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Armstrong, Karen.

Maomé – uma biografia do profeta, São Pau-


lo, Companhia das Letras, 2002, 335 pp.

Francirosy Campos Barbosa Ferreira


Doutoranda do Departamento de Antropologia – USP

Já faz algum tempo que Karen Armstrong vem surpreendendo os leito-


res com livros sobre a religião islâmica e sobre os muçulmanos (2001a;
2001b). Não seria diferente neste livro, onde ela descreve a vida do pro-
feta dos muçulmanos – Muhammad (Maomé) –, de forma instigante e
apaixonada, sem ser religiosa. Ela que foi freira monástica durante sete
anos, professora de literatura moderna na Universidade de Londres e
atualmente leciona no Leo Baeck College for the Study of Judaism and
the Training of Rabbis and Teachers, traz na bagagem a curiosidade pela
religião, que começou a estudar por achar temeroso o modo como o
Ocidente via o Oriente: “Por muito tempo perturbou-me o preconceito con-
tra o Islã (...) escrevi o livro porque lamentava que o retrato de Maomé,
apresentado por Rushdie, 1 era o único que a maioria dos ocidentais teria
possibilidade de ver” (p. 9-10, grifos meus).
Sorte a nossa, de podermos ter acesso a uma obra tão esclarecedora a
respeito de um profeta que é um dos mais lembrados na história. Cabe
lembrar que no mundo a religião islâmica é seguida por 1,2 bilhão de
muçulmanos, um quinto da população mundial (p. 9). Esta obra vem,
também, depois de um evento que abalou o mundo, o 11 de setembro,
e Armstrong se vê de alguma forma instigada a publicar uma versão que
não é propriamente a mais conhecida mas, segundo podemos perceber,
é a que ela considera mais próxima da realidade.
REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2003, V . 46 Nº 1.

O trabalho apresentado por Karen Armstrong é o que nós antropó-


logos chamamos de uma boa etnografia: apresenta seus dados de cam-
po, neste caso, fontes tiradas dos livros sobre a vida do profeta e sobre a
história do Islã. Mas ela vai além quando apresenta também dados so-
bre o cristianismo e o judaísmo. Religiões sobre as quais a autora detém
também muito conhecimento. Dessa forma dá ao leitor mais elementos
para compreensão dos fatos ocorridos no passado e dos acontecimentos
mais recentes.
Falar do profeta do Islã não é uma tarefa fácil para um não-muçul-
mano por dois motivos: primeiro por ocasionar desconforto da própria
comunidade islâmica que não admite que outros se refiram ao profeta
desrespeitando a sua imagem como homem correto e mensageiro de
Deus; em segundo lugar, é preciso ter cuidado em não assumir o discur-
so religioso islâmico e assim conseguir isentar-se para analisar suas fon-
tes. A meu ver, a autora cumpriu bem esses dois papéis: teve o seu livro
bem recebido pela comunidade e conseguiu ser isenta em sua análise,
apresentando fatos históricos que corroboram com as informações.
De acordo com a autora o Islã é tolerante quanto as demais religiões,
tem respeito por elas, mas não tolera quem ataque a figura do profeta.
Para uma religião que nos seus primórdios era considerada a heresia das
heresias, pois se encaixava com perfeição nas antigas profecias: “um re-
belde estabelecerá seu reinado no Templo de Jerusalém e desencami-
nhará muitos cristãos com doutrina sedutora” (p. 31), e depois como a
“religião da espada” durante as cruzadas; embora tenha sido o Ocidente,
e não o Islã, que proibiu a discussão de assuntos religiosos, provocando
o que a autora chama de fobia contra o Islã (p. 34-35, grifos meus).
Armstrong começa seu livro contando a história que todos conhe-
cem até mesmo os que não estudam o Islã: que o profeta Maomé
(Muhammad) recebeu a mensagem de Deus pelo anjo Gabriel no mon-

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te Hira. Descreve que o anjo disse ao profeta: Recita. E ele respondeu


que não o sabia fazer. O anjo abraçou-o tão forte, que ele foi dizendo os
primeiros versos, sentindo uma dor muito grande. Isso ocorreu no 17º
dia do mês do Ramadã. Corão em árabe significa qu’ran – a recitação.

