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A Vontade Geral na dinâmica do Corpo Político

Fabio Antônio da Silva


Maio de 2018

Os primeiros meses de desenvolvimento do projeto mostraram-se reveladores para a


precisão conceitual necessárias para trabalho que se pretende. Em primeiro lugar, nosso
subtítulo, que se apresentava como objetivo geral, ou seja, “estabelecer o limite entre ​volonté
générale ​[vontade geral] e ​volonté particulaire [vontade particular]” para Jean-Jacques
Rousseau, em especial em seu ​Contrat Social (1762), se apresentou, após um exame mais atento,
uma pretensão problemática: existe realmente um limite entre as duas vontades?
Ao procurar cumprir ​o primeiro objetivo específico - “compreender o significado dado
por Rousseau ao termo ​volonté générale [vontade geral] por meio de uma leitura crítica das
interpretações desse tema no pensamento do genebrino” - foi possível sopesar as afirmações de
Ernest Cassirer, em ​A questão Jean-Jacques Rousseau de que: “Toda vontade individual e
particular é esmagada pelo poder da vontade geral” (1999, p.53), com a possibilidade de
pensarmos uma coexistência entre vontade geral e vontade particular, sem um ​esmagamento da
segunda pela primeira.
Fazendo um levantamento do estado da arte, no que diz respeito às leituras críticas do
conceito de ​volonté générale​, somos apresentados desde à reconstituição do trajeto teórico do
conceito em diferentes textos de Rousseau (primeiro no verbete ​Economie Politique​, depois no
Manuscrit de Genève e finalmente no ​Contrat Social​), até leituras que apontam a origem do uso
rousseauneano do termo em leituras da obra do ocasionalista Malebranche (além da
ressignificação da expressão francesa também presente nas obras Montesquieu e Diderot)1. Essa
pluralidade de leituras do papel, e significado, da ​volonté générale na obra de Rousseau nos fez,
além de questionar a legitimidade do ​objetivo geral proposto no projeto, questionar a
exequibilidade dos demais objetivos específicos.

1
Hichem Ghorbel. ​Le problème de la volonté générale chez Rousseau​. In Dogma Revue de Philosophie
et de Sciences Humaines, OUT/2013. Disponível em: ​http://www.dogma.lu/pdf/HG-RousseauVolonte.pdf
Pois, se Cassirer estiver correto, a relação existente entre “o interesse particular e
interesse público na República” (ponto de nosso ​segundo objetivo específico​) é nula, uma vez
que o primeiro interesse é suprimido pelo segundo. Só com uma leitura alternativa à essa
podemos pensar em termos de uma relação desejável. Do mesmo modo, o esmagamento da
liberdade individual para a liberdade do corpo inviabiliza pensarmos a ​soberania popular como
garantidora da liberdade dos indivíduos​. Pelo contrário, nesse caso a república rousseauniana
tornar-se-ia o túmulo das liberdades individuais e toda expressão das vontades particulares já
seria uma degeneração da república ideal. Apressadamente podemos concluir, a partir disso, que
Rousseau falhou, ou não foi coerente, quando afirmou fundamentar a república, quando
legitimada pelo contrato social, como uma instituição que nos mantenha tão livres quanto antes.
O próprio Ernst Cassirer, no entanto, mostra que Rousseau procurou ser coerente, e que,
mesmo em sua velhice como lemos em ​Rousseau Juge de Jean- Jacques (Terceiro Diálogo), não
se cansava de defender a unidade de sua obra e a coerência com seus princípios. No texto,
evocado pelo alemão, Rousseau explica que os dois ​Discours denunciaram a nossa condição
infeliz comparada ao estado natural, no entanto, não evocaram uma volta da humanidade à
indépendance naturelle​, pelo contrário, afirmam que esse é um estado do qual tanto nos
distanciamos que não temos mais acesso. O ​Contrat Social é, nessa medida, a tentativa de manter
as instituições existentes de forma que, se nos é barrada a felicidade e inocência originária,
possamos ter a liberdade que continua com seu caminho aberto (CASSIRER, 1999, p.52).
Essa liberdade civil que é constituída no contrato social, no entanto, não é a mesma
liberdade individual abandonada com o contrato, de modo que poderíamos voltar à ​apressada
conclusão precedente: o contrato social rousseauniano corresponde a submissão total do
indivíduo à unidade do corpo político de tal forma que todas as liberdades individuais são
anuladas em prol de uma liberdade política. O próprio texto do ​Contrat Social ​mostra que esse
veredicto não resulta de uma leitura rigorosa:
Para Cassirer, bem como para Robert Derathè2, é justamente nas divergentes
interpretação dos principais conceitos presentes no ​Contrat Social ​que se formam as polêmicas

