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O Bom Juiz Eliézer Rosa

O louvor entre vivos (ou panegírico, segundo a doutrina literária


clássica) parece repugnar alguma coisa aos estilos da prudência e ao
comum senso ético. A razão é que se lhe contrapõem, as mais das
vezes, três objeções de certo peso e tomo: é uma que o elogio poderá
ofender a natural modéstia daquele a quem se faz, causando-lhe
mágoa e escusado constrangimento; a outra é nunca faltar uma voz
que se levante contra a proclamação dos méritos de alguém(1), ainda
quando seja este a mesma virtude personificada(2); o terceiro
argumento, com que se tem dissuadido a prática do louvor, é que,
havendo-o a craveira mesquinha por simples lisonja, somente fará
abater os créditos daquele que precisamente se intentava exaltar.
Tais dificuldades, porém, muito se atenuam quando, ressalvado
o pudor daquele a quem todo o encômio é molesto (e isto fora já
matéria de alto louvor), estiver a deficiência unicamente no pregoeiro
do mérito alheio; porque, acudindo pela honra da causa, bem poderá
defender-se com as seguintes palavras de excelso varão: “Elogios nem
sempre são lisonjas; quando vêm merecidos, são dever”(3). E, ao dever todos
haveremos de respeitosamente curvar a fronte!

II. É raro que alguém abrace quatro vezes a idade que Tácito
reputava por um grande espaço da vida humana(4); mais raro, no
entanto, é tenham as efemérides distinguido com este favor sujeito de
quem justamente se orgulha e envaidece a classe jurídica do País!
No dia 14 de novembro de 1995, cumpriu os 87 anos de sua
idade o Magistrado Eliézer Rosa, ao qual, pelo exemplar teor de sua
vida e pela edificação e zelo com que professou a carreira do Direito e
da Justiça, deu-lhe a voz pública o honroso cognome de o bom Juiz.
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Eliézer Rosa, o bom Juiz

É lembrado sempre como dos poucos homens, em quem se


operara a feliz comunhão de qualidades que, por excepcionais, se não
veem senão distribuídas entre muitos indivíduos: dotes raros de
espírito, vastos cabedais de ciências e compêndio de singulares
virtudes. Magistrado, põem-no os seus colegas por modelo cabal e
venerando; professor, leu o Direito Processual com inexcedível
competência e apuro; escritor, dignificou as letras com a excelência de
sua doutrina, esmaltada de elegante forma vernácula portuguesa;
privado, serve a conceituá-lo aquele epíteto por que entre os romanos
se reconhecia o titular da soberania familiar: “bonus paterfamilias”.
À atividade judicante consagrou, esquecido de si mesmo, a parte
mais substancial de sua longa e fecunda existência. A 8a. Vara Criminal
do Rio de Janeiro foi o tabernáculo onde o grão sacerdote do Direito
sagrou culto fervoroso à divina Têmis. Ali foi que, por 18 anos,
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exerceu com o fulgor de sua inteligência, a pureza de sua fé e a


magnanimidade de seu coração o sublime ofício de julgar os que
afrontaram a lei. Primeiro que o criminoso, buscava no infrator o
homem, que a este era mister recuperar e restituir ao convívio social.
Ainda no mais empedernido malfeitor, nunca deixou de ver uma
entidade sagrada; os que foram achados em erro, costumava tratá-los
com especial brandura(5). Sem fazer auto de fé da lei escrita, curava
todavia penetrar-lhe de preferência o espírito. E não tinha mão em si
que não proclamasse: “A Justiça está na alma do juiz. Não está nos Códigos.
A Justiça é o juiz”(6).

III. Aos cartórios do ofício é que geralmente incumbe preservar


contra a tirania do tempo, assentando-os em livro próprio, os
despachos e sentenças do juiz. O que parece bem, visto que se não
pode subtrair à curiosidade pública, sem reprovação, o conhecimento
dos atos de seus cidadãos principais.
Do Juiz Eliézer Rosa, entretanto, não nos ficaram (ainda mal!) os
livros de registro de suas sentenças, uma vez os reduzira a cinzas o
mesmo incêndio que devorou, com grande consternação do foro, o
cartório de sua amada 8a. Vara Criminal. A tradição oral, contudo,
supriu os estragos do infortúnio. Sabe-se, por exemplo, que certa feita
julgara um jovem, acusado de furto de bicicleta. Condenara-o, é
verdade, como pediam as provas, mas, porque lhe constasse que, filho
de lavadeira, dificilmente o ladrãozinho poderia realizar o sonho de
ter uma bicicleta, deu-lhe uma por presente o bom Juiz(7).
Casos que tais dispensam livros de registro, “porque do que não
cabe em livros, não há livro”, como sentenciou o profundo Vieira(8).

