site para os anos de 2017 e 2018, chega-
se ao total de setenta e três (73) eventos, sendo distribuídos por diferentes
estados: São Paulo, trinta e quatro (34) eventos; Rio de Janeiro, onze (11)
eventos; Paraná, dez (10) eventos; Rio Grande do Sul, nove (9) eventos;
Minas Gerais, quatro (4) eventos; Bahia, com dois (2) eventos; e Santa
Catarina, Goiás e Distrito Federal, cada um com um (1) evento.

Em pesquisa realizada por Wada et. Al. (2014), constatou-se que o


segmento de eventos medievais tem vindo a popularizar-se no Brasil,
influenciados pela crescente produção e divulgação das pesquisas
acadêmicas acerca do medievo e pela inspiração nos eventos e festas que
ocorrem na Europa. Outro ponto assinalado pela pesquisa é que parte das
atividades investigadas são baseadas em recriações de mitos, lendas,
danças, lutas e no estudo de documentos medievais, o que busca tornar os
eventos o mais recriacionista possível.

Do mesmo modo, Porto Júnior (2018b) ressalta que diversos elementos e


práticas socioculturais inspiradas no medievo, como músicas, danças,
moda, culinária e lutas estão sendo ‘recriadas’, merecendo destaque:

“as feiras, os festivais e outros eventos com temática medieval, que desde
fins do século XX proliferam-se em praticamente todo o mundo ocidental e
conseguem reunir milhares de pessoas. Atraídos pelo som do alaúde e
animados pelas brincadeiras de saltimbancos, malabaristas, fantoches e
bobos da corte, muitos ainda hoje se embriagam de hidromel, fartam-se de
carne de javali, assistem e/ou participam de jogos de feitos de armas entre
outras encenações históricas” (Porto Júnior, 2018b, p.236).
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o recriacinismo histórico (historical
reenactment ou living history) constitui uma prática educativa lúdica – e
crescentemente relacionada com o turismo cultural (Campos, 2011) – que
tem como objetivo recriar ou representar elementos de um determinado
Aprendendo período ou evento. Esse processo de recriação visa transmitir veracidade,
História: autenticidade e, para isso, funda-se em pesquisas históricas, arqueológicas
ENSINO & e, mais recentemente, em investigações de iconografia e antropologia visual
MEDIEVO (Porto Júnior, 2018b).
Página | 22
A prática remete, ao menos, às décadas de 1960 e 1970, tendo se iniciado
na Inglaterra a partir de uma campanha publicitária e de ações da
Roundhead Association e da King’s Army no intuito de recriar eventos
históricos através da atuação de personagens vestidas com trajes da época
(Coelho, 2009). Tal como ocorre com o Medievalismo/Medievalism, muitos
são os termos utilizados para referenciar o movimento recriacionista em
português. Em Portugal, por exemplo, utilizam-se as expressões
revivalismo, reconstituição e, em especial, História ao Vivo. No Brasil,
crescem os grupos e as experiências desse âmbito, caracterizando-se como
atividades de recriacionismo histórico. Feita essa breve apresentação,
passa-se a considerações sobre o potencial pedagógico do medievalismo.

O potencial pedagógico do medievalismo


Como argumentam Chepp, Masi e Pereira (2015), existe uma Idade Média
contada na escola, que ainda remonta à “leitura iluminista e preconceituosa
do medievo”, e outra, eivada de fantasia, aventura e imaginação, que
permanece distante dos bancos escolares. Essa “Idade Média fantasiada”
está presente no cinema, nas séries de Tv, nas músicas e nos jogos, na
literatura, nas Histórias em quadrinhos (HQs)..., e, sem abrir mão da
pesquisa histórica sobre o medievo, demonstra um significativo potencial
para a aprendizagem histórica acerca da Idade Média. Os autores propõem
que:

“...a aprendizagem do conceito e a possibilidade de novas experiências com


o passado, possam ser auxiliadas pela exposição do aluno às numerosas
alternativas de representação e “(re)encenação” do passado, através de
estratégias e de formas de expressão como a música ou as séries de
televisão. Essas duas formas de expressão jogam o estudante para um
mundo pré-conceitual e lhes proporciona uma experiência nua do passado.
(...) Ora, o que se quer é justamente essa abertura, tão difícil de ser
conseguida com o uso imediato de um texto didático ou de uma explicação
do professor. Essa abertura não pode ser confundida com uma
aprendizagem incorreta e inadequada que levaria o aluno a aceitar uma
Idade Média fantasiada, mas é a força imaginativa dessa inserção de um
mundo medieval fantasiado e inexistente na pesquisa histórica, o que pode
permitir o aluno a pular do Caos a novas formas de conhecimento sobre a
Idade Média. Ele poderá saber fazer a distinção entre o que é fantasia e o
que é realidade histórica, mas igualmente saberá reconhecer as
representações que os povos criam sobre si mesmos e sobre os outros, e
que estas podem ser transformadas em aprendizagens históricas” (Chepp,
Masi e Pereira, 2015, p.951-952).

O trecho acima é instigante e abre uma série de perspectivas para o ensino


de história, ultrapassando as particularidades do medievo. Os autores, por
exemplo, exploram o uso de séries de Tv e músicas no referido artigo, mas Aprendendo
as proposições que orientam o texto mostram-se adequadas para a reflexão História:
acerca de atividades de recriacionismo no ambiente escolar. ENSINO &
MEDIEVO
Maria Solé descreve diversos projetos de História ao Vivo realizados em Página | 23
Portugal desde os anos 1980, demonstrando como essa técnica mostra-se
adequada ao ensino de história, interessando e engajando os alunos através
do lúdico e da imaginação histórica, além de mobilizar a comunidade e
articular os professores em torno de projetos multidisciplinares. Para a
autora:

“A preocupação com o rigor histórico é uma constante, sendo necessário


uma consulta exaustiva de várias fontes históricas e historiográficas. Um
projecto deste tipo não se limita à procura do rigor científico, pressupõe
também um trabalho pedagógico prévio de preparação dos alunos
envolvidos, levando-os a compreender o que vão fazer, e como o devem
fazer (...). A ‘História ao Vivo’ procura indicar novos caminhos para
revitalizar o estudo da História e das disciplinas afins. A dramatização de
uma dada circunstância histórica, num local apropriado, numa data precisa,
numa encenação tão próxima quanto possível da realidade passada, onde o
aluno é levado a ser participante convicto, agindo e compreendendo «como
era» operará nele o salto «para dentro» da História. Ele passa a saber o
circunstancial e o geral, porque participou”. (Solé, 2011)

Os apontamentos acima permitem considerar que a ‘História ao vivo’ ou


recriação histórica tem diferentes potencialidades no ensino básico,
abarcando desde elementos do desenvolvimento cognitivo do estudante à
elementos do desenvolvimento socioemocional, preocupações cada vez
mais urgentes e atuais da educação integral. Apesar dessa potencialidade,
passa-se a algumas considerações tendo como base a experiência pessoal
como docente da formação de professores.

No curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Oeste do


Pará, em Santarém/PA, em duas oportunidades, uma como avaliação final
da disciplina História Medieval (2017.2) e outra como ação extensionista
(2019.1), promoveu-se a realização de uma mostra de História Medieval
inspirada no encontro entre a medievalística, o medievalismo e o
recriacionismo histórico. As atividades foram a culminância de um processo
que envolveu: os conteúdos teóricos e práticos dos componentes
curriculares; a pesquisa documental e bibliográfica; a preocupação com
promoção de diferentes linguagens no ensino de história, privilegiando o
percurso do indivíduo/grupo para a escolha dos temas e da abordagem; o
trabalho colaborativo; a expressão extensionista da universidade através do
envolvimento da comunidade e das escolas da cidade.
Na I Mostra de História Medieval, ocorrida em março de 2018, os
estudantes escolheram temáticas ou atividades livres, conforme os
interesses individuais, realizando pesquisas a fim de explorar os itens. A
seguir, estruturou-se a mostra em forma de exposições e de dramatizações,
finalizadas pela entrega de relatório. Assim, foram apresentados trabalhos
Aprendendo sobre: o uso de quadrinhos no ensino de história medieval; a literatura
História: medieval e o medievalismo na literatura contemporânea; as séries de Tv e
ENSINO & os usos do passado medieval; a alimentação medieval, reproduzindo um
MEDIEVO banquete. Além disso, foi produzida uma maquete de cidade medieval dos
Página | 24 séculos XII e XIII – atualmente disponível ao público na biblioteca da Casa
de Cultura do município –, foi encenada uma peça com o tema “Corpo e
Sexualidade” na Idade Média e realizada uma apresentação de dança
medieval.

Na II Mostra de História Medieval, ocorrida em março de 2019, estudantes


de diferentes turmas e cursos novamente escolheram temáticas ou
atividades livres conforme os interesses individuais, tendo como eixo central
a Corte Medieval. A partir do eixo foram realizadas pesquisas bibliográficas
a fim de estruturar a mostra, buscadas parcerias a fim de financiar os
materiais e organizada a programação da atividade. Esse processo resultou:
na ambientação do espaço, com tecidos, flores e bancos de madeira; na
organização de uma sala para a exibição de animações relacionadas à Idade
Média; na formação de um núcleo de jogos e brincadeiras voltadas ao
público infantil, explorando jogos da cavalaria, como arco e flecha e corridas
de cavalo; em exposições de quadrinhos, edições de documentos e da
iconografia medieval; na dramatização de um banquete medieval e de uma
batalha entre cavaleiros cristãos e guerreiros muçulmanos; e na
apresentação de dança medieval.

As atividades foram bem-sucedidas e mobilizaram a comunidade acadêmica


e local, além de, num primeiro momento, a turma de História Medieval, e,
na segunda mostra, os alunos do curso e de outros institutos, envolvidos
com a proposta. Em termos de diagnóstico da aprendizagem, a mostra
medieval mostrou-se satisfatória, tendo em vista a organização em grupos
menores que puderam trabalhar em temáticas de sua própria escolha; a
possibilidade de aprofundamento dos conteúdos, elemento que, em geral, é
limitado pelo conteúdo programático e pelas avaliações individuais; a
elaboração de uma avaliação flexível e processual, acompanhando o
estudante desde a escolha do tema, no processo de pesquisa, na avaliação
coletiva e individual, durante a atividade e na entrega de relatório contendo
a proposta apresentada, os objetivos e as justificativas, elementos
fundamentados na bibliografia; a aproximação dos discentes com a
comunidade, em especial, com o público escolar, apropriando-se de
instrumentos diversos para a construção do saber histórico.

Em relação aos aspectos gerais presentes na mostra, destaca-se que


principalmente a dança, o banquete, a batalha e o teatro permitiram aos
alunos assumirem papeis de personagens históricos de outros tempos –
jograis, nobres, damas, cavaleiros... –, adequando a linguagem, as
vestimentas, o conteúdo da fala e dos gestos. Ao praticarem tal encenação,
a mostra foi capaz de promover empatia e afetividade dos alunos ao se
colocarem no papel de sujeitos de outra época, afetando tanto o aluno que
apresenta como a comunidade que participa. Ao promover pesquisas para a
construção da mostra, desenvolve-se tanto a consciência do período que se
estuda, como a percepção das mudanças através do tempo e dos usos do
passado medieval. Aprendendo
História:
Ciente das limitações de ‘reconstruir’ a Idade Média, mormente em seus ENSINO &
traços europeus ocidentais e cristãos, no ambiente universitário e de uma MEDIEVO
cidade da Amazônia sem o acesso a castelos, igrejas, praças e monumentos Página | 25
diversos datados dessa temporalidade, a experiência com a mostra
medieval, por ser realizada com estudantes de licenciatura, tem favorecido
o uso de recursos lúdicos no processo de ensino e aprendizagem e a
exploração do potencial pedagógico do medievalismo, mobilizando tanto os
acúmulos permitidos pela historiografia como a gosto pelo medievo da
fantasia. Além disso, a mostra tem possibilitado aos alunos e aos
comunitários se aproximarem desse tempo de tamanha alteridade e
profunda identidade que é a Idade Média, aguçando a aprendizagem e
promovendo o interesse, seja o desejo da pesquisa histórica seja a vontade
ou o prazer de experimentar ambientes de outros tempos.

Referências
Douglas Mota Xavier de Lima é professor Adjunto da Universidade Federal
do Oeste do Pará, Doutor em História (2016), Mestre em História (2012),
Bacharel e Licenciado (2009) em História pela Universidade Federal
Fluminense.

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setembro/dezembro, 2011.

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Cena Medieval. http://www.cenamedieval.com.br

Festival Medieval Brasil. http://www.festivalmedieval.com.br


AS TRADUÇÕES E A PESQUISA EM HISTÓRIA MEDIEVAL: REFLEXÕES
SOBRE UM PROBLEMA
Lukas Gabriel Grzybowski

O uso de traduções no desenvolvimento de investigações a respeito do Aprendendo


passado medieval é um constante dilema para pesquisadores e estudantes História:
da área, especialmente no contexto brasileiro em que a aprendizagem de ENSINO &
línguas estrangeiras, sobretudo as clássicas, é tido como um privilégio para MEDIEVO
poucos, dada a parca oferta de meios para a formação. De modo geral, Página | 27
professores e orientadores se vêem forçados a oferecer aos alunos, se não
uma tradução à língua portuguesa, uma tradução a outra língua moderna,
geralmente o inglês, a fim de propiciar um contato mais direto destes com
os textos medievais que compõem o universo de fontes sobre as quais as
pesquisas sobre aquele período se baseiam. Ao mesmo tempo,
especialmente em virtude dos investimentos públicos realizados na
formação e capacitação em nível superior, cresceu nos últimos tempos
significativamente o número de profissionais e estudantes, sobretudo de
pós-graduação, com um domínio mais ou menos sólido das linguagens das
fontes medievais, o que impulsionou também as exigências relativas à
qualidade do manuseio e interpretação das fontes nos trabalhos
acadêmicos, e consequentemente aumentou, entre os acadêmicos, as
ressalvas ao uso de traduções nas análises relativas ao medievo. É sobre
este complexo e controverso tópico que pretendo discorrer brevemente
neste ensaio.

Os testemunhos da Idade Média e a sua linguagem.


A Idade Média é, sem dúvida, um dos períodos mais alheios ao homem
moderno. Seja por sua distância espaço-temporal – especialmente em
relação ao brasileiro do século XXI – ou por sua distinção em relação aos
conceitos, visões de mundo e expressões da vida social, política, cultural,
econômica, religiosa, entre outros, quando colocada lado a lado com as
épocas mais recentes. A linguagem utilizada nos testemunhos desse período
desempenha, certamente, um papel central na interpretação da Idade
Média como alheia – ou quase incompreensível.

As fontes medievais foram, em sua totalidade, compostas nas linguagens


típicas de sua época. Dentre estas destaca-se o latim, em sua forma
medieval, como língua franca, utilizada na composição de uma ampla gama
de materiais escritos, em uma época em que os múltiplos vernáculos
careciam ainda de uma sistematização que lhes garantisse o mesmo caráter
universalizante. Estes, todavia, não foram de modo algum negligenciados
pelas camadas letradas, compondo um segundo grande grupo de línguas
aplicadas na composição de materiais textuais na Idade Média, sendo que
sua importância se amplia nos séculos finais do período, em virtude do
processo de consolidação dos Estados modernos. Desse modo, o
pesquisador ou estudante da Idade Média é confrontado com uma gama de
materiais escritos em latim medieval – e seus diversos graus de elaboração
e/ou rusticidade –, em alemão medieval (Antigo, Alto- e Baixo-Médio), em
Anglo-Saxão (e suas variedades), Inglês Antigo e Médio, Nórdico Antigo,
Francês Antigo, Occitano, e demais variações das línguas latinas na
península Itálica e Ibérica, para me restringir ao espaço ocidental e não
adentrar o universo de línguas eslavas e gregas, que dominavam o espaço
sob influência mais direta da cultura bizantina, ou a presença do árabe
medieval, que também se mostrou impactante em diversos ambientes de
Aprendendo contato e interação na Bacia Mediterrânica ao longo do medievo. Somem-se
História: às linguagens textuais as linguagens estéticas e materiais e obtém-se um
ENSINO & mero vislumbre da complexidade que compõe o universo das fontes
MEDIEVO medievais.
Página | 28
Diante desse quadro é preciso reconhecer que, efetivamente, por “terem
sido compostas na língua de sua época, as fontes medievais precisam em
primeiro lugar ser transpostas para a nossa língua, isto é, ao menos as
passagens interessantes para a própria questão precisam ser traduzidas.”
(GOETZ, 2014, p. 251). Tal afirmação parece deslocada se considerarmos –
como já afirmei – que cada vez mais observa-se no cenário acadêmico uma
cobrança pelo recurso aos textos documentais em sua língua original nas
análises a serem apresentadas aos seus pares. Todavia, é preciso recordar
que em última instância o historiador é sempre um tradutor, na medida em
que ele ‘traduz’ uma informação contida em determinada fonte em um
conhecimento útil e aplicável para os seus leitores, mesmo que essa fonte
se encontre em uma língua acessível a ambos. É nesse sentido, em primeiro
lugar, que Goetz se refere à necessidade de transposição da fonte para a
língua moderna. Ela não se restringe a uma tradução no nível da
linguagem, mas depende de uma interpretação do texto a fim de que se
torne inteligível para o leitor contemporâneo (CROCE, 1962). “Toda
tradução é, portanto, até certo grau ela mesma uma já interpretação”
(GOETZ, 2014, p. 251).

Como consequência disso, o uso indiscriminado de traduções para línguas


modernas precisa ser encarado com olhares críticos. Tal afirmação não se
pretende como defesa de um purismo inalcançável, posto que mesmo entre
os falantes de uma mesma língua a multiplicidade de interpretações
possíveis de um texto pode levar a contrassensos. Um exemplo possível é a
revolta gerada na corte imperial em 1157 em virtude do emprego do termo
latino beneficium em uma carta de Adriano IV a Frederico I, Barbarossa.
Adriano afirmava que o imperador havia recebido o império na qualidade de
um beneficium do papa. Embora o termo pudesse ser entendido
literalmente como uma gentileza, ou bondade do papa, o mesmo era
igualmente empregado para designar um benefício recebido no âmbito das
relações feudo-vassálicas, o que poderia ser interpretado – como o foi, daí a
revolta – como a tentativa de Adriano definir o Império como doação sua a
um vassalo, neste caso Frederico (RAHEWIN, VON FREISING, 1912, p.
186).

Como esse exemplo deixa claro, mesmo entre os autores medievais e suas
audiências havia espaço para interpretações e incertezas quanto ao uso de
determinados termos e conceitos nos textos, de modo que o mesmo deve
ser considerado em relação às traduções possíveis para as línguas
modernas. Assim, a comparação dos trechos traduzidos com os originais,
especialmente no caso do emprego de edições já publicadas é fundamental
para que o investigador possa reconhecer e – possivelmente indicar – as
diversas possibilidades interpretativas do texto da fonte, e que não
necessariamente constituem a opção ou preocupação central do tradutor de
determinada edição.
Aprendendo
Somado a essa questão de caráter interpretativo, é preciso que se tenha História:
sempre em mente o fato das línguas dificilmente se corresponderem ENSINO &
plenamente em suas terminologias, conceitos, e mesmo nas suas estruturas MEDIEVO
gramaticais, sejam morfológicas ou sintáticas. Consequentemente, uma Página | 29
tradução quase nunca permitirá ao leitor reconhecer questões vinculadas
diretamente às escolhas do autor medieval, e que possuem direta
interferência sobre os modos possíveis de interpretação de um determinado
trecho no texto latino. Note-se, por exemplo, que os originais medievais
raramente traziam qualquer marca de pontuação, e a simples inserção de
uma separação entre orações pode alterar o sentido de toda uma
passagem, graças às características da gramática latina. “Em tais
circunstâncias, é essencial discutir pelo menos as respectivas passagens
relevantes no texto original – apesar das dificuldades de linguagem
associadas com isso para os estudantes de hoje; somente o exercício
consistente pode ajudar nesse caso.” (GOETZ, 2014, p. 251). Finalmente,
para além dos problemas já apontados é preciso considerar que “cada
língua (inclusive a sua própria): (a) possui seu próprio estilo, (b) é
histórica, ou seja, está atrelada a cada época e, (c) é um meio de
comunicação, que serve à compreensão, mas –especialmente na forma
escrita – permanece sempre ambígua e pode, portanto, dar origem a
compreensões equivocadas. Essas ambiguidades devem ser consideradas
durante a avaliação das fontes” (GOETZ, 2014).

Alguns exemplos:
Para ilustrar a questão discutida até o momento nesse curto ensaio eu
proponho observar algumas traduções da obra de Adam de Bremen, para o
português, o alemão e o inglês, e compará-las com o texto latino da edição
de B. Schmeidler. Não posso, contudo, deixar de mencionar que a própria
edição de Schmeidler, ainda que seja hoje adotada como o standard para o
trabalho acadêmico com a obra de Adam, já sofreu uma série de críticas, a
mais ampla da parte de Anne Kristensen (1975). Além dessas, proponho
também um olhar sobre uma tradução de um diploma, publicado na coleção
‘História da Idade Média: textos e testemunhas’ de Maria Guadalupe
Pedrero-Sánchez.

O primeiro exemplo que eu gostaria de trazer à discussão é talvez o mais


emblemático no sentido de como a tradução é uma interpretação do texto e
de como tal interpretação é fruto de sua própria época, sendo ela mesma
historicamente datada. Em sua tradução das Gesta Hammaburgensis para o
alemão, datada de 1961, Werner Trillmich escreve, no capítulo 31 do
segundo livro, que “naquela época apareceu na costa da Saxônia uma frota
dos Vikings” (TRILLMICH, 1990, p. 267). Trillmich optou pelo termo “Viking”
(Wikinger no alemão) nessa passagem para traduzir o termo “pyrata” que
aparece no latim de Adam. A tradução de Francis Tschan, por outro lado,
traduz o termo como “pirates” (TSCHAN, 2002, p. 75), ou seja, mantendo-
se mais fiel à semântica latina e às concepções de Adam. Existem razões
lógicas para a escolha de Trillmich. Mais adiante, no capítulo 6 do quarto
livro de Adam o autor explica que “estes piratas, pois, que entre eles são
chamados vikings, entre nós ascomanos...” (Adam de Bremen, 1917, p.
Aprendendo 233). Assim, Trillmich provavelmente estava se baseando na própria
História: explicação de Adam para justificar o uso do termo “viking” na tradução do
ENSINO & latino “pyrata”. Todavia, não se pode ignorar que esse uso por parte de
MEDIEVO Trillmich também atende a expectativas contemporâneas à tradução, posto
Página | 30 que, desde ao menos o início do século XIX e o processo de “romantização”
do passado germânico-escandinavo, a historiografia e literatura, entre
outras formas de expressão, passaram a enfatizar e criar
retrospectivamente, e, portanto, anacronicamente, uma “consciência viking”
na cultura medieval. Ademais, diante dessa carga, o uso do termo “viking”
traz ao texto de Adam uma carga, se não positiva, ao menos neutra em
relação aos escandinavos em excursões de pilhagem no território
germânico, uma acepção que o termo “pirata” não permite tão facilmente.

Tschan, por outro lado, mantém o termo “pirata”, não somente por conta
de sua pureza semântico-etimológica, mas também, possivelmente, por
conta justamente de sua carga negativa relativa ao termo, em uma época –
o pós-guerra – em que a crueldade e vilania germânicas estavam mais que
vivas na memória do mundo ocidental. O estudante, ou pesquisador, que se
baseia nessas traduções para o desenvolvimento de suas próprias pesquisas
está, então, refém de questões que ultrapassam uma simples variação
linguística ou uma preferência estética do tradutor. Ademais, o pesquisador
perde, com as traduções, o acesso aos possíveis sentidos dados pelo
próprio autor do texto medieval em sua obra.

O segundo exemplo que trago relativo à obra de Adam de Bremen é uma


tradução de dois capítulos relativos ao chamado “templo” de Uppsala na
Suécia. Os capítulos traduzidos foram publicados no ‘Dicionário de mitologia
nórdica’ (LANGER, 2015). Para melhor visualização, apresento a seguir a
tradução publicada, de autoria de R. M. Marttie, ao lado do original, do qual
supostamente teria sido traduzido, e de uma tradução minha, feita
diretamente a partir do texto da MGH, na edição de B. Schmeidler.

Tradução minha da ‘Gesta ‘Gesta


‘Gesta Hammaburgensis’ em Hammaburgensis’ na
Hammaburgensis’ na suposta tradução de edição de B.
edição de B. B. Schmeidler por R. Schmeidler (1917, p.
Schmeidler M. Marttie, publicada 257–260)
em (LANGER, 2015)

XXVI. Aquele povo Cap. XVI – Falemos um XXVI Nobilissimum illa


possui um templo pouco, agora, acerca da gens templum habet,
nobilíssimo, ao qual superstição dos suecos. quod Ubsola dicitur,
chamam Uppsala, Aquele povo (esc. 134) non longe positum ab
localizado não muito possui um famoso Sictona civitate [vel
distante da comunidade templo chamado Birka]. In hoc templo,
de Sigtuna [ou Birka]. Uppsala, não longe da quod totum ex auro
Neste templo, o qual é cidade de Sigtuna. paratum est, statuas
todo ornado com ouro, Naquele templo, que é trium deorum veneratur
são veneradas pelo totalmente ornado populus, ita ut
povo as estátuas de d’ouro, o povo adora as potentissimus eorum
três deuses. Assim, estátuas de três Thor in medio solium Aprendendo
Thor, o mais poderoso deuses, de modo que o habeat triclinio; hinc et História:
destes, possui um mais poderoso deles, inde locum possident ENSINO &
assento no centro do Thor, ocupa um trono Wodan et Fricco. MEDIEVO
salão cerimonial; de um no centro do salão. Ao Quorum significationes Página | 31
lado e de outro têm seu lado, também eiusmodi sunt: 'Thor',
lugar Wodan e Fricco. Wotan [Odin] e Frikko inquiunt, ‘presidet in
As descrições desses [Freyr] preside sobre aere, qui tonitrus et
são as seguintes: ar, sobre os trovões e fulmina, ventos
‘Thor’, dizem, ‘preside os relâmpagos, os ymbresque, serena et
sobre o ar, de modo ventos e as chuvas, o fruges gubernat. Alter
que governa sobre bom tempo e sobre as Wodan, id est furor,
trovões e raios, ventos colheitas. O outro, bella gerit hominique
e chuvas, bons tempos Wotan, ou seja, o ministrat virtutem
e colheitas. O outro, furioso, rege a guerra e contra inimicos. Tercius
Wodan, isto é, fúria, dá aos homens força est Fricco, pacem
conduz as guerras e contra seus inimigos. O voluptatemque largiens
fornece ao homem a terceiro é Frikko, que mortalibus’. Cuius
virtude contra os garante paz e prazeres etiam simulacrum
inimigos. O terceiro é aos mortais, cuja fingunt cum ingenti
Fricco, generoso para imagem eles adornam priapo. Wodanem vero
com os mortais em paz com um imenso falo. sculpunt armatum,
e prazer. Cujo Quanto a Wotan, o sicut nostri Marterm
simulacro, portanto, representam solent; Thor autem cum
eles moldam com um arregimentado, sceptro Iovem simulare
genital masculino conforme estamos videtur. Colunt et deos
imenso. Wodan, acostumados a ver ex hominibus factos,
contudo, esculpem Marte. Thor, com seu quos pro ingentibus
armado, do mesmo cetro, nos lembraria factis immortalitate
modo que os nossos Jove. donant, sicut in Vita
fazem Marte: Thor, sancti Ansgarii legitur
todavia, com um cetro Cap. XVII – Ali, para Hericum regem fecisse.
parece imitar a Júpiter. todos os deuses, são
E eles adoram também atribuídos sacerdotes XXVII. Omnibus itaque
a deuses criados a que oferecem sacrifícios diis suis attributos
partir de homens, aos pelo povo. Se peste ou habent sacerdotes, qui
quais doam a fome são iminentes, sacrificia populi
imortalidade em virtude libações são oferecidas offerant. Si pestis et
de feitos grandiosos, ao ídolo de Thor; em fames imminet, Thor
assim como pode ser caso de guerra, a ydolo lybatur, si bellum,
lido na Vita de Santo Wotan; no caso de Wodani, si nuptiae
Ansgar, foi feito com o celebração de núpcias, celebrandae sunt,
rei Erik. a Frikko. É também Fricconi. Solet quoque
costume que, a cada post novem annos
XXVII. E a todos os nove anos, celebre-se communis omnium
seus deuses foram uma festa solene de Sueoniae provintiarum
atribuídos sacerdotes, todas as províncias da sollempnitas in Ubsola
os quais oferecem os Suécia. A ninguém é celebrari. Ad quam
sacrifícios do povo. Se a garantida a imunidade videlicet sollempnitatem
peste e a fome de não comparecer ao nulli prestatur
Aprendendo ameaçam, o ídolo de festival. Reis e pessoas immunitas. Reges et
História: Thor é libado, se comuns, todos e cada populi, omnes et singuli
ENSINO & guerra, de Wodan, se um deles enviam suas sua dona transmittunt
MEDIEVO devem ser celebradas oferendas a Uppsala. ad Ubsolam, et, quod
Página | 32 núpcias, de Fricco. Ademais, o que é mais omni pena crudelius
Também é comum penoso do que qualquer est, illi, qui iam
celebrar em Uppsala a forma de punição é que induerunt
cada nove anos uma aqueles que já christianitatem, ab illis
cerimônia sagrada adotaram o cristianismo se redimunt cerimoniis.
conjunta de todas as têm que se redimir por Sacrificium itaque tale
províncias da Sueônia. não participar do est: ex omni animante,
A esta solenidade, sacrifício. O sacrifício é quod masculinum est,
aparentemente, não é assim: para todo ser novem capita
concedida imunidade a vivo do sexo masculino, offeruntur, quorum
ninguém. Os reis e os nove cabeças são sanguine deos [tales]
povos, todos e cada selecionadas e o sangue placari mos est.
um. todos enviam as é ofertado para aplacar Corpora autem
suas oferendas a os deuses. Os corpos suspenduntur in lucum,
Uppsala, e, o que é são pendurados em um qui proximus est
mais cruel que qualquer bosque ao lado do templo. Is enim lucus
penalidade, aqueles que templo. Este bosque é tam sacer est
já assumiram o tão sagrado aos olhos gentilibus, ut singulae
cristianismo, (precisam) dos pagãos que eles arbores eius ex morte
se resgatar (mediante acreditam que cada vel tabo immolatorum
pagamento) daquelas uma das árvores é divinae credantur. Ibi
cerimônias. Assim, o divina por causa da etiam canes et equi
sacrifício é desse modo: morte sacrificial das pendent cum
de todo ser vivo, que é vítimas. Ali, há até hominibus, quorum
masculino, nove mesmo cães e cavalos corpora mixtim
cabeças são oferecidas; pendurados junto aos suspensa narravit mihi
é o costume apaziguar corpos humanos, aliquis christianorum
[tais] deuses através do segundo me relataram LXXII vidisse. Ceterum
sangue deles. Os alguns cristãos que os neniae, quae in
corpos, porém, são haviam visto. Além eiusmodi ritu libationis
suspensos em um disso, os fieri solent, multiplices
bosque que fica encantamentos usados et inhonestae, ideoque
próximo ao templo. De nesse tipo de sacrifício melius reticendae.
fato, esse bosque é tão ritual são múltiplos e (Adam de Bremen,
sagrado para aqueles desconhecidos, de 1917, p. 257–260)
pagãos, que eles forma que é melhor
acreditam que cada manter silêncio acerca
árvore é sagrada em deles. (MARTTIE, 2015)
virtude da morte ou do
chorume dos imolados.
E ainda, ali cães e
cavalos estão
dependurados
juntamente com
homens, um dos
cristãos contou-me que
viu 72 desses corpos Aprendendo
suspensos todos História:
misturados. Além disso, ENSINO &
os encantamentos que MEDIEVO
se costumam realizar Página | 33
nesse tipo de ritual de
libação são muitos e
degradantes, e por essa
razão é melhor que
sejam deixados de lado.

A despeito do grotesco equívoco na numeração dos capítulos, é notável que


o tradutor do trecho inicia sua tradução com uma frase que não está
presente na edição de Schmeidler. Ademais, ao final do capítulo 26 o
tradutor ignora a oração a respeito do culto ao rei Erik, sem contudo indicar
a omissão em seu texto, levando o leitor a crer que o texto de Adam se
encerra ali com a comparação entre Thor e Júpiter (a quem o tradutor
prefere se referir como Jove, um termo deveras desconhecido para o leitor
médio, ainda que adequado). O tradutor também omite uma série de
informações nos dois capítulos e, não se sabe se por lapso ou
desonestidade, traduz termos latinos por portugueses não-correspondentes
– por exemplo a tradução de inhonestae/desconhecido. Em suma, o
estudante ou pesquisador que se basear nessa tradução publicada na obra
de Langer estará lidando com uma tradução com graves problemas. Seu
trabalho poderá cair em interpretações equivocadas em virtude da falta de
rigor acadêmico com que a tradução se realizou, estando essa marcada por
vícios críticos que colocam em questão sua utilidade para discutir o templo
de Uppsala a partir de Adam de Bremen.

