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RENATO E ROSEU-NA BALB

LONGA VIAGEM
AO CENTRO
DO CÉREBRO
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LONGA VIAGEM
AO CENTRO

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PSICOLOGIA
LONGA VIAGEM
AO CENTRO
TÍTULOS PUBLICADOS DO CÉREBRO
1. A UNIDADE DA PSICOLOGIA
de Daniel Lagache
2. A EVOLUÇÃO PSICOLÓGICA DA CRIANÇA
de Henri Wallon
3. A TERAPIA SEXUAL
de Palrfcia e Richard Gillan
4. A SAÚDE MENTAL DA CRIANCA
de Ccleslin Frelnel
5. PSICÓLOGOS E SEUS CONCEITOS
dc Vernon Nordby e Calvin Hall
6. SEXUALIDADE E PODER
dir. de Armando Verdigllone
7. A ESCOLA NA SOCIEDADE
de Susanne Mollo
8. A PSICANÁLISE
do J. C. Sempá, J. L. Donnot, Jean Sey. Gllbert
Lascaull e Catherine Backés
9. A INTERPRETAÇÃO DAS AFASIAS
dô Sigmund Freud
10. FEITICISMO E LINGUAGEM
de J. J. Goux. Phlllipe Sollers e outros
11. COMO AMAR UMA CRIANÇA
de Janusz KorczBk
12. PSICOLOGIA DA ATRACÇAO SEXUAL
de Glenn Wilson e Davld Nias
13. ANALISE DE CONTEÚDO
de Laurence Bardin
14. O DESPERTAR DO ESPÍRITO
de Françoisc Dolto e Antoinetle Muel
15. O EXAME PSICOLÓGICO DA CRIANÇA
de Michèle Porron-Bcrolii e Roger Pcrron
16. OS EFEITOS DA EDUCAÇAO
de Michel Lobrai
17. O TEMPO DA ADOLESCÊNCIA
de Guy Avanzinl
18. PSICOLOGIA SOCIAL
da J.-Ph. Leyens
19. OS PSICÓLOGOS E A PSICOLOGIA
de David Cohen
20. O SEU FILHO DO NASCIMENTO AOS 6 ANOS
de Cenis WaMrn e Michelle de Wilde
21. O DESENVOLVIMENTO DO SER HUMANO
de Eric Rayner
22. A FILOGÉNESE DA MOTRICIDADE
de Vficr da Fcnseca
23. LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO
de Renato e Rosellina Balbi

TÍTULOS a PUBLICAR

A TIMIDEZ
de Phllip G. Zimbardo
A ESTRUTURA DA PERSONALIDAOE HUMANA
de H. J. Eysenck
A PERSONALIDAOE NORMAL E PATOLÓGICA
de Jean Bergeret
ONTOGÊNESE DA MOTRICIDADE
de Vllor da Fonseca
RENATO E ROSELLINA BALBI

LONGA VIAGEM
AO CENTRO
DO CÉREBRO

Título original: Lungo Viaggio al Centro dal Cervello


© Gius. Laterza & Figll Spa, Roma - Barl
Tradução de Ângelo Barreto
Capa de Oeborah Steicker
Direitos reservados para todos os países de Língua
Portuguesa

Avenida Duque de Ávila, 69 - r/c. - Esq.


1 edições /O 1000 Lisboa — Tels. 55 68 98 / 57 20 01

Delegação no Norte: Rua da Fábrica, 38-2.*


Sala 25 — 4000 PORTO
Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FORTES
Rua Conselheiro Ramalho, 330-340 — São Paulo
PREFÁCIO

Passaram cerca de dezasseis anos desde que submetí


à apreciação dos meus colegas a teoria da «evolução es-
tralificada». O volume que a apresentava, publicado nas
Edições Científicas Italianas, teve algumas recensões num
certo número de revistas científicas, todas lisonjeiras,
mas substancialmente «céplicas», não se comprometendo.
Um ou outro especialista citou-o favoravelmente nos seus
trabalhos e outros ilustraram cursos universitários com
os seus pontos mais significativos. Depois disso, foi o si­
lêncio.
No entanto, a teoria que tinha elaborado sobre as
sucessivas transformações do sistema nervoso vinha pôr
radicalmente em causa muitos pontos de vista tradicio­
nais e, o que é mais importante, abria novas possibilida­
des à recuperação de doentes ainda hoje considerados
irrecuperáveis. Esperava, pois, que a minha hipótese
fosse objecto de uma verificação científica rigorosa, cujos
resultados, embora podendo-a desmentir, também a po­
deríam confirmar. Tanto num caso como no outro, a ope­
ração de verificação por parte dos investigadores em neu-
ropsiquiatria, neurocirurgia e psicofarmacologia teria
r sido preciosa, quer para dissipar esperanças infundadas
quer para dar a essas esperanças uma base experimental
sólida.
Como disse, nada disto aconteceu. Por outro lado, com
o decorrer do tempo foram-se acumulando os dados,
obtidos pela investigação científica em vários países, que
confirmavam a validade da minha teoria. Paralelamente,

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO PREFACIO

eu, juntamente com a satisfação de ver multiplicarem-se tantos colegas teus, para quem falar com os 'profanos' é
as provas de ter tido razão, fui também acumulando a desonroso, talvez haja um caminho. A teoria da evolução
amargura por não ter conseguido romper a muralha que estratificada contém elementos tão fascinantes, mesmo
os adversários do «novo» (e em Itália são tantos, em tan­ para quem é estranho à ciência, e propõe explicações tão
tos sectores) levantaram para protecção das posições teó­ convincentes para fenômenos que todos nós experimen­
ricas e práticas adquiridas. A meu ver, teria sido muito támos uma ou outra vez na vida — por que razão temos
mais digna uma «guerra» aberta, uma guerra em que certos sonhos, por que razão a memória nos prega certas
cada um teria podido combater com as armas científicas partidas, por que razão sob hipnose obedecemos a um
ao seu dispor, mostrando assim a solidez das suas posi­ determinado comando, qual é o mecanismo da 'dupla per­
ções. sonalidade, por que razão a pessoa mais bondosa do
Os anos foram passando e, sobre o assunto, acabei por mundo se pode tornar má quando se encontra no meio
me reduzir ao silêncio. Para dizer a verdade, em Março da multidão —, que não deveria ser difícil utilizá-la para
de 1978, houve um número especial da revista Le Scienze um livro capaz de interessar o grande público. Além de
dedicado ao cérebro, ao cuidado de Ângelo Majorana, que que a tua hipótese também se insere, de forma original,
incluía um ensaio meu sobre a relação entre a evolução
cerebral, tal como eu a reconstruí, e o «acidente focomé- nesse mais amplo debate cultural que hoje provoca uma
lico» provocado pela talidomida. Esse ensaio inseria-se viva polemica na América, na França, na Inglaterra, e que
entre outros contributos, de cientistas de fama mundial, vê defrontarem-se reciprocamente os defensores do 'bio­
como por exemplo os Prêmios Nobel para a Medicina lógico' e do 'social', os partidários do 'inato' e do 'adqui­
A. R. Luria e Julius Axelrod. Confesso ter esperado, na rido'... Em suma, creio que, hoje mais que nunca, a tua
ocasião, que o facto de ser incluído numa revista cientí­ teoria pode suscitar discussões muito estimulantes, e não
fica da especialidade, em tão prestigiosa companhia, iria apenas no âmbito da ciência».
finalmente chamar a atenção dos estudiosos italianos so­ Como ficasse calado, reflectindo nas suas palavras, a
bre a minha hipótese. Mas, uma vez mais, isso não se ve­ minha irmã desafiou-me: «Se conseguires refrear o des­
rificou. prezo de acadêmico italiano para com a chamada divul­
Há alguns meses, falando com a minha irmã, sucedeu gação, deves ter presente que te sugiro uma divulgação
referir-me aos grandes resultados obtidos nos EUA na completamente original, e mesmo, em certa medida,
reabilitação das crianças deficientes. Observei que esses única. De facto, a divulgação 'traduz' uma doutrina cien­
resultados constituíam mais uma confirmação da teoria tífica já reconhecida e codificada, ao passo que aqui tra-
da evolução estratifiçada. Então, a minha irmã interrom­ tar-se-ia de 'traduzir' uma hipótese de grande interesse,
peu-me com severidade: «Sabes que este ano de 1981 é o mas que ainda está por verificar no plano experimental.
ano do deficiente? Será possível que não mexas um dedo Talvez que desta vez fosse a divulgação a impulsionar a
para ajudar tanto infeliz? Que não faças nada por quem ciência.»
está preso a uma cadeira de rodas pela hemiplegia? Nada Respondí que não tinha preconceitos contra a divul­
por quem perdeu o uso da palavra? Nada, em suma, por gação, mas que não me sentia absolutamente capaz de
todos aqueles para quem a tua hipótese pode significar ‘traduzir’ e resumir as mais de quinhentas páginas, re­
o ponto de partida de uma restituição à vida normal? pletas de exposições e demonstrações científicas, com que
Olha que, em certos casos, até a resignação é culpada.» em 1965 tinha ilustrado a teoria da evolução estratifi­
Respondí que não estava disposto a resignar-me, mas cada. «Está bem. Se estás de acordo, isso fá-lo-ei eu»
que não via que mais poderia ainda fazer. Ao que a minha — propôs então a minha irmã. «Terás apenas de velar
irmã replicou: «Repara que, se não caíres no snobismo de por que na minha exposição não haja erros, ou seja, vi-

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

giar por que se preserve o rigor científico. Quer dizer, as­


sinaremos o livro juntos.»
Assim foi. Os leitores julgarão se fizémos bem em
abandonar os entraves acadêmicos e nos dirigirmos àque­
les que, em definitivo, são os protagonistas e os destina­
tários da minha investigação. E é tudo.
Renato Baldi

PRÓLOGO

Suponhamos que temos diante de nós, espalhadas ao


acaso, uma série de peças de puzzle. Há uma azul, que
parece um fragmento de céu. Há outra verde, que pode
fazer parte do pé duma flor. Outra, cinzenta listrada, que
pertence com todas as probabilidades ao rabo de um
gato. Mas depois vemos outra peça que, surpreendente­
mente, lembra as linhas de um desenho delicado, como
de uma perfeita tapeçaria dos Gobelins; e outra ainda
que parece fazer parte de um arco de violino; e depois
alguns hieróglifos egípcios; e depois, ainda, a lanterna
de um capacete de mineiro. Nesta altura, convencemo-nos
de que não existe ligação possível entre objectos e situa­
ções tão diferentes e de que seria inglório esforçar-se por
encaixar as peças umas nas outras de forma a obter um
desenho significativo.
Isto para dizer que, nos vários campos da sua inves­
tigação, a ciência médica registou uma série de fenôme­
nos aparentemente heterogêneos que ficaram até hoje
sem explicação. Quando muito, para esses fenômenos
foram aventadas hipóteses. Porém, não se adquiriu cer­
teza nenhuma a seu respeito, visto que cada hipótese era
válida apenas para cada um deles. De qualquer modo,
pensar na existência de uma explicação unitária equivale
a sustentar que o rabo do gato se pode combinar de
modo feliz com os hieróglifos e que uma tapeçaria dos
Gobelins não fica mal ao lado da lanterna de um mi­
neiro. No entanto, é precisamente isto que defendemos.
Nestas páginas, submeter-vos-emos uma teoria capaz de