IV. No entanto, se uma classe houve de profissionais a que Eliézer


Rosa votou entranhada estima e exaltou entre todas, essa foi a dos
advogados. Nunca lhe mereceram outros maiores gabos e expressões
de mais subido quilate: ora afirma, solenemente, “que a nobreza elegeu seu
domicílio entre os advogados”(9); ora discreteia: “Não há justiça sem Deus,
disse-o o egrégio Rui; não há justiça sem advogado, acrescentarão quantos
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viveram no jardim de tormentas que é o foro”(10). Daqui procede a muita


afeição que lhe têm eles, que não o estremecem apenas, mas também
lhe guardam fielmente as lições, expostas com segurança e primor em
seus vários livros(11). Hoje, por ocasião do 87º aniversário de seu
nascimento, aos advogados (notadamente os criminalistas) é que toca
a honra e a vez de saudá-lo. Dir-lhe-á cada qual, no estilo e com as
mesmas palavras que, ao visitá-lo no Tribunal de Alçada Criminal do
Estado do Rio de Janeiro, empregou o saudoso Prof. Alfredo Buzaid:
“Só deixarei de querer-lhe, Amigo, no dia em que Deus envelhecer”!(12).

Notas

(1) “Ao traçar a biografia de um de seus contemporâneos, reconheceu Taine o


perigo a que se expunha, ante a circunstância de que o biografado ainda
estava em condições de desmentir o biógrafo” (Josué Montello, A
Oratória Atual do Brasil, 1950, p. 4).
(2) Como olhasse Deus para Abel e para suas ofertas, não no levou
Caim à paciência e determinou consigo matá-lo (Gên 4,4).
Aristides, é fama que seus conterrâneos o proscreveram,
aborrecidos de ouvir “chamarem-no sempre O Justo” (cf. R.
Magalhães Jr., Dicionário de Provérbios e Curiosidades, 1960, p. 141).
(3) Júlio de Castilho, Os Dois Plínios, 1906, p. 343).
(4) Cf. Vieira de Castro, Discursos Parlamentares, 1866, p. 180.
(5) “Todo réu é um humilhado e um ofendido pela própria vida. O tratamento
cordial dispensado aos réus é um dever de todos que lavramos a terra
escaldante, o chão de espinhos duma sala de audiências criminais”
(Eliézer Rosa, Dicionário de Processo Penal, 1975, p. 55).
(6) Idem, Uma Justiça para o nosso Tempo e nosso Meio, 1977, p. 19.
(7) In Última Hora (Rio), 12.1.1984.
(8) Sermões, 1957, t. X, p. 39.
(9) A Voz da Toga, 2a. ed., p. 34.
(10) Ibidem, p. 31.
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(11) Da bibliografia de Eliézer Rosa (cujo nome é frequentemente


confundido com o do irmão — Eliasar Rosa —, também jurista
e escritor) constam os títulos seguintes: Dicionário de Processo Civil
(1957), Cadernos de Processo Civil (3 vols., 1973), Leituras de Processo
Civil (1971), Advocacia, Função Pública (1949), Dicionário de Processo
Penal (1975), Romeiro Neto, o Último Romântico da Advocacia
Criminal (1984, 4a. ed.), etc. Escreveu-lhe, ultimamente,
primorosa e rica biografia o renomado Desembargador do TJSP
Benedito Silvério Ribeiro, em Vultos do Poder Judiciário (2016, pp.
243-257; YK Editora; São Paulo). Ali, como em messe copiosa,
colherá o leitor os frutos que produziu o espírito fecundo de
Eliézer Rosa (1909-2002).
(12) Cf. Cadernos de Processo Civil, 1975, 3º vol., p. 23.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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