Um terceiro exemplo demonstra mais uma vez os riscos do uso de


traduções. A fórmula de recomendação abaixo foi publicada por Maria
Guadalupe Pedrero-Sánchez, traduzida para o português primeiramente por
F. Espinosa em 1981 e reproduzida pela autora em seu compêndio, sem a
devida comparação com o original latino. Como consequência, além da
imprecisão no uso de alguns termos, a autora manteve em sua obra um
erro contido na tradução original. Abaixo recorro novamente às traduções
paralelas.
Tradução minha a Tradução de Original latino
partir da MGH, Leges Espinosa, publicado na MGH,
– Formulae reproduzida em Leges – Formulae
Merowingici et Pedrero-Sánchez Merowingici et
Karolini aevi, p. 158 (2000, p. 95–96) Karolini aevi
Aprendendo (ZEUMER, 1886, p.
História: 158)
ENSINO &
MEDIEVO Ao magnífico Senhor Ao magnífico Senhor Domino magnifico illo
Página | 34 [ele], eu, pois, [eu]. [...], eu [...]. Sendo ego enim ille. Dum et
Posto que, e sendo bem sabido por todos omnibus habetur
reconhecido por todos quão pouco tenho para percognitum, qualiter
que eu possuo muito me alimentar e vestir, ego minime habeo,
pouco com que eu apelei por esta razão unde me pascere vel
possa me alimentar ou para a vossa piedade, vestire debeam, ideo
me vestir, por essa tendo vós decidido petii pietati vestrae, et
razão eu implorei por permitir-me que eu me mihi decrevit voluntas,
vossa piedade, e a entregue e encomende ut me in vestrum
minha vontade a vossa proteção; o que mundoburdum tradere
determinou para mim, fiz nas seguintes vel commendare
que eu deva me colocar condições: devereis deberem; quod ita et
sob, ou me entregar à ajudar-me e sustentar- feci; eo videlicet modo,
vossa proteção, o que, me tanto em víveres ut me tam de victu
portanto, eu também como em vestuário, quam et de vestimento,
fiz, a saber, da seguinte enquanto vos puder iuxta quod vobis servire
maneira, que devas me servir e merecer; e eu, et promereri potuero,
ajudar e me confortar enquanto for vivo, adiuvare vel consolare
tanto em relação a deverei prestar-vos debeas, et dum ego in
alimentos quanto em serviço e obediência capud advixero,
relação a vestimentas, como um homem livre, ingenuili ordine tibi
na mesma medida em sem que me seja servicium vel
que eu puder servir e permitido, em toda a obsequium inpendere
desejar-vos bem, e eu, minha vida, subtrair-me debeam et de vestra
enquanto estiver vivo, ao vosso poder e potestate vel
na qualidade de um proteção, mas antes mundoburdo tempore
homem livre deva deverei permanecer, vitae meae potestatem
oferecer a ti serviço ou por todos os dias da non habeam
obediência, e que eu minha vida, sob o vosso subtrahendi, nisi sub
não tenha o poder de poder e defesa. vestra potestate vel
me subtrair de vosso defensione diebus vitae
poder ou proteção por meae debeam
todo o tempo de minha permanere.
vida, mas (ao
contrário) que eu deva
permanecer sob vosso
poder ou vossa
proteção todos os dias
da minha vida.
Conclusão
Com essas pequenas reflexões a respeito do uso de traduções para o
desenvolvimento de pesquisa e estudos na área de história medieval eu
procurei demonstrar alguns dos perigos que uma tradução pode apresentar,
sejam eles mais ou menos graves, como os exemplos permitem vislumbrar.
Ainda que o estudante ou pesquisador não tenha domínio pleno da língua Aprendendo
latina – o que é, de fato, indesculpável para o pesquisador profissional – o História:
trabalho ao menos paralelo com a edição standard do texto original, quando ENSINO &
disponível, ou diretamente com os manuscritos, é essencial. As traduções MEDIEVO
possuem um papel essencial na difusão do conhecimento e na atração de Página | 35
novos interessados para temas que naturalmente são considerados
bastante distantes da realidade contemporânea. Porém, passado o primeiro
momento, de familiarização com o tema relatado em determinada obra e
com o início do interesse acadêmico pela pesquisa em história medieval, o
que geralmente ocorre ainda na graduação, é mister que o estudante e
futuro pesquisador se dedique ao estudo das línguas em que suas fontes
foram compostas. Finalmente, para retomar um elemento que foi apontado
no início do texto, a estética das artes é também uma linguagem a ser
aprendida. Um pesquisador da arte medieval precisa conhecê-la para
realizar uma correta interpretação da obra de arte, e precisa, sobretudo,
acessar a obra de arte em si. O historiador que trabalha a partir de
traduções seria equivalente ao historiador da arte que realiza toda a sua
investigação baseado somente em uma descrição da obra, sem nunca a ter
visto.

Referências:
Prof. Dr. Lukas Gabriel Grzybowski, doutor pela Universität Hamburg,
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JOGOS ELETRÔNICOS E MEDIEVALISMO: REFLEXÕES E CRÍTICAS NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Renan Marques Birro

Neste trabalho, refleti a inserção e o interesse cada vez maiores de Aprendendo


crianças, jovens e adultos em elementos gerados pela cibercultura História:
(MANOVICH, 2003, pp.13-25). Expressões como app, startups, memes, ENSINO &
games e streaming rapidamente foram incorporadas ao cotidiano e fazem MEDIEVO
parte de atividades corriqueiras em um amplo espectro etário e através de Página | 37
diferentes mídias.

Doutra feita, franquias de livros/séries/filmes/jogos eletrônicos como O


Senhor dos Anéis, O Hobbit, The Witcher, Assassin’s Creed e Game of
Thrones (apenas para citar aqueles que mais se destacaram nas últimas
décadas) arrebatam milhões de interessados em todo o mundo e
movimentam vultuosas somas. Este enorme conjunto de indivíduos assiste,
joga, interage e discute pessoalmente e nas redes sociais sobre seus livros,
séries, filmes e jogos eletrônicos favoritos em um volume cada vez maior.
Mas como tudo isso dialoga (ou não) em sala de aula?

O contexto evocado é caro a todas as esferas da educação (ensino básico,


técnico e tecnológico e superior). Ao avançar para o âmbito dos jogos
eletrônicos, os estudantes muitas vezes passam horas sobre games com
gráficos extremamente realistas e som surround, conversam em chats em
tempo real com os colegas sobre o assunto, mas, ao adentrar a sala de
aula, não conseguem relacionar o conteúdo do jogo disputado com uma
avaliação tradicional, composta por questões de múltipla escolha e uma
redação a partir da leitura de capítulos do livro didático, de um grupo de
obras ou de artigos dispersos (CAIMI, 2007, pp.17-32).

O estudante, assim, não é capaz de criar uma relação entre a realidade


virtual proposta pelo game, o que foi ensinado ou apresentado em sala e o
passado mediado pelos diferentes campos científicos, ou ainda o faz de
maneira insatisfatória, pois a transmissão unidirecional e autoritária do
modelo educativo majoritariamente empregado nas escolas e universidades
diverge com a agência que a tecnologia do encantamento dos jogos de
computador e videogames oferecem (GELL, 1992, pp.40-63; GELL, 1998,
pp.12-50).

Em outro extremo, mas conectado ao problema evocado, o mercado de


jogos produzidos no Brasil é promissor, seja em termos de mercado
consumidor quanto no escopo na oferta de temas; mas seu alcance
infelizmente ainda é extremamente limitado (CANALTECH, 2018). Por esta
razão, é possível identificar que games que partem de referenciais culturais
desconectados com nosso passado e realidade abundam, ganham e
ganharam espaço, como no caso da temática medieval e da fantasia
(LABBIE, 2015, pp.21-29; CRAMER, 2010, p.ix).
A meu ver, exatamente por não ter uma referência real em sua própria
realidade, o(a) educando(a) tem extrema dificuldade em assimilar os
conteúdos, o que provoca problemas ao menos a partir de dois polos: o
abandono da cultura local, regional ou nacional por um ponto de vista
externo (eurocêntrico, por exemplo)(MORENO, 2016, pp.7-27); ou
Aprendendo incapacidade de entender o real a partir desse referencial profundamente
História: consumido, como expresso antes. Naturalmente, entre esses dois extremos,
ENSINO & uma gama de possibilidades intermediárias pode acontecer dependendo dos
MEDIEVO interesses do(a) educando(a).
Página | 38
Como, portanto, fazer valer os meios digitais e os games em prol de um
aprendizado mais relacionado ao contexto do século XXI e do alunado
hodierno? Além desse questionamento, há outro tão importante quanto:
como preparar os estudantes de Graduação e Pós-Graduação na esteira do
tripé universitário, composto por Ensino, Pesquisa e Extensão, visando sua
posterior inserção na Educação Básica?

Creio que uma das saídas seria disputar o mesmo espaço dos games para
tentar relativizar o senso comum dos discentes e fazê-los circular na hiper-
realidade (G1, 2018), na cibercultura e no “mundo real”, possibilitando um
melhor discernimento da realidade. Para consolidar essa via, faz-se
necessário adentrar a esfera da criação de jogos, campo que pouco a pouco
tem adentrado o seio universitário, mas usualmente como cursos de nível
superior separados e pouco relacionados com as licenciaturas, por exemplo.

Ao pesquisar o tema, pude perceber que as barreiras são mais amplas:


Elizabeth Simpson e Susan Stansberry elencaram um conjunto de
dificuldades para o uso de jogos eletrônicos nas salas de aula: estatística de
rendimentos (ainda em desenvolvimento para games), ferramentas e
metodologia de pesquisa, apoio administrativo para a inovação, colaboração
docente, preparo docente e estruturação de novas metodologias (SIMPSON
& STANSBERRY, 2008, pp.168-184).

Ademais, apesar das limitações inerentes ao concorrer com empresas de


jogos comerciais, que contam com equipes, estrutura e recursos voltados
exclusivamente para isso, acredito piamente que é possível conquistar uma
parte do mercado formada por educadores, pais e redes escolares. Tudo
leva a crer que há uma avidez por produtos desse gênero; no entanto, as
poucas iniciativas presentes, conquanto bem intencionadas, são
frequentemente muito amadoras, simples e incapazes de atrair a atenção
dos discentes por limitações diversas, inclusive de natureza gráfica e
sonora. O impacto da qualidade visual é um importante fator para a
aceitação e sucesso do jogo eletrônico, razão pela qual demos especial
destaque a esta perspectiva (WHITTON & WHITTON, 2015, pp.1-19).

Reflexões teóricas
Considerando o campo dos estudos medievais como ponto de partida,
Richard Utz constatou em uma conferência recente que os medievalistas
frequentemente agem de maneira esnobe diante do medievalismo pop
(LABBIE, 2015, pp.21-29), ou seja, face às representações da Idade Média
na cultura contemporânea, de massa e popular. Doutra feita, é interessante
notar como esta última influência é atrativa para muitos jovens, enquanto o
medievalismo tradicional, seja no ensino, na pesquisa ou na extensão, tem
pouco alcance e até dificuldade para o preenchimento de postos
universitários, de oportunidades de mestrado e doutorado e de atratividade
diante de outros recortes (UTZ, 2015). Aprendendo
História:
Ao avançar na análise, Utz sinalizou um duro aspecto dessa ambiguidade: ENSINO &
“muitos daqueles que nós marcamos como ‘amadores’ ou ‘diletantes’ MEDIEVO
(termos etimologicamente indicando ‘amor’ e ‘deleite’) investem tanto ou Página | 39
mais tempo, energia e dinheiro em engajar-se com a Idade Média do que
alguns de nós, i.e., professores” (UTZ, 2015).

No bojo da questão, é exatamente tal medievalismo pop, muito conhecido e


consumido pelas crianças e jovens, que usualmente compele o interesse
dos estudantes, seja no Ensino Básico, seja no Ensino Superior.
Entrementes, relembro as palavras de Jean Piaget sobre o interesse de
quem aprende e seu prolongamento de necessidades:

“o interesse é a orientação própria a todo ato de assimilação mental.


Assimilar, mentalmente, é incorporar um objeto à atividade do sujeito, e
esta relação de incorporação entre o objeto e o eu não é outra que o
interesse, no sentido mais direto do termo (‘inter-esse’)”(PIAGET, 2005,
p.37).

Ademais, o interesse descrito admite duas dimensões: uma reguladora, que


torna determinada tarefa fácil e instigante; e outra como um sistema de
valores, capaz de refinamentos cada vez mais exigentes e complexos para a
ação em busca de seu reequilíbrio (PIAGET, 2005, p.37).

Essas premissas, portanto, são muito úteis para os desafios do Ensino de


História, seja ele direcionado para a medievística ou para outros recortes
espaço-temporais ou abordagens. Em alguns casos, a atratividade dos jogos
digitais por fatores diversos (gráficos, sons, abordagem) entra em choque
com os mecanismos tradicionais de ensino adotados em diversas escolas
brasileiras, acompanhados por materiais didáticos e avaliações que
provocam pouca reflexão (questões objetivas, nomes e datas etc.)(CAIMI,
2007, pp.22-26).

Ao ponderar sobre as dificuldades elencadas, não seria forçoso precisar que


essa relação admite aquilo que alguns filósofos taxaram como hiper-
realidade, ou seja, quando a “realidade da representação” (CHARTIER,
2011; CHARTIER, 2002; CHARTIER, 1989) é tão intensa e coerente que o
indivíduo encontra dificuldades para contemplar o próprio “real” (ECO,
1986, pp.1-58); ou ainda é crível considerar tal situação no escopo das
reflexões koselleckianas do “campo de experiência” e “horizonte de
expectativas”, isto é, na profunda tensão da constante reescrita e
ressignificação da História ao considerar o passado, o presente e o futuro
(KOSELLECK, 2006).
Outrossim, como evocado no início do texto, o estudante muitas vezes
enfrenta dificuldades para assimilar, compreender e pensar de forma crítica
as dimensões da realidade “real”, virtual e os conteúdos abordados em sala
de aula, seja por problemas de forma, conteúdo ou pela atratividade que os
games e videogames exercem nos termos da tecnologia do encantamento
Aprendendo (GELL, 1992, pp.40-63; GELL, 1998, pp.12-50) dos jogos de computador e
História: que os videogames oferecem.
ENSINO &
MEDIEVO A meu ver, para tentar dirimir o problema, o primeiro passo envolve o
Página | 40 aceite de um desafio: cabe ao professor e pesquisador sair de sua “torre de
marfim” e fazer valer as percepções piagetianas, produzindo um processo
de relativização, contextualização e interação com essa hiper-realidade
fomentada por outras mídias. Elas não podem ser tratadas como rivais, mas
como elementos complementares e inescapáveis.

Caberia ainda outra pergunta: no escopo das questões supracitadas e


diante das reflexões de Alfred Gell (1992; 1998), como fazer valer a
agência dos estudantes e a segunda agência da realidade virtual e de seus
personagens em prol de um aprendizado mais adequado ao contexto do
século XXI? Em primeiro lugar, creio que os professores devem fazer uma
mea culpa e admitir o caráter limitado de algumas inovações e propostas
interdisciplinares (FREIRE, 1987) para o Ensino: conquanto desejadas e
estimuladas (THIESEN, 2008), basta um olhar mais cuidadoso para
perceber que várias iniciativas são teóricas e de difícil aplicação na realidade
objetiva, principalmente no cenário educacional público brasileiro, por
problemas estruturais, de aperfeiçoamento valorização da carreira docente,
da proposição de políticas públicas e de ensino-aprendizagem de longo
prazo etc.

Em segundo lugar, é imperativo um constante aperfeiçoamento por parte


dos docentes universitários, sobretudo para suprimir lacunas formativas
próprias, para evitar que elas sejam transmitidas aos seus alunos; é de
notório saber que a formação acadêmica é repleta de “vazios” e, embora
frequentemente apregoadas, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade
são apenas desejos, retórica e palavras vazias no próprio contexto
universitário. A rigor, os docentes não conversam entre si, seja na esfera do
próprio curso, seja com outros, o que acarreta em proposições de
disciplinas, eventos e iniciativas estanques (MOZENA & OSTERMANN, 2016,
pp.92-110).

Além disso, há uma pequena atualização dentro do próprio contexto do


Ensino de História Medieval, explícita na maioria dos trabalhos publicados
nos últimos quinze anos (MURILO, 2015; RIBEIRO, 2014; SILVA, 2013;
LANGER, 2009; SILVA, 2005), assim como no reconhecimento de uma nova
tendência nesse domínio por influência das Digital Humanities (DRUCKER,
2017)
. Uma parcela considerável dos professores universitários permanece,
de fato, em zonas periféricas diante desse processo, extraindo aqui e ali os
“produtos” que são e serão úteis para os propósitos tradicionais de Ensino,
Pesquisa e Extensão.
Consequentemente, tal trabalho individual, lacunar e limitado atinge
duramente os discentes e futuros professores, que repetem posteriormente
esses princípios com seus alunos do Ensino Básico. Os profissionais recém-
saídos dos bancos universitários encontram, grosso modo, uma dificuldade
enorme para escapar ora de propostas fantasiosas e inaplicáveis, ora do
ensino lacunar e “monodisciplinar” (MOZENA & OSTERMANN, 2016, pp.107- Aprendendo
108). História:
ENSINO &
Nestes termos, para romper esse círculo vicioso, o professor precisa superar MEDIEVO
suas limitações e sorver influências e propostas de áreas alheias, com Página | 41
especial atenção para áreas derivadas da Ciência da Computação
(digitalização, informática, virtualização, entre outras). Outro esforço
concomitante é a reformulação dos planos pedagógicos dos cursos, no
intuito de associar diferentes recortes históricos a partir de propostas de
ensino transversais e integrar abordagens e áreas marginais ou
inexistentes, como História e Informática, Informática, Programação Básica,
Programação orientada a objetos etc.

Naturalmente, não precisamos transformar professores e discentes em


programadores, editores de vídeo ou designers, mas fornecer noções
satisfatórias, tanto para um eventual trabalho conjunto com profissionais
dessas áreas, quanto para um desenvolvimento independente, com
recursos gratuitos online e que não dependem de noções de programação.
Alguns exemplos são o GameSalad, um criador de jogos do tipo drag and
drop (“arrastar e soltar”)(GAMESALAD, 2017; CRACO JÚNIOR & ZARBATO,
2017, pp.231-248); mapas interativos nos termos do GeoBatch e do Fusion
Tables, que envolvem não apenas uma inovação tecnológica, mas, a rigor,
metodológica e educativa (BATCHGEO, 2017; FUSION TABLES, 2017); ou
ainda vídeos animados, como o Animaker (ANIMAKER, 2017).

Além dessas, há outras ferramentas congêneres e gratuitas, relativamente


acessíveis. É possível mencionar também propostas que abarcam um ensino
mais lúdico, atrativo e próximo da realidade discente. Desta maneira, é
factível relacionar a História com o cotidiano e com o que for considerado
mais palatável e pautável para o(a) educando(a)(CRUZ, 2016; FRAGA,
2016).

Conclusões e provocações
Um leitor atento notou o tom ácido das críticas aqui apontadas. Apesar
disso, meu objetivo não foi sinalizar as limitações do colega A ou B, uma
vez que são vícios do ofício reproduzidos coletivamente e de maneira quase
inconsciente; ademais, pretendo alertar para um cenário relativamente
estático em nosso país, considerando os últimos quinze anos ao menos, que
tem sido enfrentado duramente noutras plagas (METZGER & PAXTON,
2016; KAPELL & ELLIOTT, 2013; MINUZZI, 2013; AKKERMAN, ADMIRAAL &
HUIZENGA, 2009). Por conta disso, minha crítica envolve também um grau
considerável de autocrítica.

Ademais, pela brevidade do texto, não foi possível atingir outros


limitadores, sobretudo aqueles que envolvem os recursos das instituições
de ensino do país de Ensino Superior e da Educação Básica (laboratórios,
computadores, acesso à internet, licenças de softwares, manutenção do
ambiente e dos equipamentos, condições de aperfeiçoamento, entre outras
mazelas). Portanto, ao considerar esta reflexão como um todo, lanço dois
pedidos: que as críticas sirvam como um degrau ou até mesmo um
Aprendendo trampolim para que alcemos novos voos; e que as sugestões a seguir
História: inquietem e ajudem a provocar mudanças no quadro assinalado.
ENSINO &
MEDIEVO Como tentei apresentar de maneira sucinta, creio que o(a) aluno(a) possa
Página | 42 ser diretamente impactado, a saber, ao potencializar seus interesses nos
termos de Piaget, tanto em sua capacidade de agência quanto na
capacidade de segunda agência das mídias. Ademais, desejo ressaltar seu
papel enquanto construtor do conhecimento e, especificamente, do
conhecimento histórico, tal qual apregoado por Freire e Gell. Por fim, tenho
a esperança que esse aprendizado possa ser reproduzido a posteriori,
durante o exercício profissional, com o alunado; este corpo, por sua vez,
tem um enorme potencial de catalisar e desenvolver um leque de jogos e
recursos interativos não apenas sobre o passado medieval, mas também da
História Local, Regional e Nacional.

Neste empenho, parece salutar que os pesquisadores definam caminhos e


direções, além de utilizar a metodologia científica para o uso de games em
sala de aula. Deste modo, creio que uma boa saída é o desenvolvimento de
jogos epistêmicos, ou seja, que ensinem o educando a trabalhar e, então, a
pensar como um profissional inovador. Ademais, é possível propor uma
espécie de “ambiente virtual de aprendizado” para além da esfera escolar:
em Taiwan, por exemplo, que dispõe de aproximadamente 60 milhões de
jogadores e, destes, aproximadamente 43% com idade inferior aos 19 anos,
os educandos utilizam estratégias autônomas para superar barreiras e
aprender línguas enquanto jogam (SIMPSON, 2008, pp.169-184). Seria
possível, deste modo, aproveitar este potencial em jogos pensados a partir
de uma matriz educativa.

Por fim, para tentar suprir a falta de expertise dos professores quanto ao
uso de games, tal como potencializar seu uso, acredito que a Análise de
Redes de Jogos (Game Network Analysis ou GaNA) pode funcionar como um
ponto de partida não apenas para a reflexão sobre a estrutura do jogo, mas
simultaneamente para ampliar a competência do professor no aprendizado
baseado em games. Essa metodologia também retira da plataforma digital a
exclusividade do aprendizado, pois advoga que o papel dos docentes é
fundamental para a efetividade do game no aprendizado e motivação, na
dinâmica em sala e, por fim, no processo e contexto de integração dos
jogos (FOSTER, 2015, pp.380-411).

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Renan Marques Birro é Professor de História Medieval da Universidade
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Aprendendo
História:
AUTOR@S
ENSINO &
MEDIEVO
Página | 46
DISCUTIR GÊNERO NO CONTEÚDO DE HISTÓRIA MEDIEVAL:
ALGUMAS POSSIBILIDADES DE REFLEXÃO A PARTIR DO JOGO
“HAGIOGRAFANDO”
Danielle Mendes da Costa
Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira
Aprendendo
História:
Considerando a relevância da Idade Média no currículo escolar – para a ENSINO &
formação da cidadania – e a necessidade de discutir gênero em sala de aula MEDIEVO
– como meio de combater preconceitos e discriminações –, esta Página | 47
comunicação tem por objetivo apresentar o “Hagiografando”. O jogo
educativo elaborado no âmbito do Programa de Estudos Medievais (PEM-
UFRJ) em um Projeto financiado pela FAPERJ. Empregando a categoria de
gênero (SCOTT, 1992), a atividade evidencia a distinção dos papéis e dos
modelos de conduta entre os santos e as santas descritos nas Hagiografias.
Assim, ao propor a criação de narrativas a partir destes elementos, a
atividade contribui para a compreensão de que o gênero é uma construção
histórico-cultural, das relações sociais baseadas nas diferenças sexuais.

A fim de abordarmos as potencialidades do “Hagiografando” optamos por


dividir este artigo em duas partes. Na primeira teceremos algumas
considerações sobre o Projeto e os pressupostos teóricos que fundamentam
esta proposta didática. Na segunda parte apresentaremos o processo de
desenvolvimento do jogo, por meio dos elementos que nortearam sua
elaboração.

Santidade, Memória e Gênero: as origens do “Hagiografando” no


Ensino de História
O jogo “Hagiografando” está inserido no Projeto “A construção medieval da
memória de santos venerados na cidade do Rio de Janeiro: uma análise a
partir da categoria gênero”. A iniciativa financiada pela FAPERJ e
coordenada, desde 2015, pela Profª Drª Andréia Cristina L. Frazão da Silva
– Professora Titular do Instituto de História da UFRJ e co-coordenadora do
PEM/UFRJ – foi realizada em conjunto com o projeto “Hagiografia e História:
um estudo Comparativo da Santidade”, que reúne há quase duas décadas
professores(as) e alunos(as) de graduação e pós-graduação. Dentre os
principais objetivos deste empreendimento coletivo, que articula pesquisa,
ensino e extensão, destacam-se a análise das hagiografias – relatos das
vidas de santos e santas – na contribuição para a consolidação das
memórias de santidade; a identificação e a articulação do gênero nas
narrativas selecionadas; propor estratégias didáticas para o ensino e, a
divulgação acadêmica dos temas associados à Idade Média e aos saberes de
gênero, a partir das memórias relacionadas aos santos e as santas (SILVA,
2016).

Como pressupostos teóricos foram adotados a noção histórica de santidade,


e, de memória como uma construção realizada no presente apoiada em
experiências do passado. A análise sob a emprego da categoria gênero
seguiu as formulações de Joan Scott (1992), que definiu e teorizou este
conceito a partir de dois enunciados: “[...] (1) o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de
poder.” (SCOTT, 1995, p.85).

Conforme sublinhado por Silva (2016) a definição de gênero como um saber


Aprendendo sobre as diferenças, proposta no primeiro enunciado, enfatiza a proposição
História: de Michel Foucault acerca do termo saber, como uma “[...] compreensão
ENSINO & sobre a organização social, que não é objetiva nem neutra, pois é
MEDIEVO estabelecida historicamente e em meio às relações de poder.” (SILVA,
Página | 48 2016, p. 40). Desta maneira, Scott apontou quatro elementos
interrelacionados, cuja a compreensão de seus movimentos é fundamental
na pesquisa histórica: os símbolos, os conceitos normativos, a concepção
política e a referência às instituições e organizações sociais, e, a “identidade
objetiva”, que permite o exame da construção das identidades
generificadas, relacionando as organizações e as representações sociais do
contexto histórico específico.

A teorização da categoria foi desenvolvida a partir do segundo enunciado


que, de acordo com Scott, corresponde a afirmação do gênero como “um
campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é
articulado.” (SCOTT, 1995, p. 88). A noção de poder empregado pela
historiadora, mais uma vez, se aproxima da proposta de Foucault, na qual o
poder é compreendido como discursos constituídos nas relações de forças,
distribuídas nas relações desiguais. Logo, Scott enfatiza que o gênero
historicamente tornou-se uma forma recorrente de garantir a “[...]
significação do poder”. Assim, na interpretação de Silva “o gênero é um
saber no qual e por meio do qual são constituídas estratégias para
diferenciar, disciplinar, submeter, dominar, reprimir, negociar e legitimar as
pessoas, utilizando-se de discursos sobre a diferença sexual.” (SILVA, 2016,
p. 40).

Apoiando-se nestas premissas foram selecionados para análise os relatos


hagiográficos de três santas – St. Clara, St. Maria e St. Luzia– e oito santos
– S. Francisco, St. Antônio, S. Pedro Gonçalves, S. Jorge, S. Sebastião, S.
João e S. Cosme e S. Damião – compostos no século XIII e encontrados,
em sua maioria, na “Legenda Áurea”. Deste modo, o Projeto denotou que o
reconhecimento de um homem ou uma mulher dignos de culto estavam
articulados às relações de poder, bem como aos saberes que suscitaram a
promoção de sua memória por um grupo ou instituição.

Nesse sentido, compreendendo que os relatos sobre as vidas dos(as)


santos(as) se constituíram como uma das estratégias utilizadas pelos
mendicantes, para inculcar ensinamentos à comunidade cristã, as análises
denotam que o gênero também atravessa e constitui as memórias, mesmo
que não as determine. Deste modo, ao analisar a vita de St. Luzia, por
exemplo, Silva (2017) sublinhou que as características relacionadas à santa,
tais como a virgindade, a castidade e a pobreza, estavam em consonância
com os modelos de religiosidade feminina concebida pelos dominicanos. Em
vista disso, embora o texto remeta à um acontecimento do século III, o
relato apresenta um modelo de comportamento esperado pelas mulheres
vinculadas à ordem, o que também sugere que elas “[...] foram
consideradas como potenciais consumidoras diretas desta obra.” (SILVA,
2017, p. 9). Portanto, mesmo que os saberes do gênero não tenham sido
determinantes para a produção, eles estão presentes na narrativa. Assim,
“[...] além de perpetuar a memória da Santa Luzia e transmitir
ensinamentos morais e de fé, também contribuiu para reafirmar e propagar Aprendendo
saberes de gênero, ainda que de maneira involuntária” (SILVA, 2017, p. 9). História:
ENSINO &
Considerando que os(as) santos(as) integram a cultura da cidade do Rio de MEDIEVO
Janeiro, o Projeto defendeu a sua potencialidade didática, uma vez que Página | 49
“Por meio da desnaturalização e desconstrução dessas memórias, é possível
desenvolver estratégias de ensino e de divulgação acadêmica, a fim de
abordar aspectos da sociedade medieval e propiciar a análise crítica sobre
os saberes que buscam constituir e dar sentido às diferenças sexuais.”
(SILVA, 2016, p. 44).

Segundo Adriana María Valobra (2001) uma das principais causas para as
investigações acadêmicas não serem incorporadas nas discussões escolares,
é a insistência do hábito tradicional em tratar esta questão. Por isso, na
maioria das vezes,

“No se piensa el tema como una parte sustancial de la comprensión


histórica y del conocimiento del pasado ni tampoco, como parte de nuestro
propio conocimiento como sujeto de ciudadanía (TENTI, 1993), y sólo ha
habido algunos aportes concretos a esa temática (ElIZAlDE, FElITTI y
QUEIROlO, 2009).” (VALOBRA, 2001, p. 27)

Tal condição também foi exposta recentemente pela pesquisa de Marta de


Carvalho Silveira (2017) sobre a representação da mulher medieval nos
livros didáticos, que deverão ser utilizados até este ano nas escolas
públicas. Após analisar comparativamente alguns destes livros, Silveira
concluiu que apesar das obras estarem adequadas às orientações da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) elas não garantem a qualidade da
discussão do tema. Além disso, ainda existe uma dificuldade para os(as)
autores(as) inserirem o tema da condição feminina no texto base,
preferindo tratar a questão em boxes ou atividades de interpretação e de
pesquisa. Tal perspectiva demonstra que “[...] as discussões em torno da
história das mulheres medievais e das relações de gênero mostram-se
ainda embrionárias nos livros didáticos e, em geral, descoladas de uma
análise contextual, [...]” (SILVEIRA, 2017, p. 105-106).

Nesse sentido, por não apresentarem elementos que possam identificar as


mulheres como sujeitos históricos no contexto medieval, estes livros não
propiciam a compreensão histórica das relações de gênero pelos(as)
alunos(as). Assim para Silveira, embora a comparação entre as mulheres
medievais e contemporâneas seja “[...] um exercício interessante e
necessário, no entanto, não é válido para a constituição dos cidadãos
brasileiros se for alimentado por noções de vitimização ou de
supervalorização do papel feminino.” (SILVEIRA, 2017, p. 106).
Deste modo, o Projeto sobre a construção da memória dos santos
venerados no Rio de Janeiro atende uma demanda pelas discussões de
gênero no Ensino Básico, especialmente no conteúdo de Idade Média. Para
tanto, como sublinhado por Carla Pinsky (2009) é importante que os(as)
Aprendendo alunos(as) entendam e utilizem corretamente o conceito de gênero na
História: disciplina de História. Deste modo, o gênero deve ser compreendido,
ENSINO & conforme já destacamos, como uma construção histórico cultural das
MEDIEVO relações sociais, baseadas nas diferenças sexuais.
Página | 50
Enfatizando a importância desta perspectiva, Pinsky apontou três razões
para falarmos sobre o gênero na disciplina de História. A primeira está
associada a uma das funções principais das aulas de História, isto é, “[...]
capacitar os estudantes para perceber a historicidade de concepções,
mentalidades, práticas e formas de relações sociais” (PINSKY, 2009, p. 31).
A segunda razão é que os alunos assumem um olhar mais crítico “[...] das
suas concepções, bem como das regras sociais e as ‘verdades’ apresentadas
como absolutas e definitivas” (PINSKY, 2009, p. 32). E, por fim, porque os
educandos “[...] também adquirem uma compreensão maior dos limites e
possibilidades dos seres históricos [...] pois dentro das determinações
históricas também é possível fazer escolhas” (PINSKY, 2009, p.33).