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO PRÓLOGO

organizar as peças díspares do mosaico num desenho, FRAGMENTO 3. Este episódio também se refere a
não só coerente, como de grande interesse pela perspec­ um homem atacado pela doença de Parkinson e data da
tiva que deixa entrever. Segunda Guerra Mundial. No decurso de um bombardea­
Comecemos por olhar de perto alguns fragmentos do mento aéreo particularmente violento, o doente, conde­
nosso puzzle imaginário. Todos os casos que vamos re­ nado à imobilidade, salta da cama, pega numa criança e
cordar foram cientificamente comprovados. De qualquer desce a escada a correr com ela nos braços.
modo, quem quiser saber mais sobre eles pode recorrer
à bibliografia indicada no fim do volume. FRAGMENTO 4. Verifica-se que algumas pessoas
possuem o que se chama uma dupla personalidade, ou
FRAGMENTO 1. Um homem é atacado pela doença melhor, uma 'personalidade alternante'. Essas pessoas
de Parkinson. Trata-se de uma doença que impede que passam imprevisivelmente do seu estado habitual, 'estado
se caminhe de forma normal. O doente é atacado de tre­ primário', a um ‘estado secundário', caracterizado pela
mor e desloca-se com grande lentidão. Por isso, o nosso presença de tendências, pensamentos e níveis de maturi­
homem, de nome Mário, mexe-se e exprime-se com difi­ dade radicalmente diversos dos do 'estado primário'. A
culdade. título de exemplo, recordaremos o caso de uma rapa­
riga francesa de 14 anos, Félida, que uma vez passada
Na sua juventude, Mário trabalhou como palhaço no para o 'estado secundário' recordava perfeitamente o que
Circo Orfeu, com o nome artístico dc 'Fiacca'. Subme­ lhe tinha acontecido no ‘estado primário'. Em contra­
tido a hipnose, readquiriu a personalidade de palhaço. partida, quando voltava à sua condição habitual, igno­
Mas há ainda uma coisa mais surpreendente: não só se rava completamente o que lhe tinha acontecido enquanto
convence de que se encontra no circo, não só pensa ver se encontrava no ‘estado secundário'. Aconteceu que Fé­
o seu cão morto há anos, não só ignora tudo o que acon­ lida 'número dois' ficou grávida e, então, Félida 'número
teceu a 'Mário', como é capaz de correr e falar com de­ um' não conseguia capacitar-se de como a coisa aconte­
senvoltura. Em resumo, realiza actos que o parkinsoniano cera.
Mário já não é capaz de cumprir. Outro facto estranho:
o ‘ressuscitado’ Fiacca não sente a dor. Assim, o primeiro FRAGMENTO 5. Este também é um fenômeno bas­
sinal de que o doente está a sair do estado de hipnose, e tante conhecido: pessoas perfeitamente acordadas podem
consequentemente da personalidade de palhaço, consiste ter percepções de que não se dão conta. Por exemplo, se
justamente na percepção de uma dor aguda provocada projectarmos imagens num écran a uma velocidade tal
por uma pinça aplicada na sua coxa, quando, durante que o observador 'não tenha tempo de as ver', ele aper­
todo o tempo em que 'foi' Fiacca, a presença da pinça não cebe-as mesmo sem ter consciência delas. De facto, se a
lhe provocou nenhum sofrimento. imagem projectada for um deserto, o observador terá
uma sensação de calor e de sede sem compreender o seu
FRAGMENTO 2. Examinemos o caso de outro parkin­ motivo. Se, em vez disso, a imagem consistir numa su­
soniano. Desta vez, trata-se de um jovem americano, cessão de palavras, e se em seguida se projectar a velo­
campeão de baseball. Por causa da doença, o atleta teve cidade normal outra série de vocábulos que inclua os pre­
de renunciar à actividade desportiva, ficando, além disso, cedentes, acontecerá que o observador, convidado a es­
completamente incapaz de andar. Passa os dias na cama, colher alguns, escolherá quase sempre as palavras ‘que
praticamente imóvel. Todavia, há momentos em que, de não tinha tido tempo de ver'.
súbito, lhe surge a recordação de quando jogava entre
as aclamações dos adeptos, e acontece que, embora por FRAGMENTO 6. Uma senhora afectada por surdez
breves momentos, o jovem é novamente capaz de correr. histérica tem o hábito de cantar. Um dia, precisamente

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO PRÓLOGO

quando a senhora está a cantar, sem que ela o veja, o Midnapore, na índia. Uma delas, à qual foi dado o nome
médico põe-se a acompanhá-la ao piano. A certa altura, o de Kamala, tinha cerca de oito anos; a outra, a quem se
médico muda a tonalidade da música e a doente segue-o chamou Amala, não devia ter mais de dezoito meses. Fo­
imediatamente na nova tonalidade, embora não tenha ram ambas levadas para um orfanato. Algum tempo de­
consciência de aperceber o som do piano. pois, a mais pequena morreu. A outra, pelo contrário, so­
breviveu cerca de nove anos, sendo o seu caso objecto de
FRAGMENTO 7. Durante dois dias e duas noites con­ um estudo atento e aprofundado. Tal como os lobos,
secutivas, o célebre músico Tartini tentara sem sucesso Kamala servia-se dos quatro membros para correr, usava
acabar uma composição. Na terceira noite, exausto, ador­ a boca em vez das mãos para agarrar a comida, bebia
meceu. Sonhou então que se encontrava no estúdio, as­ aspirando a água, quando incomodada arreganhava os
saltado pelo pensamento de não conseguir completar o dentes, uivava c brincava mais frequentemente com os
trabalho. Aparecia-lhe o Diabo, que se oferecia para exe­ cães do que com as crianças da sua idade. Pouco a pouco,
cutar ao violoncelo o tema do terceiro andamento da a rapariga humanizou-se, adquirindo a posição erecta;
sonata, ainda não composto. Tartini escutava aterrado mas se queria correr retornava à posição de quadrúpede,
mas, ao mesmo tempo, fascinado pela beleza da música. e então ninguém conseguia apanhá-la.
Ao acordar, correu a 'transcrever' à pressa e furiosa­
mente o tema do sonho. Nasceu assim o «Canto do Poderiamos continuar com os fragmentos do nosso
Diabo». puzzle. Porém, pensamos que os leitores iá se terão in­
terrogado como será possível encaixar toaos estes casos
FRAGMENTO 8. Um gato ao qual se extraiu cirurgi­ num esquema único, capaz de dar uma explicação racio­
camente o cortex occipital, isto é, a zona onde terminam nal a cada um deles. Pois bem, é isso mesmo que nos
os nervos que transmitem os impulsos visuais, fica cego. propomos fazer.
Exactamente nas mesmas circunstâncias, o homem tam­
bém fica cego. Mas isto só acontece no caso de o nosso
gato ser adulto. Se, em vez disso, a operação for efectuada
num gato recém-nascido, o animal conservará a capaci­
dade visual, embora limitada, sendo ainda capaz de pro­
curar comida e de evitar os obstáculos que encontra no
caminho.
FRAGMENTO 9. Em consequência da lesão, devida
a um tumor, da zona cerebral em que está situado o
centro da linguagem, um homem ficou reduzido a não
pronunciar mais do que cinco palavras. Além disso, pro­
nunciava essas palavras ao acaso, sem qualquer sequên­
cia lógica. Submetido à ablação cirúrgica da zona afec-
tada, o homem readquiriu imediatamente um vocabulário
muito mais rico, que além disso era capaz de ordenar
racionalmente.
FRAGMENTO 10. Em 1920, foram encontradas pelo
reverendo Singh duas raparigas num covil de lobos em

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A EVOLUÇÃO E A LEI DE HAECKEL

A vida nasceu no mar, ou seja, onde a temperatura o


permitia. Os primeiros seres vivos consistiam apenas em
protoplasma e, por este motivo, alguns cientistas não os
incluem no reino animal. Outros, nem mesmo no reino
vegetal os incluem. De resto, a diferenciação entre os
dois reinos verificou-se quando o protoplasma segregou
uma membrana celular: se esta era de natureza albumi-
nóide, as células pertenciam ao reino animal, pois as subs­
tâncias albuminóides, sendo flexíveis, permitiram ao pro­
toplasma o movimento; se, em vez disso, a membrana era
constituída por celulose, as células pertenciam ao reino
vegetal, estando condenadas à imobilidade, pois a celu­
lose é rígida.
Que a vida teve o seu início no mar c confirmado, en­
tre outras coisas, pela composição química do soro san­
guíneo nas várias espécies vivas, que é, no fim de contas,
muito semelhante à da água do mar, e é provavelmente
idêntica à composição que a água marinha apresentava
na era paleozóica. Poucos vestígios ficaram dos começos
da vida no nosso planeta, já que o organismo unicelular,
sendo mole, apenas deixava resíduos muito tênues. De
facto, os sinais de vida da era arcaica consistem quase
exclusivamente em depósitos de algas ricas em cálcio.
Pouco a pouco, surgiram sobre a Terra os primeiros
seres pluricelulares. Isto ocorreu há cerca de 650 milhões
de anos. Eram os metazoários, cujas células «se especia­
lizaram» e dividiram entre si o trabalho fisiológico. No
princípio, esses seres eram surdos e cegos. Depois, pro-