2
“… a abundante literatura consagrada ao Contrato Social” tem sua origem no “diálogo infindavelmente
renovado entre partidários e adversários de Rousseau, entre os que o consideram revolucionário e os
que o fazem aristocrata, entre os que o inclinam para o coletivismo e os que o vêem como o campeão do
individualismo” (DERATHÉ, 2009, p.30).
sempre renovadas em torno dessa obra. No caso da liberdade, nos mostra Cassirer, não podemos
responsabilizar Rousseau por essa controvérsia interpretativa, uma vez que sua definição se
mostra clara e precisa:

“Para ele, liberdade não significava arbitrariedade, mas


superação e eliminação de toda arbitrariedade, a
submissão a uma lei estrita e inviolável que o indivíduo
erige acima de si mesmo. Não é a renúncia a esta lei nem
a libertação dela o que determina o caráter genuíno e
verdadeiro da liberdade,mas sim o livre consentimento a
ela. E esse caráter se realiza na ​volonté générale​, a
vontade do Estado. O Estado reclama para si o
indivíduo, de modo completo e sem reservas. Contudo,
ao fazer isso, não age como uma instituição coercitiva,
mas apenas coloca sobre o indivíduo uma obrigação que
ele próprio reconhece como válida e necessária, e à qual,
em conseqüência, dá seu assentimento, por ela própria
tanto quanto por si mesmo.” (CASSIRER, A Questão
Jean-Jacques Rousseau. 1999, p.53)

Louis Althusser no artigo ​Sur le Contrat Social3, fazendo uma leitura segundo níveis de
décalages ​teóricas na obra do genebrino, indica as leituras kantianas, na qual inclui a de Cassirer
(bem como hegelianas), como possibilidades dadas pelo próprio texto de Rousseau, ao mesmo
tempo constituem obstáculos para fazermos uma leitura rousseauniana desse texto (1967, pp.
21-22). Curiosamente Althusser faz uso de sua exposição por ​décalages ​para, ao final,
empreender uma leitura marxista de Rousseau.4 Talvez a dificuldade de uma leitura propriamente
rousseauniana do ​Contrat Social se deva ao fato de que, como afirma Derathè, seja “impossível
abordar seu estudo com inteira serenidade, sem a intenção de atacar ou de defender, por meio
dele um certo ideal político, sem buscar tomar posição frente aos problemas que preocupam
nossa época” (DERATHÉ, 2009, p.30).

3
​Publicado em 1967 nos ​Cahiers pour l'analyse​ nº 8. Edição dedicada à Rousseau sob o título:
"​L'impensé de Jean-Jacques Rousseau​”. Disponível em:
http://cahiers.kingston.ac.uk/pdf/cpa8.1.althusser.pdf
4
O artigo chega, entre outras, à conclusão de que, ainda que Rousseau represente uma crítica interna à
ideologia iluminista, acaba por reproduzir a supressão das “classes sociais”, a qual o materialismo
histórico havia apontado como presente em toda história da sociedade humana.
Isso não nos impede de tomar esses estudos5 como possíveis visadas de uma leitura
rousseauniana de Rousseau, nos auxiliando a entender os paradoxos e demais complexidades
teóricas do ​Contrat Social e sua relação com o ​corpus ​rousseauniano. Sobretudo, no caso do
Contrat​, para melhor entender a resposta que o genebrino dá à questão: tomando (a) as leis como
devem ser e (b) os homens como são, pode haver, na ordem civil, alguma regra de administração
legítima e segura?
(a) O âmbito deontológico da questão (de como as leis devem ser) é pautado, nas palavras
de Rousseau, ​naquilo que todos os filósofos procuraram fazer: a reconstituição do Estado de
Natureza do qual se deriva todo Direito Natural.
No século XVII os teóricos da escola do direito natural trataram de tornar a igualdade um
atributo natural entre todos os homens6, no entanto, tal igualdade está vinculada ao estado de
natureza, estado abandonado com a instituição do estado civil. A igualdade natural tornava-se
assim um atributo do homem natural que deveria ser abandonado para a instituição do Estado.
Mas, com Rousseau, a igualdade se tornará uma das exigências para a instituição do
Estado legítimo. Ao elucidar a origem da desigualdade entre os homens, aponta para uma
igualdade fundada no seio da sociedade nascente7, capaz, até mesmo, de minimizar os efeitos das
desigualdades naturais: “das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma”.
Ao falar em direito natural Rousseau assume a presença dos autores jusnaturalista em seu
método8, no entanto, a radicalização de sua história conjectural mostrará que os jusnaturalistas

