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Entrevista
scientiæ São Paulo, v. 2, n. 3, p.Berlan
Jean-Pierre 395-413, 2004
Jean-Pierre Berlan formou-se engenheiro agrônomo pelo Institut National Agronomique, Paris,
fez o Doutorado de Estado em Ciências Econômicas, e é diretor de pesquisa do INRA-CTESI
(Institut National de la Recherche Agronomique-Changement Technique et Evolution des Sys-
tèmes d’Innovation), Montpellier. Seus trabalhos tratam da transformação da agricultura no
século xx, e do papel da genética agrícola. É autor de La guerre au vivant: OGM et autres mys-
tifications scientifiques,1 e de inúmeros artigos, entre os quais “Political economy of agricultural
genetics”,2 “La faim dans le monde, les OGM et l’Académie des Sciences”3 e, em colaboração
com Richard Lewontin, “Plant breeders’ rigths and the patenting of life forms”,4 “The political
economy of agricultural research”,5 e “La menace du complexe génético-industriel”.6
Gostaríamos em primeiro lugar de ouvi-lo sobre sua formação intelectual, e seus temas de pesquisa.
Sou engenheiro agrônomo, com doutorado em economia. Meu trabalho versa sobre a trans-
formação da agricultura, quer dizer, a liquidação do campesinato e a sua substituição por um
sistema agro-industrial, e sobre o papel das ciências e das técnicas nessa transformação. Faz
20 anos comecei a me interessar pela indústria de sementes, e desde esse momento passei à
história da genética e à história das práticas de seleção. Trabalhei um pouco com os animais
(um domínio que permanece por explorar) e sobretudo com a história da seleção das plantas.
E cheguei a conclusões diametralmente opostas ao que os selecionadores e geneticistas assu-
mem e ensinam.
* Entrevista revista e atualizada pelo entrevistado em agosto de 2004, e traduzida e editada pelos entrevistadores,
com a colaboração de Hugh Lacey.
1 Marselha, Agone, 2001.
2 In R. Singh, K. Krimbas, D. Paul e P. Beatty (orgs.), Thinking about evolution: historical, philosophical and political
perspectives (Cambridge, Cambridge University Press, 2001).
3 L’Ecologiste, n. 7, 2002.
4 Nature, 322, p. 785-8, 1986.
5 In C. R. Carroll, J. H.Vandermeer e P. M. Rosset (orgs.), Agroecology (Nova York, McGraw Hill, 1990).
6 Le Monde Diplomatique, dezembro 1998.
Em particular, re-analisei a técnica em- Roundup, como mostra o caso brasileiro. E so-
blemática da pesquisa agronômica no século bretudo – o que a Monsanto não diz – essas
xx, a das chamadas “variedades híbridas” de plantas RR permitem prolongar as vantagens
milho, e mostrei que, longe de ser um triun- da patente do Roundup, ou mais precisamente
fo da filantropia genética, ela era dirigida con- do glifosato, a molécula herbicida do Roundup
tra os agricultores e, de maneira geral, contra cuja patente expirou formalmente na maior
o público. O selecionador deve lucrar com sua parte dos países do mundo no final dos anos
atividade. As plantas e os animais se repro- 1990. O glifosato foi descoberto acidental-
duzem gratuitamente nos campos do agricul- mente no fim dos anos 40 por um químico
tor. É esta contradição que precisa ser resol- suíço e não pela Monsanto. O agricultor que
vida. As “variedades híbridas” de milho têm comete a besteira de comprar sementes tole-
a propriedade miraculosa – para o selecio- rantes ao Roundup deve, por contrato, com-
nador e produtor de sementes! – de não po- prar glifosato da marca Roundup que custa três
der se reproduzir no campo do agricultor, que ou quatro vezes mais que o glifosato genérico!
é forçado a comprar sementes todos os anos. A soja tolerante ao Roundup traz, é pre-
É o primeiro Terminator. ciso enfatizar, um conforto provisório para os
grandes agricultores, facilitando a retirada
Passemos aos Organismos Geneticamente Mo- das ervas “daninhas”. Eles podem tratar as
dificados, questão muito complexa. Há um ar- culturas usando avião e um único herbicida,
gumento dos seus defensores que diz que eles o que lhes dá uma vantagem concorrencial
aumentam a produtividade das culturas. Você sobre os pequenos e médios agricultores, que
concorda com isso? eles eliminam. A enorme desigualdade na re-
partição de terras no Brasil explica o desen-
Não, é uma mentira. O rendimento da soja volvimento ilegal das culturas de soja trans-
assim como do milho “OGM”, que constituem gênica tolerante ao glifosato-Roundup nas
95% das culturas ditas “OGM”, é menor do grandes propriedades. Mas esses grandes
que o das plantas convencionais. A razão é agricultores, cavalos de Tróia de Monsanto,
simples: uma parte da energia da planta é usa- não se dão conta de que põem a corda no pes-
da para lutar contra o herbicida que se aplica coço. A partir do momento em que se gene-
ou para produzir uma toxina inseticida. A raliza a utilização do Roundup – o que é o caso
maioria dos “OGM” cultivados hoje são tole- – as plantas adventícias, incorretamente
rantes ao Roundup – trata-se de plantas ditas chamadas de ervas “daninhas” para justificar
Roundup Ready ou RR –, o que permite à sua erradicação, vão se tornar resistentes ao
Monsanto, proprietária da marca Roundup, Roundup. Será preciso utilizar quantidades
aumentar o mercado de seu herbicida mais crescentes de Roundup. É o que começa a
importante. Até 1996-97, ele não podia ser acontecer nos Estados Unidos. Será preciso
utilizado na soja. A Monsanto aumenta a área então utilizar misturas de herbicidas para
tratada com o Roundup e assim o mercado do controlar as ervas “daninhas”. Mas como a
Monsanto teve o desplante de patentear a qual, na época, se ignorava tudo.7 Mas com o
idéia (!) de misturar os herbicidas – o que os triunfo que foi a decodificação, essas hipóteses
agricultores faziam habitualmente – essas de trabalho tornaram-se propriedades reais-
misturas serão o monopólio da Monsanto. do ser vivo. Então construiu-se uma ideologia
Que por elas fará pagar a um preço exorbitante. em torno do DNA, molécula fabricando a vida
(as proteínas) e capaz de auto-reprodução.