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO A EVOLUÇÃO E A LEI DE HAECKEL

gressivamente, formaram-se no seu organismo células tese nossa — o desenvolvimento cerebral iniba o instinto
sensíveis à luz, ao calor e às vibrações, capazes de trans­ sexual enquanto se processa, donde o seu 'atraso'. Por
mitir estímulos à parte muscular. exemplo, com base em dados estatísticos, provou-se a
Desde os tempos de Darwin, a teoria da evolução pro­ maior precocidade sexual dos rapazes que não estudam
vocou violentas disputas entre cientistas, filósofos, teólo­ em relação aos da mesma idade que vão à escola.
gos, etc. Ainda hoje este assunto é objecto de polêmicas Foram feitas críticas ainda mais duras aos estudiosos
apaixonadas, que do terreno científico passaram aos ter­ que do terreno da anatomia transpuseram a lei de Haec­
renos ideológico e político. Todavia, nem os mais aguer­ kel para o do comportamento. Observou-se que, ao fa­
ridos detractores do pensamento de Darwin foram capa­ zê-lo, davam provas de minimizar a importância dos es­
zes de propor uma teoria científica alternativa, capaz tímulos ambientais. Acusaram-nos de identificar arbitra­
como a darwiniana de englobar as sucessivas fases do riamente o desenvolvimento psíquico ao embrionário,
desenvolvimento percorrido pelos seres vivos do nosso descurando o facto de este último, ao contrário do pri­
planeta. De resto, no que respeita à flora, também já nin­ meiro, ocorrer à 'porta fechada', isto é, sob a influência
guém defende as teses de Lineu, segundo as quais o de factores exclusivamente orgânicos. Acrescentou-se que,
mundo vegetal representaria uma realidade imutável caso aceitássemos esses pontos de vista, acabaríamos por
desde o momento da criação. É hoje um dado adquirido achar um rapazinho de doze anos mais inteligente que
que, ao longo dos tempos, os seres simples que viveram Aristóteles ou, pelo menos, mais inteligente que o mais
na Terra em épocas remotas se transformaram em seres admirável dos homens primitivos.
cada vez mais complexos, até chegar aos homens de hoje. A primeira crítica é indiscutivelmente válida. Mas
Só algumas espécies, que em determinado período geo­ perde o seu valor se, como defendemos, a assimilação en­
lógico esgotaram a sua força evolutiva, ficaram fixas no tre filogénese e ontogénese (depois do nascimento) se fi­
estádio em que se encontravam quando essa força cessou. zer só no que respeita às estruturas subjacentes ao com­
A teoria que nos propomos demonstrar baseia-se na con­ portamento e não ao comportamento em si, só no que
vicção, de resto bastante evidente mesmo para os leigos, respeita aos suportes biológicos das funções e não às pró­
de que a evolução, ao transformar no homem actual os prias funções.
primitivos seres que surgiram na Terra, também lhes No que se refere à última objecção, em nossa opinião
transformou o sistema nervoso e as funções neuropsíqui- ela baseia-sc na confusão que se faz entre conhecimento
cas que dele dependem (os movimentos, a fala, etc.). e criatividade intelectual. Qualquer homem dos nossos
Outro elemento fundamental da nossa teoria é a 'lei dias, tendo possibilidade de se apropriar dos resultados
de Haeckel’, segundo a qual a ontogénese (a evolução do obtidos no decurso dos séculos pela investigação cien­
indivíduo) recapitula a filogénese (a evolução da espécie). tífica, possui indiscutivelmente uma visão do mundo mais
De facto, para Haeckel o embrião humano apresenta vasta e profunda da que podería ter Aristóteles, mas tam­
uma sucessão de características respectivamente seme­ bém é evidente que a força do seu pensamento será de
lhantes às dos peixes, dos anfíbios, dos répteis e dos ma­ muito longe inferior à do filósofo grego. Por outras pala­
míferos inferiores. vras, repita-se, a assimilação entre filogénese e ontogé­
A lei de Haeckel também foi alvo de muitos ataques nese só se pode considerar válida para as predisposições.
violentos. Por exemplo, sublinhou-se que o instinto se­ Na criança, por causas de ordem biológica, as estruturas
xual se apresenta muito tarde na ontogénese, ao passo relacionadas com os processos psíquicos superiores es­
que surge precocemente na filogénese. Com todas as pro­ tão inactivas; no homem primitivo, essas mesmas estru­
babilidades, o que se passa é que na ontogénese as es­ turas também estão inactivas, não por serem imaturas,
truturas requeridas pela sexualidade amadurecem biolo­ como na criança, mas antes porque ao primitivo faltaram
gicamente muito antes da puberdade, embora — e é uma os estímulos ambientais capazes de as tomar activas.

20 21
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

Assim, por exemplo, a área cerebral que preside à leitura,


embora esteja apta a funcionar nos indivíduos adultos,
por força das circunstâncias, esteve 'muda' até à inven­
ção da escrita.
A este propósito, não será inútil recordar que ainda
hoje se apresentam no cérebro humano áreas 'mudas',
pelo que não é ilegítimo supor que nessas mesmas áreas
existem centros inactivos unicamente por falta dos estí­
mulos adequados. Se num futuro mais ou menos pró­
ximo esses estímulos se vierem a produzir, tal como no
passado se produziu o estímulo da escrita que chamou
à vida o ‘centro da leitura’, as áreas silenciosas do nosso A VIDA SOBRE A TERRA NA ERA ARCAICA
cérebro deixarão de o ser e o homem enriquecer-se-à com
novas faculdades. Quais poderão ser esses estímulos do
futuro? Estarão talvez ligados à exploração do Cosmos? Para falar à maneira de certos folhetins oitocentistas,
Ninguém o pode prever. daremos agora um passo atrás no tempo. Trata-se de um
passo muito grande, visto que nos deve situar em plena
era arcaica, isto é, nos tempos dos nossos mais remotos
progenitores.
Na genealogia do homem traçada por Charles Darwin
existem muitas lacunas, como o próprio cientista inglês
admitia. De facto, as etapas evolutivas que ele propunha
eram sete: ascídia-peixe-anfíbio-marsupial-lémure-símio-
-homem. Mas, como se disse, o próprio Darwin reco­
nhecia que na sua escala havia degraus vazios. Vamos
procurar preenchê-los.
Portanto, imagine-se que subimos na máquina do tem­
po de H. G. Wells e que aterramos na referida 'era pri­
mária', no primeiro período dessa era, chamado cam-
briano (dos Cambrianos, povo das ilhas britânicas, mais
precisamente do País de Gales, onde foram justamente
descobertos vestígios desse período). Remontámos assim
a cerca de 540 milhões de anos atrás. Mas não se pense
que temos aí o início do nosso planeta. A Terra já era
adulta, tendo percorrido seis sétimos da sua existência.
Já nos referimos aos primeiros seres vivos. O caso é
que, mal começou, a vida multiplicou-se de forma in­
crível. Os mares ficaram superpovoados e a luta pela so­
brevivência foi cada vez mais dura. Naturalmente, nesta
luta foram favorecidos os animais em que se tinham de­
senvolvido tegumentos duros, cascas ou escamas. Não é

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO A VIDA SOBRE A TERRA NA ERA ARCAICA

por acaso que se regista um notável aumento dos resí­ ram assim os ostracodermes, peixes vertebrados dos quais
duos fósseis. descendem a lampreia e o peixe-bruxa. No entanto, exis­
Nos seres que viveram no período cambriano, o sis­ tia um segundo c não menos grave perigo, a hidratação.
tema nervoso organiza-se de dois modos diferentes. Ou é Dada a maior concentração salina do sangue em relação
de tipo 'radical', como nos invertebrados, ou de tipo à água doce, quando os progenitores do protovertebrado
'axial'. A este segundo tipo pertence o sistema nervoso abandonaram o mar, a pressão osmótica ameaçou fazer
dos cordados, que se chamam assim porque neles se ob­ penetrar a água no seu corpo, transformando-o numa
serva a presença de uma corda-dorsai. Como referimos, massa gelatinosa. Então, o animal recorreu aos mecanis­
o urocordado (ascídia) ocupa o primeiro degrau da es­ mos homostáticos. Foi como se se fechasse em casa, ao
cala de Darwin. abrigo das condições climatéricas externas. As células
Em seguida, ainda no período cambriano, surgem os encerraram-se dentro do corpo e por isso perderam o con­
primeiros animais dotados de um sistema nervoso cen­ tacto com a água. Dcscnvolveu-se no organismo um sis­
tral, que se estende ao longo de todo o corpo. Estes ani­ tema de condutas ramificadas, assim como uma bomba
mais são os chamados cefalocordados, o mais conhecido muscular, o coração, graças às quais o sangue era levado
dos quais é o anfioxo. às células particulares. O animal aprendeu a fabricar o
Durante muito tempo, o anfioxo foi clasificado como sal por si próprio e, através dos rins, conseguiu manter
um peixe, o ‘peixe-lanceta’. Pelo contrário, hoje ele é constante o próprio ambiente interno.
apontado como o elo de ligação entre os invertebrados e Os ostracodermes não possuíam barbatanas. No en­
os vertebrados. Haeckel chamou-lhe 'venerável', porque o tanto, a sua couraça adquiriu progressivamente protube-
estudo deste animal permitiu esclarecer muitos pontos râncias espinhosas que constituíam uma espécie de base
obscuros em anatomia e embriologia. de apoio para o movimento. Não eram nem cegos nem
Ao período cambriano segue-se o período siluriano surdos, embora o seu cérebro tivesse dimensões minús­
(assim chamado dos Siluros, um povo que, tal como os culas. Flammarion descrevia assim os ostracodermes: «Os
Cambrianos, viveu no actual País de Gales). Na sua fase sexos existem e estão separados mas, nestes animais, a
inicial, este período é conhecido por 'ordoviciano' (dos diferenciação não implica a doce lei da aproximação re­
Ordovícios, povo da Bretanha). Estamos agora cm tem­ cíproca. Não conhecem as atracções reservadas às cria­
pos mais recentes, se assim se pode dizer: dos 500 aos turas do futuro, ignoram o desejo, para eles não existe o
400 milhões de anos atrás. E aqui deparamos com o pro- sentimento afcctivo nato da união, mesmo passageira.
tovertebrado. Incapazes de amor, são igual mente incapazes de afeição
Este animal nasce na água doce. Como foi isso possí­ paterna, rnaterna ou filial. Cada peixe permanece isolado.
vel? Evidentemente, os seus antepassados abandonaram Comer ou ser comido é o seu destino. A fêmea semeará
os mares e transferiram-se para os estuários salsuginosos. milhares de ovos, de que a maior parte ficará perdida
Quanto à intenção desta emigração, era provavelmente para a vida. O macho passará alguns dias sobre estes
dupla: fugir a inimigos mais aguerridos e estabelecer-se ovos, e deixará um líquido que os fecunda. Não são seus
em zonas relativamente despovoadas, que fossem ao filhos, mas da natureza. Pobres amores, pobre vida».
mesmo tempo ricas em algas e outros recursos nutritivos. (Talvez, com a 'proveta', se não por certo com as 'cultu­
No período siluriano, verificaram-se na Terra grandes ras', estejamos hoje voltando aos 'amores' do período
perturbações. Elevaram-se montanhas e certas terras fo­ siluriano...).
ram submergidas. Estas transformações favoreceram a Transpor temo-nos agora para o período devoniano
evolução do protovertebrado. Dado que, uma vez mais, (do Condado da Devónia, ainda na Grã-Bretanha), período
a exigência primária era defender-se de outros seres vi­ que se situa a cerca de 400 milhões de anos atrás. Sur­
vos, o organismo desenvolveu uma couraça óssea. Surgi­ gem-nos peixes dotados de mandíbulas, animais agressi­

