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brasil.elpais.com/brasil/2019/04/16/ciencia/1555405829_509552.html
A frase “Sou ateu, graças a Deus” é atribuída a Buñuel e tem as duas qualidades que
Sócrates reivindicava para a filosofia: ironia e maiêutica. A primeira é evidente, faz rir; a
segunda joga luz sobre uma ideia do pensamento védico e dos místicos cristãos
(Böhme, Eckart): embora você se esforce em negá-lo, Ele mesmo (ou ela mesma, se
falamos da consciência) torna possível a sua negação. Por Ele existe algo em vez de
nada (Leibniz), por ela é possível o amor intelectual ao divino (Spinoza), único modo de
tocar o eterno. Mas todas essas são visões do passado. Hoje, a forma mais genuína de
ser religioso é ser ateu (Panikkar).
Um livro recente, Siete Tipos de Ateísmo (sete tipos de ateísmo), de John Gray, analisa
o complexo legado das tradições ateias. Gray não deixa pedra sobre pedra. Dos fiéis da
fé laica no progresso até as grandes teorias da evolução social, de Spencer a Marx. A
morte de Deus deixa um lugar vazio para diversos ídolos: os delírios positivistas de
Auguste Comte, o exagerado recato racionalista de Stuart Mill, o magnetismo animal
de Mesmer e algumas opiniões de Kant e Voltaire: “O racismo e o antissemitismo
emanam de crenças centrais do Iluminismo.” Exemplos mais próximos: o
ultraindividualismo de Ayn Rand, os delirantes memes de Richard Dawkings e o trans-
humanismo que almeja alçar a mente ao ciberespaço. Todos eles projetos de
autodeificação, seja do indivíduo ou da sociedade. Gray considera que a crença na
espécie humana como “agente coletivo”, que se propõe grandes projetos e os realiza
na história, é um mito herdado do monoteísmo. Ou a humanidade (ou um setor dela)
brinca de Deus, ou os humanos acabam se transformando em deuses.
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tedioso e pouco inspirador (o nada não precisa de propaganda), e resgata ateus como
Santayana, que amava a religião, ou como Schopenhauer, cujo único deus era a
música. Curiosamente, o livro perde um pouco de seu brilhantismo quando fala deles.
Um indivíduo que negue o Criador pode afirmar, no entanto, que o divino está em
todas as partes
Ernst Bloch é um bom exemplo de ateu que invoca concepções monoteístas. Filósofo
das utopias e esperanças, de prosa telegráfica e esmerada (brinca de esconde-esconde
com o leitor), ele recorre ao Antigo Testamento em busca das sementes do ateísmo.
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“Só um ateu pode ser um bom cristão”, afirma. Frente à religião do Deus original, ele
escolhe o Deus futuro do Êxodo. “Eu serei o que serei.” A sarça ardente revela o sonho
do incondicionado, cujo caminhar culmina no bolchevismo. Muito na linha de outro
livro, Sobre la Religión (sobre a religião), onde Marx a coloca “ante o tribunal da
filosofia” (hegeliana). Após seu fracasso como modelo político, o náufrago do
marxismo regressa como espectro da tradição messiânica e clama justiça para todos,
aqui e agora. Marx considera que a ideia de Deus surge na história porque a vida é
assediada pela miséria, mas esse Deus tem uma natureza ilusória e só existe na mente
de seus fiéis (não nos esqueçamos de que Marx identifica o real com o material). Os
deuses são sempre locais: se tivesse nascido na Índia, onde o mental tem mais
realidade que o material, Marx teria sido considerado um escritor piedoso. E foi, em
certo sentido, não tanto por postular uma lógica da história que culmina com a
revolução (redenção), mas porque essa Bíblia subterrânea sobre a qual fala Bloch, que
ressurge uma e outra vez no Ocidente em forma de prefiguração utópica, é um
fenômeno mental (ou de consciência política, como quiserem). Ambos os livros se
complementam com uma documentada Historia del Ateismo Femenino en Occidente
(história do ateísmo feminino no Ocidente), cuja finalidade é desmentir o preconceito
de que as mulheres não participaram da crença de que Deus não existe.
Fritz Mauthner, cuja história do ateísmo foi livro de cabeceira de Samuel Beckett,
afirmava que os ateus deviam prescindir não da crença em Deus, mas da própria ideia
de Deus, como propunha Eckhart. Nesse sentido, a teologia negativa se aproxima do
ateísmo do silêncio, um ateísmo contemplativo que abre mão de supostos
melhoradores do mundo. Curiosamente, um ateu que negue o Criador pode afirmar
que o divino está em todas as partes, embora nada possa se dizer sobre isso. É como
voltar à origem, quando o primeiro filósofo, Tales de Mileto, deixou dito que tudo
estava cheio de deuses.
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