Procurando estabelecer a articulação entre ensino e pesquisa, e abrir um


canal de diálogo e cooperação entre a universidade e a escola, em meados
de 2017 teve início terceira fase do Projeto coordenado por Silva. Nesta
etapa foram desenvolvidas fichas de atividades didáticas para o Ensino
Fundamental II e o Ensino Médio. A conclusão destas fichas culminou na
publicação do livro “Atividades para o Ensino Básico”, no final de 2018.
Dentre as propostas pedagógicas elaboradas nesta fase, encontra-se o jogo
“Hagiografando”. A complexidade desta atividade permitiu a sua autonomia
em relação às fichas didáticas, ganhando um novo status no interior do
Projeto. A seguir, apresentaremos este jogo educativo inspirado no “Game
Of Life” da Hasbro.

A construção do “Hagiografando”
Ao examinar a função dos jogos no Ensino de História e as potencialidades
do seu uso, Nilton M. Pereira e Marcello P. Giacomoni (2013) evidenciaram
que no ato de jogar os educandos estão mais próximos da origem dos
conceitos, na medida em que estes ganham um aspecto menos abstrato, ao
dar forma aos modos de vida. Deste modo, o jogo se constitui como um
espaço privilegiado, no qual

“[...] tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação,


separação. Um espaço para o imprevisível. Mas um imprevisível que forma
conceitos, forma uma capacidade de ler tanto realidades muitas vezes
distantes no espaço e no tempo, como outras muito próximas da nossa.”
(MULLET; GIACOMONI, 2013, p. 19-20)

A partir desta perspectiva, Giacomoni (2013) identificou os principais


elementos que devem nortear o processo de criação de jogos pelos(as)
professores(as). Nesse sentido, a elaboração do “Hagiografando” seguiu as
recomendações sobre a temática, os objetivos, a superfície, a dinâmica, as
regras e o layout. Cabe ressaltarmos que na atividade didática em questão,
estes elementos não foram concebidos como etapas isoladas. Logo, como
assinalado pelo historiador, durante todo o processo alguns aspectos foram
correlacionados e constantemente reavaliamos, a fim de alcançarmos os Aprendendo
objetivos da proposta. No entanto, haja vista uma apresentação geral História:
acerca da elaboração do “Hagiografando”, preferimos abordar ENSINO &
separadamente cada elemento. MEDIEVO
Página | 51
Nesse sentido, reconhecendo que a escolha do tema é concebida dentro do
período histórico e dos conteúdos planejados, e, considerando as premissas
do Projeto sobre a construção da memória dos santos, optamos por criar
um jogo para o 1º ano do Ensino Médio. Para tanto, selecionamos os
conteúdos programáticos associados à Idade Média, particularmente os
aspectos culturais do Ocidente entre os séculos XI-XIII. Deste modo, a
atividade contempla os temas: Religião e Religiosidades no Medievo,
Relações de Poder e Gênero nas Hagiografias. Esta abordagem permite que
os(as) professores(as) explorem em sala de aula a influência do
crescimento das cidades e do comércio nas transformações da religiosidade
do período, como o surgimento do ideal de vita apostólica e a importância
das ordens mendicantes na sociedade medieval.

Segundo Giacomoni a experimentação do jogo deve ser pautada em dois


objetivos que, obrigatoriamente, precisam caminhar juntos no processo de
criação: os objetivos pedagógicos e os objetivos do jogo. Enquanto o
primeiro se relaciona com a atividade que os(as) educadores(as) planejam
desenvolver, como a fixação de conceitos ou conteúdos; o segundo se
refere à finalidade do conjunto de dinâmicas e regras do jogo. Em relação
ao “Hagiografando” foram concebidos dois objetivos pedagógicos: (1)
discutir como os gêneros aparecem na vitae dos(as) santos(as), na medida
em que propõem modelos de conduta para homens e mulheres; (2)
reconhecer a influência dos saberes sobre as diferenças sexuais nos relatos
hagiográficos. Já o objetivo do jogo é desenvolver uma narrativa de vida de
um(a) santo(a), respeitando os modelos sociorreligiosos construídos pela
instituição eclesiástica no medievo.

No tocante a superfície, que consiste na definição do suporte de ação no


qual o jogo se desenvolverá, optamos pela produção de cartas com
diferentes funções e pontuações. Deste modo, a partir das análises dos
relatos sobre a vida dos(as) santos(as) desenvolvemos sete tipos de cartas:
Vocação Religiosa, Origem, Causa da Morte, Virtudes e Milagres em Vida,
Ações em Vida, Milagres e Acontecimentos Pós-Morte, e Cartas de Ação e
Bloqueio. Cada carta possui pontuações distintas em relação ao masculino e
feminino, observando as posições, as qualidades e as ações valorizadas
pelos saberes baseados nas diferenças sexuais nas hagiografias do período
estudado.

Considerando, que o “Hagiografando” se inspirou no jogo de cartas “Game


Of Life”, algumas regras foram adaptadas para a realização da atividade
didática. Entretanto, visando uma aprendizagem significativa, novas regras
foram estabelecidas, especialmente as que tratam sobre a preparação e de
como vencer o jogo. Assim, por exemplo, algumas cartas são distribuídas
entre os(as) participantes antes da primeira rodada. Além disso, o
vencedor(a) é aquele(a) que alcançar o maior número de pontos,
Aprendendo respeitando os modelos sociorreligiosos atribuídos aos homens e as
História: mulheres, no período medieval, e um determinado número de tipos de
ENSINO & cartas baixadas na mesa, que devem compor a vita do(a) personagem
MEDIEVO selecionado(a).
Página | 52
Considerando as possibilidades em relação ao tempo e o funcionamento,
desenvolvemos uma dinâmica baseada em rodadas, por meio das decisões
dos educandos. Nesse sentido, embora o tempo previsto para a realização
da atividade sejam 30 minutos, haja vista o total de seis rodadas, em cada
uma destas os(as) alunas(as) possuem autonomia para identificar, avaliar,
selecionar e comparar as cartas que dispõem. Cabe salientarmos que as
tomadas de decisões podem ser efetuadas individualmente ou em comum
acordo, visto que o jogo prevê a participação de até 6 pessoas ou grupos.

Reconhecendo que a qualidade do layout é importante na reprodução de


ambientação histórica, para conduzir os educandos a outra realidade, as
cartas do “Hagiografando” possuem alguns elementos gráficos que remetem
ao período medieval. Nesse sentido, utilizamos desenhos de manuscritos,
penas e fontes góticas na composição do jogo. Cabe salientarmos que o
processo de desenvolvimento do layout sofreu modificações de cores,
texturas e tamanhos ao longo de um ano, visando a melhor qualidade das
peças para despertar o interesse dos(as) alunos(as) pela proposta
pedagógica.

Por fim, em face do exposto é importante salientarmos que a elaboração do


“Hagiografando” expressa o compromisso educativo da área de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas da BNCC. Deste modo, o jogo compreende as
habilidades referentes aos conceitos e metodologias deste campo, no qual

“As operações de identificação, seleção, organização, comparação, análise,


interpretação e compreensão de um dado objeto de conhecimento são
procedimentos responsáveis pela construção e desconstrução dos
significados do que foi selecionado, organizado e conceituado por um
determinado sujeito ou grupo social, inserido em um tempo, um lugar e
uma circunstância específicos.” (BNCC, 2018, p. 461-462)

Nesse sentido, a proposta pedagógica do “Hagiografando” assegura a


autonomia no processo de ensino-aprendizagem dos educandos,
contribuindo para o acesso à uma educação que permite o debate plural e a
reflexão crítica sobre o mundo.

Considerações finais
Desenvolvido após reflexões e discussões teóricas, historiográficas,
pedagógicas e metodológicas, acreditamos que o jogo educativo
“Hagiografando”, por meio do reconhecimento das relações de poder e
gênero nos relatos das vidas dos santos e das santas, abrange diversas
possibilidades didáticas. A principal delas é permitir que os(as)
professores(as) possam debater e propor uma reflexão crítica acerca dos
modelos sociais construídos sobre a diferença sexual, mas outras discussões
podem ser fomentadas. Tal perspectiva decorre da constatação de que, esta
prática pedagógica articula dois aspectos importantes relacionados ao Aprendendo
Ensino de História e a contemporaneidade. Em primeiro lugar, o História:
reconhecimento do papel das mulheres como sujeitos históricos. Em ENSINO &
segundo, a compreensão de que as concepções e as representações são MEDIEVO
atravessadas por relações de poder, expressas em diferentes instituições, Página | 53
símbolos, práticas sociais, etc.

Conforme apontamos anteriormente, o “Hagiografando” ganhou um novo


status no Projeto “A construção medieval da memória de santos venerados
na cidade do Rio de Janeiro: uma análise a partir da categoria gênero”.
Deste modo, a atividade foi contemplada com o financiamento de sua
produção, para que seja distribuído gratuitamente. Com o objetivo de
atender as exigências da agência fomentadora, foram promovidos dois
eventos em setembro de 2018 a fim de avaliarmos diversos aspectos da
proposta.

O primeiro evento foi aula "Hagiografia, Santidade e Gênero ontem e hoje",


ministrada pela Profª Dra. Andréia Frazão da Silva, seguida do jogo
“Hagiografando”, realizado em uma turma do 1º ano do Ensino Médio de
uma Escola Estadual localizada no Centro do Rio. A aula teve por objetivo
conversar com os educandos sobre o que são as hagiografias e, os aspectos
da santidade dos(as) santos(as) venerados(as) na cidade do Rio de Janeiro,
refletindo sobre as relações de gênero na produção destes textos. O
segundo foi a Oficina “Hagiografando”, realizado no Instituto de História da
UFRJ, que promoveu uma partida e consultou professores(as) do Ensino
Básico da Disciplina de História, graduandos e pós-graduandos a fim de
diagnosticar a receptividade e, possíveis lacunas na execução da proposta.

Atualmente a produção do jogo encontra-se na fase final de revisão, para a


impressão de 100 unidades.

Referências:
Danielle Mendes da Costa é Especialista em Ensino de História (PROPGEC-
Colégio Pedro II) e mestranda em História Comparada (UFRJ).

Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira é Bacharel e Licenciada em História


(UFRJ), e mestranda em História Comparada (UFRJ).

Base Nacional Comum Curricular. Disponível em:


<basenacionalcomum.mec.gov.br/bncc-ensino-medio>. Acesso em: 04 jan
2019.

GIACOMONI, Marcello Paniz; PEREIRA, Nilton Mullet. Flertando com o Caos:


os jogos no Ensino de História. In: _____(Org.). Jogos e Ensino de História.
Porto Alegre: Evangraf, 2013, p. 10-24.
GIACOMONI, Marcello Paniz. Construindo jogos para o Ensino de História.
In: GIACOMONI, Marcello Paniz; PEREIRA, Nilton Mullet (Org.). Jogos e
Ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013, p. 118-147.

PINSK, Carla B. Gênero. In:______(Org.) Novos temas nas aulas de


Aprendendo História. São Paulo: Editora Contexto, 2009, v. 1, p. 29-54.
História:
ENSINO & SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
MEDIEVO Realidade, 20 (2), p. 71-99, jul/dez, 1995. Disponível em:
Página | 54 <http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40
667>. Acesso em: 20 jun 2015.

SILVA, Andréia Cristina L. Frazão da. O martírio de Luzia de Siracusa na


Legenda Áurea: uma leitura a partir da categoria gênero. In: SEMINÁRIO
INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO,11.; WOMEN’S WORLDS
CONGRESS,13., Florianópolis, 2017. Anais Eletrônicos... Florianópolis:
Nome da Instituição, 2017. p. xx-xx. Disponível em:
<http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1503876709_
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Acesso em 27 mar 2017.

______. A construção medieval da memória de santos venerados na cidade


do Rio de Janeiro: reflexões sobre um projeto de pesquisa em andamento.
In: Revista Digital Simonsen. Rio de Janeiro, n. 4, Jun., 2016, p. 31-46.
Disponível em: <www.simonsen.br/revistasimonsen>. Acesso em: 03 jan
2017.

SILVEIRA, Marta de Carvalho. A representação da mulher medieval nos


livros didáticos: uma visão comparativa. Revista de História Comparada, Rio
de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 80-107, 2017.

VALOBRA, Adriana María. Los Caminos de la historia de las Mujeres y de


Género. In: PEDRO, Joana Maria; AREND, Silvia Maria F.; RIAL, Carmen
Sílvia de Moraes (org.). Fronteiras de Gênero. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2011, p. 25-40.
DO INTERESSE PELA MENTALIDADE MEDIEVAL: A FACE
MONSTRUOSA DA COLONIZAÇÃO E OUTRAS PONDERAÇÕES
Eduardo Leite Lisboa

No ano de 2015 a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular Aprendendo


(BNCC) suscitou inúmeros debates em torno da história antiga e medieval História:
devido a premissa de um currículo voltado ao nacional, abolindo do ensino ENSINO &
escolar esses dois recortes “anacrônicos” a realidade brasileira. Desde MEDIEVO
então, diversos espaços foram promovidos dentro das universidades no Página | 55
intuito de debater o tema, não demorando a gerar reações negativas –
como explícito na carta da Associação Brasileira de Estudos Medievais
(ABREM). E o presente ensaio é tributário dessas discussões: intenta-se
aqui iluminar as raízes do discurso civilizatório moderno a fim de ilustrar a
pertinência do conhecimento medieval em um tema estrutural de nossa
sociedade – a colonização –, de maneira a abrir uma antecâmara para
ponderações de um ensino mais efetivo deste período.

O Outro civilizacional durante a Idade Média


Igualmente uma série de estruturas da sociedade medieva, as raças
monstruosas emergem de pelo menos dois mananciais: o greco-latino e o
judaico-cristão. Seria exaustivo resgatar o trajeto percorrido de Homero,
passando por Aristóteles e Alexandre-o-Grande até chegar em Plínio-o-
Velho e Solino, afinal, não houveram substanciais criações monstruosas
durante a Idade Média, antes sim uma completa ressignificação do já
existente. Encontramos no artigo Os monstros na cultura medieval, de
Paulo Roberto Soares, um balanço histórico bastante razoável acerca dessas
figuras, e ele diz-nos que dois autores são fundamentais para entendê-las:
Santo Agostinho (354-430) e Santo Isidoro de Sevilha (560-636). Ambos
trazem a ideia pressagística presente na própria etimologia monstrum
(monstrare, mostrar) e de igual maneira discorrem sobre a condição
humana ou não desses seres: nada mais são de que elementos da natureza
que diferem da forma padrão do homem devido sua transfiguração,
mutação e hibridismo. Participando, portanto, da Criação, se possuem
dedos a mais, apenas um olho na testa ou mesmo uma cabeça de cão,
devem antes de mais nada serem interpretados à luz da mensagem divina
que evocam (SOARES, 2011, p. 188-210). Em suma, é possível explorá-los
apenas tendo como referência o pensamento analógico medieval,
entendimento do sentido que a esfera física impele à experiência humana
(conhecimentos, comportamentos e sentimentos), algo muito bem
delineado por Hilário Franco Júnior (2013, p. 1-37).

Estas criaturas, no entanto, encontravam-se distantes. O acidente


geográfico no qual se localizavam era o extremo Oriente, primeiro por conta
da tradição teratológica herdada que lá os colocaram, segundo pois no
pensamento do período “o lá e o cá se relacionam em simetria, não na
similaridade entre as partes, mas no equilíbrio do conjunto, que se
exagerado em uma parte deveria ser mais regrado em outra, como uma
compensação” (SOARES, 2011, p. 193) – eram verdadeiramente Outros.
Dessa forma, para o homem medieval conhecê-los, era necessário viajar ou
escutar/ler narrativas desses encontros.

Desde a aurora do medievo encontramos relatos de viagens, sobretudo em


função da missionação e ocupação do centro-norte da Europa continental e
Aprendendo insular. Contudo, é a partir de fins do século XII que tal gênero avultará
História: juntamente com a intensificação do comércio e início das Cruzadas, sendo a
ENSINO & ascensão do Império Mongol (1214) e sua tolerância com o cristianismo
MEDIEVO fatores fundamentais para a abertura daquele lado do globo, fazendo com
Página | 56 que vários peregrinos, cavaleiros, emissários papais, comerciantes e
aventureiros para lá fossem e registrassem suas experiências. Além de seus
utensílios e mantimentos, ao preparem-se, os viajantes levavam consigo
uma bagagem muito mais pesada. Maria Amorim sintetizou-a de maneira
precisa em uma coletânea de estudos bibliográficos sobre o assunto:

“Conforme se alargavam os horizontes do espaço geográfico, tornando as


terras longínquas mais conhecidas, também aumentava o fascínio pelas
coisas maravilhosas que albergavam. Tudo o que de insólito, invulgar, ou
estranho contivesse a natureza, o homem dessas paragens, mais aguçava a
curiosidade e o espanto. Aquele mundo parecia um outro mundo, um lugar
onde tudo era o reverso do cognoscível, o outro lado do espelho, o alter
mundus. Um sistema de representações do “diferente” começou a marcar
lugar no referencial dos Ocidentais, num processo que não se pode
considerar totalmente novo, uma vez que essas categorias de significação,
quer antropológicas, quer naturais ou espirituais, já se encontravam muitas
vezes no seu universo mítico. O homem medievo possuía definições e
quadros de entendimento apriorísticos, e, por vezes, o que o deslumbrava
era também o corolário de uma rede subtil, mas reveladora de muitas
permanências das antigas culturas da Antiguidade e das autoridades,
sobretudo religiosas, do período medieval. Pouco importava, para o efeito,
se as viagens eram reais ou imaginárias, se o autor era o próprio
protagonista da experiência ou, apenas, um simples coletor de notícias, de
relatos orais, de narrativas, de relatos bíblicos, de fisiólogos, bestiários,
romances de cavalaria, tratados de astronomia, ou qualquer espécie de
informes. [...] O itinerário podia reproduzir os anteriores, com uma ou outra
variação, o escriba ser detentor de pior ou melhor estilo literário, ter, ou
não, percorrido os lugares que bordejavam o Paraíso Terreal, o Reino do
Preste João, as moradas das raças monstruosas, os vales do Demônio, as
terras e Gog e Magog. Importante era o efeito produzido, o avolumar de
maravilhas, o crescer em espanto”. (AMORIM, 1999, p. 132-133)

Portanto, a demanda da viagem muitas vezes – quando não


necessariamente – eram as maravilhas. Por mais difícil que seja conceituar,
as raízes de mirabilia estão em mirari, verbo latino para olhar, deslumbrar;
uma admiração pelo extraordinário (LE GOFF, 1994, p. 46). “O fato de, nas
terras distantes, as coisas serem totalmente diferentes das nossas é uma
das características mais importantes (e mais procuradas) da viagem”
(KAPPLER, 1994, p. 63).
Um exemplo disso são as Viagens do cavaleiro Jean de Mandeville, escrito
em cerca de 1356. Por mais que não haja um consenso em torno de quem
foi a personagem que o redigiu, Mandeville também sequer chegou a sair de
seu gabinete. Estamos diante de uma narrativa fictícia, um aglomerado de
outras obras medievais, livros de história, tratados científicos e literatura
religiosa. Enquanto que a primeira parte de seu escrito diz respeito a um Aprendendo
itinerário seguro pelo Oriente Próximo até a Terra Santa, a segunda trata História:
das terras de seu Extremo, o local da dessemelhança aqui almejado. ENSINO &
MEDIEVO
Um dos assuntos mais discorridos é sobre os Tártaros, afinal, “não há sob o Página | 57
firmamento senhor tão grande nem tão poderoso como o Grande Cã”
(MANDEVILLE, 2007, p. 210); porém, justamente por ser um império
conhecido, as maravilhas versam sobre opulência e soberania, ao passo que
encontram-se em locais de imprecisão histórico-geográfico o insólito. Como
já dito, o imaginário medieval buscava interpretar o diferente e enxergava a
realidade de maneira analógica, portanto nada passava despercebido, desde
roupas, crença e hábitos alimentares até a cor da pele e eventual
participação na economia da Salvação. Exemplificarei com um monstro
deveras conhecido.

Na ilha de Nacumera, escreve Mandeville, os homens e as mulheres


possuem cabeças de cão, são chamados de canapholos, obedecem a um rei
muito rico e bem praticam a arte da guerra, “são gentes razoáveis e de bom
entendimento, mas adoram a um boi como seu deus. [...] Vão
completamente desnudos, com apenas um trapo com o qual tapam seus
joelhos e os membros genitais” (MANDEVILLE, 2007, p. 180). Rafael
Gonçalves em sua tese de doutorado resgata que Retrame de Córbia
redigiu no século IX uma epístola acerca dos cinocéfalos, concluindo que por
sentirem pudor descendiam de Adão. O autor segue dizendo que João de
Pian del Carpine, outro viajante, menciona a capacidade destes seres em
falar inteligivelmente mesmo entre-latidos e que João de Marignolli associa-
os aos cínicos, na esteira de Santo Agostinho (filósofos que “procuram
imitar a depravada vida canina”). Além do mais, destaca a capacidade
racional e de organização/reprodução de uma sociedade estável mesmo
para sempre possuindo a marca da bestialidade em seus corpos
(GONÇALVES, 2016, p. 224-226).

Nosso sir acha por bem assinalar que os cinocéfalos “caso façam alguém
prisioneiro na batalha, comem-no” (MANDEVILLE, 2007, p. 180). O ato da
antropofagia é relatado outras vezes em sua obra, e conforme Susani
França, este destaque não tem a finalidade de mantê-los excluídos, mas
antes procura convencer os leitores da cristandade de sua superioridade
moral (LEMOS FRANÇA, 2009, p. 174). Isso acontece constantemente com
outros “costumes bestiais”, como o de não comer pão ou ingerir carne crua,
não vestir roupas, não viver em casas, não possuir o dom da oralidade ou
apenas grunhir, etc.

É importante ter claro que a credibilidade desses relatos não residia na


veracidade, até porque para os medievais tudo isso já era real, estando
confirmado pelos Antigos, Bíblia e Padres da Igreja; porém, para legitimar
seu percurso narrativo, Mandeville constantemente faz alusões às auctoritas
e reforça informações não experienciadas com o uso de frases como “ouvi
de alguém digno de fé”. A recepção destes relatos foi vasta e as razões
disso estão justamente no cansaço da trivialidade cotidiana da Europa
Ocidental. O relato em questão por exemplo, contou com mais de trezentos
Aprendendo manuscritos em dez línguas (francês, inglês, latim, alemão, neerlandês,
História: dinamarquês, tcheco, italiano, espanhol, irlandês) e noventa edições até o
ENSINO & século XVII (KAPPLER, 1994, p. 59). No célebre estudo de Ginzburg é-nos
MEDIEVO trazido que o mesmo figurava entre os livros do moleiro Menocchio,
Página | 58 denunciando tamanha popularidade. E o moderno mercado editorial não
deixou por menos!

Sendo assim, é possível atravessar as pejorativas balizas temporais


impostas ao medievo, de maneira a verificar uma possível extensão da
cosmovisão presente em tais fontes.

As novas paragens do Outro medieval


Guillermo Giucci em Viajantes do maravilhoso: o novo mundo analisa
brevemente o contato de Odisseu (o Ulisses romano) com o ciclope
Polifemo. Movido pela necessidade do espírito em conhecer (como um bom
viajante), o rei aqueu decide encontrar-se com ciclopes em uma ilha vizinha
a qual estava; todavia,

“A curiosidade do viajante [...] é duplamente singular. Porque ele não quer


conhecer, e sim comprovar; comprovar se os ciclopes observam as regras
dos aqueus, verificar se os códigos de conduta do aborígene se ajustam ao
modelo exemplar do estrangeiro. De fato, Ulisses imagina os traços que
correspondem ao aborígene a priori da experiência, bestializando-o antes de
sua chegada à ilha. [...] Da inofensiva viagem da curiosidade rumamos para
um encontro entre duas culturas que progressivamente adquire as
características de um conflito entre a civilização e a barbárie”. (GIUCCI,
1992, p. 26)

Em síntese, o ciclope é representado como ocioso, pré-social, sem leis, sem


hospitalidade, feroz, antropófago e degradado fisicamente; ou seja, sem
qualquer vestígio de humanidade. A vitória do grego sobre Polifemo
simbolizaria, para a cultura europeia, a primazia da astúcia/civilização sobre
a selvageria/barbárie do aborígene. Neste mesmo livro o autor elenca
algumas características das mirabilias, sendo duas pertinentes para a
presente reflexão: “magnífica o que toca, forjando frequentemente, por
meio da interposição sistemática de um oropel de excessos, uma imagem
empobrecedora da alteridade” e “revela mais sobre a ideologia que o
engendra e consome do que sobre a realidade que declara reproduzir”
(GIUCCI, 1992, p. 16). Tendo em mente esses dois aspectos e lembrando
que este era, para os medievais, o entendimento apriorístico dos povos
desconhecidos, podemos ampliar os horizontes rumo ao ameríndio e
africano.

Frank Lestringant discorre no primeiro capítulo de seu livro O canibal:


grandeza e decadência sobre a passagem do cinocéfalo ao canibal
(LESTRINGANT, 1997, p. 27-39). Antes de explorar o diário de viagem de
Cristóvão Colombo, inventor do neologismo (1492), resgata o aqui já
exposto sobre as raças monstruosas provenientes dos acervos geográficos
da Antiguidade transmitida ao Medievo por Plínio, Solino, Agostinho de
Hipona e Isidoro de Sevilha; destacando que para este último o ciclope
sucede imediatamente ao cinocéfalo e lembrando que tais referências Aprendendo
abundam na Imago Mundi de Pierre d’Ailly, livro de cabeceira do História:
descobridor também leitor das Viagens de Jean de Mandeville. Isto posto, o ENSINO &
autor faz o percurso etimológico e sublinha que, mesmo mantendo o radical MEDIEVO
canis, Colombo também faz uma alusão a Grande Cã, afinal, estava ele “na Página | 59
costa ocidental da Ásia”, onde tais seres abundam conforme a tradição:
“[...] caniba não é outra coisa senão o povo de Grão-Cã, que deve ser
vizinho deste” (COLOMBO apud LESTRINGANT, 1997, p. 30).

Ainda de acordo com Lestringant, o termo “canibais” logo viraria sinônimo


de “brasileiros”, imaginados na Europa como povo de rosto achatado
semelhante aos cães. Ora, “[...] o nariz achatado na literatura de viagem,
mas também na legislação racial da África do Sul até data recente, era a
característica de povos inferiores, prontos a serem dominados – primitivos,
sem dúvida, mas perfeitamente domesticáveis” (LESTRINGANT, 1997, p.
36).

Como se não bastasse essas questões, Klaas Woortmann traz n’O selvagem
e o Novo Mundo: ameríndios, humanismo e escatologia que o entendimento
dos negros africanos enquanto descendentes amaldiçoados de Cam
(estando na cor da pele esta referência) alargou-se aos recém descobertos
autóctones americanos (WOORTMANN, 2004, p. 60). De igual maneira, a
escatologia do século XVI viu no ameríndio, mesmo que por ignorância, um
agente de Satã tanto quanto um judeu ou muçulmano (também
considerados Outros no medievo, como é possível calcular). No entanto, a
demonologia e espírito da gesta dei foi mais intensa entre os espanhóis do
que nos empreendimentos lusos, afinal, o contexto coincidia com a luta
contra os sarracenos – daí a prática de construir catedrais sobre as ruínas
de templos indígenas, tal como na mesquita de Córdoba. A “Reconquista”
da Europa e “Conquista” da América são duas faces da mesma moeda
(WOORTMANN, 2004, p. 99-100).

Avançando para os séculos XVII e XVIII, Woortmann apropria-se de Keith


Thomas para ilustrar o que poderíamos entender como a permanência das
categorias aqui esboçadas no discurso civilizatório moderno:

“Robert Gray declarava, em 1609, que “a maior parte” do globo era


“possuída e injustamente usurpada por animais selvagens (...) ou por
selvagens brutais que, em razão de sua ímpia ignorância e blasfêmia
idolatria, são ainda piores que os animais”. O conde de Clarendon
concordava: “a maior parte do mundo é ainda habitada por homens tão
selvagens como as feras que com eles convivem”. “Suas palavras soam
mais parecidas às dos chimpanzés que às dos homens”, relatava sir Thomas
Herbert, a respeito dos habitantes do Cabo da Boa Esperança; “duvido que
a maioria deles tenha antepassados melhores que os macacos”. “Os
hotentotes”, dizia um clérigo da época de Jaime I, eram “bestas com pele
de homem”, e sua fala, “um ruído inarticulado em vez de uma linguagem,
como o cacarejar das galinhas ou o engrolar dos perus”. “Trata-se de
animais imundos”, disse um viajante, que “dificilmente merecem o nome de
criaturas racionais”. Os séculos XVII e XVIII ouviram muitos discursos sobre
Aprendendo a natureza animal dos negros, sobre sua sexualidade animalesca e sua
História: natureza brutal”. (THOMAS apud WOORTMANN, 2004, p. 68-69)
ENSINO &
MEDIEVO Aquilo que assistimos a partir dos Quinhentos serviu, enfim, como uma
Página | 60 domesticação/assimilação, um esforço cognitivo de compreensão das
novidades oriundas da Expansão Ibérica:

“Qualificar o ameríndio [e o negro africano] como selvagem, em qualquer


dos registros herdados do Medievo ou construídos pelo humanismo, foi uma
forma de torná-lo familiar, por mais paradoxal que possa parecer. O
selvagem teratológico – gigante, cinocéfalo, homo caudatis, etc. – é um
bom exemplo: se “transferido” para o Novo Mundo, permaneceria onde
sempre esteve desde a Antigüidade, no limite entre o conhecido e o
desconhecido, naquelas partes em branco dos mapas. Também os novos
povos selvagens, semelhantes aos antigos citas e germânicos ou aos
irlandeses medievais, continuavam ocupando o eschatiá”. (WOORTMANN,
2004, p. 277-278)

O nomadismo (maldição na tradição hebraica), ausência de tecnologia e


linguagem articulada (aspectos do intelecto), bem como religião não-cristã,
até o século XVIII levava o estatuto de selvagem medieval: algo entre o
homem e o animal, uma sub-humanidade ou monstruosidade típica dos
habitantes das florestas, desertos e montanhas – longe estariam estes
maculados da imagem e semelhança de Deus graças a sua deformidade
física e moral. Como aludido, a atribuição de tais características se davam
nas bordas do conhecido: agora, no quarto continente e restante da África
subsaariana.

Considerações finais
Ainda no século XXI vivemos banhados por racismo e xenofobia, haja vista
que apenas neste século tivemos a conquista de leis que tornam obrigatório
o ensino positivo da cultura indígena, africana e afrobrasileira. Quando o
assunto é cotas, então, assistimos a uma tormenta. Longe de entrar no
mérito da escravidão ao longo do Brasil Colonial e Império, bem como da
não inserção social dos povos oprimidos ao longo desse tempo, pergunto:
qual o papel da História nestes temas? Obviamente que uma resposta
minimamente esclarecida seria: central. Destarte, só podemos entender
aquilo que gerou tais – infelizes – demandas dentro de um processo muito
mais profundo que o pós-1500 proposto por muitos estudiosos brasileiros,
nomeadamente aqueles que escreveram a primeira versão da BNCC.

Levando em conta que o imaginário é uma “atividade do espírito que


extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta definindo e
qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores [...]” (PESAVENTO,
2006, p. 10), a exposição aqui empreendida demonstra que
verdadeiramente ele “[...] é um conceito libertador, um instrumento que
abre portas e janelas e nos leva a outras realidades, mascaradas pelos
rótulos convencionais das preguiçosas divisões da história” (LE GOFF, 1994,
p. 31). Estes quadros mentais mais resistentes ao caminhar da história, dos
quais Fernand Braudel já nos alertara, pautam condutas e demonstram as
profundas raízes contidas em assuntos tão recorrentes na historiografia – Aprendendo
como o problema da alteridade em questão –, evidenciando a necessidade História:
de um horizonte temporal mais longo para compreendê-las. ENSINO &
MEDIEVO
No texto Por uma longa Idade Média (1994), Jacques Le Goff apresenta Página | 61
uma série de permanências medievais até o século XIX, algo facilmente
alargável para além da Europa pensando na descentralizada, rural, católica
e sincrética sociedade brasileira deste mesmo recorte, como apresentou
Hilário Franco Júnior em Raízes Medievais do Brasil (2008). Aqui não
caberia – em função do pequeno espaço – elencar “percursos históricos” de
várias temáticas que demonstram a importância estrutural do medievo em
nosso país, no entanto, a partir da breve ilustração feita de uma das várias
faces da colonização pondero que para um ensino mais efetivo, de
pertinência e dimensão histórica, o período medieval deva ser re-
equacionado, não abolido. E o estudo das mentalidades, mas
evidentemente não só, em muito potencializa tal empreendimento.

Referências
Eduardo Leite Lisboa, licenciado em História pela Universidade Estadual de
Ponta Grossa. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5428506342272992.
E-mail: eduardolisboa.his@gmail.com.