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO A VIDA SOBRE A TERRA NA ERA ARCAICA

vos e predadores. Sem eles, dificilmente os vertebrados profundamente. As algas deram lugar às árvores, que
teriam podido afirmar a sua supremacia sobre as outras formaram imensas florestas, quase completamente desa­
espécies animais. bitadas.
Durante este período, verifica-se no planeta uma su­ No princípio, o período carbonífero caracterizou-se
cessão de terríveis chuvas e de não menos terríveis secas. por uma grande aridez, o que provocou uma nova mi­
Os nossos peixes tiveram de escolher entre viver nos char­ gração para o mar. Nalguns peixes, já não sendo necessá­
cos ou em zonas pantanosas, que na maior parte do rio, o pulmão transformou-se na bexiga natatória. Os pei­
tempo estavam secas, e voltar novamente para os mares. xes teleósteos descendem precisamente dos peixes pul­
Uns optaram pela primeira solução e outros pela segunda. monados que regressaram ao mar e foram assim chama­
Os peixes que escolheram o regresso ao mar, de que des­ dos devido à ossificação das suas vértebras. Os teleósteos
cendem os esqualos e as raias, foram obrigados a en­ compreendem mais de 30 mil espécies e constituem na
frentar um problema inverso ao que, muito antes, tinham prática a grande maioria dos peixes que povoam actual-
enfrentado os antepassados do protovertebrado, quando mente os oceanos, os mares, os rios e os lagos.
passaram da água salgada para a água doce. Na realidade, Como antes tinha acontecido, também os teleósteos
agora o perigo era representado pela desidratação. tiveram de enfrentar o problema posto pela passagem
Para fugir à ameaça, os peixes cartilagíneos reduzi­ da água doce à água do mar, ou seja, o problema de como
ram a secreção de ureia. No seu sangue, a ureia tem uma manter constante a concentração salina dos seus liquidos
concentração milhares de vezes superior à dos outros orgânicos. Resolveram-no de modo novo, através das
vertebrados. Por outro lado, para dotar o ovo de um brânquias, conseguindo transferir o sal do sangue para
invólucro impermeável, foi necessário fecundá-lo no pró­ o mar sem perder água. Todavia, deve-se observar que o
prio corpo da mãe. Portanto, com os peixes cartilagíneos, caminho iniciado por estes animais não lhes teria per­
pode-se falar pela primeira vez de uma vida sexual. mitido sensíveis progressos na sua evolução, porque esta
Os outros peixes, que não quiseram voltar à água sal­ está estreitamente ligada à respiração aérea. De facto,
gada, encontraram refúgio nas poças. A solução que a maior quantidade de oxigênio presente no ar, em rela­
adoptaram para sobreviver foi a respiração aérea, que ção à dissolvida na água, favorece o desenvolvimento do
lhes permitia fugir ao perigo da lama e da seca. Assim, cérebro (por sinal, o órgão que mais oxigênio consome)
nesses peixes desenvolveu-se uma bolsa para o ar, o pul­ e dos órgãos dos sentidos.
mão, aberta como como um saco de fundo fechado no Falou-se da transformação (lentíssima: durou de 50 a
lado ventral do esôfago. Precisamente por isso, esses 100 milhões de anos) dos crossopterígeos em anfíbios.
peixes são conhecidos por 'pulmonados'. Nalguns deles Os anfíbios do período carbonífero eram animais seme­
surgiram também quatro barbatanas, destinadas a trans­ lhantes às salamandras, as patas serviam-lhes de simples
formarem-se nos membros dos vertebrados terrestres. pontos de apoio e, de facto, deslocavam-se rastejando.
Trata-se dos 'crossopterígeos' (de krossos=remos e Pensa-se que nos anfíbios a homostase era regulada pela
pteryx=antena). Essas barbatanas eram úteis aos peixes lândula endócrina. Pela primeira vez no decurso da
não só para nadar, mas também para se apoiarem fora f istória da evolução, a hipófise assumia o controlo do
de água. Os crossopterígeos são os antepassados dos an­ ambiente interno. Nestes animais, já existe uma vida
fíbios. sexual, ao passo que o seu nível intelectivo é ainda muito
Passemos agora ao penúltimo período da era arcaica, baixo. Tal como os peixes, os anfíbios lançam-se sobre a
chamado carbonífero pela abundância de carvão fóssil presa se a virem mexer, mas, se em vez disso a presa se
que o caracteriza. De facto, os actuais depósitos de car­ imobiliza, desistem do ataque.
vão remontam a essa época, ou seja, a 340 milhões de Durante o período carbonífero, embora adaptando-se
anos atrás. Agora, também o reino vegetal se transformou à existência em terra firme, os anfíbios não conseguiram

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

resolver o problema de como viver fora de água. Para


manterem o equilíbrio hídrico, viam-se obrigados a não
se afastar dela. Por outro lado, também não se podiam i
mudar para a água salgada, pois esta era para eles um
veneno. E visto que a sua respiração no estado adulto é
exclusivamente aérea, os anfíbios, embora vivendo nos
charcos, tinham que ficar à superfície para respirar. Por
conseguinte, não se podem considerar nem animais aquá­
ticos nem animais terrestres.
Ainda no período carbonífero, surgem sobre a Terra
os répteis primitivos.
Eis-nos agora chegados ao último período da era A VIDA AFASTA-SE DA AGUA
arcaica, o período permiano (o nome deriva de Perm, na
Rússia), que remonta a cerca de 270 milhões de anos
atrás. Para o nosso planeta, foi um período de grandes Como vimos, o período permiano assinalou a extin­
perturbações, numerosas terras afundaram-se no mar, os ção de numerosas espécies e a rarefacção de muitas ou­
oceanos retiraram-se, a actividade vulcânica tornou-se tras. Iniciou-se assim uma nova era, chamada ‘secundá­
muito intensa. Segundo os geólogos, foi uma das maiores ria'. Durante esta era, tanto a vida vegetal como a vida
crises na história da Terra. Embora por um período de animal afastaram-se da água.
tempo limitado, verificou-se uma primeira era gla- O primeiro período da era secundária, que remonta
ciária. a cerca de 230 milhões de anos atrás, é chamado o triás-
Devido ao frio, o número de insectos diminuiu nota­ sico (o nome deriva do facto de os primeiros terrenos
velmente. E dado que os insectos constituíam o alimento que deste período foram descobertos, na Alemanha, apre­
dos anfíbios, para estes animais, sobretudo para os giri­ sentarem na sua composição três estratos diferentes). No
nos, a vida tornou-se muito difícil. Também por isso, os início do triássico, os vertebrados terrestres eram repre­
ovos que os anfíbios punham nos charcos eram devora­ sentados apenas pelos répteis. A clemência do clima favo­
dos em grande quantidade pelos peixes. receu o aumento progressivo destes animais, e não só no
A selecção favorecia os animais que punham os ovos que respeita ao seu número, mas também pela sua va­
em terra firme, em locais isolados e pouco visíveis. Para riedade e dimensões. Assim, os répteis dividiram-se em
o poderem fazer, precisavam no entanto de dotar o ovo várias subclasses, das quais descendem respectivamente
de uma reserva de água. Alguns anfíbios adoptaram a os mamíferos, as tartarugas, as serpentes, os crocodilos
solução do ovo 'amniótico', em que o embrião está en­ e as aves. Independentemente uns dos outros, os mamí­
cerrado num saco, o 'âmnio', cheio de líquido, que cons­ feros e as aves adquiriram a homotermia, e o notável au­
titui um ambiente aquático artificial onde o embrião tem mento da renovação metabólica, só possível nos animais
possibilidades de se desenvolver. Nos dias de hoje, são de sangue quente, favorecerá neles o ulterior desenvolvi­
amnióticos os répteis, as aves e os mamíferos. No período mento dos órgãos dos sentidos e do encéfalo.
permiano surgem os primeiros répteis mamiformes. No período triássico surgem os primeiros mamíferos
, não placentados, que são os antepassados do actual or­
nitorrinco. Este animal — peludo, desdentado, com bico
de pato — apresenta características tão singulares que
lhe foi dado o nome científico de ornithorynchus para-
doxus. Vive nas margens dos rios e dos lagos, na Aus-