Os transgênicos representam também um pro- A dupla hélice substituiu o cogumelo atômico
blema para a saúde? como ícone da nossa modernidade. Mas tudo
isso é falso e todo biólogo sabe disso, mesmo
Um dos segredos mais bem guardados a res- que evite reconhecê-lo publicamente.
peito dos “Organismos Geneticamente Mo- Desde os anos 1970, as provas dessas
dificados” é a instabilidade das construções transferências começam a se acumular, mas
genéticas. Elas têm a tendência a ser re-ar- sem provocar o abalo anunciado por Crick.
ranjadas pelas plantas no decorrer de suces- A ideologia do DNA serve poderosamente aos
sivas gerações, sem que se tenha a mínima desígnios dos industriais: o ser vivo é reduzi-
idéia do que isso pode produzir. do a um mecanismo; a transferência de um
A transgenia consiste em injetar de ma- gene permite obter a proteína ou a função
neira forçada e violenta construções genéticas correspondente. Inútil fazer testes de toxi-
artificiais, quimeras genéticas, em células ve- dade ou preocupar-se com o que se passa em
getais. Para se compreender a lógica e a au- seguida no genoma! As pressões dos indus-
sência surpreendente de estudos de toxicolo- triais e de outros investidores proibiram todo
gia sobre os riscos que ela introduz é preciso um domínio de pesquisa científica, tanto mais
fazer um desvio histórico e teórico. Em 1958, facilmente que os próprios cientistas se tor-
Francis Crick (o co-descobridor da estrutura naram empresários fundadores de empresas,
de dupla hélice do DNA) formula a “hipótese ou, com a ajuda de contratos, mercenários a
seqüencial” (a um gene corresponde uma serviço de lucros rápidos e não do progresso
proteína) e o “dogma central da biologia mo- dos conhecimentos. Em 2000, a “decodifi-
lecular” (a transferência da informação gené- cação” do genoma humano confirma o que os
tica faz-se unicamente do DNA para as proteí- biólogos silenciam e querem ignorar: que
nas). Toda transferência proteína ⇒ DNA, ou nossa espécie tem de três a dez vezes mais
proteína ⇒ proteína, “abalaria”, escreve ele proteínas que genes. Quanto ao dogma cen-
em 1970, “as bases da biologia molecular”. tral, está morto desde quando se sabe que
Essas simplificações drásticas eram necessá- as proteínas intervêm na leitura do DNA .
rias para decodificar o código genético do As manipulações genéticas e os “OGM” não têm
7 Cf., p. ex., B. Commoner, Unravelling the DNA myth: the spurious foundation of genetic engineering (Harper’s Ma-
gazine, fev. 2002) e R. Lewontin, The triple helix: gene, organism, and environment (Cambridge, Harvard University
Press, 2002).
portanto fundamento científico. São puras téc- assim introduzir sem teste um novo pesticida
nicas que, como de costume, estão décadas à no meio-ambiente e na cadeia alimentar. E a
frente dos conhecimentos científicos. E como segunda questão: que quantidade dessa toxina
a difusão de suas quimeras genéticas é inevi- é largada no meio-ambiente, sabendo que foi
tável, os “biotécnicos” estão em vias de trans- produzida por cada célula de uma planta “ge-
formar nosso planeta em laboratório. neticamente modificada”? Meus colegas do
Um segundo risco provém do tipo de INRA, a quem coloquei a questão, foram in-
“OGM” comercializado. No caso das plantas capazes de me responder. Talvez não tives-
tolerantes aos herbicidas, o herbicida deve sem pensado nisso, já que pela magia das pa-
entrar na planta para agir. Para que faça isso, lavras “resistente a” o problema não se punha.
utilizam-se moléculas que facilitam a pene- Segundo uma “estimativa grosseira” de
tração do herbicida. Esse herbicida não é Charles Benbrook,8 antigo secretário da se-
destruído na planta, mas é, na maioria dos ção de Agronomia da Academia Nacional de
casos, simplesmente neutralizado pela su- Ciências dos Estados Unidos, um campo de
perexpressão [surexpression] de uma en- milho Bt, ou de algodão Bt, produziria entre
zima. O herbicida entra assim na cadeia ali- 10 mil e 100 mil vezes a quantidade de toxinas
mentar, o que não acontecia antes uma vez que Bt que um agricultor utilizando de maneira
até agora as plantas tratadas morriam. intensiva os tratamentos Bt! Como se vê, es-
O outro tipo de construção genética em tamos em plena ecologia! E uma parte dessas
circulação consiste nas plantas chamadas de toxinas entra na cadeia alimentar. Pode-se
maneira mentirosa “Bt resistentes a” este ou esperar que elas modifiquem profundamente
aquele inseto destruidor. O vocabulário é bem a flora digestiva e a dos solos. Mas simples-
achado: todo mundo acredita que se trata de mente não se fazem estudos, o que permite
métodos ecológicos de luta. A realidade é exa- confundir a ausência de prova de toxidade dos
tamente a oposta. Basta chamar as plantas “OGM” com a prova de sua ausência.
pelo nome: são plantas inseticidas. Esse in- Como eu disse um dia a uma rádio italia-
seticida entra também na cadeia alimentar. O na: os camponeses e o povo italiano nos de-
que de imediato põe no mínimo duas ques- ram esse prato sublime de simplicidade, a
tões que o termo “planta resistente a” permi- pasta al pesto. As transnacionais agrotóxicas
tia evitar. A proteína inseticida produzida pela o substituem, sinal dos tempos, pela pasta al
planta é a mesma que a proteína produzida pesticida (risos).
pelo famoso Bacillus thuringiensis (Bt) que vive
no solo? Não. O gene que intervém na fabri- Os defensores dos OGM vendem sua técnica di-
cação dessa proteína foi profundamente mo- zendo que ela é extremamente moderna. Sabe-
dificado e a própria proteína é profundamente mos que você não concorda com isso. Será que você
modificada. O termo “resistente a” permite poderia nos explicar seu ponto de vista?