Recita em nome do Deus que te criou, criou o homem de sangue coagula-


do. Recita. E teu Senhor é o mais generoso, que ensinou com a pena, ensi-
nou ao homem o que não sabia.

No começo os historiadores baseavam-se em tradições orais que fo-


ram passadas pelos primeiros companheiros do profeta.
O período anterior ao advento do Islã é conhecido como Juhiliyah –
a idade da ignorância. Nesse tempo, a Pérsia vivia em conflito com o
Império Bizâncio. Ao sul da Arábia a terra era rica e fértil onde o cristi-
nianismo se expandia; ao norte o deserto castigava os beduínos. Os ára-
bes se sentiam inferiores tanto religiosa como politicamente. O que unia
esses árabes era o sentimento de povo, de tribo. Tanto é que o próprio
profeta formaria a comunidade muçulmana segundo os preceitos tribais,
o ideal de comunidade e fraternidade continuou sendo crucial aponta
Armstrong (p. 72). Naquele tempo o analfabetismo era grande fazendo
com que os poetas declamassem os poemas em voz alta. Eles acredita-
vam que eram possuídos por jinni, um espírito. Para eles a poesia era
sobrenatural e tinha qualidades mágicas. Isso fazia com que os poetas
desempenhassem funções de sacerdotes e profetas. Por outro lado, exis-
tiam também os kahins, profetas extáticos, esses não eram bem-vistos
pela comunidade, pois eram videntes, adivinhos. Mesmo não tendo uma
religião, os árabes tinham uma vida espiritual e lugares sagrados, santu-
ários e os seus próprios rituais. A Caaba já era um desses lugares sagra-
dos, pois tinha incrustada a Pedra Negra sagrada, que nessa época era

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dedicada ao deus Hubal. O santuário era cercado por 360 ídolos que
podem ter sido totens das diferentes tribos que lá iam prestar-lhes culto,
afirma Armstrong.
Vale lembrar que o profeta será o defensor da Caaba como um lugar
sagrado e do culto ao Deus único e contra adorações e culto às imagens;
este já é o primeiro indício de que a tarefa de propagação da religião não
será uma coisa fácil para o profeta, pois naquela época era comum a
adoração a vários deuses e deusas. Em volta da Pedra Negra faziam-se
todos os anos durante cinco dias o hajj 2 que consistia em dar sete voltas
em torno da Caaba. O prestígio da Caaba trazia vários mercadores, o
comércio já era forte em Meca, que era rota privilegiada. A autora, por-
tanto, irá contestar o fato de alguns apontarem o Islã como a religião do
deserto, pois esta versão é incorreta uma vez que os primeiros a receber
a mensagem foram os árabes de Meca, em meio a uma atmosfera de
capitalismo selvagem e altas finanças (p. 81).
Pouco se sabe da vida do profeta, apenas que ficou órfão e foi criado
por seu tio Abud Talib. Muhammad, ao contrário de Jesus, não operou
nenhum milagre, ele dizia que a revelação do Corão era em si um mila-
gre e atualmente os muçulmanos apontam a divulgação do Islã como o
segundo. Armstrong nos lembra de que Jesus havia alertado que viria
um outro profeta que os lembraria de tudo o que ele lhes ensinava e os
ajudaria a entender seus ensinamentos: “Paráclito” traduzido para
munahhema que soava “Muhammad”. Outros liam periklytos, em árabe
Ahmad, que significava o mesmo que Muhammad – ou louvado.
Da infância do profeta, o que chama atenção é que era comum na-
quela época as mães da cidade entregarem seus bebês recém-nascidos
para serem criados no deserto, por um tempo, por outra família. Essa
era a forma encontrada para deixá-los mais fortes, pois considerava-se
que a vida longe da cidade era mais apropriada. Como o pai do profeta
já havia falecido e sua mãe era pobre, ninguém se interessava por seu