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO A VIDA AFASTASE DA AGUA

trália e nas ilhas do arquipélago australiano; põe ovos perigo. Por exemplo, a fêmea do opossum não só ali­
semelhantes aos dos répteis e, como eles, choca-os; as menta as crias como se preocupa em defendê-las dos ini­
crias nascem imaturas e são alimentadas por uma glân­ migos. Outro factor que contribui para a sobrevivência
dula mamária rudimentar, privada de tetas. O ornitor­ dos mamíferos, que se tomaram animais de sangue
rinco não é um animal de sangue frio, mas os seus cen­ quente, é justamente a homotermia, que lhes permite
tros termorreguladores não estão bem desenvolvidos, resistir ao frio e manterem-se acordados e activos no
pelo que quando está frio o animal arrefece um pouco e período em que, pelo contrário, os répteis, animais de
quando está calor aquece um pouco. Portanto, o ornitor­ sangue frio, ficam em letargia. Por outro lado, como já
rinco constitui o elo de ligação entre os répteis e os ma­ se disse, a homotermia favorece o desenvolvimento ce­
míferos. rebral e, como consequência, aumenta nos mamíferos a
Perguntar-se-á por que razão os mamíferos primitivos capacidade mental, o que os toma aptos a evitar muitos
como o ornitorrinco, e também como muitos marsupiais, perigos.
só conseguiram sobreviver na Austrália e nas ilhas do Durante o período jurássico, surgem as primeiras
arquipélago australiano (Tasmânia e Nova Guiné). A ra­ aves ou, melhor dizendo, os répteis voadores. Com a
zão é simples. Pelo fim da era secundária, ou talvez no aproximação do Inverno, em vez de mergulharem no
início da terciária, a Austrália e o seu arquipélago se­ sono, como fazem os répteis, estes animais emigram para
pararam-se dos outros continentes. Nesse tempo, como regiões mais quentes.
nos mostram os dados da paleontologia, os mamíferos O último período da era secundária, chamado cretá­
inferiores também viviam na África e na Europa (e entre ceo (de 'ereta', argila), remonta a cerca de 130 milhões
eles contava-se justamente o antepassado do homem). de anos atrás. É justamente durante esse período que a
Mas, na África e na Europa, os que não se transforma­ evolução dos répteis atinge o seu auge. Os répteis são os
ram acabaram por sucumbir aos mamíferos superiores, senhores do planeta, dominando a terra, os mares e os
muito mais aguerridos que eles. Pelo contrário, o isola­ ares. O Tyrannosaurus rex, o carnívoro mais forte que
mento geográfico do continente australiano impediu que já existiu, mede bem quinze metros com a cauda in­
os mamíferos superiores lá chegassem, permitindo desse cluída e, se se eleva sobre as patas posteriores, atinge
modo a sobrevivência dos inferiores. sete metros de altura.
Ao período triássico segue-se o chamado jurássico Pelo contrário, o antepassado do homem que viveu
(da corailheira do Jura, em França). Estamos a 180 mi­ no cretáceo era um insectívoro de pequenas dimensões,
lhões de anos atrás. Vê-se aparecer sobre a Terra os ma­ semelhante ao esquilo actual. Um animal desse gênero
míferos marsupiais, subdivididos em várias famílias vive actualmente no Bornéu. Tem cinco dedos em cada
muito diversificadas. De facto, contam-se entre eles car­ pata, come sentado sobre as nádegas à maneira dos es­
nívoros, herbívoros, insectívoros e omnívoros. Os marsu­ quilos, serve-se do olfacto para se aproximar da presa e,
piais que vivem nos nossos dias dividem-se em dois ra­ para fugir aos inimigos, também se serve do ouvido.
mos principais: o primeiro compreende os que têm as No final do período cretáceo há de novo uma grande
patas adaptadas ao salto, ou seja, os cangurus. mortalidade sobre a Terra. As causas desta mortalidade
No período jurássico, o clima é quente e húmido. Isso ainda não estão completamente esclarecidas. É verdade
favorece a vegetação, que se torna luxuriante, enquanto que o frio se torna mais intenso. No Alasca, onde pri­
surgem seres cada vez mais gigantescos, os dinossauros, meiro cresciam as figueiras e as palmeiras, temos agora a
que se tomam senhores absolutos do planeta. Todavia, flora característica de uma região temperada. E também
embora infinitamente mais pequenos e fracos, os mamí­ é verdade que se registam grandes revolvimentos de ter­
feros conseguem sobreviver. Em primeiro lugar, será o renos. No entanto, nenhum dos dois fenômenos tem pro­
amor pelos filhos que os fará vencer a fase de maior porções suficientes para explicar a extinção de inúmeras

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

espécies animais que se verificou neste período. Prova­


velmente, essa mortalidade foi o resultado da conjugação
de mais factores. Além do frio e dos movimentos telúri­
cos, ter-se-ia dado também uma mutação geral da vege­
tação. Seja como for, no decorrer do cretáceo desapare­
cem os dinossauros, tanto terrestres como aquáticos, ex-
tinguem-se os pterossáurios e, entre os répteis, sobrevi­
vem somente as tartarugas, as serpentes, os lagartos e
os crocodilos. Também os peixes, tanto os dos mares
como os de água doce, são dizimados, e a mesma coisa O NOSSO ANTEPASSADO REFUGIA-SE
acontece aos invertebrados, espccialmente aos moluscos. NAS ARVORES

Chegamos agora à era terciária, mais precisamente


ao paleoceno (termo que significa ‘antigo recente’). Esta­
mos a cerca dc 75 milhões de anos atrás. 0 clima tornou-
-se ainda mais rigoroso. Para os animais de sangue frio
é o fim da supremacia. Pelo contrário, com as aves,
adquirem vantagem os mamíferos. Serão estes últimos
os novos senhores da Terra.
Durante o palecoceno, surgem os lemuróides, ou
prossímios, antepassados dos lémures que hoje vivem
no Madagáscar, dos galagos africanos e dos lóris indo-
malaios. Segundo alguns estudiosos, os lemuróides cons­
tituiríam o degrau imediatamente seguinte ao dos insec-
tívoros na escala evolutiva do homem. Mas trata-se de
uma hipótese pouco convincente, pois é muito grande
a diferença entre os insectívoros, animais pouco homo-
térmicos e dotados de um cérebro muito reduzido, e os
lemuróides, que já são primatas. Por isso, entre uns e
outros não pode deixar de ter existido um ou vários elos
intermédios.
Para tentarmos perceber isto melhor, podemos re­
correr aos dados fornecidos pela embriologia do sis­
tema nervoso. Veremos então que o encéfalo de um feto
humano de três meses é semelhante ao encéfalo dos
marsupiais, que entre o terceiro e o quarto mês adquire
as características do dos insectívoros, que depois se
torna semelhante ao encéfalo dos roedores e, em seguida,
ao dos carnívoros. Só ao quinto mês o encéfalo do feto

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO
O NOSSO ANTEPASSADO REFUGIA-SE NAS ARVORES

humano assume as características próprias do encéfalo dos, essas estruturas organizarão o comportamento da
dos primatas. criança com as funções próprias dos lobos (as 'funções
0 que é que se pode deduzir de tudo isto? Se tiver­ adquiridas’ serão Tupinas’).
mos presente o paralelismo ontofilogenético de que fa­ Recordámos no princípio —fragmento 10 do nosso
lámos, pode-se deduzir que, depois de ter sido seme­ puzzle — o episódio das duas meninas encontradas num
lhante a um marsupial, o progenitor do homem foi su­ covil de lobos, na índia. Diga-se de passagem que não
cessivamente semelhante a um insectívoro, a um roedor é um caso isolado, pois outras ocorrências semelhantes
e a um carnívoro. Portanto, com base na nossa recons­ foram registadas e estudadas em diversas épocas e paí­
trução, entre os insectívoros e os lemuróides teriam ses. De resto, é muito significativo o simples facto de
existido dois elos intermédios, representados respectiva­ numerosas lendas nos falarem de histórias de crianças
mente por um roedor e por um carnívoro. criadas por lobos (só para dar um exemplo próximo,
O roedor poderia ser identificado com um animal veja-se a lenda de Rómulo e Remo). Também não podemos
que viveu justamente no paleoceno, não muito diferente ignorar a existência, embora raríssima, de pessoas ata­
do actual esquilo trepador. Em relação ao insectívoro cadas de licantropia. Como se sabe, neste tipo de delírio,
antepassado do homem, que como dissemos era seme­ os seres humanos imaginam-se transformados em feras,
lhante ao esquilo, este animal possuía uma homotermia particularmente em lobos, e agem tal como os animais
mais acentuada. em que acreditam ter-se transformado. Mais uma vez, seria
Neste momento, será de recordar algumas caracte­ impossível comportar-se como um lobo se não se pos­
rísticas do esquilo que hoje conhecemos. Embora seja suíssem as estruturas adaptadas a tal comportamento.
predominantemente herbívoro, o esquilo actual pode ali­ E, no entanto, o progenitor do homem que viveu
mentar-se também de carne e o seu modo de comer faz no eoceno devia possuir uma faculdade que falta ao
lembrar o dos símios. Vive com a companheira mesmo lobo: a de trepar por meio de unhas retrácteis. Contudo,
após os períodos amorosos. É instintivamente previ­ esta faculdade, possui-a o urso que, por outro lado, usa
dente, sendo que durante a estação favorável acumula as patas anteriores como instrumento de preensão, ou
provisões para o Inverno. É capaz de nadar, embora não seja, como mãos, com as quais agarra a presa e a leva à
tenha muitas ocasiões para pôr em prática esta capaci­ boca. Não nos esqueçamos que, tal como o homem, o
dade. Por outro lado, a fêmea ama muito os filhotes. urso é omnívoro.
Passamos agora ao período eocénico ('aurora recente’) Portanto, com todas as probabilidades, o nosso pro­
que remonta a cerca de 60 milhões de anos atrás. Na genitor que viveu no período eocénico era um animal
escala evolutiva que propomos, o antepassado do ho­ que possuía algumas características do lobo, ou também
mem existente neste período é um carnívoro muito seme­ do cão, que pertence ao mesmo ramo do lobo (de facto,
lhante ao lobo. Decerto não é casual o facto de os seres os dois animais podem cruzar-se, gerando híbridos fe­
humanos poderem ser criados pelos lobos e viverem cundos), e algumas características do urso. Existia efec-
com eles, ao passo que nunca se verificou o caso de tivamente um animal do gênero na era terciária: tra­
crianças criadas, digamos, por bisontes ou jaguares. Ora, ta-se do anficione, cujos fósseis são tão semelhantes
não se pode viver como os lobos se não se possuírem aos do cão que os paleontologistas têm bastante difi­
estruturas nervosas que permitam um comportamento culdade em distinguir os restos de um dos do outro.
Tupino’. Se uma criança cresce em ambiente humano, No entanto, ao contrário do cão, o anficione era tre­
essas estruturas não são estimuladas por factores exter­ pador como o urso. Por iso, no nosso esquema evolutivo,
nos e, por isso, não se organizam. Mas se, pelo contrá­ o anficione representa o segundo elo que faltava entre os
rio, a criança cresce num covil de lobos, ou seja, se no insectívoros e os primatas, sendo precisamente o degrau
ambiente em que vive se produzem estímulos adequa­ intermédio entre os roedores e os lemuróides.