9 Cf. J.-P. Berlan e R. Lewontin, “OGM ou CCB?” (Le Monde, 18 de junho de 2004).
Três razões explicam essa devoção à clo- plantas e da enxertia das árvores frutíferas.
nagem. Os nobres agricultores ingleses – os A revolução industrial a generaliza. Os nobres
farmers ricardianos – aplicam ao ser vivo os agricultores ingleses – esses grandes aperfei-
princípios de homogeneidade e de estabili- çoadores – constatam no início do século xix
dade dos produtos em série da revolução in- que as plantas de trigo, cevada, aveia, conser-
dustrial. Logicamente, seu método é irre- vam suas características individuais de uma
futável. Bio-logicamente, é outra coisa, mas só geração à seguinte. Eles não sabem por que,
recentemente os biólogos (os que sobraram) mas pouco importa. Em 1836, um dentre eles,
adquiriram novamente consciência do cará- John Le Couteur, codifica a prática de seus
ter mortífero da monocultura e da uniformi- colegas: “Já que cultivamos variedades de
dade industriais e do papel vital da biodi- plantas e que cada uma das plantas da mistu-
versidade. E, por fim, diferentemente de uma ra conserva suas características individuais”,
variedade, um clone se presta ao direito de raciocina ele, “vou ‘isolar’ as plantas que me
propriedade. Uma variedade, por ser hetero- parecem mais interessantes para reproduzi-
gênea e estar em constante evolução não pode las e multiplicá-las individualmente a partir
ser objeto de um direito de propriedade. Um de um único grão ou de uma única espiga. Vou
clone é homogêneo e estável. Esta espécie de testar “pure sorts” – os clones – correspon-
morto-vivo pode pois ser minuciosamente dentes para substituir a variedade pelo me-
descrito para ser distinguido dos outros clo- lhor clone”. Le Couteur, espírito científico
nes. A Distinção, a Homogeneidade, e a Es- preciso embora amador, utiliza o termo “pure
tabilidade fundamentam a proteção do sele- sort”, “pura cepa”, que indica precisamente
cionador pelo certificado de obtenção varietal que ele substitui a variedade por uma unifor-
[certificat d’obtention variétale] que protege midade ou homogeneidade.10 Infelizmente,
suas “variedades” da “pirataria” pelos concor- seus sucessores, cientistas profissionais, ami-
rentes. Essa proteção, veremos, se mostrou gos do rigor e da precisão, utilizam o termo
insuficiente para as transnacionais agrotó- “variedade” para designar exatamente o opos-
xicas que tomaram posse da indústria das se- to! Não surpreende de modo algum que eles
mentes no decurso dos últimos 10/15 anos, se calem assim sobre o essencial.
pois ela não proíbe a prática fundadora da Sabemos agora que a característica do
agricultura, semear o grão colhido. mundo vivo é sua diversidade. Sabemos tam-
É preciso dizer uma palavra sobre a in- bém que essa diversidade é produtiva em si.11
venção da seleção clonagem. Ela é anunciada Há uma contradição entre a dinâmica econô-
pela antiga prática da mergulhia de certas mica dessa biologia aplicada à agricultura e à
10 Cf. John le Couter, On the varieties, properties, and classification of wheat (Londres, W.J. Johnson, 1836).
11 Cf. D. Tilman et al., Diversity and productivity in a long-term grassland experiment (Science, 294, 2002, p. 843-5).
Esses pesquisadores mostram, p.ex., que lavouras com dezesseis espécies produziram uma biomassa total superior
em 42% com relação à espécie mais produtiva em monocultura.
alimentação, entre essa dinâmica de padro- Essa ignomínia criminosa é o maior triunfo
nização, uniformização, homogeneização, in- da biologia aplicada de há 150 anos para cá, é
dustrialização da agricultura e o ser vivo. O o triunfo da lei do lucro sobre a lei da vida.
que o termo “variedade” permite esconder. Esse triunfo genético foi uma derrota
A uniformidade industrial é mortífera. No fu- política na medida em que revelou o segredo
turo, será preciso re-aprender a utilizar a di- mais bem guardado da história da seleção. O
versidade. Esse é um primeiro ponto impor- mundo inteiro, os camponeses em particu-
tante para os agrônomos. lar, puderam dar-se conta do caráter profun-
Voltemos à confiscação do ser vivo. Ela damente mortífero de nossa sociedade, já que
está em germe na técnica da seleção clona- ela tem como objetivo esterilizar o ser vivo.
gem, mas será preciso esperar a segunda me- Ela precisa separar, por qualquer meio, bioló-
tade do século xix para que surja no domínio gico, técnico, legal, regulamentar, a produção
vegetal a contradição entre vida e lucro. Os que fica nas mãos dos camponeses da repro-
primeiros selecionadores profissionais que dução que vai se tornar monopólio do capital.
aparecem na Inglaterra nesse momento se
apercebem, como homens de negócios, que Você falou do “segredo mais bem guardado” da
não terão mercado enquanto o grão colhido genética agrícola. Por que?