AMORIM, M. Viagem e mirabilia: monstros, espantos e prodígios. In:


CRISTÓVÃO, F. (org.). Condicionantes culturais da literatura de viagens:
estudos e bibliografias. Universidade de Lisboa: Edições Cosmos/Centro de
Literatura de Expressão Portuguesa, 1999.

FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo:


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FRANCO JÚNIOR, H. Raízes medievais do Brasil. Revista USP, n. 78, p. 80-


104, 2008.

FRANCO JÚNIOR, H. “Similibus simile cognoscitur. O pensamento analógico


medieval”. Revista Medievalista (online), n. 14, 2013, p. 1-37.
GIUCCI, G. Viajantes do maravilhoso: o novo mundo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.

GONÇALVES, R. Animais e homens de um oriente distante. Tese


(doutorado) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Franca, 2016.

KAPPLER, C. Monstros, demônios e encantamentos no fim da Idade Média.


São Paulo: Martins Fontes, 1994.
LE GOFF, J. O imaginário medieval. Lisboa. Editorial Estampa, 1994.

LEMOS FRANÇA, S. Os não-incluídos na cristandade. Revista Dimensões, v.


3, 2009, p. 166-181.

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História: Universidade de Brasília, 1997.
ENSINO &
MEDIEVO PESAVENTO, S. História & Literatura: uma velha nova história. In: COSTA,
Página | 62 Cléria; MACHADO, Maria. História e Literatura: identidades e fronteiras.
Uberlândia: EDUFU, 2006.

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Lemos França. Bauru: Edusc, 2007.

WOORTMANN, K. O selvagem e o Novo Mundo: ameríndios, humanismo e


escatologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: O CINEMA COMO FERRAMENTA
AUXILIAR NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM
Fábio Alexandre da Silva
Graziele Rodrigues de Oliveira

Aprendendo
Este texto pretende abordar o uso do cinema como meio de acessar o História:
passado, sobretudo de civilizações que se situam historicamente distantes ENSINO &
do aluno, como é o caso das sociedades medievais. Como aporte teórico, MEDIEVO
recorreu-se aos estudos de Vianna (2017), Le Goff (1989), Ferro (1992), Página | 63
Foucault (2009) e Martin (2001). Assim, propõe-se neste estudo uma
reflexão na qual o cinema é tomado como recurso didático auxiliar no
processo de aprendizagem histórica sobre o Medievo, permitindo ao aluno
visualizar de maneira lúdica e com mais elementos os conteúdos estudados,
alinhando, portanto, sua realidade a sociedades e dilemas pretéritos por
meio de um recurso tecnológico muito presente no cotidiano dos jovens e
pedagogicamente indispensável no contexto educativo atual.

Introdução
Um dos grandes desafios da prática docente de história é despertar o
interesse dos alunos sobre civilizações e povos que se situam histórica e
geograficamente distantes do presente, ou seja, da realidade a qual o
aluno, sobretudo no Brasil, está submerso. Não raras vezes o professor da
educação básica se depara com situações que o cerceiam em seu ofício
diário quando se tem por objetivo trabalhar a história antiga ou a medieval
em sala de aula, seja pelos limitados recursos pedagógicos pelo qual
dispõe, seja pelo número reduzido de materiais produzidos acerca dessa
temática, ou, ainda, em razão do distanciamento existente entre os
estudantes brasileiros e as sociedades antigas e medievais, uma vez que a
história do Brasil e da América assume características específicas, tendo
iniciado cronologicamente no século XVI (na vertente política tradicional),
quando já se havia sacramentado a transição da Medievalidade para a
Modernidade na Europa.

Outro complicador para o professor de história é a necessidade da


desconstrução de conceitos históricos hoje ultrapassados, mas que ainda
delimitam o trabalho docente em sala de aula. Referimo-nos as ideias
conceituais que acabam por inviabilizar, em certa medida, uma
compreensão plural e diversa acerca da realidade pretérita, como bem
exemplifica Luciano José Vianna (2017) citando o caso das “invasões
bárbaras”, termo já desconstruído por historiadores contemporâneos. Na
mesma direção se apresentam as barreiras didáticas temporais, isto é, a
demarcação cronológica clássica da história que muitas vezes impede o
aluno de perceber as multiplicidades interpretativas e as perspectivas de
continuidades e descontinuidades históricas.

A partir dessa ótica, este artigo tem como objetivo geral evidenciar a
importância do cinema como recurso auxiliar no processo de ensino-
aprendizagem da História Medieval, na medida em que conduz os discentes
a visualizarem os conteúdos curriculares de maneira lúdica e com maior
concretude. Para tanto, busca-se delinear, em um primeiro momento, sobre
o uso do cinema como meio de acessar esse passado – tão distante do
aluno, mas enobrecedor tanto do ponto de vista pedagógico, quanto do
prisma historiográfico. Na sequência do texto, pretende-se abordar o ensino
de história medieval, suas vicissitudes e práticas, os caminhos a serem
Aprendendo seguidos e as formas de trabalhar com essa temática em sala de aula de
História: modo a conduzir o aluno a um cenário de reflexão e a estabelecer contato
ENSINO & com o mundo feudal. Como aporte teórico, recorreu-se aos estudos de
MEDIEVO Vianna (2017), Le Goff (1989), Ferro (1992), Foucault (2009) e Martin
Página | 64 (2001).

O cinema como meio de acessar o passado


Para Martin (2001), o caráter tangível e intangível do cinema consegue criar
mecanismos de “cristalização do tempo”, não apenas como um suporte de
documento histórico, mas um arquivo vivo. O tempo materializado no filme
faz recordar e reviver o tempo passado, a característica subjetiva do cinema
revela os afetos humanos, o passado é desenterrado, o cinema não deixa
esquecer.

O cinema como instrumento sensível que toma como representação um


dado histórico, ainda que tenha seus problemas como a romantização e os
anacronismos de determinados contextos históricos, pode suscitar
investigações que por vezes não são visíveis na história oficial. Para Marc
Ferro (1992), o cinema pode ser o ponto de partida para a confrontação de
dados históricos, e é nesta representação de fatos históricos, às vezes
“fantasiosos”, que também se desvela o invisível da história tradicional, o
que o autor chama de contra-história. É sobre esta contra-história que
Michel Foucault traz estudos significativos para o campo da história, como
as disputas da memória histórica que são recorrentemente apagadas na
coletividade. De acordo com Foucault (2009), os filmes ensinam aquilo que
“se deve” lembrar. O cinema proporciona isto de “selecionar” memórias
para não cair no esquecimento. O espaço para dar voz à memória dentro do
cinema funciona como peças que ora se encaixam, ora se excluem, porém
existe uma luta pela lembrança e uma luta pelo apagamento: “Há a vontade
de estereotipar, de estrangular o que chamei de “memória popular”, e
também de propor, de impor às pessoas uma chave de interpretação do
presente” (FOUCAULT, 2009, p. 341).

Para Marc Ferro, o cinema foi/é um dos instrumentos de legitimação da


ideologia dominante, pois “[...] desde que o cinema se tornou uma arte,
seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou
de ficção, que, desde sua origem, sob a aparência de representação,
doutrinam, glorificam” (FERRO, 1992, p. 13).

Neste sentido, quando da aplicação do cinema com fins didáticos para a


aprendizagem em história, tem-se a necessidade de situar o filme no
tempo-espaço e levar em consideração o tipo de produção cinematográfica
e seus objetivos, entender o contexto de produção das obras e perceber o
que há de verossímil e o que foge ou até deturpa um acontecimento
histórico.
Se, por um lado, o cinema não escapa da “espetacularização” dos fatos e há
um conjunto de obras cinematográficas cujo objetivo é a legitimação e
padronização da ideologia dominante, por outro, o cinema também é campo
rico para a compreensão histórica a partir de outros pontos de vista, se não
o vigente em dado tempo-espaço. Neste interesse, Ferro (1992) também Aprendendo
nos lembra do cinema que propõe uma visão de contrapoder: História:
ENSINO &
“[...] esses cineastas, conscientemente ou não, estão cada um a serviço de MEDIEVO
uma causa, de uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente Página | 65
as questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles
resistência e duros combates em defesa de suas próprias ideias. [...] sem
falar em quase todos os filmes de Godard, manifestam uma independência
diante das correntes ideológicas dominantes, criando e propondo uma visão
de mundo inédita, própria de cada um deles, o que vigorosamente suscita
uma nova tomada de consciência, de tal forma que as instituições
ideológicas instauradas (partido políticos, Igrejas, etc.) entram em disputa
e rejeitam tais obras, como se apenas essas instituições tivessem o direito
de se expressar em nome de Deus, da nação ou do proletariado” (FERRO,
1992, p. 14).

Dessa maneira, a utilização do cinema para o ensino de história tanto é


relevante partindo das desconstruções de conteúdos cinematográficos que
fantasiam a história ou que têm o intuito de apagar questões históricas –
isto é, filmes que, muitas vezes, não têm compromisso com a historiografia
– como também constitui terreno para ilustrar o conteúdo e,
consequentemente, discutir outros olhares para o contexto histórico
estudado em sala de aula. Exemplo disso são os filmes que tentam
reconstituir uma realidade pretérita preservando a historicidade e a
fidelidade aos aspectos e eventos históricos do contexto representado. No
caso do período medieval, o filme O Nome da Rosa, inspirado na obra
homônima de Umberto Eco (1980) e produzido em 1986 por Jean-Jacques
Annaud, é uma amostra de obras fílmicas que buscam trabalhar com a
historicidade e têm compromisso com a realidade histórica, constituindo
uma excelente ferramenta para auxiliar professores e alunos no processo de
ensino e aprendizagem da história, sobretudo no que diz respeito ao
estudo/ensino do Medievo.

A partir do cinema há, portanto, a possibilidade de experimentação de um


outro tempo que por vezes a apresentação dos fatos históricos a partir da
metodologia científica seria difícil de acessar. Vale salientar que há vários
gêneros discursivos (comédia, drama, aventura) em que a obra
cinematográfica está inserida, tornando necessário que o professor de
história apresente os pontos de vista da produção fílmica e os aspectos que
tomam forma de falseamento ou que se aproximam da verdade histórica,
fazendo com que o cinema se configure como um importante instrumento
para fins didáticos e privilegiando, sobremaneira, o processo de ensino-
aprendizagem.
O ensino de história medieval
A importância de estudar e, consequentemente, ensinar sobre a História do
Medievo consiste, entre outras coisas, em permitir ao aluno conhecer outras
formas de organização humana as quais precedem o presente, mas que, de
alguma forma, inspiraram e ainda inspiram o modo de viver das civilizações
Aprendendo atuais. Sob esta ótica, a partir do estudo desse período histórico é possível
História: observar:
ENSINO &
MEDIEVO “[...] uma série de materializações, manifestações e representações sobre o
Página | 66 Medievo transmitidas através de releituras e apropriações contextuais,
muitas das quais estão presentes em nossa contemporaneidade. Tais ações
são compreendidas quando identificamos diversas presenças de aspectos
medievais em nosso cotidiano, como, por exemplo, as torres e o transepto
de uma catedral; ou quando entramos em uma livraria e nos deparamos
com obras literárias contemporâneas que retratam a vida de reis e rainhas
do Medievo; ou então quando dirigimos nosso carro pelas ruas de uma
cidade e nos deparamos com um outdoor anunciando a estreia de um filme
ambientado no que chamamos de período medieval.” (VIANNA, 2017, p.
17).

O que não significa dizer que devemos, enquanto professores de história,


dar menos importância aos conteúdos que tratam desse período pura e
simplesmente por pertencermos a sociedades americanas e não termos
vivenciado a medievalidade tal como o europeu o fez. Pelo contrário, a
formação histórico-social brasileira está diretamente vinculada ao passado
medieval dos povos ibéricos, sobretudo dos portugueses, como também se
vincula a eventos que têm sua origem na Idade Média, a exemplo da
expansão marítima, a qual deu origem às grandes navegações modernas, e
da literatura e arte medievais, que forneceram elementos para a
Renascença e consequentemente originaram as nossas escolas literárias e
artísticas. Nesse interesse,

“estudar História Medieval é tão legítimo quanto optar por qualquer outro
período. Mas não se deve, é claro, desprezar pedagogicamente a relação
existente entre a realidade estudada e a realidade do estudante. Neste
sentido, pode ser estimulante mostrar que, mesmo no Brasil, a Idade
Média, de certa forma, continua viva” (FRANCO JÚNIOR, 2011 apud
VIANNA, 2017, p. 24).

Assim, o ensino de história medieval abre ao docente um leque de


possibilidades de ensino, podendo ser abordado à luz da cultura, da
religiosidade, da política, da arte, da economia etc. Segundo Vianna (2017),
houve uma renovação metodológica importante nos idos da década de
1970, o que fez multiplicar os objetos de estudo, moldados a partir de
então sob a égide da História Cultural, permitindo incorporar métodos e
abordagens de outras áreas no campo da história. Há, portanto, uma
multiplicidade de possibilidades para o ensino-aprendizagem da história
medieval não somente no que diz respeito à seleção dos conteúdos e
métodos, mas também acerca da periodização (ou periodizações). É
importante sublinhar que não se trata de desconsiderar a cronologia
tradicional da história, a que define a Medievalidade ocorrendo entre a
queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476 d.C., e a tomada de
Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, mas que deve ser
entendida como um marco temporal e não como uma barreira que impeça o
aluno de enxergar a fluidez histórica.
Aprendendo
“É certo que as periodizações são um ato de produção histórica elaborado História:
para identificar determinada contemporaneidade e para estabelecer ENSINO &
parâmetros didáticos para facilitar o ensino, e o período histórico, MEDIEVO
consequentemente, é um produto deste ato. Ensinada e pesquisada a partir Página | 67
desta perspectiva, a História é vista como uma sucessão de períodos. Além
disso, abordado a partir desta perspectiva, um período pré-estruturado tem
a tendência a ser apresentado como um mundo fechado, sem conexões
temporais com outros, o que promove uma dificuldade em se observar e
destacar as continuidades entre determinados períodos, principalmente com
a contemporaneidade. Assim, o ensino realizado a partir de um contexto
com base em uma periodização histórica fechada e não dinâmica pode
causar, no público ao qual é destinado o ensino, um estranhamento total
com o mesmo” (SEGAL, 1991 apud VIANNA, 2017, p. 21-22).

Nessa direção, a história, se trabalhada a partir de uma multiplicidade


temporal, permite-nos compreendê-la não como uma sucessão de
acontecimentos estanque e engessada, mas, sobretudo, enquanto um
conjunto de temporalidades plurais e diversas entre si, e que estabelecem
uma inter-relação em maior ou menor grau, tornando possível entender que
os “aspectos de um passado distante ainda se fazem presentes no presente,
possibilitando, dessa forma, repensar o Ensino de História em suas mais
diversas manifestações temporais” (VIANNA, 2017, p. 23). É possível notar,
portanto, a presença maciça de elementos medievais nas sociedades que
sucederam ao Medievo, como é o caso das edificações, assentadas no
mundo feudal sobre o estilo gótico e assumindo um estilo semelhante nos
séculos seguintes, o chamado neogótico. Tomando como exemplo o
mosteiro medieval, que segundo Le Goff (1989) é como uma ilha, uma
cidade santa, a qual congrega todos os elementos necessários ao trabalho
do monge – um homem culto, hábil leitor e escritor – tendo ele à disposição
no mosteiro sua biblioteca e sua oficina de cópia de manuscritos, em
matéria didática podemos relacionar ao mosteiro as catedrais do Brasil
oitocentista, edificadas ao estilo neogótico (VIANNA, 2017). Outro exemplo
é a Igreja Católica, não apenas enquanto religião, mas as práticas culturais
como um todo, os rituais, as festividades e a própria moral e os costumes
são elementos que ilustram a presença de aspectos medievais na
contemporaneidade, inclusive no contexto das Américas. Essa ação, se
adotada em sala de aula, abre um sem-número de possibilidades de
abordagem aos conteúdos sobre o mundo medieval. No entanto, faz-se
igualmente necessário ampliar o corpus documental, tal como preconiza a
Escola dos Annales, tendo o historiador/professor de história que se utilizar
de novos métodos e materiais disponíveis, sejam eles escritos, vestígios
materiais, peças artísticas e iconográficas, filmes etc. O caso do cinema, por
exemplo, é de grande valia nesse percurso, pois constitui um nobre recurso
didático para acessar o passado, permitindo ao discente visualizar de
maneira lúdica e com mais elementos os conteúdos estudados, e ao
docente possibilita ilustrar a partir de uma ferramenta importantíssima para
o processo de ensino-aprendizagem aquilo que foi trabalhado ao longo de
suas aulas, alinhando a realidade do aluno a sociedades e dilemas pretéritos
por meio de um recurso tecnológico muito presente no cotidiano dos jovens
Aprendendo e pedagogicamente indispensável na educação atual.
História:
ENSINO & Considerações finais
MEDIEVO Este artigo teve por objetivo trazer uma reflexão sobre o ensino de história
Página | 68 – aqui representando o período medieval (476-1453) – a partir do uso do
cinema como finalidade didática. Sendo o cinema um documento histórico,
a sua aplicação possui relevância tanto como objeto de crítica em relação às
formas de representação de um fato histórico, quanto como forma de
acessar/representar o passado e trazer à tona peculiaridades históricas,
como o cotidiano de determinados povos, sua cultura e visão de mundo, de
maneira em que o discente tenha a possibilidade de experienciar um evento
histórico – sem deixar de lado as especificidades de uma ficção. É, portanto,
a imersão do espectador (aqui, o aluno) no filme, o que lhe permite
enxergar a história mais em sua historicidade e menos sob o olhar do
tempo presente, privilegiando, assim, o processo de aprendizagem
histórica.

Referências
Fábio Alexandre da Silva é licenciado em história e mestrando em educação
pela Unioeste/Cascavel (2018-2019). Atua como docente desde 2014, tendo
ministrado aula nas disciplinas de História, Ensino Religioso, Sociologia,
Economia e Gestão.
Graziele Rodrigues é mestre em Literatura Comparada pela Universidade
Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Especialista em
Geopolítica e Relações Internacionais pela Rede de Educação Claretiano.
Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela União Educacional de
Cascavel (Univel-2015) e Comunicação Social – Publicidade e Propaganda
pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (Unicesumar-2010).

FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ditos e


escritos. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

LE GOFF, Jacques. O homem medieval. 1. ed. Lisboa: Editorial Presença,


1989.

MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Ed. Brasiliense,


2000.

VIANNA, L. J. Do presente para o passado: uma reflexão sobre o ensino de


história medieval na contemporaneidade. Revista TEL, Irati, v. 8, n. 2, p.
16-31, jul./dez. 2017. Disponível em:
<http://www.revistas2.uepg.br/index.php/tel/article/view/10896>. Acesso
em: 25 jan. 2019.
O FENÔMENO DO PODER E DO LEGÍTIMO NA ASCENSÃO DO
IMPÉRIO CAROLÍNGIO
Guilherme Tavares Lopes Balau

Dentre as figuras de poder classicamente comentadas na experiência Aprendendo


histórica, a figura real de Carlos Magno se destaca em um momento de História:
mudanças estruturais das relações políticas no mundo ocidental pós-romano ENSINO &
– para Eric Voegelin, a Idade Média caracterizou-se como um período de MEDIEVO
integrações e desintegrações. As ações dos protagonistas carolíngios Página | 69
precedentes, notadamente Carlos Martel (c.688-741) e Pepino, o Breve
(c.714-768) marcaram eventos fundamentais para o desenrolar da história
ocidental ao longo da primeira metade do século VIII, mas foi na figura de
Carlos Magno (742-814) que o novo lugar-comum das relações de poder
político no ocidente começa a tomar sua forma mais tradicional.

Mudanças estruturais da política não significam apenas mudanças nas


maneiras em que se relacionam os impérios e reinos, os que dominam, mas
também as maneiras em que vivem aqueles sob sua esfera. Entender as
formas gerais de um contexto social, da estrutura da economia e da
expressão cultural de um período implica em analisar a maneira em que
operam as relações de poder. Garantir um estudo sobre as formas de
experiência histórica através dos fenômenos humanos que têm seus efeitos
de longa duração da compreensão da realidade pelo homem e sua reação
perante as questões que se levantam no espaço e no tempo é se interessar
e entender porque se interessar pela força motriz do conhecimento
humano, que é o seu próprio entorno.

Desde a deposição do imperador romano Rômulo Augusto por Odoacro, as


relações de poder do contexto do Império Romano do Ocidente, já
decadentes, tomam novos rumos. A crescente influência do Império
Bizantino que se formava na estrutura social remanescente do Império
Romano Ocidental, a desagregação da influência econômica mediterrânica,
o estabelecimento da ortodoxia cristã e seu relacionamento com as
heresias, o surgimento da religião muçulmana e sua expansão e o
crescimento dos reinos bárbaros no continente são todos fenômenos das
novas relações de poder no mundo ocidental que moldam as ações
posteriores, gerando suas bases para a formação do mundo moderno e
raízes culturais.

Os símbolos do passado e as relações de poder


No Império Romano, o status quo formado pela conduta imperial refletiu
sua política de centralização de poder durante séculos nas relações direta e
indiretamente afetadas pelo império e deixou expectativas acerca da
atuação de uma figura de poder – de um governante – atrelada ao ideal da
expansão dos espaços de domínio, a grandiosidade de uma figura de poder,
como um imperador, influente a culturas tão alheias quanto a dos bárbaros
migrantes, desejosos (e também levados pelas circunstâncias) à absorção
na esfera imperial romana especialmente a partir do século III d.C.
Bem como em qualquer experiência histórica, os usos do passado
constituem um discurso de legitimação para um grupo social. Tomando
como exemplo os primeiros séculos da Idade Média, Matthew Innes afirma:

“O passado possuía uma presença bastante real nas sociedades do início da


Aprendendo Idade Média. Ele podia prever um modelo legitimador para a atual ordem
História: das coisas, explicando como as coisas deveriam ser ou, ainda, uma imagem
ENSINO & de uma ordem ideal, uma Era de Ouro contra a qual o presente pode ser
MEDIEVO julgado. Em um grupo social, crenças compartilhadas sobre o passado eram
Página | 70 uma fonte de identidade: a imagem de um passado comum informa um
Wir-Gefühl (aqui, o equivalente à ipseidade de um povo, no original em
inglês o autor apresenta como ‘us-ness’), e as características definidoras
daquele passado identificaram aqueles que eram e não eram parte de ‘nós’
no presente” [Innes, 2004, p.1, tradução livre].

Pensando assim, a associação com o ideal imperial no mundo pós-romano


concebe a sensação de legitimidade a um governante dos reinos bárbaros
ascendentes. Por isso, nas palavras de Jacques Le Goff, os herdeiros
bárbaros “não se apresentavam como inimigos, mas como admiradores das
instituições romanas” [Le Goff, 2017, p.24], e este sentimento de
permanência do ideário romano não se mostrou apenas nas mentalidades,
como também na Igreja Católica, verdadeira sobrevivente do mundo
romano ocidental à posteridade. Sua continuação, no entanto, acompanhou
o contexto derradeiro do Império Romano do Ocidente – a dependência ao
Oriente, na forma do Império Bizantino, acompanhado de cismas
doutrinários que, em decorrência de um período formador de ortodoxias
religiosas, tornaram-se cismas ideológicos importantes na ação política
entre duas fontes de poder, o ocidente e o oriente. É importante ressaltar
que este período entre os séculos IV e VI em que a “crença certa era uma
situação política ardente” [Wickham, 2009, p.383, tradução livre] moldou
também as apropriações realizadas pelos francos na sua idealização do
poder, já no século VIII.

O estabelecimento do poder carolíngio


A associação entre igreja e poder temporal aqui deve ser compreendida
como um fenômeno chave para a interpretação da evolução imperial a
partir do início do século VIII. Assumindo um projeto de reforma do meio
social em inícios da Idade Média, os reis carolíngios não incorporaram o
ideal de sucessores de Israel, de Davi e Salomão [Oakley, 2010], sem antes
poder serem reconhecidos desta maneira por este mesmo meio social. A
constituição da legitimidade do poder que permitiu suas conquistas militares
e sociais passou pela lente formadora da Igreja Católica. Antes de Carlos
Magno, Carlos Martel e Pepino, o Breve instrumentalizaram seu poderio
militar no auxílio à Igreja quando ameaçada pela aura dos Lombardos, mais
imponente quando da fragmentação da atuação bizantina em Roma a partir
do século VI, também enfraquecida pelo novo contexto muçulmano. Esses
feitos em si foram suficientes para render aos carolíngios a associação ao
poder legitimador da instituição católica. Pepino fora ungido pelo papa
Estevão II, que também lhe conferiu o título de ‘patricius Romanorum’, com
isso apresentando-o como defensor e protetor de Roma, e legitimando a
deposição do último rei merovíngio. Em troca, Pepino doa territórios da
península itálica conquistados. Para Chris Wickham, a associação de Pepino
com o papado e sua unção, a qual simboliza práticas visigóticas e até
mesmo do antigo testamento, representava a necessidade que rei e papa
tinham de cada um – o rei para assegurar uma autoridade legítima para si,
visto que a igreja representava um poder moral não-franco e externo, e o Aprendendo
papado para se proteger contra ataques, dada sua situação vulnerável até História:
então. “Os Carolíngios, apesar de serem a família aristocrática mais forte na ENSINO &
Frância desde os anos de 680, não eram ‘realeza’ até que dois papas MEDIEVO
sucessivos [...] dizerem que eram” [Wickham, 2009, p.377, tradução livre]. Página | 71
Eric Voegelin comenta:

“Estava criado o precedente para a arbitragem papal em questões


internacionais [...] Era, sem dúvida, a evocação de uma nova entidade
política, porque o papa, segundo a lei imperial, não tinha o direito de
conferir o título de ‘patricius Romanorum’ (nem o de ‘patricius’), nem o rei
franco podia fazer “doações” de províncias imperiais” [Voegelin, 2012,
p.67].

No entanto, além de apropriações históricas que atuam no imaginário, é


necessário se ater a quais circunstâncias permitiram tais ideários
florescerem. Carlos Martel, avô de Carlos Magno, tivera seus feitos
reconhecidos enquanto mordomo do palácio merovíngio, especialmente pela
vitória de seu exército na batalha de Poitiers em 732. A expansão do
território franco pelos mordomos do palácio merovíngio, as largas
conquistas que atribuíram o epíteto de ‘Martellus’ a Carlos Martel, a
deposição do último rei merovíngio Childerico III e a unção de Pepino, o
Breve como o primeiro rei da dinastia Carolíngia, suas atuações na
Lombardia em proteção ao papa e as ações subsequentes de Carlos Magno,
seu herdeiro, que foi coroado no natal de 800 como imperador pelo papa
são todas ações de grande impacto nos rumos da história. O destaque
colocado nos feitos carolíngios no discurso histórico é atestada nas obras
dos cronistas dos anos seguintes, que passaram a esquematizar a história
dos francos colocando a sucessão de eventos da corte merovíngia como
etapas na ascensão dos carolíngios ao poder [Fouracre, 2006].

Conforme testemunhado na obra ‘Vita Caroli Magni’ de Einhard (c. 770-


840), uma das obras mais importantes para a preservação da história
carolíngia, as atuações mais marcantes de Carlos Magno são nas
campanhas de guerra empreendidas contra os povos circundantes, como os
povos da Aquitânia, Lombardia, Bretões, a expedição na Espanha e a longa
guerra contra os Saxões, entre outras. Segundo o autor: “Naquelas guerras
ele tão nobremente aumentou o reino Franco, o qual ele havia recebido de
seu pai Pepino em tão grandiosa condição, que ele por pouco não dobrou
seu tamanho” [Einhard, The Life of Charlemagne, 15, tradução livre]. As
conquistas empreendidas estes anos permitiram uma espoliação tremenda
aos cofres carolíngios, e isso também deve ser levado em consideração
quando se pensa no poder administrativo carolíngio – desde Pepino a
aliança com a Igreja já havia garantido um abastecimento severo nos cofres
do papado, através da constituição, em 765, do dízimo obrigatório
[Wickham, 2009]. Além das ações militares, e da riqueza iminente de seus
aliados políticos, também o ideal de reforma social em meio à desagregação
política do ocidente no período precedente atuou como um fenômeno que
ofereceu engrandecimento à legitimação da figura política carolíngia. A
Admoestação Geral de 789 ofereceu a padronização dos cantos litúrgicos
Aprendendo baseando-se nos cânones dos concílios da Igreja, não apenas para permitir
História: uma padronização ao ofício clerical, mas também para que as liturgias
ENSINO & desempenhassem uma espécie de ‘papel social’ na comunidade cristã, e,
MEDIEVO ainda na proposta de reforma social, o próprio fenômeno conhecido como o
Página | 72 Renascimento Carolíngio, em que a educação pôde ser amparada pelo
auxílio da realeza, notadamente na figura do monge Alcuíno de Iorque, que
esteve na corte de Carlos Magno de 786 a 796 e continuou a dar aulas no
monastério de São Martinho, em Tours, e foi grandemente responsável pelo
florescimento intelectual do período [Wickham, 2009].

A legitimidade conquistada pelas ações, tanto simbólicas como militares e


sociais, permitiu que as relações dos Carolíngios com o exterior fossem a
par do título imperial concebido em Carlos Magno. A centralização política
em tamanha escala, com um grau de organização administrativa a qual o
ocidente não havia possuído em muito tempo, forjou a legitimação que
construiu a imagem de Carlos Magno para seus contemporâneos e à
posteridade. Notadamente, uma das passagens mais significativas da
biografia escrita por Einhard para explicitar a imagem de poder adquirida
pelo imperador demonstra as alianças forjadas pela importância em que
este exerceu nos rumos história do ocidente e na maneira em que se
formou a estrutura da história medieval como um todo:

“Ele [Carlos Magno] também incrementou a glória de seu reino pela


amizade oferecida a si por certos reis e pessoas. Desta maneira ele tão
ganhou o favor de Alfonso, rei da Galícia e Astúrias, que quando ele enviou
cartas ou legados a Carlos ele ordenou que em sua presença os legados
deveriam referir-se a ele apenas como súdito de Carlos. Por sua
generosidade ele havia ganhado à sua vontade os reis Irlandeses e estes
por sua vez declararam que ele era nada a não ser seu senhor e que eles
eram seus súditos e servos. Cartas que enviaram a ele sobrevivem e
atestam a este tipo de sentimento perante ele. Ele possuía tais relações de
amizade com Harun-al-Rashid, o rei dos Persas, que possuía quase todo o
Oriente exceto a Índia, o qual ele possuía o favor mais do que quaisquer
outros reis e príncipes no mundo e pensava que somente ele era merecedor
de sua honra e generosidade. Certamente, quando os representantes de
Carlos, os quais ele havia mandado com presentes ao mais santo sepulcro
de nosso Senhor e Salvador e ao lugar de Sua ressurreição, veio a ele e
disseram sobre as vontades de seu senhor, ele não apenas permitiu que
fizessem o que haviam pedido mas até concedeu a ele aquele lugar sagrado
e salvífico para que fosse considerado em seu próprio poder. Ele enviou
seus próprios legados de volta e enviou magníficos presentes a Carlos,
robes e especiarias e outras riquezas do Oriente, e alguns anos atrás ele
havia mandado um elefante, o único que possuía, a Carlos, que havia
pedido por um. Os imperadores de Constantinopla, Nicéforo, Miguel e Leão,
que estavam procurando a sua amizade e aliança, enviaram-no muitos
embaixadores. Mas depois dele ter adquirido o título de imperador eles
suspeitaram que poderia querer tomar o império, então ele estabeleceu um
tratado tão firme com eles para que nenhum problema pudesse restar entre
eles. Pois o poder dos Francos sempre foi suspeito aos Romanos e Gregos;
como um provérbio Grego diz: ‘Tenha um Franco como amigo, não como
vizinho’” [Einhard, The Life of Charlemagne, 16, tradução livre]. Aprendendo
História:
Considerações finais ENSINO &
Assim, a força transformadora do meio social possui influência do meio MEDIEVO
imaginário. A criação de uma figura de poder é influenciada pela percepção Página | 73
de sua ação, e através do entendimento deste fenômeno pode-se
interpretar o contexto da criação do discurso histórico, bem como a atuação
dos próprios personagens históricos ante a figura de poder, como o caso
das “relações internacionais” aqui apresentado.

Em um tempo de integrações e desintegrações, as ações políticas de uma


dinastia influenciaram a norma política do ocidente medieval durante
séculos, sendo apropriadas e reapropriadas ao longo dos anos. Através da
análise histórica, a legitimação do poder pode ser concebida ela mesma
como uma operação de poder, instrumentalizada para servir a propósitos
políticos. A associação entre as esferas eclesiástica e temporal, as
campanhas militares e os projetos de reforma social foram responsáveis
pela legitimidade que se construiu em uma figura tão influente na história
do ocidente quanto os Carolíngios, especialmente Carlos Magno. No
entanto, não se deve perceber as ações que levam à construção da
legitimação do poder nos primeiros anos da Idade Média meramente como
planos de ascensão ao poder. Conforme nos lembra Jacques Le Goff ignorar
os dois papéis exercidos pela Igreja na Idade Média é não a entender de
maneira compreensível – ela opera enquanto “ideologia dominante apoiada
por um poder temporal considerável e como religião propriamente dita” [Le
Goff, 2016, p.12]. Da mesma maneira, deve-se considerar aquilo que já foi
comentado aqui como a imagem da “norma imperial” remanescente nos
herdeiros do Império Romano na construção de seus reinos, bem como a
necessidade de fortalecimento que sentiu a Igreja Católica quando das
querelas com o Império Bizantino a partir de meados do século VII.