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO O NOSSO ANTEPASSADO REFUGIA-SE NAS ARVORES

No eoceno superior, a luta pela existência tornou-se nívoros, lémures, símios cercopitecos e símios antro-
terrível. Alguns descendentes dos pequenos mamíferos pomorfos— e também fósseis pré-hominídeos.
que viveram no cretáceo tornaram-se autênticas feras. Entramos agora no oligoceno (‘pouco recente'), que
Assim, os mamíferos inferiores foram quase todos exter­ remonta a cerca de 40 milhões de anos atrás. Surgem
minados, apenas se salvando os que encontraram refúgio neste período símios semelhantes aos macacos, aos ba­
em zonas inacessíveis para os seus inimigos, como os buínos e aos mandris actuais. Estes animais são pro­
desertos ou as cavernas, os que conseguiram compensar vidos de cauda e nas fêmeas surge a menstruação, au­
as perdas contínuas com uma grande proliferação e os sente em todas as espécies animais precedentes. Além
que, para fugir, adquiriram uma agilidade excepcional ou, disso, graças ao movimento conjugado dos olhos, os
como o antepassado do homem, encontraram refúgio nas símios do oligoceno conseguem fazer convergir o olhar
árvores. Das árvores, o nosso progenitor só iria descer sobre um objecto, isto é, são dotados da visão estereos­
no plioceno, ou seja, quando aprendeu a fabricar os ins­ cópica.
trumentos necessários para enfrentar vitoriosamente os O período que se segue é o chamado mioceno ('menos
animais ferozes. recente'). Remonta a cerca de 25 milhões de anos atrás.
Nos animais que a adoptaram, a vida arborícola No mioceno, regista-se o aparecimento de numerosas
favoreceu um determinado tipo de desenvolvimento. ordens de mamíferos ainda hoje existentes, como por
A cópula tornou-se frontal. O olfacto perdeu em parte exemplo os rinocerontes e os proboscídeos. Entre os
a sua utilidade, ao passo que se acentuou a importância primatas surgem os símios antropomorfos, representados
dos outros sentidos. De facto, nos primatas, as áreas actualmente pelos gibões, orangotangos, gorila e chim­
que presidem à vista, ao ouvido e ao tacto são mais panzé. A recessão das florestas obriga o progenitor do
extensas que a área olfactiva. Por outro lado, para pro­ homem a descer das árvores e a procurar os alimentos
curar os alimentos, foi indispensável a preensão digital em terreno aberto. Inicia-se assim a sua passagem à
e, porque a manipulação permite um melhor conheci­ posição erecta, os membros anteriores perdem progres­
mento dos objectos, ela contribuiu para o desenvolvi­ sivamente a função locomotora, enquanto se desenvolve
mento psíquico dos nossos antepassados. o sentido do tacto e, depois a destreza manual.
Já assinalámos o facto de que, pelo fim da era Os animais que mais se aproximam do homem são
secundária ou no início da terciária, a Austrália e o o chimpanzé e o gorila. Este último apresenta uma maior
arquipélago australiano se separaram dos outros conti­ semelhança com o homem no que respeita à confor­
nentes. Mas como era antes a Terra? A investigação mação do esqueleto. Mas, se se tiver em conta a inte­
geológica permitiu estabelecê-lo com bastante aproxima­ ligência, é certamente o chimpanzé o mais semelhante
ção. Três continentes principais, a saber: a Laurência, ao homem. De qualquer modo, nós não descendemos
a Angária e a Godvânia. Por sua vez, esta última subdi­ nem do gorila nem do chimpanzé do mioceno, pois tanto
vidia-se na Inabrésia (compreendendo o maciço brasi­ um como outro estabilizaram nesse estádio do processo
leiro, a África centro-meridional, o Madagáscar, a índia evolutivo, mas de um terceiro quadrúmano que teria
e a Malásia) e a Paleantártida (Patagônia, Austrália, continuado a evoluir, adquirindo primeiro os caracteres
Nova Zelândia, Nova Guiné e Antártida). humanóides e depois os humanos.
Ainda nessa época, a África centro-meridional sepa­ O último período da era terciária é o chamado plio­
rou-se do resto da Inabrésia. Com todas as probabili­ ceno ('mais recente’). Segundo a opinião dominante, ini­
dades, o berço da humanidade foi precisamente nesta ciou-se há 10 milhões de anos. Neste período tem lugar
zona, onde realmente se teria dado a evolução dos ma­ o fenômeno orogenético que culminará no levantamento
míferos subprimatas para o homem. Encontraram-se aqui dos Himalaias, dos Andes e das Montanhas Rochosas às
fósseis de mamíferos superiores —como roedores, car­ suas altitudes actuais; forma-se o estreito de Gibraltar;

36 37
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

a Terra sofre um arrefecimento que preludia a próxima


era glacial.
O mioceno marcara o apogeu do reino vegetal em
esplendor e riqueza. Agora começa a sua decadência.
Devido ao frio, as palmeiras e bananeiras deixam de
crescer na Europa e as florestas desaparecem. O que,
para o antepassado do homem, se traduz no abandono
definitivo da vida arborícola.
O primeiro elo de ligação entre os símios antro-
pomorfos e o homem é representado pelos australopi-
tecos, os homens-símios, que viveram justamente no plio-
ceno, e cujos fósseis foram descobertos na África central A INTELIGÊNCIA SUBSTITUI A FORÇA
e meridional. Possuíam um psiquismo bastante baixo e
um volume craniano semelhante ao dos símios. Todavia,
a sua estrutura esquelética apresentava características Com a era quaternária termina a supremacia dos
próprias do homem. A relativa estreiteza dos ombros mamíferos não-humanos sobre a Terra. Agora, é a inte­
confirma que os australopitecos não viviam nas árvores ligência que prevalece sobre a força.
e que a sua posição era erecta. Viviam matando animais, O primeiro período desta era é o pleistoceno (‘o mais
de que se alimentavam, com o auxílio de grandes pedras. recente'), que se iniciou de um a dois milhões de anos
Não possuíam uma linguagem comunicativa social (no atrás e que, por sua vez, se divide em três subperíodos:
seu crânio constata-se um fraco desenvolvimento da parte o inferior, o médio e o superior. Este último durou até
do lobo frontal correspondente ao centro da linguagem, há cerca de doze mil anos.
ou seja, o 'centro de Broca’). No entanto, com base na lei Os fósseis do pleistoceno inferior pertencem incon-
de Haeckel e nos dados da ontogénese, podemos legiti­ testavelmente a seres humanos. São os primeiros pré-
mamente supor que os australopitecos se serviram de -hominídeos (pitecantropos, cinantropos). O exame dos
signos sonoros pela primeira vez entre os seres vivos. seus crânios mostra que a parte do encéfalo correspon­
dente ao centro de Broca já estava desenvolvida, embora
em menor grau do que se verifica no homem actual.
Portanto, esses seres já deviam possuir linguagem, em­
bora rudimentar.
Em seguida, no pleistoceno médio, surgiram seres
mais evoluídos do ponto de vista psíquico. São os pa-
leantropos, que nos deixaram vestígios de uma civili­
zação primitiva. Viviam dos frutos, da caça e da pesca.
Por outro lado, a caça não visava apenas a procura dos
alimentos, mas também e sobretudo a luta pela sobre­
vivência. Neste período verifica-se um acontecimento
decisivo: surge uma actividade especificamente humana,
que é a pastorícia. Depois da pastorícia será a vez da
agricultura.
Naturalmente, para se desenvolverem, estas novas
actividades requeriam utensílios apropriados. E, de facto,

38 39
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO A INTELIGÊNCIA SUBSTITUI A FORÇA

no decurso da era quaternária assistimos ao progressivo Entretanto, a Terra registou grandes comoções. Os
aperfeiçoamento do artesanato. Dos primeiros instru­ glaciares ocuparam vastas extensões, imensos aluviões
mentos de pedra, que eram simplesmente calhaus reco­ devastaram as zonas mais quentes e as planícies. Segundo
lhidos nos rios e mais trabalhados, passa-se a instru­ os geólogos, os períodos glaciários foram quatro, con­
mentos afiados, obtidos lascando as pedras. E visto que cluindo-se o último quando se inicia o oloceno. Não é
nos túmulos que remontam a este período se encontra­ por acaso que o dilúvio universal se encontra nas lendas
ram armas e outros objectos, conclui-se que estes nossos de todos os povos. Dele nos fala o Gênesis, que o situa
progenitores acreditavam na sobrevivência dos mortos. no tempo de Noé. Os Caldeus datam-no do mesmo pe­
Numa palavra, surgira a religiosidade. ríodo. A mitologia grega, por sua vez, narra um dilúvio
De resto, não existem dúvidas sobre o facto de se ocorrido no tempo de Deucalião, filho de Prometeu.
ter verificado durante o pleistoceno a passagem dos E, segundo conta Platão no Timeu e no Crícias, um sa­
seres pré-humanos, com faculdades psíquicas limitadas, cerdote egípcio teria contado a Sócrates a história da
a seres dotados de uma inteligência próxima da do ho­ fabulosa Atlântida, engolida pelo mar.
mem actual, pois a capacidade craniana do hominídeo
CHomo sapiens) que viveu no pleistoceno superior não
era muito diferente da nossa.
Estamos agora a cerca de cinquenta mil anos atrás.
0 artesanato continua a progredir. No fim deste período
produzem-se objectos de osso e marfim. Também nasce a
arte. Foram descobertos baixos-relevos figurando ho­
mens e animais (cenas de caça, ritos mágicos) e foram
encontradas imagens pintadas. Assinale-se também que
entre os restos do homem de Neanderthal foram desco­
bertos resíduos de carvão de lenha, o que significa que
se tinha dado a grande conquista do fogo, que permitirá
aos nossos avós manter as feras à distância e fundir os
metais.
Com o pleistoceno acaba a era paleolitica.
No oloceno ('recentíssimo'), o homem já é capaz de
trabalhar a pedra com notável habilidade, até lhe tornar
a superfície perfeitamente lisa. Também fabrica cerâ­
mica, sendo esta actividade decisiva para a futura in­
venção da escrita. Em breve, conseguirá fundir os metais:
à idade neolítica segue-se precisamente a idade dos me­
tais.
Esta última subdivide-se na idade do cobre (4000 anos
a. C.), idade do bronze (3000 a. C.) e idade do ferro
(1500 a. C.). É durante estes anos que se inicia a história.
O seu ponto de partida é constituído pela invenção da
escrita. A partir de então, o homem pode transmitir por
escrito tanto a própria experiência individual como os
acontecimentos em que toma parte ou de que tem notícia.