5
Como os de Cassirer, Althusser, Derathè e tantos outros.
6
"O estado de natureza, escreve Derathé, é essencialmente um estado de independência . Admitir essa
ideia é então afirmar que ninguém está por natureza submetido à autoridade de outrem, é partir do
princípio de que os homens nascem livres e iguais. Esse princípio, que a maior parte dos partidários da
teoria do direito divino nega, é contudo comum a todos os filósofos da escola do direito natural.
Rousseau tem perfeita consciência de que ele enuncia um lugar-comum quando afirma, por sua vez, que
os homens são naturalmente iguais." (DERATHÉ, Rousseau e a ciência política do seu tempo, p. 197,
2009)
7
Mesmo Maquiavel, que foi uma das fontes do caráter republicano da obra de Rousseau, ainda não
havia buscado generalizar o princípio de igualdade: “Se lembrarmos o capítulo 55 do livro I dos
Discursos [Sobre a Primeira Década de Tito Lívio]​, a igualdade é uma das condições para o
estabelecimento do regime republicano. Maquiavel não se refere, nesse trecho, a uma igualdade
absoluta que apagaria as diferenças sociais e econômicas, mas a uma certa homogeneidade no modo
de vida dos cidadãos e a seus efeitos políticos” (ADVERSE, Trans/Form/Ação, p.43, 2007).
8
"Quem quer que tenha lido seriamente Grotius e Pufendorf nas traduções de Barbeyrac e leu, em
seguida, atentamente o Contrato social e o Discurso sobre a desigualdade, percebe que essas duas
obras contêm uma multidão de alusões às teorias sustentadas pelos jurisconsultos" (DERATHÉ,
Rousseau e a ciência política do seu tempo, p. 57, 2009).
justificam o direito pelo fato, e ao mesmo tempo demonstrará que a justiça, o direito e a moral,
são aquisições históricas9.
(b) Isso nos remete ao segundo âmbito da questão (dos homens como são), ou seja,ao
resultado do processo histórico que podemos considerar o homem moderno. Ainda no início do
Contrat Social lemos que tendo abandonado um estado de liberdade e independência o homem
se encontra à ferros. Os grilhões da sociedade não são naturais. Assim como Hobbes, e outros
antes dele, Rousseau não entende o homem como naturalmente social, pelo contrário, no
Segundo Discurso ​o autor já havia desenvolvido sua história hipotética, procurando superar os
equívocos dos filósofos anteriores, chegando à um Estado de Natureza distinto destes: onde o
indivíduo se bastava e os encontros com os semelhantes ocorriam de modo esporádico - para a
cópula e na ocasião de agremiações momentâneas para abater animais de grande porte, por
exemplo.
É bem verdade, portanto, que a história hipotética do ​Segundo Discurso descrevera
conjecturalmente os ​passos que fizeram os homens abandonar o Estado de Natureza e adentrar
ao Estado Civil, quando a humanidade passa efetivamente ao estágio social da História. No
entanto, talvez possamos entender a afirmação do genebrino de que desconhece como isso se
deu: os “funestos acasos” presentes em sua história hipotética não desqualificam-na, porém
constituem ​saltos ​feitos por conjecturas que o levam a possíveis abalos sísmicos, enchentes, ou
outro fenômeno natural do qual nem Rousseau, nem outro no século XVIII teria condições de