pelos camponeses for também a semente do
ano seguinte. E eles começam imediatamen- Na verdade, o primeiro Terminator retrocede
te a “guerra ao ser vivo”,12 a eliminação da ao começo do século xx, mas os geneticistas
concorrência desleal que lhes é feita pelas haviam tomado o maior cuidado para maquiar
plantas e animais ao se reproduzirem e mul- essa expropriação em melhoramento. Preci-
tiplicarem nas terras dos camponeses. samos nos deter um pouco nessa técnica em-
Essa guerra ao ser vivo levou um século e blemática da pesquisa agronômica no século
meio e acabou com uma vitória técnica defi- xx, nas “variedades híbridas” de milho, “sím-
nitiva com a patente “controle da expressão bolo da agricultura americana” como decla-
dos genes” depositada conjuntamente pela rou orgulhosamente um dia um secretário
pesquisa pública (!!) estadunidense e uma adjunto da agricultura. Com efeito um sím-
firma privada em 1998. Essa técnica de trans- bolo... Diferentemente do trigo, da cevada e
genia foi batizada Terminator por seus opo- da aveia, uma planta de milho é o resultado
nentes, e permite fazer sementes que dão de um cruzamento de duas plantas diferen-
plantas normais na aparência, que dão flores tes. As flores com efeito estão separadas e o
normais até o momento em que o grão se for- vento e os insetos transportam o pólen das
ma. Nesse momento a planta mata o germe flores macho situadas no alto da planta para
do grão. O agricultor colhe um grão estéril. as flores fêmeas das plantas vizinhas (até
12 Cf. J.-P. Berlan (org.), La guerre au vivant: Ogm et autres mystifications scientifiques (Marselha, Agone, 2002).
muitas centenas de metros) situadas no caule. variedades livres (que o agricultor pode semear
Assim sendo, uma planta de milho não con- novamente) por clones cativos (pertencentes
serva seus caracteres de uma geração a outra. ao selecionador), eles afirmaram ter substi-
Vê-se o interesse que há em aplicar a seleção tuído variedades por “variedades híbridas” ou
clonagem ao milho. O clone de milho perde “híbridos”! O hibridismo dessas pretensas
na terra do camponês o ou os caracteres (o alto “variedades” torna-se doravante o que as ca-
rendimento, p. ex.) que o haviam levado a racteriza. E há um século os geneticistas glo-
comprar as sementes. sam (evidentemente em vão) um fenômeno
No começo do século xx, biólogos esta- genético misterioso, a “heterose” devida ao
dunidenses, com base na redescoberta das hibridismo do milho!14
leis de Mendel, se dão conta de que podem No entanto, um pouco de reflexão teria
fabricar clones de milho.13 É certamente mostrado o absurdo de invocar o hibridismo
muito demorado, muito complicado, muito do milho para justificar a sua clonagem. Como
caro, e por razões que não posso desenvolver já disse, o trabalho do selecionador consiste
aqui, essa técnica está votada ao fracasso no em extrair clones de uma variedade para se-
que concerne o melhoramento do milho. Mas lecionar o melhor e substituir a variedade.
ela faz da reprodução do milho o privilégio do Conseqüentemente esses clones não são nem
selecionador. Ela cria uma nova fonte de lu- mais nem menos “híbridos” que qualquer
cro. É o que importa. O que é espantoso nesta outra planta da variedade. Ninguém fala do
história é a cegueira dos geneticistas e sele- hibridismo de Dolly. Que esses clones sejam
cionadores (estas duas disciplinas têm ten- ou não híbridos não tem qualquer pertinência
dência a fundir-se embora não tenham mui- para o trabalho do selecionador. O discurso
to que ver uma com a outra) supostamente genético sobre o hibridismo do milho tem por
“públicos” – na realidade são pesquisadores função ocultar a realidade da expropriação. É
do Estado – que, em nome da ciência, se obs- uma ideologia.
tinam em fazer triunfar essa técnica de expro- O termo “variedade híbrida” é uma du-
priação e têm êxito depois de mais de um pla mentira. Lidamos com um clone, o con-
quarto de século de esforços. trário de uma variedade. E o termo “híbrido”
Mas esses clonadores do Estado toma- não tem nenhuma pertinência uma vez que o
ram o maior cuidado para mistificar essa ex- clone não é nem mais nem menos “híbrido”
propriação mistificando-se a si mesmos. O que qualquer planta de milho. O que caracte-
vocabulário representa um papel-chave nes- riza e distingue um clone das “variedades” de
se assunto. Em vez de dizer que substituíam milho, é que esses clones não podem ser pro-
13 Cf. G.H. Shull, “The composition of a field of maize” (American Breeders Association, 4: 296-301) e “A pure-line
method in corn breeding” (American Breeders Association, 5:51-59).
14 CIMMYT, Book of abstracts: the genetics and exploitation of heterosis in crops – an international symposium (México,
1997). Cf. pp. 4, 34, 108, 112, 170, 174, 350, onde os autores deploram o caráter inexplicável da heterose.
duzidos senão pelo selecionador e só por ele. Ora, desde a guerra o rendimento do milho
São cativos. É o primeiro Terminator. É me- foi multiplicado por 4 na França, nos Estados
lhor não gritar isso aos quatro ventos! Unidos e em outros lugares, e esses ganhos
são concomitantes com a introdução das “va-
Quais são as conseqüências desse primeiro riedades híbridas”. Isso significa que o hibri-
Terminator? dismo é a causa desses ganhos. É isso que
toma o lugar do raciocínio científico há 70
Lucros fabulosos, inauditos. Os clones cati- anos. Não é porque cada indivíduo observa a
vos de milho são o coração da indústria de se- rotação do sol em volta da terra que é assim
mentes mundial. Na França, atualmente, se o que as coisas acontecem. É fácil entender que
agricultor pudesse semear o grão colhido isso se melhoramos as variedades por seleção, ti-
lhe custaria o preço do grão mais alguns cus- ramos por acaso, dessas variedades melhora-
tos de preparação. Na França, os agricultores das, clones que são eles mesmos melhorados.
semeiam por volta de 15kg/hectare. As se- É precisamente o que fizeram os selecio-
mentes dos clones cativos custam cerca de nadores. Os ganhos de rendimento não têm
cem vezes mais. Esse é o milagre das pre- portanto nada que ver com os mistérios do
tensas “variedades híbridas” de milho! A ta- hibridismo. Eles se explicam pela seleção.
refa da pesquisa pública, na França – e no Bra-
sil – seria fornecer variedades livres aos Nas suas intervenções você se refere com freqüên-
agricultores, o que, em todo caso, ela evita fa- cia ao peso ideológico das palavras. Você poderia
zer pelo menos na França. Mas não se pode expor sua idéia?
ter contratos com os produtores de sementes
de milho e fazer variedades livres! Sim... as palavras importam. Os termos uti-
Olhemos as coisas do ponto de vista de lizados contribuem para definir a realidade.