As mudanças que ocorrem no tempo e a experiência sobre as mudanças e


permanências que moldam o indivíduo histórico refletem sua importância na
grande concepção humana do passado. A queda de um império milenar, o
estabelecimento de reinos e ascensão de dinastias que assumem o poder
são eventos que marcam a tradição de um povo, seus costumes,
identidades e visões de mundo, e por isso moldam suas concepções sobre
os fenômenos que regem suas condutas sociais. Entender, por exemplo, o
porquê da associação entre duas esferas de poder – notadamente, aqui, a
esfera laica dos carolíngios e a esfera eclesiástica da Igreja Católica – é
perceber a importância da legitimação na constituição do poder. Aproximar-
se do fenômeno histórico por seus eventos focais necessita o
acompanhamento das condições materiais e das implicações imaginativas,
derradeiramente geradora da legitimação de uma autoridade, o que reflete
as relações de poder então instituídas na sociedade histórica. Com isso, os
estudos sobre as relações em que opera o poder, bem como a importância
da legitimidade constituída nestas relações podem trazer discussões aos
mais diversos tempos históricos, refletindo a ação do homem perante seu
espaço e tempo e trazendo à mesa discussões que podem também ser
concernentes ao presente.
Aprendendo
História: Referências
ENSINO & Guilherme Tavares Lopes Balau é graduando em História pela UEL,
MEDIEVO orientado em sua pesquisa pelo Professor Dr. Lukas Gabriel Grzybowksi.
Página | 74
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WICKHAM, C. The Inheritance of Rome: Illuminating the Dark Ages 400-


1000. Londres: Penguin Books, 2009. E-Book.
HISTÓRIA E IMAGEM: O DIABO NAS REPRESENTAÇÕES VISUAIS
MEDIEVAIS (SÉCULOS VI E XII)
Juliana Gomes Rodrigues
Luciano José Vianna

Aprendendo
As imagens no período medieval História:
Este trabalho tem como objetivo apresentar, de forma introdutória, algumas ENSINO &
formas e aparências que o Diabo recebeu ao longo dos séculos medievais MEDIEVO
através da análise de duas representações visuais deste personagem. Nosso Página | 75
objetivo é compreender a relação entre a evolução física deste personagem
e o discurso religioso relacionado ao mesmo, analisando o afresco intitulado
“O bom pastor entre dois anjos” (século VI, Basílica de Santo Apolinário
Novo, Ravenna, Itália) e também a iluminura intitulada “Teófilo e o Diabo”
(c. 1195, Musée Conde, Ms. 9, fol. 35v-36r, Chantilly, França). Como base
metodológica, utilizaremos as propostas de Jean-Claude Schmitt e Jérôme
Baschet para a aproximação a uma história das imagens no Medievo. Como
justificativa, destacamos que as diversas formas pelas quais o Diabo foi
representado durante o Medievo refere-se a uma relação intrínseca entre a
arte e a sociedade, através das quais a Igreja se utilizou da imagem deste
personagem modificando-a de acordo com o contexto no qual estava
inserida.

Um dos períodos que mais produziram e utilizaram as representações


visuais é o Medievo, período no qual existiu uma cultura da imagem com
características originais, principalmente por ser um tempo dominado pelo
cristianismo. Tal afirmação é confirmada pela diversidade de suportes
visuais utilizados para tais representações, como, por exemplo, os vitrais,
afrescos, iluminuras, miniaturas, tapeçarias, retábulos, esculturas,
mosaicos, calendários, entre outros. Diante desta diversidade de suportes,
Jérôme Baschet formulou o conceito de imagem-objeto para representar a
relação entre a materialidade das imagens e a manipulação ritual das
imagens:

“Assim, parece demasiado simples falar-se em ‘imagem’ em geral sem


associar a esta palavra outros vocábulos que precisarão suas formas,
contextos e usos. Jérôme Baschet propôs falar em ‘imagens-objetos’ para
atrair a atenção sobre as características materiais e, em relação com estas,
sobre os modos de manipulação ritual de várias imagens, quer sejam
imóveis ou fixas.” (Schmitt, 2002, p. 591-605).

Além disso, o Medievo é conhecido também pela sua singularidade de


pintura, suas formas, cores e maneiras de pintar diferenciadas. O tempo
medieval, no que desrespeito à imagem, teve suas peculiaridades em
relação às representações visuais. De acordo com Schmitt:

“Antes da ‘época da arte’ e da ‘invenção do quadro’, teria havido, (...) o


‘tempo das imagens e do culto’, ou seja, das concepções e das práticas não
essencialmente estéticas, mas principalmente cultuais e rituais das
‘imagens’. De fato, em se tratando da Cristandade medieval, a noção de
‘imagem’ parece ser de uma singular fecundidade mesmo que
compreendamos pouco todos os sentidos do termo latino imago. Esta noção
está, com efeito, no centro da concepção medieval do mundo e do homem:
ela remete não somente aos objetos figurados (retábulos, esculturas,
vitrais, miniaturas, etc...), mas também às ‘imagens’ da linguagem,
Aprendendo metáforas (...) das obras literárias ou da pregação.” (Schmitt, 2002, p.
História: 591-605).
ENSINO &
MEDIEVO É importante ressaltar que a análise de uma imagem não é apenas observar
Página | 76 o que está sendo representado, mas sim buscar principalmente o contexto
histórico no qual está inserida para se compreender a mesma.

Durante o Medievo, as imagens foram de suma importância para o


cristianismo, pois eram através delas que eram justificadas muitas ações,
principalmente as representações que estavam textualizadas na Bíblia.
Entretanto, um dos caminhos mais diretos para se compreender a função da
imagem medieval, é através das palavras de São Gregório Magno, em pleno
ano 600:

“O que os escritos proporcionam a quem os lê, a pintura fornece aos


analfabetos que a contemplam porque assim esses ignorantes veem o que
devem imitar; as pinturas são a leitura daqueles que não sabem ler, de
modo que funcionam como um livro, sobretudo entre os pagãos.” (São
Gregório Magno, s/d, p. 1128-1130).

Questões metodológicas
Na Alemanha, no final do século XIX, a história da arte surgiu como uma
disciplina científica, contexto no qual Heinrich Wolfflin e Alois Riegl, ou seja,
seus criadores, definiram os objetivos e métodos que seriam aplicados a
mesma. Porém, “a necessidade de fundar a disciplina sobre bases científicas
também conduziu os historiadores da arte a se fecharem em limites às
vezes demasiados estreitos” (Schmitt, 2002, p. 591).

De acordo com Schmitt, o historiador deve se ater às especificidades das


imagens medievais, principalmente quando comparadas as nossas imagens
atuais. A relação entre as imagens medievais em termos de constituição
obedece a regras completamente distintas das quais aprendemos no
contexto do Renascimento (Schmitt, 2002, p. 591-605). Ademais, a relação
entre imagem e o objeto invisível era recorrente na justificativa para a
criação das imagens medievais, uma vez que: “A imagem medieval não
‘representa’ Deus, os patriarcas ou os santos, nem mesmo a vida
contemporânea dos homens (...). A imagem medieval ‘presentifica’ (...), o
invisível no visível, Deus no homem, o ausente no presente, o passado ou o
futuro no atual.” (Schmitt, 2002, p. 591-605).

Além disso, segundo Schmitt: “(...) as imagens não devem ser ‘adoradas’
como o são os ídolos pelos pagãos, mas também não devem ser destruídas.
Elas têm de fato uma tripla função: lembram a história sagrada; suscitam o
arrependimento dos pecadores; enfim, instruem os iletrados que, ao
contrário dos clérigos, não têm acesso direto à Bíblia.” (Schmitt, 2002, p.
591-605).

As imagens medievais nos levam sempre a uma mensagem imbuída nas


suas representações. O fato de que o sentido da imagem deve ser buscado
sempre além daquilo que ela parece “representar”, “ilustrar” ou “dizer” Aprendendo
contribui para mostrar o parentesco entre a imagem material e as “imagens História:
mentais”, vínculo muito procurado nas representações visuais medievais ENSINO &
(Schmitt, 2002, p. 594). Desta forma, para tonar possível a compreensão MEDIEVO
das mensagens que podemos encontrar nessas representações é necessário Página | 77
ver além daquilo que ela pode nos ilustrar, pois um dos maiores objetivos
daquelas representações visuais era transmitir uma mensagem, diferente
da arte renascentista que nos fascina pelo seu rebuscado.

A comparação visual do Diabo entre os séculos VI e XII


As imagens que analisamos neste trabalho de acordo com as perspectivas
já apresentadas ao longo do texto, são duas: o afresco intitulado “O bom
pastor entre dois anjos” (século VI, Basílica de Santo Apolinário Novo,
Ravenna, Itália) e também a iluminura intitulada “Teófilo e o Diabo” (c.
1195, Musée Conde, Ms. 9, fol. 35v-36r, Chantilly, França).

O Diabo, até o século XI, era pouco retratado nas formas visuais. Estava
quase sem presença nas representações visuais. Por exemplo, Muchembled
destaca que o Diabo se mostrou discreto até o ano mil. Havia um interesse
por parte de teólogos e moralistas, mas, mesmo assim, as representações
visuais não o representaram de forma constante, com seria séculos depois.
Ademais, Muchembled interpretou esta característica como uma “ausência
de uma grande obsessão demoníaca” naquela sociedade (Muchembled,
2001, p. 19). Deve-se relembrar que a produção cultural no Ocidente
medieval era um apanágio dos monastérios, e, dessa forma, a figura do
Diabo foi utilizada “profundamente como advertências” (Russel, 2003, p.
87).

Uma de suas primeiras imagens foi no século VI e foi descrito como um


anjo caído dos céus por tentar medir forças e querer tomar o poder de
Deus. No afresco intitulado “O bom pastor entre dois anjos”, temos uma
representação de um personagem central e dois laterais, os quais podem
ser considerados como anjos, uma vez que apresentam asas em suas
costas. Cada um destes anjos está representado com uma cor diferente, no
caso, vermelho (esquerda) e azul (direita). Ademais, também há a
representação de animais no afresco, com a presença de ovelhas
(esquerda) e bodes (esquerda). Considerando a característica religiosa das
imagens produzidas no Medievo, principalmente em um contexto do começo
deste período, a cena descrita anteriormente coincide com a passagem
bíblica que está em Mateus 25, 31-33: “Quando o Filho do homem vier em
sua glória, com todos os anjos, ele se assentará em seu trono na glória
celestial. Todas as nações serão reunidas diante dele, e ele separará uma
das outras como o pastor separa as ovelhas dos bodes. E colocará as
ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda.” (Mateus 25, 31-33).
Considerando que o personagem central está inclinando o seu braço direito
para a sua direita, em um movimento de eleição dos que estão neste lado,
compreendemos que este gesto significa o gesto da salvação daqueles que
se colocaram no lado direito.

Aprendendo
História:
ENSINO &
MEDIEVO
Página | 78

Imagem 1
O bom pastor entre dois anjos
Século VI, Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravenna, Itália

Antes de continuar a análise da imagem, deve-se observar uma


característica metodológica importante na análise de imagens. No presente
caso, a relação entre a literatura e a imagem e, neste caso específico, a
literatura bíblica. O diabo do século VI era um diabo monástico, ou seja,
estava presente somente na escrita e nas reflexões dos monges do começo
do Medievo. Estes, ao viverem uma vida voltada para as reflexões bíblicas,
ao elaborarem as representações visuais de aspectos, personagens, fatos,
etc..., do cristianismo, faziam-no a partir de suas referências bíblicas.

Sabemos que até o ano 1000 não havia uma representação visual específica
do Diabo e a Igreja tinha a necessidade de utilizar a sua imagem para
controlar socialmente a população para que permanecessem fiéis e com
temor, usando então o medo do inferno como meio de causar esses
sentimentos para que não se desviassem da sua fé. De acordo com Russel:
“A cultura medieval no Ocidente estava isolada e dominada pelos
monastérios, então, os padres do deserto utilizaram a diabologia
profundamente como advertências, as quais foram incorporadas, mostrando
como lidar com o mal em um mundo áspero e inseguro.” (Russel, 2003, p.
87). Neste sentido, a representação do Diabo encontrada no afresco “O bom
pastor entre dois anjos” do século VI, está imergida em uma cultura bíblica,
a qual era a principal referência do cristianismo naquele contexto,
principalmente para as elaborações culturais visuais.

A outra imagem que nos propomos analisar brevemente neste trabalho


trata-se da iluminura intitulada “Teófilo e o Diabo”, do final do século XII.
Diferentemente da imagem analisada anteriormente, do século VI, trata-se Aprendendo
de uma representação animalesca sobre o Diabo, elaborada no final do História:
século XII. É necessário destacar que até antes do século XI observa-se a ENSINO &
imagem do Diabo ilustrada de outras formas e desempenhando outros MEDIEVO
papeis perante os homens e o seu objetivo de persuasão para o mal, tais Página | 79
como monstro (Anglo Saxon miscellany, Canterbury, c. 1050, British
Library, Cotton Tiberius B V 1, fol. 87v), como um ser deformado (Beatus of
Liébana, Commentaria in Apocalyps in Saint-Sever, c. 1072, Bibliothèque
Nationale de France, Latin 8878, fol. 159r) ou como um mau governante,
no afresco sobre os efeitos do bom e do mal governo, de Ambrozio
Lorenzetti (Palácio de Siena, 1338-1340). De fato, o ano mil representou
um momento no qual ocorreu uma modificação visual do Diabo com foco
para a sua animalidade. Tal perspectiva é confirmada pelas palavras de
Robert Muchembled:

“Enquanto Raoul Glaber ou os escultores góticos imaginavam o Maligno


como um ser humano disforme, as pessoas da Idade Média tardia o
empurravam resolutamente para fora de sua esfera humana, em direção a
um universo animal tornado mais inquietante a partir do século XII.”
(Muchembled, 2001, p. 39).

E é esta forma animalesca que encontramos na iluminura intitulada “Teófilo


e o Diabo” (c. 1195, Musée Conde, Ms. 9, fol. 35v-36r, Chantilly, França).
Aprendendo
História:
ENSINO &
MEDIEVO
Página | 80

Imagem 2
Teófilo e o Diabo
(c. 1195), Musée Conde, Ms. 9, fol. 35v, Chantilly, França
Aprendendo
História:
ENSINO &
MEDIEVO
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Imagem 3
Teófilo e o Diabo
(c. 1195), Musée Conde, Ms. 9, fol. 35vr, Chantilly, França

Ao assumir esta aparência animalesca, o Diabo era representado com mais


uma de suas facetas, a qual, a partir do século XI, teria cada vez mais
influência na sociedade. Conforme afirma Jérôme Baschet, a importância do
Diabo foi se ampliando durante o decorrer do Medievo, e a sua
representação específica, com ênfase em sua monstruosidade e
animalidade, foi se efetivando a partir do ano mil. (Baschet, 2002, p. 319-
330).

Aprendendo As imagens 2 e 3 indicam a presença de três personagens. O primeiro,


História: Teófilo, movido pela ambição recorre a um pacto de vassalagem com o
ENSINO & Diabo para obter o desejado. O segundo personagem está na figura do
MEDIEVO diabo que é colocado de forma imponente na primeira imagem, de pé, em
Página | 82 uma postura e corpo muito parecidos com a representação de um homem,
mas os chifres e o rabo evidenciam algumas das suas principais
características animalescas neste contexto. O terceiro personagem, Maria,
está estritamente vinculado como um dos principais adversários do Diabo,
pois, em outras representações, podemos observar o embate entre essas
duas forças sagrada e profana. Tantos nas imagens medievais como na
sociedade em geral, não há divisão estrita entre “profano” e “sagrado,
(Schmitt, 2002, p. 598).

Observando as imagens 2 e 3, vemos que há quatro quadros os quais


podem ser analisados sequencialmente para que possamos compreender a
narrativa da imagem. No quadro 1 (imagem 2), observamos Teófilo
ajoelhado colocando suas mãos entre as mãos do Diabo, que está em pé e
segurando um pergaminho com a seguinte inscrição: “ego sum homo tuum”
(“eu sou o teu homem), inscrição presente em um contrato que representa
o ato de tornar-se vassalo de um senhor, ou seja, tornar-se o seu homem.
Esta cena trata-se da representação de uma homenagem, ou seja, o ato
pelo qual um homem tornava-se vassalo de um senhor (Bloch, 2001, p.
159-161). Observando o contexto de produção da imagem, ou seja, o
aproximadamente no ano 1195, estamos em pleno feudalismo. Dessa
forma, temos uma representação visual sendo influenciada pelo contexto de
produção, representando o Diabo como um senhor feudal. Neste sentido,
Teófilo tornou-se vassalo do Diabo. No caso deste personagem, percebe-se
diversas características que o tornam com um aspecto animalesco, como os
chifres, o rabo e as orelhas pontudas. No quadro 2 (imagem 2),
observamos Teófilo em uma posição de arrependimento, colocando-se em
um nível inferior ao outro personagem do quadro, no caso, Maria, e
também com as mãos apostas, em uma espécie de súplica sendo feita a
mesma. No quadro 3 (imagem 3), temos a representação de Maria tomando
o contrato das mãos do Diabo, e o mesmo voltado para o lado contrário da
mesma, ou seja, como se estivesse fugindo da investida de Maria. Por fim,
no último quadro (imagem 3), temos a presença de Maria devolvendo o
contrato a Teófilo, que é representado dormindo. Embora a narrativa dos
quadros reflete a presença de Maria e uma das principais funções realizadas
por esta personagem no âmbito do Cristianismo, o que interessa a este
trabalho é a representação do Diabo, neste caso, uma representação
animalesca.

As imagens analisadas, embora sejam de séculos distantes (VI e XII),


demonstram claramente não somente a evolução da representação visual
do Diabo, de anjo a animal, mas também indicam a estreita relação da
mesma com o contexto no qual foram elaboradas.

Conclusão
Ao longo dos séculos do Medievo, o Diabo apresentou diversas formas e
aparências. Nos primeiros séculos do Cristianismo, a imagem do Diabo foi Aprendendo
pouco debatida e representada nas artes, chegando a ser representado História:
como um anjo. Durante o contexto do ano 1000, o Diabo se modificou e ENSINO &
recebeu formas e cores diversas, ganhando perspectivas animalescas. Mais MEDIEVO
adiante, no século XII, sua imagem voltou a se modificar, inserindo-se na Página | 83
sociedade através de sua representação como senhor feudal. No final do
Medievo, surgiu o fenômeno da demonologia no Ocidente medieval e então
este personagem foi associado à perspectiva herética (Muchembled, 2001;
Boureau, 2016). Neste sentido, podemos observar que a representação da
figura deste personagem obedece a parâmetros de historicidade, e cada
representação somente pode ser compreendida desde que analisada a partir
do seu contexto de composição.

No decorrer desse texto foi possível observar, de forma introdutória, as


transformações que a imagem do Diabo sofreu ao longo dos séculos
medievais, focando nas representações angelicais e animalescas. Do anjo
ao animal, o Diabo influenciava na personalidade do homem, claro que na
expectativa de leva-lo ao inferno com seu mal comportamento.

Deve-se ressaltar as questões metodológicas utilizadas para a análise das


imagens em questão, principalmente no que diz respeito a relação das
mesmas com os seus contextos de composição, uma vez que a própria
representação do Diabo obedeceu a contextos e ideias distintas, sendo
apropriado cada vez mais pelo mundo monástico somente a partir do século
XI, e consequentemente, também na sociedade.

Dessa forma, trabalhar com as representações visuais do Diabo no contexto


medieval é um exercício de desconstrução que muitas das vezes faz
confrontar perspectivas contemporâneas sobre o personagem com
representações distantes do nosso tempo. Neste sentido, ao se trabalhar
com fontes visuais medievais devemos nos ater aos diversos conselhos
proporcionados por Jérôme Baschet e Jean-Claude Schmitt, os quais tornam
o período medieval um contexto específico em relação à produção
historiográfica visual.

Referências
Juliana Gomes Rodrigues é graduanda em Licenciatura Plena em História na
Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina). Orientador: Prof.
Dr. Luciano José Vianna (UPE – Campus Petrolina). É integrante do Spatio
Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística da UPE/Petrolina.

Luciano José Vianna é Professor Adjunto de História Medieval da


Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Professor permanente do
Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas
Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus
Petrolina. Doutor em Cultures en contacte a la Mediterrània pela Universitat
Autònoma de Barcelona (UAB). Membro do Institut d’Estudis Medievals
(UAB-IEM). Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em
Medievalística (UPE/campus Petrolina).

Aprendendo Fontes visuais


História: O bom pastor entre dois anjos, (século VI), Basílica de Santo Apolinário
ENSINO & Novo, Ravenna, Itália.
MEDIEVO
Página | 84 Teófilo e o Diabo, (c. 1195), Musée Conde, Ms. 9, fol. 35v-36r, Chantilly,
França.

Fontes textuais
SÃO GREGÓRIO MAGNO. Epistolae. Epistola ad Serenus, XI, 13. (Patrologia
Latina 77, col. 1128-1130).

Bibliografia
BASCHET, Jérôme. Diabo. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
Vol. 1. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, p. 591-605.

BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 2001.

BOUREAU, Alain. Satã herético. O nascimento da demonologia na Europa


medieval (1260-1330). Campinas: Editora Unicamp, 2016.

MUCHEMBLED, Robert. Uma história do Diabo. Séculos XII-XX. Rio de


Janeiro: Bom Texto, 2001.

RUSSEL, Jeffrey Burton. Lúcifer, o Diabo na Idade Média. São Paulo:


Madras, 2003.

SCHMITT, Jean-Claude. Imagens. In: Dicionário Temático do Ocidente


Medieval. Vol. 1. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, p. 591-
605.
A INFLUÊNCIA DA ARTE GÓTICA NAS CATEDRAIS DA BAIXA IDADE
MÉDIA DO SÉCULO XII
Leandro de Almeida Costa

Na presente comunicação desenvolvem-se um estudo sobre a arte gótica, Aprendendo


estilo surgido na Idade Média entre os séculos XII e XIV, período de História:
transformações em meio à sociedade, literatura, política e economia. ENSINO &
Salienta-se a relevância e a influência deste estilo sobre a vida cultural e MEDIEVO
educativa no que concerne ao medievo, tal qual o estudo sobre os vitrais e Página | 85
seu papel pedagógico. Em especifico discutira-se a arquitetura gótica
tomando como panorama a basílica francesa de Saint-Denis, e o
avivamento das cidades urbanas a partir da arte e de sua pungência no
novo comércio da baixa idade média. O método aplicado no texto deu-se
por construção de vasta historiografia e bibliografia empregada de forma
qualitativa, ademais o uso de iconografia para enriquecer a discussão em
torno do estilo arquitetônico na produção abaixo debatida.

Mediante aos escritos de Ernst Gombrich (1995, p.174) a arte na Idade


Média foi marcada por dois estilos predominantes que se manifestaram nas
pinturas, literatura e arquitetura. Na Alta Idade média o estilo românico se
se fez presente, inspirado pelas tradições do antigo império, tinha por
características fundamentais o fato de o artista não demonstrar em sua
obra os aspectos naturalistas, adotados com intenção de estabelecer
proximidade com a representação simbolista da religião. Na sua produção a
preocupação para com o espaço das igrejas e consequentemente
mobilidade não são tidas como fator relevante em vista da arquitetura como
um todo, á nesta vertente a existência de cores nos painéis, e volumes na
sua elaboração arquitetônica, características estas que formam este estilo.

Todavia segundo José D’Assunção Barros (2009, p.174) sobre o que tange o
século XII e XIV conhecidos como a baixa Idade Média a arte inova-se,
demonstrando representações destoantes, a predominância do estilo se
altera, passando a ser desenvolvida a então arte gótica, um estilo marcado
por nascer em um contexto de transformações diante da religiosidade,
economia e política. Entre estas mudanças destaca-se o crescimento da
sociedade feudal, com o ressurgimento do comércio à distância e dos
centros urbanos, decorrentes das cruzadas de meados do século XII, a está
nova conjuntura socioeconômica associava-se o clero que vinha tendo
progresso em novas ordens religiosas, graças aos investimentos feitos por
eles nas construções das novas catedrais e na influência que estes vinham
adquirindo diante ao vilarejo ou região, isto muito se explica pela
consequente volta de um centralismo monárquico, que estava por ocorrer
mesmo que paulatinamente.

A nomenclatura do termo gótico é considerada por Ricardo Ferreira Nunes


(2012, p.67) como um conflito na historiografia, podendo ela ter surgido
como derivação dos Godos, que eram bárbaros da Idade Média, famosos
por terem uma rica cultura arquitetônica, ou surgida no renascimento
através dos humanistas que identificaram o gótico em um contexto de
povos bárbaros que seriam provenientes da região além dos Alpes, e teriam
surgido em oposição ao românico. O autor evidencia o gótico como uma
vertente com influência filosófica que segundo estudiosos, apresentam
pressupostos na arquitetura e logo mais nas áreas da música, dos vitrais,
das esculturas e pinturas.
Aprendendo
História: Nunes (2012, p.29) defende que o gótico nasce a partir da necessidade da
ENSINO & antítese para com a arte Românica, tornando se ela a “rival” ou
MEDIEVO conceituando á com mais propriedade a evolução de uma arte “atrasada”,
Página | 86 em contra ponto Maria Antonia Benutti (2011, p.5) apresenta a perspectiva
de “substituição” e não conflito entre as duas, fator que considera fatores
externos a sua criação além do “atraso” mencionado. O estilo floresce na
França sendo lá construída a primeira catedral com características góticas, e
por isso este estilo ficou também conhecido como a “Arte das Catedrais”.
Nestas construções a presença da religião e o misticismo, são identificados
a partir de seus inúmeros símbolos que compõe seus interiores e exteriores,
desenvolvidos nos projetos dos Mestres Maçons que eram os “arquitetos”
destes “edifícios”.

Catedrais
Interligadas com a religião e consequentemente a fé, as catedrais exerciam
a responsabilidade de educar, revigorar o domínio do clero sobre os fiéis e
disseminar emoção e esperança em torno da salvação. Sandra Sirangelo
Maggio (2015, p.202) diz que estas igrejas desenvolviam um sentimento
coletivo e cívico a qualquer indivíduo que a frequentasse, a magnitude em
tamanho, verticalidade, e a intensa iluminação no interior destes espaços,
faziam as pessoas se sentirem mais próximas de Deus e ao mesmo tempo
sentirem que havia um ser superior a eles, concebiam um sentimento de
obediência ou até mesmo de temor ao considerado como divino, que
impunha a todos respeito, medo e paixão sentimentos que se misturavam
entre todos.

A autora Maggio (2015, p.202) permeia o imaginário desse recorte temporal


do medievo analisando o ser divino, representando-o como sendo entendido
por Lei, Pai ou o Deus supremo, concomitantemente exerce papel de
protetor e legitimador sendo apto a punir ou destruir. Os interiores das
catedrais eram colocados de forma a atravessar o pensamento religioso e
tradicional de uma sociedade, ao entrar nela a população passava por
acreditar em um processo ideológico, que perpassava o sentimento de
estarem ficando mais próximos do céu e de Deus, e a altura das catedrais
fundamentava ainda mais este pensamento sendo o teto, as torres
apontadas para alto e os vitrais que recebiam luz diretamente como
evidências da aproximação com o divino.

Ainda segundo Maggio (2015, p.201) as catedrais mantinham


características de exemplificar o posicionamento social dos que a
frequentavam, por conseguinte, dos habitantes da região. Durante a missa
a nobreza era posta a frente e os camponeses, artesãos e outras pessoas
desprovidas de status eram dispostas na parte de trás para acompanhar a
cerimônia que sempre era pronunciada em latim. Entre estes últimos havia
a dificuldade de acompanhar com clareza os ensinamentos do padre, o que
por sua vez era comum tendo em vista que boa parte da população era
analfabeta, contudo, o implemento dos vitrais e das “rosáceas”,
desempenhavam a função pedagógica do público presente, através de seus
vidros coloridos com representações de santos e de Cristo além de em certa
parte da construção enaltecer heróis e mostrar governantes da época, estes Aprendendo
vitrais faziam com que os ensinamentos e sentimentos sentidos pela História:
nobreza ao ouvir o padre também fossem sentidos pelo povo ao verem os ENSINO &
vitrais. MEDIEVO
Página | 87
O estilo gótico segundo Ricardo Ferreira Nunes (2012, p.44) preocupava-se
em guardar determinados locais para se colocarem estas rosáceas e vitrais,
para que a catedral concebe-se um meio de falar com a população, através
de símbolos simples e contemplativos. Estes produzidos pelos mestres
vitralistas como eram denominados aqueles responsáveis de fazê-los,
compunham narrativas de tal maneira que até sua liberdade de criação os
fez inserir histórias que não eram cristãs, porém sempre com
responsabilidade de não afetar a igreja, como anteriormente citado a
representação de governantes é um exemplo disto, de todo forma os vitrais
eram meios educativos seja do meio secular ou divino.

Ainda segundo Nunes (2012, p45-48) haviam espaços dedicados a vitrais


especiais dedicadas a história da salvação e crucificação de Jesus Cristo,
estes eram tratados na arquitetura com especial atenção por apresentarem
enormes janelas ogivais construídas através de inúmeros vidros coloridos
acompanhadas de uma armação de estanho sempre com intuito de iluminar
a catedral e chamar atenção dos religiosos. Em seu planejamento as igrejas
detinham um intenso recurso dos conhecimentos da matemática da
geometria, da decoração e dos objetivos que cada painel, vitral ou rosácea
haveria de desempenhar. Conhecimentos deixados, por exemplo, por
Euclides de Alexandria foram essenciais, as seções cônicas, assim como as
proporções misturadas à geometria criavam as esferas característica das
catedrais.

Mediante ao que Nunes (2012, p.66) verbaliza as catedrais também


denominavam lugar de proteção, sendo ela o espaço onde o mal não podia
entrar. Demônios, monstros ou danações eram impedidos de entrar na casa
de Deus, o homem medieval pensava que todas as hostes demoníacas
tinham por objetivo destruir suas plantações ou vidas, as catedrais
mostravam-se como protetoras, as gárgulas encontradas, por exemplo, na
catedral de Notre-Dame eram vistas como combatentes caso os demônios
quisessem atacar, além de exercer a função de escoar a água do telhado.

O autor Ricardo Ferreira Nunes (2012, p.69) ainda fala sobre como a arte
desenvolvia através desta arquitetura e decoração simbólica, o
desencadeamento a rivalidades entre as cidades, todas ambicionavam
terem grandes catedrais, largas e altas com intuito de mostrar a riqueza da
cidade culminando em certo prestigio a elas, além de servir como uma
forma de impulsionar a economia local, já que as feiras se tornavam
amplamente frequentadas por viajantes que viam ver a catedrais.
A Arquitetura na Arte Gótica
José D’Assunção Barros (2009, p.14) levanta a questão sobre como a
arquitetura ligava-se com a burguesia iniciada nas cidades, criando novos
parâmetros sociais, o fortalecimento e influência das articulações
Aprendendo monárquicas para as nações hodiernas, tendo por consideração as ações
História: que as catedrais impunham com as assinaturas ocorridas em seus interiores
ENSINO & que delimitavam a região de onde eram construídas. As marcas regionais
MEDIEVO eram fundamentais no intuito de popularizar as regiões, demonstrando a
Página | 88 partir dela os trabalhos humanos daqueles que habitavam ao seu redor,
elas mantinham sempre bem características a arte gótica com sua altura
que apontava para o alto como forma de estar mais perto de Deus.

Á arquitetura voltava-se ao ser cristão, manifestando segundo as palavras


de Giulio Carlos Argan (1999, p.29) o “desejo de transcendência” o qual
seja camponês ou nobre tinha. O constante implemento das verticais,
acompanhadas como Argan fala pelo “arrojo e complexidade de suas
estruturas” demonstra a estética da arquitetura que pode até ser
considerada ‘burguesa’ já que advinha das cidades e dos meios desta nova
sociedade comercial, a catedral tem em primeva função criar um
sentimento de pertencimento à “comunidade” que durante o processo
envolvia-se na sua construção que chegava a durar até 200 anos.

