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CONSCIÊNCIA E DO INCONSCIENTE
INTRODUÇÃO:
O presente estudo visa a discutir os diferentes usos do conceito imagem corporal, no
campo da consciência e do inconsciente. Para levarmos a termo situamos as pesquisas na
obra de L.S.Vygotksy e Wallon para o estudo da consciência e de Freud e Lacan para o estudo
do inconsciente. O conceito de imagem não ficará restrito ao próprio corpo, mas à condição
de subjetividade criada a partir de diversas influências, incluindo o corpo próprio, sua noção
esquemática e sua relação com o conhecimento.
O pensamento Moderno inaugurado por Descartes traz como contribuição principal
a relação do homem com a sua subjetividade e o conhecimento
Em nosso caso específico, demarcamos uma leitura da subjetividade a partir de Emanuel
Kant, quando, rompendo com Descartes, anuncia a assunção de um sujeito responsável pelo
conhecer desvinculado da transcendentalidade divina cartesiana.
A ciência passa a ganhar um estatuto de verdade, inaugurando o pensamento
moderno. Para nosso estudo é importante compreender que Kant viria, ainda, a distinguir
duas formas distintas de ciências: a da sensibilidade em geral, denominada de Estética e a do
entendimento, em geral, denominada de Lógica. Além disso, instaura uma perspectiva
importante para os estudiosos da consciência e do inconsciente (psicanalítico), ao admitir a
dimensão espaço-temporal do conhecimento sobre os objetos em oposição ao
conhecimento da “coisa em si “. Assim analisa Coelho:
“A coisa-em-si não pode ser conhecida objetivamente por mim. É algo incognoscível, porque
não é espacial nem temporal e eu só posso conhecer coisas dentro do espaço e do tempo
que me são familiares ou próprios. Entretanto, devido à minha sensibilidade natural, eu posso
ter intuição da coisa-em-si ao lhe dar uma expressão formal, um “corpo” ou resultado” (1983:
XXIV).
Esta forma que constitui a impressão de si mesmo e da realidade, a partir do Eu, tem
sido, desde então, objeto de investigação das mais diversas disciplinas.
A construção da imagem e do esquema corporal tem sido discutida, sob os mais diversos
ângulos, e em função de diferentes interesses. Neste trabalho, procuramos diferenciar sua
gênese e importância na constituição das subjetividades.
“...absolutamente tudo o que nos rodeia e foi criado pela mão humana, todo o mundo da
cultura, tudo isto é produto da imaginação e da criação humana baseada na imaginação “
(Vygotsky, 1997:10).
Em Vygotsky, os termos imagem e esquema corporal não são facilmente encontrados, tais
como os entendemos na perspectiva psicomotora. Deduzimos, em nosso estudo de sua obra,
que o conceito de imagem se aplica aos princípios da imaginação e do papel que
desempenha na construção do conhecimento e formação da consciência. Esquema corporal
é o resultado da construção das Funções Psíquicas Superiores e diz respeito à atenção e ao
movimento voluntários, à memória semântica, à percepção significante, à fala e ao
pensamento verbal-lógico. Entretanto, não há como pensar o funcionamento do esquema
corporal sem a contribuição da função imaginária.
Relacionando a teoria Kantiana com os estudos de Vygotsky, podemos estabelecer
uma analogia entre o conceito de consciência, assentado sob as bases do pensamento
verbal-lógico e o da construção do conhecimento, em Kant. Ambos sustentam o papel da
significação para a construção da forma, da representação, do conhecimento e da
consciência.
A função de significação é básica para reunir as impressões vividas com a ação e a
emoção e fornecer-lhes um estatuto de linguagem, construída socialmente em cada
experiência subjetiva e construída na mente humana sob a forma de representação da
realidade interna e externa, ao que podemos chamar de consciência.
Sobre a função geral da imaginação, Vygotsky faz algumas distinções fundamentais. A
primeira diz respeito a dois tipos fundamentais de imaginação: a exterior e a interior. A
primeira é plástica e objetiva, pois emprega preferencialmente impressões vindas do mundo
exterior e a segunda, emocional e subjetiva, utilizando-se de elementos vindos do interior.
As quatro leis que regem a função imaginária na consciência e, em consequência, sua
determinação na formação da imagem de si e do mundo são assim descritas pelo autor:
Assim, o mecanismo de significação tem um sentido geral, que é o mesmo para todos
e um sentido particular, constitutivo da leitura individual que um sujeito tem de si mesmo e
do mundo ao seu redor.