um biólogo, de um naturalista, para termos Eles são como a objetiva de um microscópio
idéia do poder da ideologia científica. Os ge- que decide o que se pode ver e portanto o que
neticistas conseguiram que todo mundo acre- se pode fazer. Numa sociedade de comunica-
ditasse e que eles mesmos acreditassem que ção de massa, as palavras não são mais cria-
para melhorar o milho era preciso de algum das pelas interações quotidianas de pessoas
modo esterilizá-lo! No meu modo de ver, isso que se encontram, se falam e inventam os ter-
mostra que a biologia reducionista moderna mos que designam as novas realidades. Ago-
perdeu todo sentido da vida. Definitivamente, ra as palavras, os conceitos que elas recobrem
os geneticistas servem-nos, sob um disfarce vêm do alto, elas são difundidas se não cria-
científico, a velha fábula da harmonia social: das pelo sistema de comunicação de massa.
camponeses e selecionadores, expropriados São armas a serviço dos interesses político-
e expropriadores têm os mesmos interesses! econômicos. Em disciplinas aplicadas como
Um último ponto. Eu disse que a seleção a biologia onde os interesses econômicos são
clonagem não permitia melhorar o milho. imediatos e consideráveis, há todas as opor-
tunidades para que as palavras sirvam a esses feita pelos “híbridos”.15 O pai Wallace é o
interesses, para que tenham conseqüente- ministro da agricultura do governo Harding.
mente uma função ideológica de ilusão mais Ele toma essa decisão sob pressão do filho que
que de conhecimento. foi produtor de sementes de milho no decor-
Em relação a isso, os camponeses dos rer dos anos 1910. Em 1926, Wallace filho –
Estados Unidos haviam batizado de milho que será ministro da agricultura de Roosevelt
mula esse milho revolucionário preten- – funda a Pioneer com um capital de 7.600
samente “híbrido”. A mula é estéril. Diferen- dólares, hoje a maior empresa mundial de
temente dos geneticistas e selecionadores e sementes. A Pioneer foi revendida há dois
de outros cientistas eles tinham compreendi- anos por 10 bilhões de dólares à empresa quí-
do muito bem a vigarice de que eram vítimas. mica-agrotóxica Du Pont. Que prova melhor
Mas o governo americano tinha decidi- de que o capital se reproduz e se multiplica a
do em 1922 que o método de seleção utilizado favor do selecionador, desde que a planta não
seria a seleção clonagem batizada “hibri- possa fazê-lo na terra do camponês! Cada dó-
dação”. 15 anos mais tarde, depois de um es- lar investido em 1926 se reproduziu um mi-
forço maciço de seleção, os clonadores de lhão e quinhentas mil vezes em 70 anos. Não
Estado conseguem (graças ao poder das ciên- acredito que o milho se tenha reproduzido na
cias e das técnicas modernas) extrair clones terra dos camponeses norte-americanos de
superiores das variedades cultivadas pelos maneira tão exuberante! Assim, o termo “va-
camponeses. A partir de então os ganhos de riedade híbrida de milho” permitiu desviar a
rendimento, os milhões de toneladas suple- atenção do fato de que enquanto os geneti-
mentares de produção foram apresentados cistas discutem em vão as virtudes do hibri-
como prova de que a escolha política de “ter- dismo, cada dólar investido se reproduziu um
minatorizar” o milho era a boa coisa! O hi- milhão e quinhentas mil vezes.
bridismo do milho é a causa do sucesso! A De fato a biologia é minada pela guerra
mistificação tornou-se impenetrável. No en- que faz, à sua revelia, contra o ser vivo. E a
tanto, a seleção teria permitido ganhos de guerra exige utilizar um aparelho de propa-
rendimento mais rápidos – mas sem lucro ganda sofisticado e, em particular, manipu-
para o selecionador. Sacrificou-se assim o in- lar as palavras, como Orwell bem observou.
teresse geral aos interesses privados. Diga-
se de passagem, o mesmo processo está se Você poderia dar outros exemplos?
repetindo com os pretensos “OGM”.
Em resumo, a história começa com os O termo OGM – Organismo Geneticamente
Wallace, pai e filho, que decidem em 1922 que Modificado. Todos os organismos vivos são
a seleção do milho nos Estados Unidos será “geneticamente” modificados a cada geração
15 Cf. R. Crabb, The hybrid corn makers, prophets of plenty (Rutgers University Press, 1947).
uma vez que são fruto de uma mistura única quimeras são uma ruptura, termo utilizado
de genes. “OGM” não tem portanto nenhum pela Academia de Ciências que não tira daí as
sentido específico. Mas permite maquiar a conseqüências. Entramos numa fase nova, na
realidade. Os fabricantes de agrotóxicos, seus qual, como de costume, as técnicas têm dé-
especialistas em relações públicas e seus bio- cadas de avanço sobre os conhecimentos ci-
técnicos (ou melhor, tecnoservos públicos e entíficos. Michel Tibon Cornillot insiste nos
privados) – podem assim assegurar que eles riscos inauditos introduzidos pela industria-
perseguem de modo mais preciso, científico, lização de produtos de que não se sabe prati-
seguro o que a humanidade sempre fez desde camente nada. Já falamos disso antes.
o começo da domesticação das plantas e dos
animais, há cerca de dez mil anos. Durmam, Você teria ainda outros exemplos?
vocês não precisam se preocupar, os especi-
alistas estão vigilantes. Sim, vou dar um exemplo de que gosto muito
Mas se com efeito a humanidade conti- porque a inversão da realidade atinge uma
nuamente modificou geneticamente as plan- perfeição orwelliana. É o termo “privilégio do
tas e os animais, essa humanidade de cam- agricultor”, que designa na novilíngua biotech
poneses reduziu-se agora aos dirigentes das a prática fundadora da agricultura, semear o
firmas agrotóxicas. E as modificações gené- grão colhido. É lógico que nunca os aristocra-
ticas consistem agora em fazer quimeras ge- tas nem os dirigentes das firmas agrotóxicas
néticas, construções artificiais que associam procuraram se beneficiar do privilégio de se-
genes vindos de reinos, ordens, gêneros, es- mear o que colhiam. Não, eles deixavam esse
pécies diferentes. A primeira patente refe- privilégio aos seus camponeses. O termo
rente a uma manipulação genética, a de Cohen “privilégio do agricultor” permite inverter a
e Boyer, dizia respeito a uma “quimera fun- realidade. Para fazer da reprodução seu pri-
cional”. Gene e função são substituíveis, vilégio, os fabricantes de agrotóxicos denun-
como se viu. Mas fazer as pessoas comerem ciam um inexistente privilégio do agricultor!