9
Rousseau manifesta seu desacordo com os Enciclopedistas e com o artigo Direito Natural de Diderot.
Essa tomada de posição fez com que o classificassem de artificialista. A contenda entre vários
estudiosos de direito natural nunca esclareceria suficientemente qual a verdadeira base das relações
sociais. Grócio, sem dúvida, enunciando uma "sociabilidade" que levaria os homens a viverem em
sociedade, "ainda que Deus não existisse", avançara o mais que permitia a cultura iluminista. Concorreu,
pois, para a efetiva laicização do direito natural, mas nem pelos seus escritos, nem pelos seus discípulos
e continuadores (nenhum dos quais o igualou com força de penetração e interpretação), fica-se sabendo,
ao certo, se esse conceito de sociabilidade por qualquer motivo ultrapassava a condição de mero instinto
humano, isto é, de elemento puramente individual. Rousseau, aceitando prontamente a concepção
individualista, dispõe-se a apurar até que ponto se pode, com propriedade, falar de lei natural, visto que a
palavra lei já implica uma regra consciente e voluntária; consequentemente, busca saber até onde ia a
confusão entre, de um lado, o liame natural, originário, fundamental e universal, e, de outra parte, as
regras resultantes das convenções sociais e que, a seu ver, são artificiais, tardias, derivadas e
particulares (Lourival Gomes Machado, in ROUSSEAU, Segundo Discurso, Os Pensadores, Vol. 2, p.46,
1999).
demonstrar com dados ou fatos verificáveis10. Reconhecidos seus limites a abordagem
conjectural por ela mesma não invalida o conhecimento, pelo simples fato de produzir hipóteses
11
.
O método genético, do qual resulta a história hipotética, constitui, para Rousseau, o
método por excelência, segundo Gabrielle Radica, o único método pelo qual o genebrino
reconhece a possibilidade de produzir uma explicação. Assim, além do Estado e do direito,
Rousseau faz a gênese de coisas tão diversas e inesperadas como a individualidade e a
consciência de si, a consciência do outro, o interesse, a família, a amizade e o amor. Pois, esse
método permite fazer a história hipotética tanto de um fato (como a desigualdade entre os
homens) como de uma regra moral ou jurídica (como a lei natural e a lei política)12.
Para a intérprete Rousseau certamente não era um historiador, mas um pensador das
condições da historicidade​, de tal modo que, o método genético utilizado por Rousseau para a
construção de sua história hipotética o difere de seus predecessores e está no cerne de sua teoria
do contrato social.
Se, por um lado, o pacto de autorização de Hobbes é legitimado por uma decomposição
lógica e mecânica do Estado (atemporal) e os direitos naturais identificados por Locke em sua
história empírica-conjectural são verificados na história empírica, Rousseau, de outro modo, para
fundamentar a ​volonté générale como legitimadora do Estado procurou coadunar esse dois
âmbitos da conjectura lógica com a dinâmica histórica: se o pacto de autorização e os direitos
naturais são dados imutáveis, a ​volonté générale​, a exemplo da natureza humana, não é estática.