Ricardo Ferreira Nunes (2012, p.31-33) patenteia o gótico arquitetônico


como fator de influência no que concerne a perspectiva do homem medieval
sobre a sociedade em que vivia, os símbolos caracterizavam esse novo
objetivo da arte, procurando conceituar de alguma maneira essas
peculiaridades. Nunes observa como o gótico trouxe as formas “ogivais”
como seu apoio central, definindo o estilo arquitetônico em suas
“geométricas abobadas”, desenhos e formas. Não obstante na introdução
deste artigo foi apresentado o estilo artístico Românico que por sua vez
buscava por apontar para cima com seus arcos e ogivas podendo ser
definidas como características deste estilo artístico, então como podem
diferi-las? Esta questão vêm a ser respondida pelo implemento da luz e a
“relação entre estrutura e aparência”.

Ademais, o advento de arcobotantes formas de meio-arco que demovia o


peso do teto para os pilares laterais designados como contrafortes
proporcionaram o alongamento as disposições e armações, feitas ainda
entre enormes ambientes partidos pelas paredes, NUNES (2012, p.34) fala
que estes espaços eram dedicados aos vitrais abordados anteriormente, que
destacavam a luz interior e que geravam uma nova nomenclatura a
arquitetura das catedrais góticas, agora chamadas de espaços de “diáfana e
transparente”.

Segundo Maria Antonia Benutti (2011, p.5) para se construir este


monumento religioso assim com também qualquer outra grande construção,
empregava-se o Mestre Maçom, profissional responsável pelo seu
planejamento e conclusão da obra, desenhava para si uma própria
organização onde se fazia presente à atuação do mesmo como arquiteto e
chefe geral, apenas ele em toda a Idade Média tinha conhecimentos em
relação às fórmulas geométricas aplicadas nos projetos arquitetônicos, é
importante lembrar que como a construção de uma catedral durava muitos
anos nem sempre o mesmo Mestre Maçom que iniciava a construção era o
que terminava.
Aprendendo
Mediante o que diz Marcus Vitruvius Pollo (2007, p.168) “para os História:
projetistas, construtores e arquitetos do período gótico, a geometria era o ENSINO &
elo entre o plano material e o espiritual e, por isso, é o princípio MEDIEVO
fundamental das catedrais do estilo gótico” Vitruvius abordava o fato de que Página | 89
sem está simetria e proporção era impossível que se pudesse obter uma
gênese em relação a qualquer outra construção de forma que as catedrais
tivessem de ter exatidão em suas proporções, esta mentalidade ainda
empregava-se na arte gótica da música e na representação da natureza.

A decisão em relação às medidas das edificações arquitetônicas é chamada


de “traçado regulador”, Maria Antonia Benutti (2011, p.4) escreve que este
é o significado principal na elaboração da geometria sagrada, podendo
definir os meios de como a construção vai suceder. Estes reguladores eram
escolhidos com base na natureza e seus elementos, e na organização dos
conhecimentos da matemática de modo que os dois estavam interligados,
formas verticais da construção juntamente com as grandezas horizontais
eram ao final as medidas que determinavam se as estruturas tinham
analogias entre elas.
Aprendendo
História:
ENSINO &
MEDIEVO
Página | 90

Fig. 1
Fachada atual da Basílica de Saint-Denis. Ilustração esquemática de uma
catedral gótica. (Archives Larrouse/Lauros Giraudon, apud: PROENÇA,
Graça. História da arte. 17. ed. São Paulo: Ática, 2010. p. 73).
De acordo com a figura 1 a primeira das catedrais construídas em estilo
gótico puro foi a de Saint-Denis, em Paris, no século XII, onde segundo
Maria Antonia Benutti (2011, p.6) apresenta o estilo vertical supracitado, e
a precisão nos traços. Na ilustração abaixo que mostra o lado oeste do
prédio, podemos destacar três portões, uma “rosácea” e um campanário no
lado sul, nesta rosácea que se localiza ao meio exibe um espaço de acesso Aprendendo
a luminosidade, que transportava o maior sentimento de um lugar sagrado. História:
A janela designa uma forma circular peculiaridade da arte românica, ENSINO &
entretanto Saint-Denis foi em primo, a construção que recebeu está forma MEDIEVO
geométrica no território francês, é importante destacar que mais tarde o Página | 91
estilo gótico aderiu fortemente estas formas a suas igrejas principalmente
no norte da França, manifestando a ideia em suas fachadas.

Sandra Sirangelo Maggio (2015, p.202) descreve a engenharia aplicada


nesta arquitetura em três termos que também se aplicam a definição do
que foi a arte gótica: “beleza, aparente simplicidade e equilíbrio” estas
descrições apresentam-se a principio apenas nesta forma de arte, porém,
depois se expandem para qualquer campo da arte que se apresenta na
Baixa Idade Média até o renascimento.

Considerações Finais
Perfazendo o estudo, constatar-se a catedral, consoante ao que coloca
Ricardo Ferreira Nunes (2012, p.68) como espaço social da vida do
medievo, constituindo ambiente de estada do poder do clero e do saber, os
centros urbanos se colocavam como centros culturais, com a edificação de
áreas e praças de reuniões, que de certa forma mantinham a mentalidade
da temporalidade no sagrado. Para os “prédios” sagrados a importância dos
vitrais fora essencial, sendo o nutriente necessário a construção do
imaginário social da população, e da linguagem obtida através deles.

Embora se apresente neste texto apenas uma pequena base do que


realmente fora a arte das catedrais góticas, é possível constatarmos como
elas guardam simbolismos, funções sociais e econômicas. E ainda segundo
Maria Antonia Benutti (2011, p.12) como esta arquitetura demandou grande
conhecimento sobre a matemática e a geometria em seus projetos.

Na simbologia a diligência com que fora elaborada e o emprego de


elementos geométricos que envolveram as igrejas medievais, deram a
versatilidade que lhes conferiram o fator de reconhecimento para com sua
técnica, de tal modo desenvolvendo discussões, em meio, às pesquisas de
história da arte à volta de sua aplicabilidade, tal qual a sua relevância na
retomada no renascimento e contemporaneidade, igualmente trabalhado
por José D’ Assunção Barros em seu artigo sobre os contra ponto do estilo
gótico e da arte românica, além do ressurgimento das discussões nas
produções historiográficas do século XIX.

Depreende-se que a partir do estudo sobre a profundidade do tema, a


importância assim como, a influência no que concernem as artes, filosofias
e o controle da igreja sobre a produção artística e poder sobre o
conhecimento medieval, como o gótico interferiu n a dinâmica dos eventos
desde o século XII, importantes na revitalização artísticas de uma sociedade
remetida a suas produções do império greco-romano.

Referências
Graduando do curso de História-Licenciatura da Universidade Estadual da
Aprendendo Região Toacantina do Maranhão (UEMASUL), Pesquisador e Subcoordenador
História: de mídias, web e pesquisa do Núcleo de Estudos Multidisciplinares de
ENSINO & história Antiga e Medieval-NEMHAM. E-mail leandroherodoto@gmail.com.
MEDIEVO
Página | 92 ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte Moderna, São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.

BARROS, José D’Assunção. O romantismo e o revival gótico no século XIX:


Arte Filosofia, Ouro Preto, n.6, p. 169-182, abr.2009.

BENUTTI, Maria Antonia. A GEOMETRIA DAS CATEDRAIS. XX Simpósio


Nacional de Geometria Descritiva e Desenho Técnico IX Internacional
Conference on Graphics Engineering for Arts and Design. Rio de Janeiro
2011.

GOMBRICH, E H. A História da Arte. 16 ª ed. LTC Ed. Rio de Janeiro. 1995.

MAGGIO, Sandra Sirangelo. “Considerações Sobre as Mudanças no Gênero


Gótico: de Geoffrey Chaucer a Neil Gaiman.” In O Insólito nas Literaturas de
Língua Inglesa. Claudio Vescia Zanini & Sandra Sirangelo Maggio (Orgs.).
Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015.

NUNES, Ricardo Ferreira. Vitreorum Ministerium: o didatismo dos vitrais


medievais, história e linguagem visual. Os vitrais da Yorkminster. Tese de
Doutorado. Programa de Pós- Graduação Linguística Geral da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo
(USP), 2012, 162p.

POLLIO, Marcus Vitruvius. Tratado de Arquitetura. São Paulo: Martins


Fontes, 2007.
ENSINO DE HISTÓRIA E TEMPORALIDADE NA CRÔNICA
“BREVÍSIMA RELACIÓN DE LA DESTRUCCIÓN DE LAS INDIAS”
DE BARTOLOMÉ DE LAS CASAS
Luciano José Vianna

Aprendendo
A especificidade do século XVI nos territórios americanos História:
Em um importante artigo metodológico sobre o estudo do Medievo no ENSINO &
século XX, Raul César Gouveia Fernandes fez algumas afirmações sobre a MEDIEVO
relação entre os estudos medievais e a história e a cultura dos países Página | 93
americanos:

“Pode-se afirmar, portanto, que os estudos medievais também auxiliam a


compreender a história e a cultura dos países americanos: a própria
expansão marítima, que ocasionou a descoberta do Novo Mundo, tem suas
raízes solidamente vincadas na Idade Média. Temas da literatura medieval,
como a gesta de Carlos Magno, permanecem vivos ainda hoje na poesia de
cordel nordestina; além disso, é sabido que diversos escritores brasileiros
de nosso século, entre os quais Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Adélia
Prado, beberam fartamente de fontes medievais.” (Fernandes, 1999, p. 7-
14).

Diversos estudos abordam os primeiros séculos de contato entre o mundo


europeu e o mundo americano, tanto voltados para a América castelhana
(Weckmann, 1984) quanto para a América portuguesa (Weckmann, 1993).
No que se refere ao aspecto da continuidade das características do Medievo
ocidental com outras territorialidades, as palavras de Fernandes,
destacadas acima, fazem com que se observe melhor a interação entre
temporalidades muitas vezes tratadas de forma separada, inclusive no
Ensino de História.

Alguns autores trabalharam no sentido de romper com as barreiras


didáticas estabelecidas para facilitar o ensino de temporalidades distantes.
Neste sentido, é conhecida a tese de Jacques Le Goff sobre o que ele
denominou “le long moyen âge” (Le Goff, 2004), a qual, de certa forma, é
retomada e vinculada a uma de suas últimas publicações onde o autor
discorre sobre a divisão da História em períodos. No livro “A História deve
ser dividida em pedaços?”, ao tentar “precisar o que é um verdadeiro
período histórico”, Le Goff indica diversas continuidades entre o que
tradicionalmente é considerado o final do Medievo e o que é
tradicionalmente considerada a etapa histórica posterior, ou seja, o
Renascimento, sendo que esta última é vista pelo autor como um momento
que “só marcou um último subperíodo de uma longa Idade Média.” Sua
proposta se fundamenta na utilização de uma longa duração na qual há
lugar para os períodos, os quais, de acordo com o autor, deveriam ser
abordados em termos de combinação entre continuidades e
descontinuidades (Le Goff, 2015).

Neste sentido:
“Há, na longa duração, lugar para os períodos. O controle de um objeto
vital, intelectual e ao mesmo tempo carnal, como pode ser a história,
parece-me necessitar de uma combinação de continuidade e
descontinuidade. É isso que a longa duração, associada à periodização,
oferece. (...). A periodização é, assim, um campo maior de investigação e
Aprendendo de reflexão para os historiadores contemporâneos. Graças a ela se esclarece
História: a maneira pela qual a humanidade se organiza e evolui na duração, no
ENSINO & tempo.” (Le Goff, 2015, p. 132; 134).
MEDIEVO
Página | 94 A proposta de Jacques Le Goff se insere em uma observação de
continuidades e descontinuidades em um período histórico, considerando
uma análise que associa a longa duração e a periodização. Se
compreendermos o continente americano durante o século XVI a partir da
perspectiva da longa duração histórica europeia, considerando o mesmo
como um contexto no qual havia diversas continuidades com os séculos
anteriores, ou seja, com os séculos medievais, observaremos que as
crônicas do século XVI, as quais foram um produto cultural do homem
europeu, ainda apresentavam algumas características de forma (material) e
conteúdo (narrativa) com suas anteriores dos séculos XII-XV.

Este seria, portanto, um dos primeiros gêneros históricos que foi utilizado
para registrar o contato entre estes dois mundos; porém, com um conteúdo
que, embora fosse narrativo, estava voltado para a descrição de uma
experiência e de um contato entre dois mundos, e não para uma narração e
reflexão sobre o passado (como é típico das crônicas medievais). Desta
forma, a crônica do século XVI ainda mantinha um vínculo com a sua
anterior, a crônica medieval dos séculos XII-XV, tanto no aspecto forma
quanto no aspecto conteúdo; e como foi utilizada para registar a memória
dos acontecimentos que marcaram o início deste contato pode servir como
fonte através da qual se poderá problematizar este contato aproximando-se
ao pensamento dos seus autores.

A crônica (medieval) como objeto de observação nas Américas


A partir do século XVI, portanto, e a partir de uma perspectiva europeia, os
europeus que chegaram às terras americanas trouxeram consigo
mentalidades, comportamentos e uma carga cultural que podem ser
entendidas em termos medievais. Muitas das formas pelas quais estes
homens textualizaram seus novos conhecimentos foi através de
experiências anteriores, muitas delas voltadas para um contexto europeu e
medieval. Além disso, ao se depararem com novas informações, muitas das
quais nunca tiveram contato anteriormente, traduziram-nas de acordo com
seus conhecimentos anteriores.

Esta postura é denominada por Peter Burke como “tradução cultural”, ou


seja, a tradução de uma cultura através da interpretação com base em
conhecimentos já adquiridos. Interpreta-se as novas experiências através
de uma bagagem cultural já existente, traduzindo-a em termos explicáveis
(Burke, 2010, p. 106). E uma das primeiras materializações destas
experiências e conhecimentos foram as crônicas do século XVI, as quais
representam um dos primeiros momentos de experiência entre os
habitantes do mundo medieval e os habitantes do mundo americano. Tais
objetos contêm em si uma forma de observação do mundo, no qual, em
diversos momentos, ocorreu uma adaptação do mundo americano à
realidade mental medieval.

Atualmente desenvolvemos o projeto de pesquisa intitulado “As crônicas do Aprendendo


século XVI: o homem entre o Medievo e o Novo Mundo”, no qual História:
trabalhamos com crônicas voltadas para o contexto da América portuguesa ENSINO &
e da América castelhana. Tais crônicas, compostas em um contexto de MEDIEVO
chegada do homem europeu ao continente americano, apresentam em suas Página | 95
narrativas a percepção do homem entre o Medievo e o “Novo Mundo”.
Observadas a partir de uma perspectiva historiográfica, tais crônicas
representam, a partir da perspectiva europeia, a manifestação dos
primeiros contatos estabelecidos entre estes dois mundos, onde os aspectos
do imaginário pertencentes ao homem medieval foram constantemente
utilizados para explicar as primeiras percepções sobre o território
americano. Além disso, também podemos observar uma série de aspectos
voltados para uma presença comportamental medieval, já que a
mentalidade dos personagens que as compuseram se reflete nestes
documentos representando os medos, os anseios, as curiosidades e
evidenciando, em suas primeiras experiências com as terras do continente
americano, características vinculadas ao seu imaginário.

Nos aproximadamente quatro últimos séculos, a crônica medieval foi


constantemente utilizada em termos historiográficos. Durante o século
XVIII, este gênero histórico foi utilizado como testemunho literário e
histórico em um contexto no qual o mesmo era visto pelos historiadores
como objeto que apresentava em seu conteúdo identidades culturais e
políticas. Posteriormente, na transição do século XVIII para o século XIX, o
mesmo serviu para compor narrativas factuais, com os historiadores
utilizando suas informações com pouco ou nenhum exercício crítico, e assim
era considerado como objeto que proporcionava um acesso direto à
realidade passada. Por fim, a historiografia do século XIX estudou-o como
documento histórico-linguístico-literário para obter dados para formulações
de sínteses históricas (Rubiés e Salrach, 1985, p. 467-506). Desta forma,
durante um certo período, a interpretação e crítica sobre a historiografia
medieval concentrou-se em realizar tão somente o discernimento entre o
que era verdadeiro e o que era falso nestes objetos (Aurell, 2013, p. 95-
142).

No começo do século XX o panorama historiográfico se modificou e a


abordagem interdisciplinar passou a estar cada vez mais na pauta dos
estudos históricos. A renovação historiográfica ocorrida durante os anos
setenta do século XX favoreceu a descoberta de novos caminhos, o
estabelecimento de novas perspectivas de trabalho e a implementação de
novas metodologias de pesquisa. Com o gradativo abandono dos grandes
modelos de explicação histórica, utilizados entre os anos cinquenta e
sessenta do século XX (estruturalismo histórico francês; a escola marxista
britânica; a cliometria norte-americana), e a gradativa entrada em cena da
proposta da terceira geração da Escola dos Annales estabelecendo uma
reabertura do diálogo com outras áreas de estudo, como a Antropologia
(contexto conhecido como giro antropológico) e a Linguística (formulando o
que denominamos giro linguístico), ocorreu uma abertura de novos campos
de atuação para a interpretação histórica (Aurell, 2005). Uma das
consequências desta aproximação foi a multiplicação dos objetos históricos,
Aprendendo ampliando e inovando as possibilidades de trabalho dos historiadores e
História: historiadoras. E um dos objetos que possibilitou a ampliação do trabalho no
ENSINO & campo historiográfico foi a crônica medieval.
MEDIEVO
Página | 96 As crônicas do século XVI apresentam uma forma específica de escrita da
História, onde uma longa experiência histórica do homem medieval,
compositor destes objetos, coincidiu com um contexto de experiência e
contato com o novo, onde, muitas vezes, este novo foi, de certa forma,
adaptado e compreendido de acordo com a mentalidade do personagem
que compôs o documento. Neste caso, observamos uma reinterpretação do
passado medieval na “Brevísima relacción de la destrucción de Indias”, de
Bartolomé de las Casas, documento que agora analisaremos.

O passado peninsular medieval ibérico reinterpretado na América


A “Brevísima relacción” foi escrita em um momento no qual a conquista
territorial havia sido feita em duas direções, as quais foram apontadas por
Mariane Manh-Lot, partindo das Antilhas em direção ao norte, chegando ao
território asteca, e em direção ao sul, até se depararem com a organização
territorial inca (Manh-Lot, 1990, p. 27-46). Para o presente trabalho,
decidimos destacar o caso da Nova Espanha, principalmente por ser um dos
centros mais desenvolvidos e habitados pelos castelhanos durante os
primeiros decênios do período da conquista.

Após a queda de México-Tenochitlán, o território da confederação asteca


caiu gradativamente em mãos castelhanas (Santos, 2014, p. 218-232).
Desse modo, após um primeiro momento de conquista militar, o que
ocorreu nestas terras foi a gradativa transferência do aparato burocrático-
administrativo castelhano para a mesma, estabelecendo cada vez mais a
presença da Coroa no território. Uma destas mudanças foi precisamente a
reorganização territorial com a criação dos chamados vice reinos, dentre os
quais encontramos o Vice Reino da Nova Espanha (Elliott, 1998, p. 296-
309).

Em sua narrativa, Las Casas apresenta três localidades que foram


conquistadas pelos castelhanos: Cholula, onde fizeram uma “cruel e
señalada matanza” (Las Casas, 2006, p. 57), Tepeaca, “donde mataron a
espada infinita gente” e Tenochtitlán, onde “estando embebidos y seguros
en sus bailes, dicen ‘Santiago y a ellos!’ e comienzan com sus espadas
desnudas a abrir aquellos cuerpos desnudos y delicados e a derramar
aquella generosa sangre, que uno no dejaron a vida; lo mesmo hicieron los
otros en otras plazas” (2006, p. 62;64).

Um aspecto a destacar no fragmento acima é o grito feito antes das


batalhas, “Santiago y a ellos!”, o qual nos faz retornar ao contexto medieval
peninsular ibérico conhecido como Reconquista (Ríos Saloma, 2011). Como
estabeleceu John Elliott, a conquista da América teve os seus antecedentes:
“várias são as maneiras pelas quais uma sociedade agressiva pode expandir
os limites de sua influência, e vários foram os precedentes de todas elas na
Espanha medieval” (Elliott, 1998, p. 135-194). Recuperando o grito
destacado acima, uma destas experiências refere-se ao contexto da
Reconquista, durante a qual ocorreu uma expansão do Cristianismo, uma Aprendendo
migração de pessoas e uma busca por povoamento e colonização de História:
localidades antes pertencentes ao Islã. Neste sentido, estes homens, ao se ENSINO &
deslocarem para as terras americanas, não somente trouxeram em sua MEDIEVO
mentalidade a mesma na qual estavam inseridos no contexto peninsular Página | 97
ibérico, mas também, de acordo com a interpretação de Las Casas, a
utilizaram no novo cenário no qual faziam parte.

A presença da referência a Santiago no documento de Las Casas obedece a


um contexto distinto do qual se desenvolveu originalmente. Se antes, entre
os séculos XII-XV Santiago era chamado para estar à frente da batalha
contra os muçulmanos, agora o mesmo, de acordo com Las Casas, era
invocado no processo de “conquista” contra as populações nativas.
Trabalhos voltados para esta temática abordam este fenômeno como uma
forma de animar às tropas cristãs e também incluir os espaços do novo
território para os europeus na cosmogonia cristã medieval (Domínguez
García, 2008, p. 82). Neste sentido, observamos uma mudança na
utilização da mentalidade do homem castelhano que se encontrava no Novo
Mundo e que era um homem medieval: Santiago permanecia na mente
deste homem, porém, agora, para ser utilizado não como catalisador de
forças para a reconquistas das terras antes cristãs, mas sim para a
realização de um processo violento denominado como “conquista” por Las
Casas.

Desde o século IX, precisamente na batalha de Clavillo (859), Santiago era


reconhecido como o protetor dos cristãos intervindo nas lutas contra os
muçulmanos (Márquez Villanueva, 2004, p. 165, 188-189). Da mesma
forma que a manifestação cultural de São Jorge, devemos considerar que
seu mito foi sendo modificado com o passar do tempo, de acordo com as
diferentes circunstâncias históricas e culturais nas quais se manifestava
(Domínguez García, 2008, p. 18).

Sendo um dominicano, Las Casas provavelmente não inventaria este


detalhe em sua narrativa, associando a figura da Santiago a um processo, o
qual condenava como violento. Portanto, o grito “Santiago” provavelmente
ocorria nestes episódios e Las Casas somente o registrou em sua obra. Este
fenômeno fazia parte de uma mudança de mentalidade e de
comportamento do homem castelhano que se encontrava em terras
americanas. Em um plano mental mais geral, o que estava ocorrendo
durante os anos os quais foram denunciados por Las Casas era uma
reinterpretação do passado medieval peninsular ibérico, adaptado, agora,
às situações nas quais os homens e mulheres que se deslocaram até as
terras americanas estavam inseridos. Dessa forma, a presença de um
elemento como o grito de Santiago em um contexto do século XVI indica
que a mudança entre a temporalidade medieval e a temporalidade moderna
não pode ser compreendida de forma simples, fechada, mas sim analisada
através da manutenção de uma mentalidade anterior, o que representa
uma interação, uma fluidez de mentalidade entre as mesmas.

Conclusão
Aprendendo A divisão das temporalidades como “barreiras didáticas” impede muitas das
História: vezes que se observe as interações entre as mesmas e, dessa forma, a
ENSINO & tendência é observar o desenvolvimento histórico sem nenhuma interação
MEDIEVO temporal. Por outro lado, quando desconsideramos tais barreiras e
Página | 98 observamos o comportamento social expressar-se através de
comportamentos e cargas culturais já existentes podemos ter uma noção
melhor desta interação.

No caso do presente estudo, tal interação é representada pela


modificação/adaptação da figura de Santiago em sua luta, em um primeiro
momento na Península Ibérica, e em um segundo momento nas Américas.
Como afirmara Jacques Le Goff, o homem que chegou as Américas era um
homem medieval e, consequentemente, expressou-se e imprimiu suas
perspectivas de mundo principalmente nos momentos nos quais não
conseguiu tal expressão sozinho.

Portanto, o fato de Santiago ser interpretado lutando contra as populações


locais na América representou uma interação entre o pensamento passado
deste homem que veio para as Américas e suas experiências
contemporâneas, onde estas eram expressadas no novo território a partir
dos contatos que estabeleceu com as populações nativas.

Referências
Luciano José Vianna é Professor Adjunto de História Medieval da
Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Professor permanente do
Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas
Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus
Petrolina. Doutor em Cultures en contacte a la Mediterrània pela Universitat
Autònoma de Barcelona (UAB). Membro do Institut d’Estudis Medievals
(UAB-IEM). Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em
Medievalística (UPE/campus Petrolina).

Fonte
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y notas José Miguel Martínez Torrejón. Prólogo y cronología Gustavo Adolfo
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LITERATURAS MEDIEVAIS SOB A ÓTICA CONTEMPORÂNEA: A
RESSIGNIFICAÇÃO DE PERSONAGENS MEDIEVAIS NAS OBRAS DE
TOLKIEN E ROWLING
Lunielle de Brito Santos Bueno

Aprendendo
História: No nosso dia a dia, o resgate de elementos medievais, ou que, pelo menos,
ENSINO & se apresentam como medievais são visíveis, principalmente, nas artes, isto
MEDIEVO é, literatura, cinema, artes plásticas e afins. Curiosamente, se pensarmos
Página | 100 nas produções dos séculos XX e XXI de literatura que trazem como gênero
a Fantasia – que tem como uma das características apresentar muitos
elementos que, no imaginário social, são associados à Idade Média –,
muitos de nós, lembrarão de nomes famosíssimos como John R. R. Tolkien,
Clive S. Lewis, Ursula K. Le Guin e Joanne K. Rowling. Mas se, após
retomarmos esses nomes, perguntarmos a nós mesmos: quais desses
nomes são os mais difundidos hoje? Sem sombra de dúvidas, Joanne K.
Rowling é uma unanimidade, e, em segundo lugar, John R. R. Tolkien, seria
colocado.

Paul Zumthor (2009, p.16-17) escreveu que o público espera do


medievalista a explicação da formação dos avatares e, até mesmo, da
finalidade das culturas. Essa curiosidade, em compreender tais fenômenos,
coloca o medievo em um espaço que antes era ocupado pela Antiguidade,
sendo termo de referência não só para questões culturais, mas sociais e
políticas atuais. É através das comparações e associações livres que
transitam nos imaginários que a Idade Média é retomada ora positivada,
ora negativada.

O conceito de imaginário social aqui cunhado, é pautado nos estudos e


escritos de Bronislaw Backzo (1985, p. 292), o qual, escreve que “os
imaginários sociais constituem outros tantos pontos de referência no vasto
sistema simbólico que qualquer colectividade produz e através da qual,
como disse Mauss, ela se percepciona, divide e elabora os seus próprios
objetivos”.

Apesar do imaginário social, muitas das vezes, ser colocado como agente
passivo diante das representações e apresentações do mundo, ao notarmos,
em nossa pesquisa especificamente, que o mesmo associa certos tipos de
personagens como sendo próprios de um medievo – ou existente, ou de
uma produção medieval – ele não se coloca apaticamente diante desse
movimento de adaptação e ressignificação que há na literatura. Pelo
contrário, age ativamente com tal movimento, auxiliando na construção de
certos arquétipos e de certas crenças.

Colocando tais considerações em nossas análises, é através da relação


imaginário social, autor e público alvo que personagens como o dragão
Smaug de O Hobbit ou o elfo Dobby de Harry Potter ganhar o status de
seres medievais. Desta constatação é importante destacar que, sob lentes
distantes, estabelecer relações medievais com a coleção Harry Potter é
muito mais cautelosa que com os escritos tolkienianos, uma vez que a
história se passa, declaradamente, nos anos 90. A justificativa, então, para
que pudéssemos fazer tais relações, se dá pela ascendência de
determinados personagens, bem como pelas influências dos estudos da
autora e não pelo contexto colocado na narrativa.

Tendo em mente que, indiretamente, as fantasias que trazem elfos, Aprendendo


duendes, dragões, guerreiros com espadas e armaduras são associadas ao História:
medievo; que, graças à sétima arte, nós podemos ter um apelo ainda mais ENSINO &
expressivo em tocar os imaginários com tais ideias e formulações, e que os MEDIEVO
grandes nomes lembrados desse gênero, são as obras de Joanne K. Página | 101
Rowling, ‘Harry Potter’ (1997-2007), dividido em sete volumes e de John R.
R. Tolkien, principalmente ‘O Senhor dos Aneis’ (1954-55) e ‘O Hobbit’
(1934), é que propomos (i) a análise das obras, comparando os
personagens comuns e (ii) a compreensão de, até que ponto, elementos de
uma cultura e sociedade da Idade Média estão inseridos nessas obras.

Ao elencarmos os personagens comuns às narrativas, tanto literárias,


quanto fílmicas, podemos constar que há elfos – atenção especial a Dobby e
Légolas em ‘Harry Potter’ e nas obras tolkenianas, respectivamente –, uma
figura mágica extremamente similar em vestes e características físicas e
psicológicas, remetendo ao conselheiro do heroi – Dumbledore e Gandalf
em ‘Harry Potter’ e as obras tolkenianas, respectivamente –, dragões –
Norbert de ‘Harry Potter’ e Smaug em ‘O Hobbit’ –, aranhas – Aragog em
‘Harry Potter’, Ungoliant e Laracna na Terra Média de Tolkien – e os Goblins
– duendes na obra de Rowling e orcs na obra de Tolkien. E, com exceção
das aranhas, todos os seres e personagens citados acima são associados
pelo público com o medievo.

Tais personagens, ao serem representados de uma forma similar – descritos


fisicamente e desempenhando determinadas funções – ajudam na
construção de certos arquétipos, dentro desse imaginário tido como
medieval. Em outras palavras, quando pensamos num elfo, num mago,
num goblin, certas características comuns nos vêm à mente; isso se dá
pelas construções de arquétipos em nosso imaginário social.

É importante compreendermos que, ao falarmos de arquétipo, não nos


referimos ao conceito que Jung empregou na psicologia analítica,
apropriando-se do conceito antes pensado, dentro da própria literatura.
Sabe-se que Jung apoiou-se na literatura clássica e medieval para a
construção do seu conceito. Autores como Pseudo-Dionísio Aeropagita,
Platão e Santo Agostinho fazem parte do embasamento teórico para a sua
definição de arquétipo. Ao empregarmos neste trabalho o conceito,
entendemos que os tipos de personagens citados acima, construídos,
muitas das vezes por uma cultura medieval, são os moldes para todos os
outros personagens posteriores da mesma tipologia. Isto é, através das
formulações de magos, dragões e elfos da Idade Média, e do movimento de
adaptação e ressignificação, algumas características que podem ser
associadas ao medievo – como a forma de um dragão pelos bestiários
medievais – permanecem adaptadas a contemporaneidade e outras se
perdem dentro desse movimento – como o fato do mago, guia de um herói,
não aparentar, necessariamente, ser idoso.

Dado que entendemos o arquétipo como características comungadas pelos


personagens que partilham uma mesma tipologia, e que alguns elementos
Aprendendo dessa tipologia são advindos da cultura medieval, esses personagens seriam
História: representados nas narrativas da mesma forma que podemos encontrar na
ENSINO & literatura medieval? O modus operandi de tais personagens, assemelha-se
MEDIEVO ao que podemos encontrar nos registros da Idade Média? Claramente não
Página | 102 poderíamos responder tais perguntas com uma certeza que escapa aos
nossos dedos diante de uma série de escritos medievais, de épocas e
localidades distintas. Mas para não fazer desse trabalho um salto no vazio
ou um punhado de achismos, nos pautamos em entrevistas, declarações,
redes sociais, cartas, biografias e outras pesquisas. Com tais fontes de
pesquisa sobre os autores, primeiramente, buscamos compreender as
inspirações e leituras dos autores para construir seus personagens e depois
compararmos os elementos medievais com os contemporâneos.

Isto posto, o autor sul-africano John R. R. Tolkien estudou Antiguidade


Clássica, e depois Letras e Literatura Inglesa. Foi professor de Inglês Antigo
em Oxford, e, apesar do contexto histórico fazer parte da construção da
mitologia do autor, sua obra não é somente uma alegoria. Todo seu estudo
a partir de romances, novelas, epopeias e mitos medievais da sua
localidade e de tantas outras faz com que a obra ganhe profundidade em
elementos que extrapolam o status de alegoria e alcancem o de “Fantasia
Tolkieniana” (LOBDELL, 2005).

Após a conclusão da graduação, Tolkien se alista para trabalhar na Guerra e


é mandado para o 11º Batalhão dos fuzileiros de Lancashire, como segundo
tenente. Participou da Batalha do Somme, contraiu a febre das trincheiras
e, assim, retornou à Inglaterra.

O contexto histórico de Tolkien, como pudemos perceber, foi marcado por


diversos conflitos grandiosos, sendo um dos principais a Primeira Guerra
Mundial. Conhecida como Guerra dos Poetas, a Primeira Guerra foi marcada
por uma série de obras literárias entre e pós-guerra. Com o uso de ironia a
fim de denunciar os absurdos da guerra, algumas obras têm como uma das
características a disseminação de uma cultura de esperança diante dos
traumas de guerra vividos pela população em geral e pelos próprios
literatos do movimento.