quimeras funcionais, ou quimeras genéticas, Esses fabricantes de agrotóxicos se apre-
ou quimeras simplesmente é difícil. O termo sentam como os industriais das “ciências da
OGM foi então imposto pelos industriais de vida”. Eles fabricam pesticidas, herbicidas,
acordo com os cientistas que sacrificaram a fungicidas, inseticidas e só Deus sabe que ou-
precisão do vocabulário à promoção. No INRA tros venenos acabados em “cida”. Sua técnica
existem mesmo “cientistas” que julgaram que emblemática é o Terminator, uma técnica de es-
o termo OGM não era apetitoso o bastante e terilização do ser vivo. E eles se intitulam “in-
propuseram OGA – Organismos Geneticamen- dustriais das ciências da vida”. Suas biotec-
te Aperfeiçoados [Organismes Génétiquement nologias são, na realidade, necrotecnologias.
Améliorés]... Não será suficientemente dito que o sis-
Hoje em dia, qualquer estudante de bio- tema capitalista é mortífero. Todos os eco-
logia sabe fazer quimeras genéticas. Essas sistemas estão explodindo, os oceanos são
dos países do terceiro mundo, os recursos da água, do nitrogênio, do carbono estão ame-
petrolíferos teriam se esgotado em 1996 se- açados. O objetivo urgente de uma agronomia
gundo um cálculo de Pimentel, da Universi- minimamente inteligente e moderna deveria
dade de Cornell. E isso sem que uma gota fos- ser restaurar a fertilidade natural dos solos e
se para o aquecimento e os transportes! O portanto abandonar a industrialização da
sistema agroindustrial utiliza entre 8 e 10 ca- agricultura.
lorias fósseis para produzir uma caloria ali- O segundo caráter revolucionário dos
mentar. O balanço deveria ser positivo, até “OGM” que são na realidade CQP, Clones
mesmo muito positivo. Quem pode acreditar (fica-se na lógica da uniformidade industrial)
que a Índia ou a China terão um dia 2% de sua Quiméricos Patenteados – eu deveria ter
população na agricultura sem um colapso dos enfatizado isso antes – é que eles são paten-
agroecossistemas? teados. Falar desse clones quiméricos sem
Este sistema não tem nenhuma possibi- falar da patente como fiz até aqui é conside-
lidade de durar do ponto de vista energético. rar apenas um lado da mesma moeda. A pa-
Além disso, ele provoca uma destruição con- tente permite que se proíba ao agricultor se-
siderável. A FAO estima que quase um quarto mear o grão colhido. A patente é o Terminator
das terras férteis foram esgotadas no século pela lei.
xx pelos métodos da agricultura industrial.17
Os solos estão agonizando na maior parte dos Que fazer?
países do mundo, na Europa, na França.
Ora, 80% da biomassa da terra está, ao O complexo genético-industrial e sua propa-
que parece, concentrada nos 30 primeiros ganda estrondosa se esforçam por esconder a
centímetros do solo. Só seriam conhecidos existência de alternativas agronomicamente
entre 15 e 20% dos organismos dos solos. Os inteligentes, socialmente frutíferas, econo-
solos são seres vivos, são mesmo os seres vi- micamente úteis, e ecologicamente duráveis.
vos por excelência. Mas para a “agronomia” Sei que o Brasil e sua pesquisa agronômica
moderna, científica, reducionista os solos são estão mais avançados que a França nesse do-
suportes inertes. O sonho dessa “agronomia” mínio e gostaria de saber mais sobre a expe-
moderna é a cultura hidropônica em estufa. riência brasileira. Desculpem-me de dar um
Aí se controla tudo, menos o preço do petró- exemplo do Quênia e não do Brasil.
leo! 30 centímetros de solo, sobre os 6.400 No Quênia o milho é atacado por um pi-
km do raio da Terra. Nós estamos instalados ralídeo asiático. É um inseto furador, como o
sobre uma película molecular de vida. Essa piralídeo europeu. Ele é também parasitado
película nós a estamos destruindo. Os ciclos por uma planta, a estriga. A estriga se instala
17 Cf. D. Pimentel e W. Dazhong, “Technological change in energy use in US agricultural production”, in C. R. Carroll,
J. H.Vandermeer e P. M. Rosset (orgs.), Agroecology (Nova York, McGraw Hill, 1990).
sobre as raízes do milho e desvia em seu pro- em alguns anos de 4 para 200. Além do me-
veito a fotossíntese. Essas duas pragas podem lhoramento da alimentação dos habitantes do
destruir um campo de milho. vilarejo, essas vacas fornecem adubo e contri-
Havia-se tentado lutar contra essas pra- buem para manter a fertilidade dos solos for-
gas pelos métodos da agricultura industrial, necendo-lhes uma matéria orgânica preciosa.
com inseticidas e herbicidas. Sem sucesso. Este é um soberbo trabalho científico
Nos anos 1980, cria-se um Centro Inter- que associou pesquisadores e camponeses.