10
​"a perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera potencialmente jamais
poderão desenvolver-se por si próprias, pois para isso necessitam do concurso fortuito de inúmeras causas estranhas,
que nunca poderiam surgir e sem as quais ele teria permanecido eternamente em sua condição primitiva."
(ROUSSEAU, ​Segundo Discurso​, Os Pensadores, Vol. 2, p.84, 1999)
11
No ​Segundo Discurso​ Rousseau afirma que apesar do conhecimento conjectural de um estado “que não mais
existe, que talvez nunca tenha existido” tem-se a “necessidade de alcançar noções exatas [do Estado de Natureza]
para bem julgar nosso estado presente”.
12
​“Salientar a importância desse método genético é também assumir as consequências para o objeto do qual é feita a
gênese. O método genético não é um artifício explicativo exterior que poderia ser substituído por outro método se
tivéssemos a felicidade de encontrar um melhor, mas, sendo o único meio de mostrar a natureza dos objetos e dos
elementos do mundo humano, ​cuja característica é ser histórico. Nós não vamos compreender o amor, a
consciência, o Estado, o poder e a liberdade sem implantar uma história do amor, uma história da consciência, uma
história do Estado, uma história do poder e da liberdade”. (RADICA, ​Rousseau et l´histoire de la raison, 2011[nossa
tradução]Conferência de encerramento do VI Colóquio Nacional de Filosofia da História (UFPR-26/08/2011).
Pensar os homens “como são” é, em Rousseau, pensar as condições históricas que
possibilitaram o estágio presente. Há uma sujeição do indivíduo ao entrar no Estado Civil, mas
não é uma sujeição à uma vontade arbitrária: se abre mão da independência natural para garantir
uma existência comunitária. De simples indivíduo passa a cidadão. A ​volonté générale que se
constitui nessa passagem, constitui uma artifício teórico, um padrão do bem comum:
" A soberania da vontade geral não pode ser confundida com os
mecanismos jurídicos, sempre precários, destinados a assegurar o
exercício dessa soberania. Que todos os membros da associação
participem da elaboração das leis é, antes de tudo, apenas uma
fórmula destinada a permitir a manifestação autêntica da vontade
geral. Esta fórmula, por ela mesma, não é, entretanto, suficiente
para assegurar o predomínio do interesse público. Se os outros
caracteres da vontade geral não estão presentes – e sobretudo, a
virtude dos membros da associação – a deliberação pública não
exprimirá adequadamente o interesse da comunidade. Para que a
maioria possa realmente exprimir o interesse comum, a condição
sine qua non é que 'todos os caracteres da vontade geral estejam
ainda na pluralidade'. O atributo essencial da vontade geral é que
ela é a vontade que dirige, por definição ao bem da comunidade.
E que por conseguinte, não pode ser senão a vontade deste corpo
moral constituído pela comunidade. O que significa que não
pode existir onde não existe este corpo moral. A vontade geral
não pode existir onde não existe um corpo de cidadãos. Se não
pode haver liberdade onde a vontade geral não seja soberana, não
pode haver soberania da vontade geral onde não houver
cidadãos. 'la patrie – lemos na Economia Política – ne peut
subsister sans la liberte, ni la liberte sans la vertu, ni la vertu sans
lês citoyens...'" (SALINAS FORTES, Rousseau: da teoria à
prática, 1976, p. 91)

No entanto, sendo o homem esse ser histórico, entregue a dinâmica dos “funestos
acasos”, a ​volonté générale como um ​padrão do bem comum está mais vinculada ao primeiro
âmbito da questão que se propõe Rousseau (a), de como as leis devem ser, a ​volonté générale
que será expressa por atos legislativos, a qual podemos identificar como um segundo uso dado
por Rousseau ao termo no ​Contrat Social como uma ​vontade geral decisão13. Esse âmbito,
ainda que não independente do anterior, nos leva ao problema enfrentado em meu projeto.

13
Distinção apontada por Cláudio Araújo Reis no artigo ​Vontade geral e decisão coletiva em Rousseau In
Trans/Form/Ação vol.33 no.2 Marília 2010.
Há uma ​vontade geral decisão na fundação do corpo político, que coincide com a
vontade geral padrão do bem comum, ​para Rousseau a única decisão que necessita de
unanimidade para legitimar-se. Porém as demais decisões legislativas desse corpo serão
dinâmicas como a vida desse corpo. Isso se deve ao fato de que para além do âmbito ideal do
contrato, que garante as condições da liberdade civil na fundação da república, existe um âmbito
concreto que se desenvolve na história.
Para Rousseau - analogamente ao corpo do homem que nasce, envelhece e morre – o
corpo político constituído no contrato social, na dinâmica da história, tende à uma natural
degeneração. Isso se deve, segundo o genebrino, pelo constante assédio exercido pelas vontades
particulares (entendidas aqui como interesses de grupos ou indivíduos, facções minoritárias ou
majoritárias, que não correspondem à ​volonté générale​) sobre a soberania popular.
Esse corpo político legitimamente constituído tem como base de sua fundação a
liberdade - como bem inalienável dos membros desse corpo. A ação livre produzida por tal corpo
obedece analogamente às mesmas causas dos atos de um indivíduo, qual seja:
- a necessidade de uma causa moral - que corresponde a vontade de executar
determinado ato;
- e de uma causa física - que corresponde ao poder deste que quer em realizar o
ato desejado14.
O poder legislativo corresponde, portanto, à causa moral de uma ação livre produzida
pelo Corpo Político, enquanto o poder executivo sua causa física. O poder legislativo pertence ao
povo enquanto soberano, “cujos atos todos só podem ser leis” (ROUSSEAU, Contrato Social,
Col.Os Pensadores, V. 1, p. 136, 1999) O poder executivo, de outro modo, não produz a Lei. Por
constituir um poder de atos particulares o executivo não produz atos que correspondam à
universalidade que se pressupõe com a lei. Obedece, portanto, as diretrizes estabelecidas pela
vontade geral que se expressa através da lei. E, só quando os atos do poder executivo estão de
acordo com tais diretrizes, podemos dizer que se trata de um “exercício legítimo do poder
executivo” (ROUSSEAU, Contrato Social, Col.Os Pensadores, V. 1, p. 137, 1999).