Como fruto desse contexto histórico bastante conturbado, expressões de


pulsão de ficção (SPERBER, 2009), que referencia a necessidade humana de
efabular alguma experiência vivida de grande intensidade e a busca de
elementos maravilhosos de um passado medieval, são visíveis na literatura,
como na literatura tolkieniana, visível nos conflitos belicosos entre a
Sociedade do Anel e os exércitos dominados por Sauron ou na vigilância
incansável de Smeágol sobre O Anel.
Apesar do contexto histórico fazer parte da construção da mitologia de
Tolkien, é de suma importância salientar que sua obra não é somente uma
alegoria. Todo seu estudo a partir de romances, novelas, epopeias e mitos
medievais da sua localidade e de tantas outras faz com que suas obras
ganhem profundidade em elementos que extrapolam o status de alegoria.
Aprendendo
Tolkien produziu dois romances de fantasia baseados em algumas obras História:
antigas tais como Beowulf, Völsunga Saga, Kalevala, Eddas, ENSINO &
Nibegungenlied. Esses textos tinham como característica conectar os MEDIEVO
ingleses a um passado antigo, “uma mitologia para o povo inglês que os Página | 103
ligasse aos antigos deuses celtas e nórdicos, dando-lhes uma herança
divina” (POLACHINI, 1984, p.24). E, de maneira geral, o que podemos
salientar da obra de Tolkien, que apresenta elementos maravilhosos do
medievo, é que ela combina elementos de um homem do século XX que
sofreu em participar da Primeira Guerra Mundial e de elementos medievais,
frutos de seu estudo, de modo bastante imbricado (DE DECCA, 2000).

A outra autora em questão, Joanne K. Rowling, possui bacharelado em


Artes Francesas e em Estudos Clássicos, pela Universidade de Exeter.
Segundo a mesma, leu os livros de Tolkien durante a faculdade (PARKER,
2012, s.p.) e é fortemente influenciada pelos escritos da ativista dos
direitos humanos, Jessica Mitford e também tem no seu hall de autores
favoritos, Clive S. Lewis, Paul Gallico, Terence White e Jane Austen
(ROWLING, 2006, s.p.).

Sobre o contexto de produção bastante diferente dos autores já citados, a


autora se insere no fim da Guerra Fria, e no início de uma série de
discussões acerca de igualdade racial e direitos humanos. Rowling é
filantropa em prol do combate à pobreza e à desigualdade, participando de
inúmeros eventos para arrecadar fundos para ONGs como os Médicos sem
Fronteiras. Tais discussões sobre preconceito e desigualdade podem ser
evidenciados pela divisão de bruxos apresentada através da personagem
Hermione Granger, Lilian Potter, Severo Snape e o próprio Tom Riddle –
nome de Lord Voldemort –. Tal apresentação é imbuída de mensagens
como não importa onde você nasceu, mas o que você é, mas, talvez, a
principal mensagem, e comum a todos os citados seja que alguém da
“camada baixa”, “desigual” perante a uma aristocracia dominante – não em
maioria, mas em poderio social – pode ser detentor de conhecimentos
mágicos muito mais complexos e intensos em comparação a quem nasceu
em uma família “tradicional” de bruxos.

Colocadas as bases de Tolkien e Rowling que poderiam se relacionar com


um conhecimento de literatura medieval, ou inspirada em tal cultura, e,
também, parte de seus contextos históricos como partes fundamentais para
a adaptação e ressignificação dos elementos dessa cultura medieval,
traçaremos os paralelos possíveis entre os tempos históricos distintos e
ambos os autores. É importante destacar aqui, a importância das
adaptações cinematográficas em compor tais personagens citados, uma vez
que vivemos em uma cultura ricamente visual e a maioria conhece as
narrativas fílmicas em detrimento das narrativas literárias.
Segundo estudos de Santiago Barreiro (2014, s.p.), em alguns escritos
nórdicos antigos, da região da Escandinávia Medieval, os elfos, álfar, seriam
seres associados às características de seres detentores de luz e de boa
saúde (BARREIRO, 2014, s.p.). Isto posto, os elfos de Tolkien se
Aprendendo assemelham muito mais aos elfos descritos nas literaturas da Escandinávia
História: Medieval, sendo seres altos, de boa aparência e belos na Terra Média, além
ENSINO & de serem bons arqueiros – associação muito recorrente também em jogos
MEDIEVO de RPG –, enquanto os elfos de Rowling são pequenos, feios e feitos de
Página | 104 escravos e inferiores pelos socialmente ascendidos, tendo em comum,
somente, as orelhas pontiagudas e a “raça”.

Já os velhos conselheiros mágicos, Dumbledore e Gandalf, são similares em


muitos aspectos. Ambos usam vestimentas longas, cabelos e barbas longas
e chapéus pontiagudos. Ademais, tais magos causam, ao longo da
narrativa, a sensação de mistério em aparecer e desaparecer
repentinamente. Ainda no que tange suas similaridades, ambos ajudam um
herói juvenil em guerras, sendo reconhecidos pelo papel de conselheiros,
sábios e poderosos dentro e fora de batalha. Possuem vínculos com a
natureza, como o fato de falar línguas de seres fantásticos que habitam as
florestas como Dumbledore falando serêiaco e Gandalf se comunicando com
as águias gigantes e, tais características, assemelham-se em partes com os
druidas da Antiguidade Tardia (BUENO, 2018).

Mas o que seriam os druidas? Estudos apontam que os druidas, nos


registros escritos de diversos pensadores como Amiano Marcelino, Júlio
César e Plínio, executavam atividades que variavam entre: juízes, médicos,
mentores da filosofia ética, conselheiro de reis, poetas, sábios, intelectuais,
participantes de guerras e executores de funções religiosas (LUPI, 2012,
p.71-72). Resumidamente, “os druidas eram intelectuais [...] tinham
especial sabedoria acerca da natureza em geral tanto da astronomia e
cosmologia como dos reinos animal e vegetal; e exerciam funções jurídicas,
e políticas além das pedagógicas” (LUPI, 2012, p.74). Tais características
descritas por pensadores da Antiguidade Tardia e assimiladas e adaptadas
ao longo da história, podem ter inspirado a formação de um arquétipo de
mago, um modelo ideal que é visível tanto em Dumbledore, quanto em
Gandalf.

Dos dragões podemos salientar que Smaug, do ‘O Hobbit’ é muito mais


imponente e malvado, lembrando mais os bestiários medievais que Norbert,
que é colocado sob a lente de uma visão romantizada dos animais
“fantásticos”, principalmente em relação em como Rúbeo Hagrid os vê –
como seres incompreendidos –, melhor explorado, com outros personagens,
na obra ‘Animais Fantásticos e Onde Habitam’ da mesma autora.

Por fim, destaquemos os Goblins. O termo vem do francês antigo gobelin,


que, por sua vez, origina-se no latim medieval gobelinus, que pode estar
relacionado a cobalus, do grego kóbalos, significando o mesmo que
enganador ou desonesto (SIKES, 1998, s.p.). Na mitologia Tolkieniana, os
Goblins, são chamados de Orcs. Os mesmos atacam as minas escuras de
Moria, matando todos os seres existentes no mesmo local. Em O Hobbit, de
John Tolkien, há a inserção de Hobgoblins que são uma ameaça maior e
mais forte que os próprios Goblins. Entretanto, Tolkien comentou em uma
de suas cartas, que após estudar mais a fundo o folclore inglês medieval,
ele tinha concebido que a afirmação de que Hobgoblins seriam uma espécie
maior de Goblins, é, na verdade, o inverso do original, sendo assim, Tolkien Aprendendo
então rebatizou-os de Uruks ou Uruk-hai, numa tentativa de corrigir seu História:
erro. ENSINO &
MEDIEVO
Já na literatura de Rowling, os Goblins são chamados de duendes. Eles são Página | 105
os responsáveis pelo banco Gringotts, onde fica todo o ouro do mundo
bruxo. São gananciosos, enganadores, mas são bem mais baixos que os
Goblins de Tolkien. Um deles inclusive, nomeado Grampo, engana Harry e
seus amigos no último livro, deixando-os sozinhos no cofre de Belatriz
Lestrange. Todavia, apesar de serem diferentes em modus operandi e em
altura, ambos os Goblins são feios, têm orelhas pontudas e são
personagens associados à vilania.

Entretanto, é importante ressaltar que o entendimento de Idade Média que


podemos ter a partir dessas literaturas e adaptações contemporâneas não
se trata de conhecimento apenas do próprio medievo, mas de uma
“amálgama de várias Idades Médias [que são] evocadas em um mesmo
espaço diegético” (SILVA, 2016, p.20).

Ao notarmos que os autores conheciam literaturas típicas do próprio


período, conseguimos compreender o diálogo proposto através de uma
adaptação e ressignificação de elementos medievais, imbricando seu
contexto de produção, outras leituras, seu próprio estilo literário e sua
própria vida como inspiração para às construções narrativas. Como
Groebner aponta “esta época [a Idade Média] foi literalmente criada através
de desejos, por mais de centenas de anos e, desde então, ela é projetada,
esboçada, equipada e mobiliada com os desejos” (GROEBNER, 2008, p.11
apud. SILVA, op. cit., p. 3-4). Em outras palavras, as obras não lidam
somente com as leituras de obras medievais, mas também, e
principalmente, com todos os elementos trabalhados, construídos e
ressignificados no decorrer dos tempos, e só assim puderam existir e fazer
sentido na atualidade.

As figuras dadas como medievais, no decorrer da História, vieram se


transformando de acordo com o contexto histórico. Entretanto, para além
desse contexto, as influências medievais são de extrema importância em
sua constituição. Através da adaptação do medievo, os diversos
personagens passaram a existir no imaginário literário, bem como através
da ressignificação, esses ganharam novas habilidades e características que
se tornaram fundamentais dentro da sociedade de construção do
personagem, como o ser mágico e conselheiro ser associado a velhice,
enquanto alguns magos medievais são colocados como jovens (SILVA,
2016).
Ademais, os próprios escritos medievais também se transformam com o
contexto e estilo dos autores. As localidades, os contextos políticos, as
emergências sociais e o meio cultural são distintos e tais elementos são
importantes para a construção das obras que se configuram enquanto
literatura e história.
Aprendendo
História: Em suma, os personagens que tocam os imaginários de forma a
ENSINO & apresentarem-se como medievais, colocados nos suportes contemporâneos
MEDIEVO tem sua inspiração em literaturas medievais, mas quanto mais distante a
Página | 106 obra se configura do período de inspiração, menos medieval é e, portanto, o
que é preservado e difundido em tais literaturas e, até mesmo, em suas
adaptações cinematográficas posteriores, são as noções de Idade Média –
Idade das Trevas, o Medievo Romantizado e tantas outras visões que são
formuladas e reformuladas através das transformações do “medieval”
difundido pela cultura em maior escala e, pelas artes, mais especificamente
–, bem como o contexto vivido pelos autores, suas bagagens e suas lentes.

Referências
Lunielle de Brito Santos Bueno é mestranda em História Social pela
Universidade Estadual de Londrina, graduanda de Licenciatura em Filosofia
pela mesma universidade, bolsista pelo Laboratório de Estudos dos
Domínios da Imagem – LEDI.

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______. Harry Potter e as relíquias da morte. São Paulo: Rocco, 2015.
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Aprendendo
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______. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ZUMTHOR, P. Falando de idade média. São Paulo: Perspectiva, 2009.


A IGREJA UNIVERSAL E SUA LUTA CONTRA O SATÃ ATRAVÉS DA
INDUMENTÁRIA: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO MEDIEVALISM
Marcos Vinícius da Silva Ramos

Aprendendo O título, obviamente, causa estranheza às demais pessoas. Afinal, qual a


História: relação entre a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977, com o
ENSINO & medievo? Por mais que tal associação soe como absurda e anacrônica,
MEDIEVO defendo que das tantas apropriações que a Igreja Universal faz, a sua
Página | 108 principal – pilar de sua teologia – é a divisão dicotômica do mundo, onde
Deus e Satã guerreiam por seu controle – conceito tipicamente medieval.
Como detentores da verdade e possuidores de uma missão – esta que fica
clara no nome da instituição -, que é lutar contra o mal e vencer a guerra, a
Igreja arroga para si esta responsabilidade de instruir a ecclesia de várias
formas. Ao analisar o Manual do Serviço Sagrado fica explícito que uma das
maneiras que a Universal encontra para lutar contra as forças demoníacas é
aconselhando seus obreiros, homens e mulheres que têm suma importância
no trabalho iurdiano, a controlar seus corpos, sobretudo, suas roupas. Não
cabe a mim trazer conclusões ou esvaziar o assunto, pelo contrário, é de
interesse, a partir desta análise, expor reflexões e possíveis hipóteses
abarcando como teoria o medievalism.

Medievalism, ecclesia e controle do corpo


Como supracitado, tenho como referência teórica o medievalism. Tal teoria
sofreu resistência acadêmica e, até hoje, é vista com maus olhos por
determinados grupos. Por mais que a tradicional idade média não exista
mais cronologicamente, os discursos baseados em fantasias e imaginários
continuam presente até hoje no Ocidente. Oponho-me a aprofundar o
debate sobre o início e fim (se é que existiu e, se existiu, teve fim), alta ou
baixa idade média, principalmente às “diferentes idades médias”, levando
em conta os contextos sociais, culturais, políticos e geográficos. Entretanto,
é inegável que ainda há de maneira vívida um imaginário, ou, em outras
palavras, um fetichismo sobre as idealizações do medievo. Desde grupos
religiosos reacionários que sonham com uma volta à “época áurea” da
igreja a grupos que usam como exemplos sociedades medievais para
justificar e legitimar supostas “vocações guerreiras” através de discursos
beligerantes. Existem inúmeras pesquisas na academia norte-americana
que trazem tais reflexões e mostram-nos como a idade média ainda é viva
nos filmes, séries, jogos e grupos sociais. Portanto, mais uma vez afirmo,
entender o Manual do Serviço Sagrado como algo tipicamente medieval não
me parece algo absurdo, principalmente em relação à lógica iurdiana que vê
o outro – não membro de sua igreja – como força maligna que deve ser,
por ora combatido, por ora convertido. Por mais que Edir Macedo, seu líder,
veja o catolicismo como um de seus maiores rivais religiosos, mais uma
vez, apropria-se de uma ideia tipicamente católica-medieval e a põe em
prática. Portanto, ao falar de medievalismo, alinho-me a Leslie J. Workman,
tendo-o como um “estudo da Idade Média, da aplicação de modelos
medievais às necessidades contemporâneas e a inspiração da Idade Média
em todas as formas de arte e pensamento” (WORKMAN, 1987, p.1 apud
D’ALCÂNTARA, 2017, p. 14).
Como já citado anteriormente, a luta contra o diabo é o pilar doutrinário da
teologia da Igreja Universal do Reino de Deus. Esse tema está ligado aos
cultos (momentos de exorcismo), campanhas (tirar sua família das mãos do
diabo) e, neste caso, à roupa. Entretanto, tal lógica não é exclusiva à
Universal, mas às igrejas pentecostais e neopentecostais em geral Aprendendo
(AMARAL, 2019). A instituição traz, intencionalmente ou não, o conceito de História:
ecclesia para seus fiéis, voltando-se às concepções agostinianas, nas quais ENSINO &
o mundo fora divido em dois campos opostos e assimétricos– Deus e Satã, MEDIEVO
ou seja, a luta do bem contra o mal, da luz contra as trevas, do espírito e Página | 109
da carne (GUERREAU, 2002, p. 447 apud AMARAL, 2019). Uma das formas
dos obreiros lutarem contra o mal, além de estarem nas reuniões,
assistirem aos pastores, aos presentes nos cultos e “lutar” fisicamente
contra os demônios quando preciso, é submetendo-se a uma série de
normas e práticas contidas no manual. Ao não se encaixar nos padrões
propostos pelo manual, o obreiro estará colocando em risco a imagem da
igreja e sua vida, pois o inimigo está sempre ali, esperando falhas que
possibilitem suas investidas. A única forma de não sucumbir é estando
atento e levando em consideração o aconselhamento e instrução da igreja,
submetendo-se o princípio de autoridade (auctoritas) estabelecido pela
igreja (AMARAL, 2019). Ao se submeter aos padrões por conta da
autoridade espiritual que a instituição possui, os obreiros aceitam
interferência em seus corpos. Durante a Idade Média, a simbologia sobre o
corpo existiu de várias formas. De órgãos considerados nobres e mais
importantes (coração, cabeça) ao controle de sentimentos, emoções,
desejos etc. Nos relatos hagiográficos analisados por Juliana Prata da Costa
e Wendell dos Reis Veloso, o corpo, os sentimentos e a forma que os bispos
lidavam com estes era crucial à imagem que deveria ser construída em
relação a eles, sobretudo nas hagiografias. Para os autores, “o corpo é um
mecanismo para a afirmação da santidade destes bispos e que, portanto,
precisa estar de acordo com a dignidade eclesiástica em questão” (Costa e
Veloso, 2018, p. 261). O cargo de obreiro é um dos mais importantes da
igreja, pois é este que, grosso modo, faz o “trabalho pesado”. No site
institucional da Igreja é declarado que ao ser consagrado a tal cargo, o
homem ou a mulher que o ocupa declara guerra contra o diabo e deve lutar
com todas as armas possíveis para retirar vidas do jugo demoníaco
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/blog/2013/09/06/por-que-ser-
obreiro/). Porém, o controle do corpo, além de exigir uma vida ascética,
exige de roupas limpas à determinadas cores de peças íntimas. O controle
do corpo, na lógica iurdiana, dá-se pelo regramento da roupa, dos cabelos,
da maquiagem e do tamanho da barba. Ou seja, as vestes do obreiro tem
valor espiritual dado pelo próprio Deus
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/).
O controle das roupas, adornos e, no geral, da aparência, resultam no perfil
do obreiro ideal que representa a imagem do próprio Deus.

Feitos à Sua imagem e semelhança


Normalmente é de se esperar de um grupo religioso que arrogue para si
uma autoridade acima de qualquer lei humana. O que, grosso modo,
diferencia o Manual do Serviço Sagrado de outros manuais, cartilhas ou
aconselhamentos, é seu caráter sobrenatural. Não há, para a Universal,
interferência humana posta neste manual. Cada palavra, ordenança e
conselho é diretamente dada por Deus. Cabe à instituição fazer o papel
mediador e entregá-los aos obreiros. Questões ideológicas, de gênero ou,
até mesmo, aproximações de lógicas empresariais – roupas adequadas,
Aprendendo corte de cabelo, cor de unhas – de maneira alguma fazem parte do
História: documento em questão. Em todo momento, a característica humana é
ENSINO & minimizada em detrimento da característica divina que é maximizada, pois,
MEDIEVO “Conforme cremos, o Espírito Santo dirige toda a Obra e escolhe Seus
Página | 110 servos para cumprirem Seus propósitos. Sabedores disso, não há
necessidade de questionar algumas limitações colocadas aqui como normas,
porque a obediência a elas trará resultados satisfatórios e, principalmente,
agradará a Deus, de forma que o obreiro será capacitado para a realização
do Serviço Sagrado” (ibdem).

Como exposto no texto, não há espaço para questionamentos. O princípio


de auctoritas é visível, pois a igreja não produziu tal manual para
simplesmente obter controle sobre seus obreiros e fiéis, mas, através da
revelação, teve acesso ao que deve ser cumprido. O capital simbólico de
representante divino que a Universal arroga para si é encontrado facilmente
em todo manual, nas suas produções literárias e midiáticas. Ao se adequar
aos tais padrões, segundo o manual, o obreiro estará apto para ser um
representante de Deus na terra e estará revestido de uma unção que o
ajudará a lidar com os problemas que lhe chegarão, inclusive, encontrará
formas, em sua pequenez, para lutar contra Satã.

Ao se adequarem a tais padrões, o obreiro, além de representar a


personificação do sagrado e estar apto para as batalhas espirituais que
certamente ocorrerão, este, obviamente, representa a imagem da Igreja
Universal – ou a imagem que a instituição pretende transmitir. Há, no
manual, uma série de cuidados e nuances que são citadas para que a
imagem do obreiro seja algo sublime. Ao seguir os padrões, o obreiro
mostra-se capacitado, escolhido, seguindo uma ideia de predestinação ao
cargo eclesiástico, predominante no medievo. Portanto, mostra-se nobre e
desinteressado de qualquer tipo de retorno monetário. Segundo o Manual,
“A experiência de ser um obreiro ou uma obreira na Iurd, onde se luta
diariamente com os demônios, é a base para que esse trabalho
evangelístico, feito com muito amor, cresça cada vez mais em todo o
mundo. Os obreiros têm uma atuação indispensável, porque são os cartões
de visita da Igreja e desempenham as mais variadas funções. Fazem tudo
isso por amor a Jesus. Não recebem salário; é um trabalho voluntário. Para
os que são convertidos, ser obreiro é considerado um privilégio, porque
compreendem que são escolhidos por Deus para esta missão”
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/).

Em suma, ser obreiro é um cargo valiosíssimo, pois, além de ser o “cartão


de visita da igreja”, só é possível sê-lo pois as razões do trabalho não são
mundanas; exige amor a Jesus, voluntariedade e, principalmente, vocação.
O manual, na lógica iurdiana, ao ser seguido, é o diferencial: é o trânsito
necessário que transforma o obreiro a imagem e semelhança do Deus
neopentecostal.

Servos fiéis: do cabelo à barba, da unha ao sutiã


É sabido que a figura masculina, no cristianismo, é de suma importância. Os
homens são os sacerdotes, provedores do lar e protetores de suas famílias. Aprendendo
Para Macedo, “hoje, o homem de Deus simboliza o Israel” (MACEDO, 2002, História:
p. 85). Portanto, o homem está, numa lógica hierárquica, somente abaixo ENSINO &
de Deus. Além das recomendações sobre etiqueta e tratamento, como dar MEDIEVO
“boa noite” e “bom dia”, falar baixo, sempre ser simpático, cortês, discreto Página | 111
e sutil, as normas impostas aos homens não são tão específicas quanto às
mulheres, mas, além da exigência da limpeza para com o uniforme, três
cuidados especiais são propostos aos obreiros: unha, cabelo e barba. As
unhas, devem ser mantidas sempre cortadas e limpas; os cabelos,
igualmente. Devem estar sempre cortados e arrumados – cabelos grandes,
obviamente, são proibidos. Sobre a barba e/ou bigode, o conselho é mais
específico: não é aconselhado usá-los, mas, se for opção do obreiro adotar
tal visual, deve seguir determinados cuidados “para não transmitir uma
imagem de descuido ou falta de higiene”
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/). O obreiro deve
escolher “um modelo adequado para seu tipo de rosto”; barbear-se
diariamente, principalmente nas “áreas do pescoço e bochecha, onde a
barba não deve crescer”; deve estar sempre aparando “os pelos mais
longos semanalmente ou quinzenalmente, de acordo com a necessidade
pessoal”; deve, também, “observar o comprimento simétrico dos fios”; por
fim, se não é possível, por parte do obreiro, um horário diário para estes
cuidados, não se recomenda o uso da barba e do bigode (ibdem).

Como supracitado, o obreiro ideal aceita ter seu corpo controlado, pois,
grosso modo, as exigências feitas ali estão sob o princípio da autorictas
empregado pela IURD. Não cabe aqui sobre a aceitação ou não destas
normas, mas é interessante entender que, teoricamente, aceitar tais
padrões e pô-los em prática não é problemático por parte do obreiro. Esta é
a chance dos homens mostrarem o quão são fiéis e obedientes, vestindo a
blusa certa e cuidando de seus cabelos e barbas. Tudo isto é uma forma de
glorificar a Deus e, principalmente, diferenciar-se do pagão. É importante,
também, ressaltar que a sujeira é vista como algo diabólico, demoníaco.
Portanto, tais exigências devem ser feitas para que fique explícito a
separação do obreiro – representante da igreja e de Deus – e do homem
que está ali para ser resgatado do inferno. Segundo Macedo, “se Deus não
é visível na pessoa, então não houve batismo com o Espírito Santo”
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/).

Na parte do Manual dedicado às mulheres, as especificações exigidas são


mais complexas do que em relação aos homens. Não é novidade que a
figura feminina, na teologia cristã, pode ser causadora de grandes debates.
Ora vista como a principal personagem e culpada na queda adâmica, ora
vista como alguém que é capaz de gerar vida, o papel da mulher também é
controverso na teologia da Igreja Universal. Segundo Edir Macedo, fundador
e líder máximo da Igreja, “a mulher faz e desfaz de um homem, mas uma
mulher de Deus faz homens de Deus” (MACEDO, 2009, p. 4). Na teologia
iurdiana, a mulher é essencial no tocante à espiritualidade do homem. É
vista como uma parceira que pode e deve levá-lo ao encontro de Deus.
Porém, ao mesmo tempo que a figura feminina pode levar o homem ao
mistério divino, pode, também, guiá-lo ao extremo oposto. Paradoxalmente,
Aprendendo pode ser uma bênção ou uma maldição – isso dependerá, obviamente, se
História: esta é uma mulher de Deus ou pagã.
ENSINO &
MEDIEVO “O sucesso de um homem, não importando a profissão que ele exerça,
Página | 112 depende muito da mulher que faz parte da sua vida. Ela é, na verdade, co-
responsável tanto pelo seu sucesso quanto pela sua desgraça. O rei
Salomão, com toda a sua sabedoria e poder, não pôde resistir aos caprichos
e envolvimentos das mulheres. Acabou perdendo toda a sua glória
justamente por causa delas” (ibidem, p. 10).

Portanto, como mencionado anteriormente, cabe a mulher entender tal


responsabilidade e saber lidar com esta. O uso de maquiagem, adornos ou
determinados tipos de roupa não são práticas pecaminosas, segundo a
IURD, mas deve haver um, por parte da mulher, o reconhecimento de que
existe um limite estabelecido que deve ser cumprido. No manual, não resta
dúvidas de que a obreira, além de serva de Deus, deve ser vista como um
exemplo referencial para as demais mulheres. Esta ideia aparece em outras
ocasiões no pensamento iurdiano.

“[...] É dever de toda mulher, especialmente se ela é de Deus, procurar ter


a melhor aparência possível, para se apresentar na igreja ou em qualquer
outro lugar [...] As vestimentas sensuais e eróticas são condenáveis pela
Palavra de Deus, uma vez que excedem o bom senso, além de fazerem
transparecer um caráter totalmente inverso ao de Deus. As mulheres que
deixam extravasar sua sensualidade, quer através do seu comportamento,
quer de suas vestimentas, agem desta forma porque têm um espírito
demoníaco, chamado pomba-gira. Por acaso não procedem assim as
prostitutas quando querem atrair clientes?” (ibdem, p. 37).

Mais uma vez, Macedo faz a oposição entre mulher cristã e pagã. Atribui a
sexualidade desenfreada e o erotismo a um espírito demoníaco. As
exigências feitas para as obreiras no Manual mostra-nos como a mulher
ideal – a obreira – deve combater e distanciar-se da mulher pagã através,
principalmente, das roupas e dos costumes.

Além dos cuidados básicos de limpeza e conservação para com o uniforme,


as obreiras devem tomar cuidado com a maquiagem. É recomendado que a
base, corretivo e pó compacto devam combinar com o tom de pele da
mulher, “de maneira que fique natural”. Batons e gloss são permitidos
apenas se as cores forem suaves. A sombra pode ser usada se com cores
discretas, “neon, verde, amarelo, glitter e outras que não harmonizam com
a função” são proibidas
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/).
Sobre as unhas, segue-se a mesma lógica da maquiagem: somente cores
neutras. As unhas devem estar sempre feitas, pois “se o esmalte começar a
descascar, deixará uma aparência de desleixo”. Desenhos e decorações são
proibidas por não combinarem com o uniforme, somente o estilo
francesinha tradicional é permitido. Por fim, as unhas devem estar sempre
limpas e cortadas para “manter um aspecto de higiene e saudável”, pois Aprendendo
estas podem machucar as pessoas, “sobretudo nas reuniões de libertação” História:
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/). ENSINO &
MEDIEVO
Em relação ao cabelo, as exigências são semelhantes. Sempre prezando Página | 113
pela discrição e harmonização em relação ao uniforme, as cores fortes são
proibidas, pois podem escandalizar. Determinados cortes e penteados
também são proibidos. Cabelos presos são recomendados como ideais,
porém, na santa ceia, é obrigatório o uso do penteado “rabo de cavalo”.
Por fim, há orientação para o uso de peças íntimas: “calcinha (grande, estilo
calçola) e sutiã cor de pele”.

Doravante, há recomendações de higiene para ambos: higiene bucal,


recomendando a escovação da língua e dentes; uso de desodorantes e
antitranspirantes; uso de perfume que deve prezar por fragrâncias suaves,
para evitar desconforto nas pessoas, “como espirros, alergias, enxaquecas”.
O perfume deve ser aplicado na “nuca, atrás das orelhas, pulsos, dobras
dos cotovelos e atrás dos joelhos” (ibdem).

Em suma, ao trazer tais exigências que em determinadas óticas pareçam


absurdas, o Manual mostra como estas questões são sensíveis à Universal e
a imagem que esta pretende produzir sobre si. Ao propor – ou coagir – o
obreiro a se comportar e controlar seu corpo e sua indumentária, a IURD
mostra que mais uma frente está aberta na guerra contra Satã.

Ao analisar a sociologia do neopentecostalismo, Ricardo Mariano traz


reflexões sobre como os novos movimentos – tem a IURD como o principal
– rompem com antigas tradições e costumes. Se antigamente os crentes
eram facilmente identificados e estereotipados, isto não acontece mais,
segundo o autor. Para o sociólogo, “os neopentecostais se vestem como
todo mundo” (MARIANO, 2014, p. 210). O Manual do Serviço Sagrado
mostra-nos que sim, os neopentecostais, principalmente os membros da
Igreja Universal têm uma maneira diferenciada e correta de se vestir. Esta,
talvez, por seu caráter visual, seja a forma mais simples de distinguir o
pagão do iurdiano, pois, como diz Edir Macedo, “quando alguém de fora ver
você uniformizado, ele irá respeitá-la como uma pessoa de Deus”
(https://sites.universal.org/obreirosuniversal/blog/2017/06/11/santidade-
ao-uniforme/).

Novamente, a Universal mostra-nos que conceitos tipicamente medievais e


abandonados pelo catolicismo retornam à sua teologia. A guerra entre o
bem e mal deve ser combatida de várias formas – nos cultos, campanhas e
nas roupas. O obreiro idealizado pelo Manual é a personificação do homem
e mulher de Deus, que controlam seus corpos, obedecem à auctoritas e
lutam contra o mal.
Referências:
Marcos Vinícius da Silva Ramos é graduando em História pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro e orientado por Clinio de Oliveira Amaral;
participante do LABEP (Laboratório de estudo dos protestantismos).
Aprendendo
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Santo: a exemplaridade da fabricação de santidade na obra “o grande
livramento” de Valdemiro Santiago. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso
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Janeiro – Seropédica, 2017.

COSTA, Juliana Prata da; VELOSO, Wendell dos Reis. O corpo como local de
forja das identidades episcopais em reinos sucessores da Primeira Idade
Média: as referências em textos hagiográficos visigodo e franco do século
VI. Roda da Fortuna, vol. 7, n. 1, pp. 244-264, 2018.
CONHECER PARA OPERAR: O SABER DOS MÉDICOS-CIRURGIÕES
MEDIEVAIS COM BASE NA OBRA DE HENRI DE MONDEVILLE
(FRANÇA, SÉC. XIII – XIV)
Mauricio Ribeiro Damaceno

Aprendendo
O presente trabalho tem por objetivo destacar as novas habilidades exigidas História:
aos cirurgiões do século XIII e XIV, sobretudo na França, com o advento do ENSINO &
ensino universitário, com base na análise da obra ‘A Cirurgia’ de Henri de MEDIEVO
Mondeville. Foi no final do século XII e durante o século XIII, no ocidente Página | 115
europeu, que se presenciou a organização de numerosas corporações de
professores e estudantes, inicialmente chamadas de Estudos Gerais e,
posteriormente, de Universidades (SOUSA, 1996, p. 207-215).

As universidades representaram, ao longo do século XIII e XIV, a instituição


mais expressiva na preparação e criação cientifica e uma das ferramentas
indiscutíveis da renovação intelectual da sociedade europeia. Elas definiram
as fronteiras de criação intelectual no que se refere à medicina e a ciência.
Assim, papas, reis, imperadores, bispos e membros da burguesia,
perceberam que o conhecimento mais aprofundado da natureza, significava
progresso e, consequentemente, o lucro (BALLESTER, 2001, p. 106).

A medicina praticada na Europa, sobretudo na França, recebeu muita


influência do mundo árabe. Os hospitais como instituição, onde podiam
acontecer os tratamentos e as pesquisas médicas, foram invenções do Islã
e serviram como base aos europeus. Fazendo uso das pesquisas clássicas
como as de Galeno, os árabes obtiveram avanços no campo da medicina
superiores aos conhecidos por outros povos. O saber aristotélico até então
renunciado, passou a ser aceito. Os médicos muçulmanos colaboraram
inclusive com manuais médicos que serviram como base de aprendizagem a
ponto do árabe passar a ser a segunda língua obrigatória. A primeira
continuou sendo o Latim, usado na escrita dos livros didáticos, assim como,
nas preleções e, obrigatoriamente, na conversação entre os estudantes
(GOODY, 2011, p. 54-60; HASKINS, 2015, p. 85).