40 41
NASCE A LINGUAGEM

Percorremos assim, muito resumidamente, a história


da evolução das espécies, quer dizer, a filogénese. À me­
dida que decorria o processo evolutivo, com o aumento
progressivo da massa cerebral, crescia a capacidade de
aprendizagem dos seres vivos. Vejamos alguns exemplos.
Os anfíbios são capazes de reconhecer os locais, mas
não são capazes de modificar os seus hábitos mediante
reflexos condicionados. Em contrapartida, esta capaci­
dade existe nos répteis, embora de forma limitada: as
tartarugas aprendem a obedecer a um determinado cha­
mamento se desejam obter alimento. Mas só nos mamí­
feros se podem instaurar reflexos condicionados de certa
complexidade, isto é, não ligados exclusivamente à neces­
sidade de comer.
Já se falou da importância da manipulação, que per­
mitiu aos primatas a chamada ‘conduta explorativa'.
O animal interessa-se por um objecto, toca-o, examina-o,
nascendo assim um novo tipo de comportamento, que
favorece a evolução psíquica. Para ilustrar este fenômeno,
recordaremos a experiência feita por Kohler. Um chim­
panzé está encerrado numa jaula, fora da qual, no chão,
foi colocada uma banana. A distância era tal, que o ani­
mal não conseguia apoderar-se do fruto, mesmo esten­
dendo o braço através das grades. Na jaula também se
encontravam alguns paus, situados de modo que o chim­
panzé os não pudesse ver ao mesmo tempo que a banana.
Após várias tentativas inúteis para chegar ao fruto, e
depois de girar irrequieto pela jaula, para cima e para

43
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO NASCE A LINGUAGEM

baixo, o chimpanzé agarrou subitamente num pau e a barriga em tempos de abundância, e depois se via
procurou com ele puxar a banana para si. Como o pau obrigado a jejuar em tempos de carência (o que ainda
fosse muito curto, o animal foi buscar outro, e assim hoje acontece com certas tribos primitivas), agora a capa­
obteve um instrumento do comprimento necessário. cidade de projectar o pensamento no futuro faz com
Acrescente-se que, uma vez encontrada a solução de de­ que ponha alimentos de parte, em previsão dos tempos
terminado problema, em situações análogas o animal mais duros.
recorrerá novamente a ela. Referimo-nos ao comportamento dos primitivos. Pre­
O aparecimento da linguagem assinala a passagem cisamente para melhor esclarecer a evolução da psique
psíquica dos seres não-humanos para o homem. A pri­ humana no tempo, o estudo do pensamento primitivo
meira forma de comunicação tinha sido a mímica. Além é precioso e fornece indicações de grande interesse. O pri­
de servir como meio de ataque e defesa (a mímica agres­ mitivo tem um pensamento mágico. Por exemplo, acre­
siva toma mais eficaz um acto hostil, a mímica dc medo dita que o seu desejo pode influenciar os acontecimentos
num elemento componente do grupo adverte os compa­ e modificar a realidade e tem a convicção de que, caso
nheiros da existência de um perigo), a mímica também prejudique a imagem de um inimigo, prejudicará o pró­
vale como mensagem de amizade. Além disso, visto que a prio inimigo, ou de que, comendo o coração de uma
mímica era completamente ineficaz na escuridão noc­ fera, adquirirá a sua coragem. Por outras palavras, o
turna, foi preciso recorrer aos sons se se queria dispor homem primitivo recorre aos símbolos para tentar mu­
de um meio de comunicação também utilizável no escuro. dar as coisas em seu proveito.
O uso de uma combinação particular de sons para O desaparecimento do pensamento mágico é um fenô­
indicar um objecto determinado ou para dar a conhecer meno relativamente recente. Assim, para falar com rigor,
aos outros elementos do grupo a ocorrência dc certa não se pode ainda dizer que tenha desaparecido de todo
situação, assinala o nascimento da linguagem. Por imi­ (prova-o a crônica de todos os dias, mesmo nos países
tação, todo o grupo adoptará a mesma combinação de ‘avançados’). Mas, no que respeita à evolução da espécie,
sons, isto é, a mesma palavra, para indicar a mesma quando numa comunidade o juiz e o médico ocupam o
coisa. É, pois, a tendência para a imitação que permite lugar do feiticeiro, quando o homem descobre que por
a formação da linguagem. Como veremos, esta tendência detrás dos fenômenos existe uma relação de causa e
também se manifesta na ontogénese. De facto, ela é ca­ efeito, quando, numa palavra, a magia cede lugar à
racterística de uma determinada etapa do processo evo­ ciência e o tabu à lei, essa comunidade pode definir-se
lutivo individual. como 'civil'.
Com o decorrer do tempo, a palavra, que a princípio
servia exclusivamente para comunicar factos concretos,
tornou-se também um instrumento de conhecimento e
juízo. Foi a palavra que permitiu o simbolismo, ou seja,
a passagem do concreto ao abstracto. Pode-se assim dizer
que a história do pensamento humano tem o seu início
quando surge o primeiro signo sonoro que indica uma
'classe' de objectos. A partir de certo ponto, a palavra
casa deixou de designar simplesmente esta casa e passou
a designar qualquer casa. 0 homem teve assim a pos­
sibilidade de desviar a sua atenção de quanto o circun­
dava, do presente, para olhar o passado e o futuro. En­
quanto até àquele momento se tinha limitado a encher

44 45
PRIMEIRO «SUPERSTRATO».
OBJECTIVO: A SOBREVIVÊNCIA

Como os leitores recordarão, a teoria que aqui pro­


pomos, a que demos o nome de ‘teoria da evolução
estratificada', baseia-se no darwinismo e na aplicação da
lei de Haeckel ao sistema nervoso. A hipótese é esta:
quer durante a vida intra-uterina (antes do nascimento)
quer durante a vida extra-uterina (após o nascimento),
cada um de nós passa pelas mesmas fases percorridas
pelo antepassado do homem durante a evolução da espé­
cie. Assim, por exemplo, na criança de um ano amadu­
recem (note-se: «amadurecem» e não «formam-se», por­
que já estão formadas, juntamente como as das fases
seguintes) as mesmas estruturas que filogeneticamente
se verificam no símio. Disso decorre que o nosso com­
portamento será de cada vez governado por estruturas
nervosas, ou 'centros', semelhantes às que nas diversas
fases filogenéticas presidiram ao comportamento dos
nossos progenitores (invertebrados-cordados-peixes pri-
á mitivos-anfíbios-répteis mamiformes-mamíferos primiti-
vos-marsupiais-insectívoros-roedores-carnívoros-prima-
tas). Atenção: estamos falando das estruturas nervosas
que o comportamento pressupõe, e não ainda do com­
¥ portamento em si, que é influenciado de modo decisivo
pelos estímulos exteriores; contudo, à excepção dos ins­
tintos, as nossas funções são na sua maioria 'funções
adquiridas'.
Ao conjunto das estruturas activas em cada fase da
evolução ontofilogenética demos o nome de 'níveis'. Se­
gundo a nossa hipótese, à medida que se formam, os

47

\
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO PRIMEIRO «SUPERSTRATOi

níveis estratificam-se no nosso cérebro. Ficando inac- pelo contrário, encontramos um leão fugido do zoo o
tivos ao formar-se um nível mais recente, a cujos cen­ nosso susto será enorme.
tros as estruturas inferiores 'concedem' as suas funções, Ora, como se referiu, o facto do centro da afectivi-
caso se verifiquem determinadas situações, esses níveis dade ser geneticamente arcaico não significa que, em
podem todavia voltar à actividade, com a 'restituição' condições normais, isto é, quando funciona em nós o nível
das ditas funções. Portanto, de certo modo, o nosso cére­ superior, a nossa reacção aos estímulos dotados de carga
bro assemelha-se à Terra, consistindo como ela numa afectiva (por exemplo, o aparecimento do leão em liber­
série de estratos que em épocas sucessivas a evolução dade) seja idêntica à que se verificaria no caso em que
colocou uns sobre os outros. Cada estrato novo carac­ fosse o nível arcaico a ser activo. Por que motivo? Porque
teriza-se por um enriquecimento das funções, ou porque ao contrário da função, da afectividade ligada aos estí­
surgem novas funções ou porque as mesmas funções se mulos externos, a função da percepção transforma-se
modificaram qualitativamente. durante o processo evolutivo e, paralelamente a esta
Como se acaba de dizer, um nível representa o con­ transformação, formam-se novos centros da percepção
junto das estruturas ou centros que presidem a funções em cada novo nível: daquele que nos permite saber se
inexistentes nos níveis precedentes. Por exemplo, nos a fonte do estímulo está longe ou próxima, àquele que
níveis pré-humanos falta a função da linguagem. Porém, nos permite determinar as dimensões do objecto esti­
nesse nível também estão presentes e activas estruturas mulante. Isto explica justamente porque, conforme o
que não lhe pertencem exclusivamente, mas antes são nível excitado por um estímulo ambiental dotado de
comuns a mais níveis. Trata-se dos centros que chamá­ carga afectiva, o nosso comportamento será diferente,
mos de 'integrados' e que controlam funções não modi­ embora controlado pelo mesmo centro da afectividade,
ficadas da evolução. Embora pertencendo geneticamente que é comum aos vários níveis.
a um nível arcaico, o centro integrado não é inibido pela
maturação das estruturas próprias de um nível superior, Por outras palavras, o centro integrado pode compa­
como acontece aos seus outros 'companheiros' de nível. rar-se a uma encruzilhada. Em regra, no homem adulto
É, por assim dizer, cooptado pelo nível mais recente e, ele transmite o impulso nervoso aos centros do circuito
portanto, ao contrário das outras estruturas inferiores, é superior e, em tal caso, a reacção ao estímulo será ade­
excitado pelos mesmos estímulos que excitam os seus quada (face ao perigo, comportar-nos-emos racionalmen­
novos 'companheiros', ou seja, as estruturas do nível su­ te). Se, pelo contrário, a carga afectiva do estímulo é
perior. Naturalmente, o comportamento produzido pelo tão forte que anula a acção das estruturas inibitórias
centro integrado será diferente conforme o nível activo que normalmente impedem o funcionamento do nível
em cada momento. arcaico, este último tomar-se-á activo e o centro inte­
Tomemos o exemplo do centro que preside à afectivi- grado transmitirá o impulso nervoso aos seus velhos
dade ligada aos estímulos externos, ou seja, às emoções 'companheiros'. Neste caso, a nossa reacção ao estímulo
que uma certa situação ambiental produz em nós. Este será de tipo arcaico, irracional e muito frequentemente
centro, que precisamente é integrado, remonta à pri­ inadequada.
meira infância mas, à medida que no encéfalo se formam Teremos ocasião de voltar a este assunto mais tarde.
novos níveis, é 'chamado' a fazer parte deles. É graças Antes, porém, será necessário ilustrar o esquema dos
à actividade deste centro que podemos estabelecer se vinte e um níveis ontofilogenéticos especificados por
determinado estímulo externo é agradável ou desagradá­ nós. Para não sobrecarregarmos a exposição, evitaremos
vel, se nos perturba ou se antes nos deixa indiferentes. deter-nos nas estruturas cerebrais que se formam ou
Se vemos um leão na jaula ficamos indiferentes, mas se, amadurecem nos níveis particulares.