2) A segunda lei descrita por Vygotsky articula a estreita ligação entre a imaginação e a
fantasia com a realidade. Particularmente, o autor descreve a importância e a influência que
a informação advinda dos quadros clássicos com suas respectivas estéticas exercem sobre a
função mental do ser humano.
Segundo Vygotsky, a mente humana não pode conceber toda a gama de informações
sobre a realidade partindo da própria experiência sensível, empírica. Somos informados por
imagens visuais, multissensoriais e descritivas que se constituem da “condição
absolutamente necessária para quase toda função cerebral do ser humano”(Vygotsky,
1997:20).
A compreensão de Vygotsky para este fenômeno é muito interessante e precursora de várias
discussões contemporâneas sobre o papel da mídia na formação de valores e conceitos
reunidos num conjunto de imagens que exercem uma ação identificatória e uma base para
a própria condição do pensar-se a si mesmo e ao mundo à sua volta, tal como as debatidas
dentro dos estudos sobre o imaginário social.
O historiador realça a semelhança muito grande entre os dois quadros e afirma “Nenhum
dos dois pintores representou com exatidão os fatos, como, aliás, querendo ou não o artista,
sempre acontece....Duas maneiras de contar a história, duas maneiras de construir a memória
nacional” (1999: 13).
3) A terceira dimensão da função imaginária abordada por Vygotsky trata dos aspectos
emocionais que envolvem esta construção. Sua perspectiva pode ser percebida em dois
momentos distintos: tanto nas formas expressivas, quanto nas impressivas. Essa vinculação
recíproca entre imaginação e emoção pode ser observada através dos sentimentos
interferindo na imaginação e na ação da imaginação interferindo nos sentimentos.
O impacto emocional das imagens determina o caráter afetivo da representação
mental. A arte da representação produzida no teatro, na tv e no cinema influencia o
espectador, de tal forma, que podem provocar os mais diversos efeitos psíquicos e físicos.
Diante das mais diversas cenas e enredos, um espectador pode experimentar sentimentos de
dor, horror, pânico, medo, tristeza, alegria, asco, etc, dependendo da sua interação com
aquilo que está sendo demonstrando em sua frente. Se na criança o limite entre fantasia e
realidade pode ser um pouco mais flexível, no adulto fica bem determinado que aquilo que
ele assiste trata-se de uma ficção, uma farsa, mesmo que o artista busque, em muitos casos,
tornar o mais verossímil possível a sua produção.
Por outro lado, o estado emocional em que nos encontramos permite que, ao
expressarmos nossos mais diversos produtos, transpareçam nosso estado de ânimo,
angústias e esperanças, etc. Não se pode pensar em expressão sem emoção. O homem das
artes e das ciências é movido pelo desejo de expressar-se.
4) A ultima lei que marca a importância da função imaginária diz respeito à criação
propriamente dita, onde aquilo que a mente produz não se pode encontrar na existência da
experiência da humanidade. Trata-se quase sempre de ruptura estética ou lógica que vem a
redirecionar a forma com que o homem pensa a realidade ao seu redor. No campo das artes
plásticas um exemplo clássico são as obras de Salvador Dali (Fig 5) que , atravessando a
perspectiva da lógica realista, produz uma arte que instaura a linguagem onírica e surrealista,
como objeto de uma nova estética, aparecendo também outros campos artísticos, tal qual a
literatura de Gabriel Garcia Marques e J.J.Veiga e no cinema com Blade Runner (Fig.6).
Na história da humanidade, muitos exemplos de artistas e cientistas que previram inventos,
descobrimentos e comportamentos estão presentes nos mais diversos campos das ciências
e das artes. Quem seria capaz de afirmar que o homem chegaria até a lua e desenvolveria
uma engenharia genética que viesse a construir clones dos próprios seres humanos?
E o que podemos deduzir dessas quatro leis da imaginação para estabelecer uma
conexão com a construção da imagem e do esquema corporal na obra de Vygotsky?
Como já pudemos observar, a função imaginária é determinante para a construção de toda
a atividade mental e da representação da realidade interna e externa. A imagem corporal,
como um produto imaginário tem também sua origem na interação entre a atividade
sensório-motora do bebê e o campo da linguagem, que é eminentemente cultural. Sendo
assim, a percepção de si e do seu corpo passa pela representação que cada sujeito vai fazer
para si na sua relação com o outro, através dos signos e a partir da sua própria experiência.
O comportamento humano é regulado através da internalização da linguagem e,
assim sucessivamente, transmitido de geração a geração.