O contato com escritos de autores gregos como Aristóteles, Galeno,


Hipócrates, Ptolomeu (90-168), etc. e com árabes e judeus como Avicena,
Averróes (1126 - 1198), Al-kindi (801–873), Maimônides (1138 - 1204) e
outros deu origem, entre os intelectuais, a um novo tipo de relação entre o
conhecimento religioso e o raciocínio humano. Esse saber tinha como base,
disciplinas como a geometria, astronomia, astrologia, medicina, ética e
outras diferentes das baseadas na Sagrada Escritura e dos Santos Padres.
Esse contato levou os profissionais da saúde, as noções dos fenômenos que
afetavam o corpo humano, chegando a novas soluções práticas, graças ao
auxílio da filosofia natural e dos novos saberes a respeito da natureza
(BALLESTER, 2001, p. 80-81).

No entanto, é necessário fazer uma observação: o contato com os árabes,


judeus e outros povos orientais, e consequentemente, com obras de Galeno
e Hipócrates (autoridades da medicina antiga), não significou que a
medicina francesa estariam ressuscitando estas obras. Primeiro, porque
esta redescoberta estaria sendo feita em partes por causa dos árabes.
Segundo, porque estes povos, apesar de terem prestado grande
contribuições, também receberam e aceitaram conhecimentos vindos do
extremo Oriente. E terceiro, porque estes saberes se depararam com
Aprendendo questões religiosas e, desta forma, a medicina praticada nas universidades
História: só refloresceu quando se desvincula dos dogmas da Igreja. Essas obras
ENSINO & antigas e as traduções delas foram importantes por estarem resgatando e
MEDIEVO transmitindo um conhecimento acumulado (GOODY, 2011, p. 68-71).
Página | 116
Jacques Le Goff e Nicolas Truong (2006 A, p. 114-115) afirmam que
diferente do que foi difundida por Roger Bacon (1214 - 1292), a medicina
da Idade Média não se ateve a algo livresco, onde os remédios eram os
mesmos pregados por Galeno. O que ocorreu foi que, devido às pressões
ideológicas da Igreja, os médicos ocultaram-se por traz da “máscara de
Galeno”, e sempre que se deparava com algo novo, dizia-se que havia sido
obra de Galeno ou de outras autoridades antigas.

Os cirurgiões medievais, a exemplo de Henri de Mondeville (1260-1320),


descobriram que a sociedade atribuía grande importância ao conhecimento,
e por isto, este profissional, teria se dedicado ao mundo acadêmico se
formando em Medicina em Montpellier e se especializando em cirurgia em
Bolonha. Escrever seria uma forma de ganhar status. Assim, entre os anos
de 1306 e 1312, Mondeville escreveu os dois primeiro tratados de sua obra
‘A Cirurgia’, levando em conta a obra ‘Cânon (Al-Qanun)’ de Avicena
(tradução de Gerardo de Cremona). No ano de 1316 sua saúde se
deteriorou e com relatos de seu medo da morte, decidiu continuar a
escrever, dando inicio ao terceiro tratado que não foi concluído em
decorrência de seu estado de saúde (CLARKE, 1931, p. 459 – 461;
MCVAUGH, 2014, p 242 – 250; ICARD, 2010, p. 13).

Do terceiro, Mondeville pulou para o quinto tratado, que é considerado um


dos mais inovadores, sendo feito a pedido dos alunos e servindo como um
livro de receitas de medicamentos e drogas úteis ao cirurgião, e seguindo a
nova prática de concluir um manual com uma seção farmacológica e de
iniciar com a anatomia. O quarto tratado é deixado de fora, pois Henri havia
planejado escrever sobre os tratamentos das luxações e fraturas, mas a
tuberculose provavelmente o impediu, levando-o a morte por volta de
1320/25, aos 65 anos. Sua obra ficou inacabada. (MCVAUGH, 2014, p 250;
ICARD, 2010, p. 13).

Transmissor da cirurgia italiana para o mundo da medicina parisiense, Henri


de Mondeville defendeu vigorosamente o progresso que é a introdução da
cirurgia escolar. Como um valoroso testemunho do seu tempo, defendeu
tanto cirúrgicas quanto médicas, a necessidade de uma teoria prática para
dar dignidade às práticas manuais. Segundo ele a cirurgia constitui um
processo como todos os outros, pelo menos nas operações que eram feitas
com ferro e fogo. Não havia necessidade de se surpreender, já que estas se
aplicam em doenças mais complicadas, isto é, que não poderiam ser
tratadas com outros procedimentos, como por exemplo, costurar a ferida,
abrir os abscessos, reduzir fraturas e outras coisas semelhantes. A
proeminência da cirurgia na medicina aparece porque lida com as doenças
difíceis, no tratamento das quais a medicina é falha (LECOURT, 2004, p
233).

As inovações de Mondeville vão além das suas práticas. O escrito ‘A Aprendendo


Cirurgia’, deixa uma atualização das práticas cirúrgicas, para alunos e História:
sucessores. Mostra que Henri não considerava a cirurgia como apenas uma ENSINO &
prática manual, mas como uma ciência teórica e uma disciplina intelectual. MEDIEVO
A ambição de Mondeville não era, na verdade, de escrever um livro novo Página | 117
sobre cirurgia, mas desenvolver uma ciência cirúrgica real, ligando a teoria
e a prática, mais intimamente do que seus predecessores italianos. Henri de
Mondeville tentou aplicar à cirurgia o fruto das reflexões medicas de seu
tempo, sobre a transição dos princípios gerais para a ação particular
(ICARD, 2010, p. 16-17; JACQUART, 1998, p 49).

O reconhecimento da profissão somado ao conhecimento adquirido nas


universidades, em uma época onde muitos ainda consideravam os
cirurgiões como meros trabalhadores manuais, trouxeram novas exigências
a estes profissionais, que viriam a se diferenciar dos tradicionais cirurgiões-
barbeiros. Segundo o próprio Henri de Mondeville, algumas atitudes e
características eram fundamentais para os bons cirurgiões, tais como:

“[...] ser moderadamente ousado, não para discutir com os leigos, mas
para operar com prudência e sabedoria, e para não realizar uma operação
perigosa antes de ter previsto o que é necessário para evitar o perigo. Deve
ter membros bem treinados, especialmente as mãos, dedos longos e finos,
ser ágil, não tremer, ter todos os outros membros fortes e viris para
executar todas as boas operações da alma. Que ele seja complacente; Que
ele se entregue aos doentes, para não esquecer nada acidentalmente. Que
ele prometa curar a todos os seus pacientes; Que não esconda o caso e os
perigos, se houver, para os pais e amigos. Que se recuse, tanto quanto
pode, as curas difíceis. Que nunca se intrometa em casos sem esperança.
Dê conselhos aos pobres, por amor a Deus. [...] Que trabalhe, tanto quanto
possível para ganhar uma boa reputação. Que conforte o paciente com boas
palavras [...]” (MONDEVILLE, p. 91).

Mondeville destaca que o paciente deveria escolher o cirurgião adequado e


isto só seria possível a partir da observação de suas características. Assim,
o cirurgião deveria ter também uma boa visão, uma rápida engenhosidade,
uma boa memória, bom senso, inteligência saudável e saber como adaptar
às regras gerais aos casos individuais. Além disto, Mondeville utiliza as
ideias de Galeno, afirmando que o cirurgião deve ainda, ser diligente para
visitar o paciente de manhã, à tarde e à noite, se possível, para ver o efeito
dos medicamentos. Deve ainda operar de acordo com os cânones da
medicina e não utilizar de presságios e profecias, ou mesmo feitiços, por
não estarem de acordo com a verdade e por serem proibidos (MONDEVILLE,
p. 173-174).
As obrigações dos cirurgiões também deveriam estar relacionadas ao
cuidado com a cozinha. Assim, cabia a estes profissionais da saúde, verificar
se o chefe não é fleumático, julgar se os pratos estão sem gosto ou
salgados e verificar se não existe outro ingrediente no almofariz
(MONDEVILLE, p. 265-266). Além disto, segundo Mondeville, quatro coisas
Aprendendo são fundamentais ao cirurgião e que devem ser levadas em conta pelo
História: paciente:
ENSINO &
MEDIEVO “[...] não temer o mau cheiro, cortar ou destruir corajosamente como um
Página | 118 carrasco, mentir com cortesia e saber sutilmente arrebatar de estrangeiros,
presente ou dinheiro. O paciente deve escolher um cirurgião que lhe
convém e que sabe respeitar os seus pacientes; saber que um homem fraco
e delicado opera suavemente, levemente e lentamente, fazendo várias
vezes ou em vários dias, o que ele faria em um dia se fosse um homem
robusto; e que deve operar um paciente robusto, violentamente e
corajosamente, mas respeitando os princípios e regras da cirurgia”
(MONDEVILLE, p. 174).

Outra habilidade importante para a prática da medicina sobretudo a partir


do século XIII e XIV, é o uso da anatomia. O seu uso, foi amplamente
defendido por Mondeville, que acreditava que deveria ser uma das aptidões
que o médico-cirurgião deveria ter. Para tanto, ele apontou que:

“[...] é importante para o operador saber, na anatomia, os nervos, veias e


artérias, para que ele não se iluda ou corte um desses órgãos. Isso pode ser
provado por um exemplo: pois um cego trabalha da mesma maneira na
madeira, como um cirurgião no corpo cuja anatomia ele não conhece. O
cego, quando corta a madeira, às vezes é confundido; assim, quando ele
pensa que corta a madeira de acordo com sua largura [...] corta quatro
vezes mais do que ele pensava. Da mesma forma, o cirurgião que não
conhece a anatomia, comete erros nas operações [...]. Como o corpo
humano é objeto de toda arte médica, da qual a cirurgia é o terceiro
instrumento, sabe-se que se o cirurgião faz incisões em diferentes partes do
corpo e em seus membros, sem conhecer sua anatomia e sua composição,
nunca será capaz de operar bem” (MONDEVILLE, p. 14-15).

Ainda no primeiro tratado de sua obra, dedicado exclusivamente para falar


da anatomia dos membros do corpo humano, percebe-se a importância
desta habilidade, sobretudo quando o cirurgião se vê diante de um paciente
lesionado. No caso do crânio, por exemplo, o cirurgião deveria conhecer as
partes deste órgão, sabendo onde começa e onde termina, bem como do
que é feito. Saber que:

“A cabeça humana, no que diz respeito às necessidades do cirurgião, é


composta ou formada por duas partes principais, a saber, a face com suas
partes; e a parte posterior e superior, que se estende desde as últimas
raízes do cabelo para a frente, até as últimas raízes do cabelo para trás.
Agora, essa parte posterior, coberta de pelos, chamada [...] de "pote da
cabeça". Ela é composta de três partes principais: 1ª a parte carnuda, que é
fora do crânio, 2ª do crânio, 3 ª das membranas e do cérebro.”
(MONDEVILLE, p. 26-27).

“A parte carnosa é composta de cinco partes, ou seja, o cabelo, a pele, a


carne, as veias, artérias e nervos, e a membrana que cobre os ossos da
cabeça.” (MONDEVILLE, p. 26-27). Aprendendo
História:
A laceração deste membro, segundo Mondeville, permite ao cirurgião ENSINO &
constatar um mecanismo complexo de veias e nervos, onde percebe-se os MEDIEVO
motivos que o levou a destacar 20 regras fundamentais para a operação no Página | 119
crânio em seu terceiro tratado, onde estão presentes recomendações como:
a proibição da remoção de mais ossos do crânio, do que o necessário para
se retirar o pus; a extração de ossos da forma mais rápida e suave possível
e o cuidado para não se aproximar dos cantos, partes nervosas ou delicadas
da cabeça, para evitar danos à membrana e ao cérebro (MONDEVILLE, p.
334-338). Desta forma, o médico-cirurgião deve saber que:

“[...] na membrana que cobre os ossos, existem veias que vêm do fígado.
Saindo do lado de dentro, elas saem do occipital, através do orifício no osso
basilar, para nutrir a carne externa da cabeça, [...]; penetram no crânio
pela comissura mediana e transportam o sangue nutritivo para o cérebro e
suas membranas [...]” (MONDEVILLE, p. 29).

Um última habilidade exigida aos profissionais da medicina no medievo, é o


conhecimento sobre os usos dos medicamentos. A atenção do homem
medieval para à farmacologia e farmacopeia é inegável. Mesmo antes da
época das universidades, Gilles de Corbeil (1140 – 1224) já falava em
versos sobre as virtudes dos remédios compostos. No ‘Cânon’ de Avicena é
possível constatar os aspectos relativos e imprevisíveis dos efeitos das
drogas. A insistência com a qual as variações foram relatadas de um
individuo para outro, a importância dada a noção de propriedade para
substâncias ou forma especifica, e a descrição do processo de fermentação
do simples dentro do composto (JACQUART, 1998, p 466)

Alguns textos cirúrgicos medievais descrevem o uso de estratos de plantas


para aliviar a dor ou sedar o paciente antes de uma operação. As
prescrições de Avicena e Teodorico trazem uma gama de compostos ativos
e muitos ainda são usados hoje na medicina em formas mais refinadas.
Existem várias provas para o uso do ópio por médicos em estados francos.
O estrato destas plantas era dissolvido em líquidos como o vinho ou
concentrado em esponjas. O vinho parece ter surgido mais efeito do que a
esponja (MITCHELL, 2004, p. 198-204).

O uso de vinho quente e, em seguida, a retirada de objetos, higienizando o


ferimento com panos limpos e fechando as bordas para uma melhor
cicatrização, está entre as recomendações trazidas por Mondeville em sua
obra ‘A Cirurgia’. Por fim, colocava-se emplastro e a cobria com panos
limpos. Dentre os ingredientes que estavam presentes no emplastro consta:
a tanchagem, a betónica, o aipo e a trebentina. Na atualidade, entende-se
que estes componentes possuem propriedades cicatrizante, antibacteriana,
que favorece a coagulação, desinfetante e que combate a febre (BARBOSA,
2012, p. 18). Para a limpeza do ferimento e o tratamento do mesmo,
segundo Mondeville, o médico devia:

“[...] Aplicar uma emplastro de farinha de cevada, água, mel e óleo comum,
Aprendendo moderadamente, fervido e colocado com um pedaço de pano sobre o
História: ferimento. Por cima, coloca-se um grande chumaço seco e espesso, feito de
ENSINO & estopa; Isso fará com que o curativo fique mais firme do que se nós não
MEDIEVO colocarmos nada [...] Devemos costurar os curativos, para eles não se
Página | 120 moverem ou cair, para o paciente não ver, enquanto o curativo
permanecer” (MONDEVILLE, p. 359).

Os procedimentos para evitar a purgação presentes na obra em análise,


também estão ligados ao uso de medicamentos simples e compostos. Os
medicamentos simples são o vinagre, diversos tipos de argila formados
pelas inundações e deixadas nas encostas dos rios, o umbigo de Venus,
alface, alazão, focinho-de-porco, entre outras ervas finas. Poderia ser usado
o suco de tais ervas ou o resultado da destilação das mesmas, em água. Já
os medicamentos compostos, são pomadas e emplastros, feitos com os
medicamentos simples misturados entre si ou com aqueles que combinam
(MONDEVILLE, p. 637-638).

Para Mondeville, tais medicamentos esfriam a ferida e devem ser trocados


frequentemente, assim que começarem a se aquecer. Do mesmo modo,
para o tratamento da purgação, os medicamentos também são simples ou
compostos. Os simples são óleos de rosas, lírios, de murtas e outras
substâncias frias, cremosas, argila e a maioria daquelas que foram listadas
anteriormente. Já os medicamentos compostos, incluem pomadas de óleo
de rosas, gema de ovos misturados, suco de chicória ou plantas similares;
farinha de cevada e entre outras (MONDEVILLE, p. 637-638).

Portanto, motivado pelo ensino universitário e pela valorização de


profissões que até então ficavam a margem da sociedade medieval, a figura
do médico-cirurgião, passa a ser vista com outros olhos. A coragem, o fato
de saber mentir com cortesia, a observação dos efeitos dos medicamentos,
a preocupação com a alimentação e com as características de seus
ambientes de trabalho, se tornaram aptidões fundamentais para o exercício
da profissão. A anatomia humana, também surge como uma das
habilidades (talvez, a principal), pois, nas palavras do próprio Mondeville
“(...) o cirurgião que não conhece a anatomia, comete erros nas operações
(...)” (MONDEVILLE, p. 14-15). Foi graças a estas mudanças que a
medicina e a cirurgia, juntamente com os profissionais da área, puderam
chegar a um patamar considerável, no medievo.
Referências
Mauricio Ribeiro Damaceno é professor efetivo de História pela SEDUC-MT,
graduado em História pela Universidade Estadual de Goiás, Mestrando em
História pela Universidade Federal de Goiás, orientado pela Profª Dra. Dulce
Oliveira Amarante dos Santos (UFG); e Pós-graduando em Ensino de
História pela Faculdade Única de Ipatinga-MG. Aprendendo
História:
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BARBOSA, Pedro Gomes. Curar em tempos de Guerra. Medicina castrense


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CLARKE, Clement C. Henri de Mondeville.Yale Journal Of Biology And


Medicine. New Haven, VOL. 3, Nº 6, p. 458- 481. Julho/1931. Disponível
em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/issues/174723> Data de acesso:
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GOODY, Jack. Montpellier e a medicina na Europa. In: Renascimento: um


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HASKINS, Charles Homer. A ascensão das universidades. Balneário


Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora. 2015, 119 p.

ICARD, P. Henri de Mondeville (1260-1325), “le Père méconnu de la


chirurgie française”: les raisons de l’oubli ? In: e-mémoires de l'Académie
Nationale de Chirurgie. Paris: Académie nationale de chirurgie. 2010, p. 11-
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JACQUART, Danielle. La médecine Médiévale dans Le cadre parisien. Paris:


Fayard. 1998, 587 p.

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. A doença e a medicina. In: Uma


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MITCHELL, Piers D. Medicine in the Crusades: Warfare, Wounds and the
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MONDEVILLE, Henri. A Cirurgia. Tradução de: E. Nicaise, com a colaboração


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Aprendendo
História: SOUSA, Armando Tavares. Curso de História da medicina: das origens aos
ENSINO & fins do século XVI. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1996.
MEDIEVO
Página | 122
“TODOS OS HOMENS DESEJAM SABER!” A CONCEPÇÃO DE
EDUCAÇÃO NO “CONVIVIO” DE DANTE ALIGHIERI
Ronny Costa Pereira

O objetivo desse trabalho é analisar a concepção de educação que Dante Aprendendo


Alighieri expõe em sua obra “Convívio” e compreender os alinhamentos e História:
divergências que o discurso do poeta florentino possuiu com as visões da ENSINO &
função da educação da nobreza, clero e a nova nobreza que crescia na MEDIEVO
Península Itálica. Inicialmente será apresentado um panorama acerca do Página | 123
papel da educação na Idade Média; seguido das ideias apontadas por Dante
sobre as condições que fazem o homem poder seguir o caminho do
conhecimento e se esse conceito de aprendizado é pautado em uma
concepção que somente a aristocracia deveria possuir o direito a educação;
e por fim compreender como os empecilhos que Dante coloca na busca ao
conhecimento está interligado ao contexto medieval e político florentino.

Educação na Idade Média


A educação é e sempre foi um instrumento importante de poder social. Um
maior desenvolvimento da transmissão de valores culturais, de técnicas
avançadas, compreensão de dogmas e mesmo aprimoramento do
sentimento de pertencimento a determinado grupo foram melhor
desenvolvidos por meio da capacidade de escrita, leitura e da transmissão
regular desses ensinamentos. Nesse sentido, a Educação é constantemente
objeto de disputa de grupos e indivíduos que buscam definir sobre o que a
educação deve se debruçar e quais grupos ela deve atingir.

Essas considerações se aplicam ao período medieval, em que o processo de


educação formal esteve ligado aos nobres europeus e principalmente a
Igreja Católica. O ensino ficou subordinado a dinâmica da Igreja, assim
como toda sociedade medieval, que é uniformizada através do cristianismo.
Os monges e bispos se tornam os agentes propagadores dos conhecimentos
eclesiásticos, institucionais e pedagógicos de uma parcela considerável da
população medieval, que vivia nas zonas rurais em sua maioria, e dessa
maneira tinham nas igrejas seu posto de referência aos ensinamentos
oficiais[LE GOFF,2007].

Os nobres possuíam o ensino formal dentre seus hábitos culturais, enquanto


os camponeses e citadinos, que em sua maioria eram analfabetos, tinham
na Igreja seu único local de aprendizagem de escrita, leitura e estudos. E
essa educação se tornou cada vez mais necessária, como salienta Verger:

“Mesmo em sociedades como a sociedade ocidental na Idade Média, em que


a maioria da população era analfabeta e a palavra oral, frequentemente
acompanhada de um gestual codificado, certamente preponderante como
suporte da comunicação, o escrito, sob múltiplas formas, como simples
ligação ou anexo da oralidade e da memória, ocupa na realidade um lugar
considerável, ainda que difuso e frequentemente imperceptível. Sobretudo a
partir dos séculos XII e XIII, quase nenhuma forma de vida religiosa,
judiciaria, administrativa, econômica, para não falar das relações correntes
entre indivíduos, as famílias ou grupos sociais, pode manter sem o recurso,
ao menos marginal, a escrita, latina ou vernacular, e logo, a homens
capazes de manejá-la. ” [VERGER, 2001. p.10]

E essa educação medieval que esteve sobre controle da Igreja Católica e


Aprendendo supervisão da nobreza, no período tradicionalmente chamado de Baixa
História: Idade Média [séculos XII-XV], passou por um processo de transformação. O
ENSINO & crescimento urbano no século XII impulsionou não só economicamente as
MEDIEVO cidades europeias, mas também a organização de ensino. O que Le Goff
Página | 124 categoriza de nascimento do intelectual, é o processo em que o clero perde
a exclusividade do ensino, que passou a ser disputado também por
membros da nobreza e os novos nobres, composta em sua maioria por
comerciantes.

Dentre os locais mais atingidos por essas mudanças, a Península Itálica se


destaca. O crescimento urbano e comercial fez com que cidades como
Florença e Veneza estivessem entre as mais populosas da Europa medieval,
e sofressem essa mudança nos objetivos e protagonistas do processo
educacional medieval. A comuna de Florença, mesmo não possuindo uma
universidade, passou por um aumento considerável de tutores não
eclesiásticos, leituras em praças públicas, ensino da leitura e escrita de
poemas em latim e florentino[GILLI, 2011].

Dante o “Convívio” e a Educação


É nesse contexto que se situa Dante Alighieri. Poeta florentino, nascido
provavelmente em 1265, Dante, de acordo com Richard Lewis, nasceu de
uma família guelfa da pequena nobreza, que provavelmente não possuía
influência política ou econômica na cidade; Dante estudou em um colégio
franciscano, onde conheceu o poeta Brunetto Latini, que é seu primeiro guia
nos caminhos da poesia e com quem aprimorou seus estudos dos clássicos
latinos. E após isso Dante foi para Bolonha, já que a cidade de Florença não
possuía universidades na época. Lá se aprofundou nas vertentes
agostinianas e tomistas da teologia medieval.

Dante passou a escrever um ano após a morte de seu pai, fato esse
considerado importante, pois com a morte do pai, Dante assumiu a
liderança da família, que no período estava financeiramente frágil, e
necessitou do auxílio de famílias nobres mais abastadas para se manter, e a
utilização da poesia foi a maneira que Dante encontrou de se aproximar de
círculos de nobres e conseguir maior estima entre eles.

Dante entra na política florentina em 1295 e em 1300 é exilado devido a


um complô entre o Vaticano e o grupo político dos guelfos, que
consideravam as posturas de Dante em diminuir as influências políticas da
Igreja em Florença, prejudicial ao andamento da mesma. É nesse período
de exilio que dentre outras obras, o poeta escreve o “Convívio”.

A obra “Convívio” é um livro que se pretende oferecer por meio de tratados,


“banquetes em louvor da sabedoria”, levando todas as formas do
conhecimento sobre a poesia, a teologia, amor, filosofia e política para
aqueles que não possuem o domínio do latim. Dessa forma, a obra foi
escrita em florentino, a língua popular do período. O poeta possuía a ideia
inicial de concluir a obra em quinze tratados, porém devido a Divina
Comédia, Dante só finaliza quatro desses tratados.

Os tratados são divididos da seguinte maneira. No primeiro o poeta faz uma Aprendendo
introdução geral da obra e comenta sobre as formas de se alcançar o História:
conhecimento; o segundo e o terceiro tratados são compostos por poemas ENSINO &
de Dante e das maneiras que os mesmos devem ser compreendidos, como MEDIEVO
uma busca pelo amor que leva a sabedoria; e o quarto tratado é reservado Página | 125
ao assunto da nobreza do homem e a maneira que a educação está
intrinsicamente ligada a isso.

Logo no início do primeiro tratado, o poeta deixa explicito seu objetivo o


sentido que ele possui. Levar o conhecimento para aqueles que não são
capazes de alcança-los sozinhos e que isso deve ser feito pois “todos
homens desejam naturalmente saber”[Convívio I, I]. É então que Dante
elenca dois pontos internos que impedem o homem de buscar esse
conhecimento:

“Internamente ao homem podem existir dois defeitos e impedimentos: um


no que se refere ao corpo, outro no que se refere à alma. No corpo, é
quando as partes estão indevidamente dispostas, de modo que nada podem
perceber, assim como os surdos, os mudos e seus similares. Na alma, é
quando a malícia ali prevalece, fazendo-a seguir viciosos deleites pelos
quais o homem recebe tanto engano que toda a coisa vilipendia. ”
[Convívio, Tratado I, I]

Aqui Dante aponta um problema material e um espiritual que impedem o


homem de buscar a educação, e esses dois impedimentos por serem
internos, podem ser encontrados em homens de todas classes sociais,
sendo assim internamente, um camponês e um nobre igualmente possíveis
de não serem capazes de buscar o conhecimento. Em seguida o poeta
aponta os dois problemas externos que impossibilitam a relação entre o
homem e a educação, e nesse ponto que algumas características são
modificadas:

“Externamente ao homem, duas razões podem semelhantemente ser


consideradas, uma das quais induz à necessidade, a outra à preguiça. A
primeira são os cuidados familiar e civil, que necessariamente detém para si
a maioria dos homens, de modo que não podem permanecer no ócio da
contemplação. A outra é a carência do lugar onde a pessoa nasceu e
cresceu, que às vezes não apenas a priva de qualquer estudo, mas a deixa
longe de pessoas estudiosas. ” [Convívio Tratado I, I]

Nesse ponto o florentino pontua as condições sociais do indivíduo como


fator determinante para a capacidade de aprendizado ser ou não possível. A
necessidade de tempo para estudos e reflexões não seria possível para
ninguém além dos nobres e clérigos, e a ausência de “pares” para
compartilhar o conhecimento também não seria possível para camponeses
que viviam em comunidades rurais distantes dos grandes centros urbanos.
Nesse pensamento de Dante é interessante notar como os pontos elencados
pelo mesmo estão intrinsicamente ligados a nova forma de educação que
surgia no século XII e ao mesmo tempo se conecta com o modo tradicional
de educação do período. A relação entre educação e estar próximo de
Aprendendo outros sujeitos também em processo de aprendizagem é o modo típico de
História: ensino que as universidades citadinas desenvolvem no período; enquanto a
ENSINO & necessidade do tempo livre para se ensinar é uma argumentação que era
MEDIEVO tradicionalmente da nobreza pré universidades.
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Essa forma de pensamento conversa com a concepção de educação na
baixa idade média definido no dicionário da Idade Média como:

“...a educação na Idade Média foi um luxo sempre reservado a minoria;


estava principalmente organizada para benefício do sexo masculino e, na
medida em que era acessível ao leigo, o mais provável e que fosse
solicitada, na grande maioria dos casos, por aqueles que precisavam
adquirir algum conhecimento no governo, na administração ou no comercio,
e por aqueles que podiam se permitir dedicar-lhe seu tempo e seus recursos
materiais. Na pratica, isso significou, na maior parte da Idade Média,
demanda aristocrática ou urbana. ” [LYON, 1997. p.312]

E Dante ao se alinhar a esse pensamento, descreve em seu tratado que


essas justificativas são da forma que são devido à vontade divina, e que
pertence aos nobres o papel de detentores do conhecimento e patronos da
educação[Convívio Tratado I, III]. Essa definição da educação ser
pertencente aos nobres, é reflexo da própria vida do poeta, que de família
de pequena nobreza, teve no auxílio dos nobres o acesso à educação e
considera o espaço dos camponeses e da plebe como avessos a uma
possibilidade de desenvolvimento da educação. De forma que ele coloca:

“Portanto, eu – que não me sento à bendita mesa, mas que fugi do


alimento da plebe, movido pela misericórdia, recolho aos pés daqueles que
lá se sentam o que deles cai; e, sem esquecer de mim mesmo, conheço a
mísera vida daqueles que atrás de mim deixei, pela doçura que sinto
naquilo que pouco a pouco recolho – tenho algo reservado para os
miseráveis que há algum tempo demonstrei aos seus olhos, pelo que os fiz
intensamente desejosos. ” [Convívio Tratado I, I]

Dante novamente nesse ponto mostra que o papel a quem o mesmo delega
a educação é um pouco mais complexo do que somente a ideia que um
nobre defendendo os interesses da nobreza. O mesmo se coloca não como
um nobre, mas sim alguém que esteve entre nobres e assim adquiriu o
conhecimento, e que agora transmite essa educação aos menos favorecidos
que ele. Se por um lado o poeta condiz com o determinismo religioso
medieval que cada classe social tem papeis e funções especificas, por outro,
ele partilha das ideias propagadas pelos novos nobres, universitários e os
novos pensadores citadinos, de que o conhecimento devia ser transmitido
para além dos nobres e não ensinado somente pela igreja. Essas colocações
são relacionadas a vida de Dante novamente. Expulso de Florença por ser
contrário ao domínio absoluto da Igreja nos assuntos da comuna, a
educação faz parte dos pontos que Dante buscou retirar da exclusividade
eclesiástica.

Junto a isso, outro ponto é preponderante na importância que Dante atribui


a educação, e é a questão identitária. O mesmo ficou conhecido como um Aprendendo
dos formadores da língua italiana, devido a sua constância em propaga lá História:
no lugar do latim, que em seu tempo era a língua oficial para acesso ao ENSINO &
conhecimento escrito. Ao escrever o “Convívio” em florentino, o mesmo MEDIEVO
buscou uma maior divulgação do conhecimento[seja pela leitura ou escrita] Página | 127
quanto ao associar a formalização da educação por meio do florentino, uma
forma de definição identitária de seu povo, de forma que o mesmo pontua:

“Este meu idioma popular foi o vínculo de meus pais que com ele se
expressavam...é evidente que ele concorreu para minha educação e assim é
alguma coisa do meu ser. Além disso, foi este meu idioma popular que me
introduziu no caminho da ciência, que é a mais alta perfeição, porquanto
com ele penetrei no latim e com este me familiarizei, latim que foi depois
meu caminho para avançar mais ainda. ” [Convívio Tratado I, XIII]

Dessa maneira Dante buscou seguir os passos de seus predecessores, que


utilizaram da língua popular para iniciar os ensinamentos e assim passar
para o latim. O poeta então tencionou utilizar o fiorentino para não somente
de introdução “verdadeiro saber”, mas sim como forma de acesso ao
conhecimento em si.

Reflexões finais
Com o “Convívio”, Dante buscou criar uma reflexão de que como a
educação formal devia se tornar menos seleta, por meio da escrita em
florentino e do ensino não exclusivo de clérigos, pensamentos tipicamente
intelectuais urbanos de seu tempo. Ao mesmo tempo ele restringe e
legitima o controle sobre a educação aos nobres e seus filiados. Em suma, o
que Dante propôs com seu tratado foi um desenvolvimento mais amplo do
ensino, e não só um controle dos nobres sobre o ensino, mas também uma
obrigatoriedade moral dos mesmos transmitirem os conhecimentos que
foram divinamente privilegiados a obter. Esse projeto de Dante é expandido
e alcançado na Divina Comédia.

Referências
Ronny Costa Pereira é graduado em Licenciatura em História na
Universidade Estadual de Feira de Santana.

ALIGHIERI, Dante. Convívio. Lisboa: Guimarães Editores, 1992.

BRITO, E. F. Tradução parcial e comentada do Convívio de Dante.


TradTerm, São Paulo, v. 20, dezembro/2012, pág. 68-94.

GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval: (séculos


XII-XIV). Campinas: Editora da Unicamp; Belo Horizonte: Editora da UFMG,
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Janeiro: José Olympio, 2003.

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História:
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VERGER, Jacques. Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente. Bauru, São


Paulo: EDUSC, 2001.
Aprendendo
História:
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