14
Quanto a estas duas causas Rousseau nos oferece a seguinte analogia: "Queira um paralítico correr e
não o queira um homem ágil, ambos ficarão no mesmo lugar" (ROUSSEAU, Contrato Social, Col.Os
Pensadores, V. 1, p. 135, 1999).
Assim, o homem ou o grupo de homens encarregados da administração e exercício do
poder executivo são aquilo que Rousseau define como Governo, Príncipe ou Magistrado. Não se
tratam, como se pode observar, dos detentores do poder soberano, mas de “simples funcionários
do soberano, [que] exercem em seu nome o poder de que ele os fez depositários, e que pode
limitar, modificar e retomar quando lhe aprouver” (ROUSSEAU, Contrato Social, Col.Os
Pensadores, V. 1, p. 137, 1999).
Que garantias restam, assim, aos demais membros do corpo político que, como simples
cidadãos, mesmo sendo membros do soberano, são depositantes do poder executivo nas mãos de
indivíduos com vontades particulares?
No capítulo dez do terceiro livro do ​Contrat Social ​Rousseau nos mostra que a
degeneração do governo é causada por uma tendência inevitável do corpo político que, assim
como o corpo do humano, naturalmente perece. E é o incessante assédio da ​volonté particulaire
sobre a ​volonté générale o que faz com que o governo se degenere. Isso se dá não apenas por
duas vias: a contração do governo e a dissolução do Estado, mas como se vê nos livros III e IV,
pela degeneração da própria ​volonté générale​.
Os capítulos finais do terceiro livro do ​Contrat Social nos mostram que a instituição dos
governos em absoluto é um contrato, antes é uma lei e as leis podem ser revogadas. Cabe às
assembleias periódicas fazer sempre duas proposições: "A primeira é: 'Se apraz ao soberano
conservar presente forma de governo'. A segunda é: 'Se apraz ao povo deixar a administração aos
que estão atualmente encarregados dela'”(ROUSSEAU, Contrato Social, Col.Os Pensadores, V.
1, p. 196, 1999).
Essas assembleias são, para nosso autor, mecanismo inconteste para prevenção - ou ao
menos retardo - para a infelicidade que consiste a morte do corpo político.
Assim, afirma Rousseau:
"Se quisermos formar uma instituição duradoura, não
pensemos, pois, em torná-la eterna. Para ser
bem-sucedido não é preciso tentar o impossível, nem se
iludir com dar à obra dos homens uma solidez que as
coisas humanas não comportam" (ROUSSEAU,
Contrato Social, Col.Os Pensadores, V. 1, p. 177,1999).
Posto nestes termos a solução parece fácil, desde que instituídas assembleias regulares e
que estas mantenham a vigilância necessária sobre o governo teremos o corpo político com
liberdade garantida e a maior durabilidade possível.
Essa fácil resolução, no entanto, nos leva as questões que motivam nossa pesquisa: como
garantir que os atos do executivo estejam sempre de acordo com a vontade geral? Como verificar
cada um de seus atos particulares?
Afora as questões de ordem prática: como delimitar os atos que correspondem à vontade
geral e aqueles que são frutos da vontade particular? Como cultivar essa total obediência à
vontade geral, que se expressa pelas leis, sem fazer dessa liberdade uma tirania contra as
vontades particulares?
Para elucidar essas questões que se encontram no horizonte de nossa pesquisa esse
primeiro movimento, que propõe-se como tema do capítulo inicial da tese, carece de um
mapeamento mais completo das interpretações da vontade geral na economia interna do ​Contrat
Social, bem como, em um segundo momento, sua relação com o papel do Legislador e demais
peças indispensáveis para a efetivação do bem comum na república.
Se as dificuldades impostas pelas múltiplas leituras do ​Contrat Social ​acabam, como
aponta Althusser, por constituir um obstáculo para uma leitura rousseauista da obra, mais que
buscar um ​verdadeiro Rousseau, ou um ​novo Rousseau, mais proveitoso será nos lançarmos ao
encontro dos “espantos e perplexidades” causados por seu estudo15.