A ciência e a arte criam novos paradigmas que influenciam a forma como o homem
e a mulher passam a ver o mundo e a se reconhecer neste contexto.
Nesse sentido, o homem é, também, um produto social da sua experiência sócio-cultural.
A imagem corporal e o esquema corporal não podem ser compreendidos isoladamente, sem
estar relacionado com seu contexto social amplo (país, estado, etc) e restrito ( escola, família,
etc).
Esse estudo faz com que consideremos uma condição importante para os estudos
cognitivos e, em especial, neuropsicológicos, a saber: a imagem corporal não é uma
construção restrita às influências obtidas pela informação visual. A imagem corporal, sob a
ótica vygotskyana, é uma representação produzida sob um contexto sócio-histórico e como
fruto da experiência individual. Imagem e esquema corporal são constituídos a partir da
articulação entre significado e sentido. Contribuem para esta construção, as experiências
vividas em toda a sua dimensão sensorial: imagens olfativas, cinestésicas, visuais, gustativas,
táteis e auditivas. A conexão entre inteligência prática, sensório-motricidade e emoção, por
um lado, e o campo dos signos e da linguagem, por outro é que permite a internalização dos
conceitos de si, do outro e do mundo. Nenhuma realidade para um sujeito, em sua substância
mais profunda, é idêntica a qualquer outra.
“...a noção do eu corporal não se limita a sua intuição, embora plenamente coordenada, dos
órgãos e de sua atividade: exige uma distinção feita entre os elementos relacionados ao
mundo exterior e os atribuídos ao próprio corpo; assim pois, estaria o eu corporal definido
sob os seus diferentes aspectos. Por conseguinte, é condição indispensável e de reconhecida
suficiência, que seja possível a ligação entre a atividade debruçada para o mundo exterior e
a relacionada de modo mais imediato, às necessidades e às atitudes do corpo” (1971:160).
Pode-se então afirmar que a consciência corporal passa pelo conjunto das
informações obtidas através de três diferentes vias de informações que, por sua
funcionalidade, são originalmente dissociadas: a primeira via distinguida por Wallon é a via
das sensibilidades viscerais, internas e denominada de interoceptiva; a segunda via, chamada
de proprioceptiva, refere-se às sensações ligadas ao equilíbrio, ações e movimentos do
próprio corpo; e a terceira, considerada a mais tardia na perspectiva ontogenética, é a
construída através da sensibilidade voltada para as informações/excitações de origem
exterior e é chamada de exteroceptiva.
A assunção desta imagem corporal como imagem de si funda o eu que, pela ilusão
de completude, o situa como eu ideal e matriz do registro imaginário. Este momento já
antecipa uma relação com o outro, ainda que este outro seja ele mesmo. Esta relação com o
outro não está ausente como sugere o termo narcisismo, porque a criança, na sua
imaturidade motora e dependência do outro, é inserida numa relação dialética, da demanda
de suas necessidades e o retorno vindo do outro, que atende, ou não, essas necessidades.
Esta sequência temporal é sempre significada, cada sensação, cada emoção, adquire
um significado próprio e ganha uma representação, um traço mnêmico e insere a criança no
registro simbólico, o universo da linguagem. É através da linguagem que se constrói a relação
com a realidade e o mundo exterior. A linguagem dá significado às percepções externas e
internas oriundas do corpo, é quando o corpo começa a falar e exigir a satisfação de suas
necessidades. A significação das necessidades transforma esta demanda em movimento
desejante. O desejo marca a subjetividade e a construção da imagem corporal.
CONCLUSÃO:
O estudo apresentado neste artigo buscou articular e explicitar alguns conceitos
teóricos que são utilizados no campo da psicomotricidade, da psicanálise e das diferentes
psicologias.
O foco da investigação dos conceitos imagem e esquema corporal têm suas
interfaces com os mais diversos campos das ciências da saúde e sociais.
A construção da corporeidade e da imagem de si que comportam a formação das
identidades, das subjetividades e das identificações são marcadas pela experiência
intransferível do sujeito com o seu processo sócio-histórico e com o lugar em que ele vai se
inscrever na cadeia significante, representante do desejo que é sempre o desejo do outro.
A diferença mais significativa que marca o campo dos estudiosos da constituição da
subjetividade a partir da formação da mente e da consciência, dos que consideram a
subjetividade como um fenômeno essencialmente inconsciente, pode ser descrita com a
compreensão de que a segunda, além dos fenômenos experimentados a partir do arcabouço
biológico e do contexto sócio-histórico privilegia a sexualidade e o desejo como elementos
básicos da sustentação do lugar ocupado pelo sujeito na existência.