nacional de Pesquisa sobre a Fisiologia dos Ele garante ao camponês colheitas confiáveis,
Insetos e a Ecologia (ICIPE) encarregado de abundantes, sem compra de adubos, nem de
criar métodos agro-ecológicos fundados no herbicidas, nem de inseticidas. O bem-estar
princípio push-pull, empurrar-puxar. A par- dos camponeses cresce mas... o PIB e os lu-
te “push” consiste em semear ao mesmo tem- cros diminuem. Logo, do ponto de vista que
po que o milho uma leguminosa, Desmodium, tudo domina no mundo, o da economia, da
cujo cheiro é desagradável para o piralídeo. expansão ilimitada do sistema mercantil, é
A borboleta do piralídeo tem assim tendência catastrófico. O Estado vive das taxas de im-
a sair do campo de milho, tanto mais facil- portação sobre produtos como herbicidas,
mente que – a parte “pull” – cercou-se o cam- pesticidas ou adubos. Os fabricantes de agro-
po de milho com uma planta forrageira de ex- tóxicos fizeram uma campanha de descrédito
celente qualidade, a erva de elefante – Napier do ICIPE alegando que ele queria privar os
grass em inglês. O piralídeo põe ovos sobre agricultores africanos do acesso às tecno-
essa erva de elefante que lhe agrada e, depois logias mais modernas – aos “OGM”. Há três
dos primeiros estágios de desenvolvimento, anos o Quênia cedeu. A Monsanto utilizou
a lagarta entra no interior do caule onde se uma pesquisadora queniana, uma antiga em-
torna prisioneira da mucilagem produzida pregada, que percorreu o mundo para dizer
pela planta. A maioria das lagartas são assim que os “OGM” iam salvar a África da fome.
destruídas. Desmodium tem, além disso, três O exemplo queniano é uma parábola da
efeitos benéficos. Ela age como herbicida da lógica científica dominante. Camponeses e
estriga. Na presença do Desmodium a estriga agrônomos em seu trabalho quotidiano com
não cresce. Desmodium é uma leguminosa, a natureza elaboram com meios fracos uma
como dissemos. As leguminosas fixam o ni- alternativa criando zonas de liberdade, de au-
trogênio do ar enquanto as gramíneas, em tonomia. Mas tais alternativas não interes-
particular o milho, são gulosas por nitrogê- sam, ou interessam muito pouco, à pesquisa
nio. Você põe assim ao pé do milho uma fá- de Estado porque elas não são uma fonte de
brica biológica que lhe fornece o nitrogênio lucro. A dinâmica tecnocientífica que anima
de que ele precisa. E por fim Desmodium – à sua revelia, mas isso pouco importa – essa
protege o solo dos raios solares e da erosão pesquisa de Estado, mentirosamente dita
pluvial. Num vilarejo onde essa técnica foi “pública”, é a de criar novas mercadorias e
utilizada o número de vacas leiteiras passou portanto novas fontes de lucro, e simultânea
e logicamente destruir a autonomia das co- inundações, seca, mas são poucos os que
munidades rurais e os últimos espaços de vêem que elas são provocadas, em grande par-
liberdade. te, pela degradação dos agrosistemas. E, por
Constata-se mais uma vez a importância fim, o desenvolvimento da cultura do milho
do vocabulário. Um pesquisador de Estado “híbrido”, sob a pressão dos produtores de
não é um pesquisador público. Ele se torna sementes, fora das zonas onde os campone-
pesquisador público quando toma consciên- ses o tinham sabiamente isolado, constitui
cia de seu papel no sistema, quando se torna uma catástrofe ecológica de grande amplitu-
capaz de dissipar a cortina de fumaça ideoló- de. A cultura do milho implica desperdiçar
gica que lhe esconde esse papel. Muito pou- quantidades maciças de água para a irrigação,
cos têm oportunidade de fazê-lo. Eu tive essa ela deixa os solos nus no inverno e sujeitos à
oportunidade na minha carreira. erosão. O destruidor de ervas “daninhas” do
Em suma, em nosso mundo capitalista milho, a atrazina, é talvez o maior poluente
estatal, a autonomia e a liberdade das pessoas das águas. Quanto aos agricultores, apesar de
e dos grupos são uma ameaça. As tecnociên- subvenções maciças (açambarcadas pelos
cias são o instrumento por excelência para maiores), seu número não pára de diminuir
submetê-los. A pesquisa de Estado, enquan- e um quarto dentre eles vive na miséria.
to instituição, jamais investirá espontanea- Em face desse desastre ecológico, a pes-
mente em alternativas não-comerciais. Será quisa de Estado propõe continuar avançan-
preciso uma pressão muito forte da opinião do, propõe os clones quiméricos patenteados!
pública em face do desastre agroecológico Há três anos, pela primeira vez em mais de
para forçá-la a agir a favor do bem-estar pú- 50 anos de existência, o INRA (Institut Natio-
blico, quer dizer, contra a extensão do siste- nal de la Recherche Agronomique) se inte-
ma mercantil. ressou pela agricultura biológica. Pessoal-
mente não desejo que ele se ocupe com isso
Qual é a situação da agricultura na França? enquanto instituição, pois sua cultura, sua
razão de ser, sua missão histórica era “mo-
Calamitosa. A poluição das águas de superfí- dernizar” a agricultura, quer dizer, erradicar
cie e dos lençóis freáticos pelos pesticidas e o campesinato para pôr em seu lugar o sis-
os adubos é geral, em particular na Bretanha tema agroindustrial. O que foi feito sem cau-
onde até mesmo o mar está poluído pela pro- tela em uma geração com as conseqüências
liferação de algas verdes devidas aos nitratos que vemos.