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filho. Halima, uma mulher pobre do deserto, resolveu levar o bebê, e


foi surpreendida quando pôs a criança para mamar: ela, que já não ti-
nha mais leite, viu o leite verter dos seios e alimentar o seu bebê e aquela
outra criança que havia trazido da cidade.
Aos seis anos de Muhammad, sua mãe morre e ele passa a viver com
seu tio Abu Talib, chefe dos Hashim. Era um dos homens mais respeita-
dos em Meca. Casou-se com Khadija, 25 anos mais velha e teve quatro
filhos. Ela foi sem dúvida muito importante na vida do profeta, todas as
vezes que ele recebia um versículo era para os braços de Khadija que
corria, pois ela lhe dava colo e carinho. No começo o profeta sentia
muito medo e dor, temia ter se tornado um kahin. Ela era determinada,
nobre e inteligente. Foi, de acordo com Armstrong, a força de Muham-
mad nesses primeiros tempos.
O Corão pede apenas que os homens se empenhem em construir uma
sociedade justa, aponta a autora, daí podemos acompanhar sua análise
surpreendente de que o profeta, num sentido mais profundo, ele era,
sem dúvida, socialista, e deixou uma marca no Islã (p. 108). Mesmo
contrariando estudiosos ocidentais que advertem o erro de ver o profeta
como socialista. A esmola (sakat) se tornaria um dos cinco pilares do
Islã. A autora nos lembra de que o Corão nunca declarou cancelar as
revelações anteriores, até hoje podemos notar o respeito com que os
muçulmanos se referem às escrituras, à Tora e ao Novo Testamento, sen-
do para eles o Corão a última revelação, o livro mais completo.
Muhammad passa a ser então o Guia. A religião de al-Llah trazida
por ele acabou ficando conhecida como Islã, o ato de sujeição existencial
que se espera que cada convertido faça a Deus. A Shahada, a profissão
de fé muçulmana, resume o intento pessoal de cada muçulmano: “Dou
testemunho de que não há outro deus senão al-Llah”. Isso exclui dos
árabes todas as demais divindades: al-Lat, al-Uzza e Manat.

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Quando o profeta proibiu o culto às outras divindades da Arábia,


acabou provocando a ira até mesmo daqueles que já haviam se tornado
muçulmanos, pois o culto das banat al-Lhah era uma obrigação que unia
todos os povos da Arábia. Seu próprio tio recusou-se a se tornar muçul-
mano, por temer abandonar a religião de seus pais (p. 126). A autora
lembra que os Versos Satânicos de Salman Rushdie provocaram protestos
dos muçulmanos porque o romance apresenta uma paródia da vida de
Muhammad: ele repete os antigos mitos ocidentais sobre o profeta, fa-
zendo dele um impostor com intenções políticas, um libertino, que usou
suas revelações para tomar várias mulheres quantas quis. Os muçulma-
nos consideram também que o livro denigre o Corão, pois para Rushdie
este não é capaz de discernir entre o bem e o mal.
Armstrong descreve as conversões dos homens daquele tempo, dos
mais fiéis como o profeta, como é o caso de Abu Bakr que depois será
seu sucessor, até os mais rudes e incrédulos, como Hamzah, o mais forte
dos coraixitas, tribo à qual pertencia o profeta, assim como outros, Utba,
filho de Khattab. A autora conta que certa vez o profeta se encaminhou
para rezar na Caaba quando foi insultado pela esposa de Abu Lahab,
que gostava de gritar versos contra ele. Este respondeu com a revelação
da sura 111:

Pereçam as duas mãos de Abu Lahab, e que ele também pereça! De nada
lhe valerão suas riquezas, e tudo quanto amontoar. Será queimado num
fogo flamejante com sua mulher, a carregadora de lenha, que terá no pes-
coço uma corda de esparto (p. 149).

Aqui a autora recorda o Sermão da Montanha e lembra que pode


parecer pouco o fato do profeta não ter dado a outra face. Mas lembra
que, no próprio Evangelho, Jesus também amaldiçoa seus inimigos em
linguagem direta (Lucas 10:13-4; Mateus 3:7-10).

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Notas

1 Salman Rushdie, escritor do versos satânicos.


2 A peregrinação a Meca, que passaria a ser um dos pilares do Islã.

Referências Bibliográficas
ARMSTRONG, K.
2001a Em nome de Deus – o fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no
Islamismo, São Paulo, Companhia da Letras.
2001b O Islã, Rio de Janeiro, Objetiva.

FERREIRA, F.
2001 Imagem oculta – reflexões sobre a relação entre os muçulmanos e a imagem fotográ-
fica, São Paulo, dissertação, USP.
2002 “A linguagem fotográfica no Islã”, Travessia – Revista do migrante, publicação
do CEM, ano XV, n. 42: 22-28, jan.-abr.

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