A importância deste pensamento para a psicomotricidade, em seus diversos campos
de atuação, quer seja no trabalho com crianças ou em todas as fases da vida adulta, define
um objeto e uma estratégia de intervenção bastante distinta das do campo da fisioterapia,
da psicologia e da educação física. Em especial, porque busca articular um conhecimento
transdisciplinar que se ocupa de revelar a nova face que a atuação clínica e educativa
tangencia, especialmente ao compreender que certos sintomas são, acima de tudo, sociais.
E outros, da ordem da subjetividade, ou seja, do campo do desejo.
Numa das suas áreas de intervenção, a dos distúrbios do desenvolvimento e da
aprendizagem, a atuação psicomotora se justifica na medida em que, por um lado está
instrumentalizada a avaliar as funções psíquicas que constituem a atividade da mente, e que
podem ser consideradas como do campo do esquema corporal e, por outro lado, investiga
as condições subjetivas implícitas no sintoma, que se expressam através da imagem corporal.
Sintomas no campo da fala, do movimento, da atenção, da percepção, da memória e do
pensamento verbal-lógico podem ser avaliados em seus níveis de desenvolvimento.
A aprendizagem decorrente dessas funções, tais como a escrita e a leitura, a
hiperatividade e os distúrbios de atenção, as diversas alterações da ação voluntária
(equilíbrio, coordenações diversas, ritmo, etc) e as desorganizações espaço-temporais, entre
outras, podem ser analisadas com relativa objetividade e descritas nas impressões
diagnósticas produzidas pela investigação psicomotora.
Como podemos perceber muitas questões que relacionam o campo da imagem com
o campo do esquema corporal estão cada vez mais presentes na clínica e na educação
contemporânea.
Esperamos poder ter contribuído para o esclarecimento de que a construção da
imagem não é um fenômeno que pode ser reduzido às diversas formas de impressão
(expressão) visual, como, por exemplo, dos reflexos em espelhos ou em fotografias.
Imagem corporal é um conjunto de informações que constituem um sujeito diante de si, do
outro e do mundo. A construção da imagem passa necessariamente pelo outro e pela cultura.
O sujeito aprende a se ver com os olhos dos outros. Mas, para além do olhar, há muito mais.
Há a linguagem inscrita na forma desses que olham e que reconhecem o sujeito, lhe dão um
rosto, um semblante, uma expressão.
Por certo, também temos as crianças que pouco (ou nunca) são olhadas, por motivos
de hospitalizações, abandonos e rejeições. Temos ainda as que sofrem de maus tratos e
abusos, que também é uma forma perversa de ser olhada, reconhecida.
A imagem passa pelos cuidados recebidos, pelo amor e desamor, pelas frustrações, privações
e castrações simbólicas. De certo que a imagem corporal não é um produto só visual ou de
contatos corporais. Crianças que vivem com fome, na miséria e em condições
socioeconomicamente desfavorecidas constroem sua imagem de humanidade nos valores
sociais com que compartilham em seu meio a sua existência e seu lugar no mundo. Carregam,
em sua grande maioria, esse lugar de reconhecimento e constituição da subjetividade.
Há significantes que já se encontram inscritos, mesmo antes do sujeito nascer e que o marca
numa cadeia de significações, assim como o de etnia: branco, negro ou índio.
Outros nascem com marcas de alterações orgânicas que afetam seu desenvolvimento dentro
dos padrões de normalidade da cultura: os surdos, os cegos, os portadores de paralisia
cerebral, etc.
O sujeito está para além de seu corpo, apesar de muitas vezes estar marcado por ele.
A gerontologia nos tem mostrado o quanto a depreciação e o isolamento do idoso, em nossa
sociedade, podem leva-lo à doença e à morte. E, por outro lado, a integração e o
reconhecimento de seu lugar como sujeito, trazem-no à vida e a saúde.
Este vínculo entre sujeito, imagem, corpo, cultura e sintoma merecem ser cada vez mais
aprofundado e discutido, sob suas diversas interfaces e pela via da transdisciplinaridade.
Buscamos, nesse artigo, apresentar alguns pontos importantes situados entre as
teorias sócio-históricas, de um lado, e a psicanálise, de outro. Um estudo entre o
comportamento e o desejo. Contextualizar o adaptável e o inadaptável do sujeito
objetivando relativizar os estudos sobre imagem e esquema corporal
Uma tentativa de dialogar entre o campo da consciência e do inconsciente.
Na prática, um desafio diário da clínica psicomotora e psicanalítica.
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