da criação industrial de porcos, aves e bovi- Entretanto é preciso distinguir o INRA
nos. Os solos estão degradados em particular enquanto instituição de Estado dos pesqui-
nas regiões cerealistas de onde os animais de- sadores do INRA. Um certo número dentre
sapareceram, e com eles a matéria orgânica, eles dão-se conta a título individual do papel
quer dizer, a vida dos solos. A erosão é geral. que a instituição os faz representar. Mas para
As catástrofes se sucedem a um ritmo rápido, que eles possam se fazer ouvir no interior da
instituição será preciso uma pressão for- produtividade a curto prazo. Nossa agricul-
midável do exterior e, é claro, da realidade. tura científica é uma agricultura “cow-boy”. Se
Neste momento, a consciência de que a pes- alguma coisa se mexe, atira-se sem nem mes-
quisa de Estado está a serviço do Estado e de mo refletir. Os pesticidas ilustram esse grau
que o Estado não serve ao interesse público, zero da reflexão biológica. Um destruidor
mas aos interesses econômicos dominantes aparece – freqüentemente porque os her-
– as transnacionais –, permanece vaga. Para bicidas deixando os campos perfeitamente
se tornar um pesquisador público, um pes- “limpos” suprimiram seu habitat. Trata-se
quisador de Estado deve tornar-se um dis- com inseticida. Tudo vai bem até que o des-
sidente. O fato de chamar essa pesquisa de truidor se torne resistente. Aumentam-se
Estado de pesquisa “pública” permite à maio- então as quantidades utilizadas, e quando isso
ria tranqüilizar-se sem muito custo a respei- não funciona mais, introduz-se um novo
to do que faz. pesticida numa corrida para a frente cada vez
Ademais essa não é uma questão de di- mais rápida. Para os fabricantes de agrotó-
reita ou de esquerda. A “esquerda” (o que se xicos é perfeito. O número de insetos resis-
designa com esse nome) talvez seja mais ví- tentes aos inseticidas passou em 40 anos de
tima das ilusões progressistas e cientificis- algumas dezenas a várias centenas.
tas que a direita. É preciso acrescentar tam- O objetivo de uma agronomia inteligen-
bém que a cultura reducionista cartesiana que te e moderna seria definir para cada espécie,
domina o pensamento científico na França inclusive os parasitas, inclusive os destruido-
não prepara os pesquisadores para compre- res, seu lugar, seu nicho no ecossistema cul-
ender que uma planta é uma coisa diferente tivado, de modo que eles nos chateiem o me-
de um monte de genes, e que ela cresce num nos possível. Para isso é preciso voltar as
campo e não in silico, num computador, nem costas à industrialização do ser vivo. Utilizan-
que o campo faz parte de um sistema social do a diversidade do mundo vivo é que os pro-
de economia política que determina, como blemas postos pelos destruidores e pelas
vimos, até mesmo o conteúdo das “verdades” doenças serão, não eliminados – é biolo-
científicas. gicamente idiota pensar assim –, mas redu-
zidos a uma dimensão suportável. A clonagem
Você poderia falar um pouco do dinheiro investi- dos mamíferos tem contudo um interesse:
do na pesquisa em biotecnologia e não em agri- tornar evidente a destruição brutal e irrever-
cultura interativa, por exemplo? sível da biodiversidade. Quando é que nós to-
maremos consciência que se passa o mesmo
Sim... Os problemas das chamadas ervas “da- com as plantas?
ninhas”, dos destruidores, das doenças etc. No entanto segue-se o caminho oposto
são largamente criados pela industrialização já há 20 anos com o triunfo da genética. So-
da agricultura, pela pesquisa da uniformida- nha-se com a arma absoluta, com a bala má-
de industrial, das economias de escala, da gica. A mentalidade “cow-boy” continua sua
destruição. Contudo, 20 anos de investimen- Fui levado a me interessar pela indústria far-
tos maciços nas biotechs em busca da arma macêutica por duas razões. Por um lado, o
absoluta nada deram a não ser plantas pesti- projeto inicial das assim chamadas “ciências
cidas. O fracasso é maciço e evidente e mes- da vida” [sciences de la vie] era unificar num
mo os efeitos triunfais da propaganda não cartel de um pequeno grupo de empresas tudo
podem esconder essa realidade. Se as mes- o que diz respeito à biologia aplicada, ou seja,
mas somas tivessem sido investidas num pro- aos dois domínios gêmeos da agricultura e da
cedimento científico agroecológico acompa- saúde, uma vez que ambos se reduziam ao
nhado por uma transformação das políticas DNA. Este projeto foi abandonado por causa
agrícolas, nosso bem-estar – medido por cri- da rejeição européia aos “OGM”. Os labora-
térios de alimentação, de saúde pública, de tórios livraram-se dos OGM e dos agrotóxi-
meio ambiente, de empregos úteis – teria au- cos para evitar “contaminar” seus produtos
mentado consideravelmente. Mas o PIB e os farmacêuticos, imensamente lucrativos.
lucros teriam diminuído. O problema está Convinha portanto atentar para o setor far-
sempre aí. macêutico que desempenhou um papel im-
Existe um desperdício considerável de pulsionador pelo menos provisoriamente.
recursos ligado à ilusão reducionista de que Por outro lado, um exame mesmo super-
quando tivermos compreendido os genes, te- ficial do setor farmacêutico mostra que o que
remos compreendido o mundo, inclusive o aí ocorre é a imagem num espelho do que ob-
mundo social. Esta concepção extremista do servei na agricultura. Na agricultura, o sele-
reducionismo desemboca na sociobiologia. cionador deve lutar contra a concorrência
Mas entre o gene e uma planta cultivada exis- desleal das plantas e animais que se repro-
te toda uma série de níveis, cada um deles com duzem na terra do agricultor. No domínio da
seu próprio método de estudo, o genoma, a saúde, a lógica econômica exige que os labora-
célula, o órgão, o organismo, o ecossistema, tórios lutem contra essa injustiça que come-
por fim o sistema social. O que se passa na tem as pessoas de boa saúde. Jules Romains
escala molecular não tem pertinência, salvo na peça Knock escreveu uma sátira sobre este
exceção, para compreender os níveis superio- tema. O objetivo de um laboratório é o de nos
res. Desde o começo da genética, Johanssen tornar doentes, pelo menos potencialmente.
havia distinguido o genótipo (os genes) do Como estender o mercado da doença a todas
fenótipo (o organismo), infelizmente essa as pessoas saudáveis? Este é o problema
distinção embora clássica foi esquecida pela gerencial de um diretor de laboratório, que
maioria dos biólogos que se pretendem tem a obrigação de maximizar os lucros de sua
modernos. empresa.
A genômica fornece a resposta. Trata-se
Sabemos que além da agricultura você tem se in- da decifração do genoma humano. Pois todos
teressado também pela indústria farmacêutica ... nós somos portadores de “predisposições
Isabel Loureiro
Professora Aposentada do Departamento de Filosofia
da Universidade Estadual Paulista – Campus Marília.