15
“ Nada mais nada menos do que o procedimento que resulta da leitura de um autor que nos faz pensar
a vida política, não como algo que já está posto, ou que já foi pensado por Rousseau e seus leitores,
mas como algo inteiramente novo, porque produto de algo que já ultrapassou o próprio autor em
questão, abrindo-se para novos desafios que só podem ser enfrentados por nós mesmos, como o
equacionamento do que é a vida política e do que entendemos por um regime político que se chama
democracia ou democracia representativa. Rousseau não será aqui nem nosso patrono, nem nosso
inimigo número um, mas apenas um despertador que nos lança para o inusitado, que , ao nos despertar,
provoca muito mais espanto e perplexidades do que respostas prontas” (MILTON MEIRA DO
NASCIMENTO, P.107, 2012).
Referências

ADVERSE, Helton. ​Maquiavel, a República e o Desejo de Liberdade​. Trans/Form/Ação, São


Paulo, 30 (2): 33-52, 2007.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010131732007000200004&script=sci_ar ttext

ALTHUSSER, Louis. ​Sur le “Contrat Social”​ ​In​ "L'impensé de Jean-Jacques Rousseau”. Revista
Cahiers pour l'analyse nº 8. 1967.
Disponível em: ​http://cahiers.kingston.ac.uk/pdf/cpa8.1.althusser.pdf

CASSIRER, Ernest. ​A Questão Jean-Jacques Rousseau​. Ed. UNESP, São Paulo, 1999.

DERATHÉ, Robert. ​Rousseau e a ciência política de seu tempo​. Tradução de Natalia


Maruyama. Ed. Barcarolla, São Paulo, 2009.

GHORBEL, Hichem. ​Le problème de la volonté générale chez Rousseau.​ In Dogma Revue de
Philosophie et de Sciences Humaines, OUT/2013. Disponível em:
http://www.dogma.lu/pdf/HG-RousseauVolonte.pdf

MEIRA DO NASCIMENTO, Milton. ​Nós, leitores de Rousseau. In​ Rousseau: pontos e


contrapontos (pp.97-111).Ed.Barcarolla, São Paulo, 2012.

RADICA, Gabrielle. ​L’histoire de la raison​: ​Anthropologie, morale e politique.​ Ed. Champion,


2008.

REIS, Cláudio Araújo. ​Vontade geral e decisão coletiva em Rousseau. In​ Trans/Form/Ação
vol.33 no.2 Marília 2010.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Œuvres Completes. Tome I-V; Ed. P. Dupont, Paris, 1821/1823.

_______________​Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político​. Trad. Lourdes Santos


Machado; In Coleção Os Pensadores: Rousseau - Vol. 1(pp. 45-243). Ed. Nova Cultural, São
Paulo, 1999.
_______________​Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os
Homens​. Trad. Lourdes Santos Machado; In Coleção Os Pensadores: Rousseau - Vol. 2 (pp.
05-150). Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1999.

SALINAS FORTES, Luiz Roberto. ​Rousseau: da teoria á prática​. Ed. Discurso Editorial, São
Paulo, 1976.

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