48 49
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO PRIMEIRO «SUPERSTRATO

Agrupámos estes vinte e um níveis em três 'supers- Na filogénese, os membros estão ausentes; paralelamente,
tratos', cada um dos quais tende a atingir um objectivo na ontogénese, a mobilidade do feto está limitada ao
específico. As estruturas do primeiro superstrato, que tronco. Também, aqui, o objectivo é a sobrevivência do
regulam a vida vegetativa, visam a sobrevivência. As es­ organismo.
truturas do segundo superstrato, que controlam a vida
afectiva, visam a obtenção do prazer. As estruturas do NÍVEL TRÊS — Na filogénese, estamos no cambriano
terceiro superstrato, que presidem à vida intelectual, superior, o antepassado do homem é semelhante ao an-
têm por objectivo o que é útil e certo (ou melhor, o fioxo. Já existe um sistema nervoso central que regula
que ‘se pensa ser' útil e certo). Cada superstrato é cons­ a mobilidade de todo o corpo e que é indispensável à
tituído por sete níveis. sobrevivência, quer para procurar alimento, quer para a
defesa-ataque nos confrontos com os inimigos, quer para
NÍVEL ZERO — Na filogénese, é o nível de um ser regular as principais funções vegetativas. Na ontogénese,
unicelular. Na ontogénese, corresponde ao ovo fecun­ este nível corresponde ao período compreendido entre
dado. O nível zero, não tendo estruturas nervosas, não a nona e décima primeira semana da concepção. Qual­
se estratifica no encéfalo. O seu objectivo consiste na quer que seja a parte do corpo atingida por um estímulo
sobrevivência da própria célula. sensorial, o organismo reage através do sistema nervoso
central.
NÍVEL UM — Na filogénese, tal como o nível zero,
este nível também não tem estruturas nervosas. Na on­ NÍVEL QUATRO — A etapa filogenética que corres­
togénese, existem indubitavelmente estruturas nervosas, ponde a este nível é o período siluriano, quando o nosso
mas não funcionam, isto porque o nível um também não antepassado era semelhante a um peixe primitivo. Como
se estratifica no encéfalo. Na filogénese, corresponde ao recordamos, ao transferir-se dos mares para a água
estádio em que o antepassado do homem era semelhante doce, aquele peixe tem de recorrer a um mecanismo ho-
a um celenterado. Na ontogénese, ao período que vai da mostático e, ao mesmo tempo, pela primeira vez na
terceira semana da concepção à sétima. O objectivo já evolução, aparecem num organismo vivo os apêndices de
não é, como antes, a sobrevivência da célula, mas a do locomoção que lhe permitem nadar. Na ontogénese, este
organismo. Se necessário, a célula pode inclusivamente é o período que vai da décima primeira semana da
ser sacrificada no interesse do organismo (é significativo concepção à décima terceira. Embora no feto os movi­
que, nos organismos pluricelulares, as células individuais mentos predominantes sejam ainda os do tronco, os
vivam menos tempo do que viveriam e estivessem iso­ membros começam a movimentar-se. Nesta fase, o objec­
ladas: nas culturas artificiais, por exemplo, as células do tivo do organismo é a conservação da homostase, que é
embrião do pinto sobrevivem durante anos, enquanto indispensável à sobrevivência.
que, se ficassem dentro da galinha, morreríam em pouco
tempo). NÍVEL CINCO — Corresponde, na filogénese, ao pe­
ríodo carbonífero. O antepassado do homem é agora seme­
NÍVEL DOIS — É o nível que, na filogénese, corres­ lhante ao anfíbio. Este nosso progenitor abandonou a
ponde ao período cambriano, quando o antepassado do vida aquática e no seu organismo aparecem as estrutu­
homem era semelhante aos urocordados (ascídia). O sis­ ras que permitem a respiração aérea, assim como os
tema nervoso central só existia na parte posterior do quatro membros, que lhe permitem caminhar. Natural­
corpo e dava lugar à ‘reacção de defesa'. A mesma reac- mente, formam-se também as estruturas nervosas que
ção aparece neste estádio da ontogénese, ou seja, no controlam a locomoção. Na ontogénese, este nível cor­
período que vai da sétima semana da concepção à nona. responde ao quarto mês da vida intra-uterina. Aparecem

50 51
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

no feto os movimentos rítmicos respiratórios, embora


neste estádio não sejam necessários à respiração. Con­
tudo, o centro da respiração aérea já está maduro.
A mobilidade dos membros prevalece em relação à do
tronco e, doravante, o sistema neuroendócrino controla
o metabolismo.
NÍVEIS SEIS — Na filogénese, corresponde ao pe­
ríodo permiano. Agora, o nosso antepassado é semelhante
ao réptil mamiforme. Tendo-se a vida afastado da água,
torna-se necessário regular a homostase hídrica e, assim, SEGUNDO «SUPERSTRATO».
aparece nos répteis mamiformes o 'reflexo de sucção', OBJECTIVO: O PRAZER
que é o primeiro reflexo próprio dos mamíferos, ou seja,
aquele que permite o aleitamento. Na ontogénese, esta­
mos no quinto e sexto meses depois da concepção. Surge Passamos agora aos sete níveis do segundo supers-
o reflexo de sucção. Existe já o mecanismo que regula a trato, caracterizados como se disse pelo aparecimento de
homostase hídrica, necessário num ambiente não aquá­ um novo objectivo, o prazer. Um prazer que se toma
tico, que permitirá ao feto a vida extra-uterina. Su­ cada vez mais complexo: no princípio procura-se qual­
blinhe-se que, como os répteis mamiformes são hoje em quer estímulo agradável, depois um estímulo agradável
dia uma espécie extinta, neste estádio da ontogénese a particular e, por fim, o prazer que deriva do afecto dos
que estão próximos. Mas, visto que no encéfalo persis­
sobrevivência do feto é apenas teórica; os que nascem tem os objectivos dos níveis precedentes, o número dos
ao sexto mês, embora vivos, não conseguem sobreviver. comportamentos possíveis aumenta.
NÍVEL SETE — É o nível correspondente, na filogénese, NÍVEL OITO — Corresponde, na filogénese, ao pe­
ao período triássico. O progenitor do homem é agora ríodo jurássico. Naquela época, o nosso antepassado era
semelhante a um mamífero, isto é, ao primeiro ser vivo semelhante aos marsupiais nadadores e trepadores. Na
em que se produz a homotermia, graças à qual o orga­ ontogénese, é o período recém-natal, que compreende os
nismo se torna autônomo em relação à temperatura am­ primeiros quinze-trinta dias de vida. Nos recém-nascidos
biente. Para este animal, o sentido mais importante é o produzem-se movimentos natatórios. A alteração de ho­
olfacto. Aparece nele o reflexo de ‘preensâo palmar', que, mostase dá lugar ao aparecimento da necessidade, ou
por sua vez, é a premissa do 'reflexo de posição erecta'. seja, o organismo é induzido a um comportamento capaz
Na ontogénese, este nível corresponde ao período com­ de normalizar a própria homostase (a sede obriga a in­
preendido entre o sétimo mês da concepção e o nasci­ gerir água). O objectivo deste nível é precisamente a sa­
mento. Os fetos que nascem ao sétimo mês estão em con­ tisfação das necessidades.
dições de sobreviver, mas precisam de protecção pois os
centros termorreguladores ainda estão imperfeitos, donde NÍVEL NOVE — Na filogénese, este é o nível corres­
a necessidade da incubadora. Aparece o reflexo de pondente ao período cretáceo, quando o progenitor do
‘preensâo palmar'. O sentido do olfacto está em condições homem era semelhante a um insectívoro. Na ontogénese,
de funcionar e, de facto, funcionará assim que o ar pene­ é o período que vai do décimo quinto-trigésimo dia ao
trar nas cavidades nasais. Neste estádio, o objectivo é a terceiro-quarto mês de vida. Característico desta fase é o
conservação da homostase térmica. aparecimento da aflição (segundo mês) e da alegria (ter­

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO SEGUNDO •SUPERSTRATO»

ceiro mês). 0 comportamento tende a fazer aumentar a NÍVEL ONZE — Na filogénese, estamos no eoceno,
componente agradável. Por conseguinte, os incentivos já quando o progenitor do homem era semelhante a um
não estão ligados apenas às necessidades vitais, embora carnívoro. Com o surgimento da memónia, o nosso ante­
neste período ainda não se possam evocar recordações passado está apto a distinguir os amigos dos inimigos.
de experiências passadas, porque o mundo exterior Manifesta-se também nele o sentido da posse, toman­
ainda não é feito de objectos, mas apenas de imagens flu­ do-se agressivo perante o que não lhe pertence. Efectiva-
tuantes que se sucedem caoticamente. Em contrapartida, mente, os animais 'fixados' nesta fase evolutiva, as feras,
surge a chamada 'reacção circular primária': se uma são dos mais agressivos que se conhecem.
acção conduz a um resultado agradável é repetida, se o Na ontogénese, é o período compreendido entre o
resultado é desagradável não se repete. 0 lactente ad­ sexto e o oitavo mês de vida. Agora, a criança distin­
quire deste modo a capacidade de hábitos individuais. gue-se a si mesma do mundo exterior e, através da posse,
Agora, o objectivo já não é a satisfação das necessidades, procura alargar o próprio eu. Na fase precedente podia-
mas precisamente o máximo prazer possível. -se-lhe tirar um brinquedo sem a fazer chorar, agora
isso já não é possível. Além disso, a criança torna-se
NÍVEL DEZ — Corresponde, na filogénese, ao período agressiva em relação ao que não é seu. Surge nela a
paleocénico. Naquela época, o nosso antepassado era memória, as pessoas e coisas adquirem um significado
semelhante a um roedor, mais exactamente a um es­ afectivo particular e, a partir do oitavo mês, a criança
quilo. A mímica adquiriu agora uma função social, os já não sorri a toda a gente, mas só a quem considera
reflexos condicionados não estão necessariamente liga­ seus amigos. A procura do prazer identifica-se agora com
dos à alimentação, a aprendizagem torna-se possível. a da posse.
Ainda nesta fase, verifica-se um cruzamento parcial das
NÍVEL DOZE — Corresponde, na filogénese, ao eoceno
vias ópticas, que permite o funcionamento sincronizado superior, quando o nosso antepassado era semelhante a
dos olhos e, assim, os objectos podem ser identificados um lemuróide, ou prossímio. Neste animal aparece a
pormenorizadamente. preensão digital. Graças à manipulação, aprende novos
Este nível corresponde, na ontogénese, ao período que esquemas de acção. Em consequência da vida arborícola,
vai do terceiro-quarto mês de vida ao sexto. Durante o o sentido da vista aperfeiçoa-se e a visão estereoscópica
quinto mês, podem-se produzir no lactente reacções con­ modifica o conceito de espaço.
dicionadas de estímulos não-alimentares. Os hábitos ca­ Na ontogénese, é o período compreendido entre o
sualmente adquiridos transformam-se em actos seguidos oitavo e o décimo mês. Surge a preensão digital. A crian­
intencionalmente (apareceu a ‘reacção circular secun­ ça não se limita, como antes, a meter o objecto na boca,
dária'). Aparecem as primeiras emoções diferenciadas, mas toca-o, explora-o, identifica-o. Em suma, os seus
como o medo, a cólera, o desgosto. As reacções mímicas actos destinam-se a conhecer o que lhe pertence. Surge
são instintivas e seguem esquemas hereditários. Assim, a visão estereoscópica e o conceito de espaço alarga-se.
se o lactente vê à sua frente um rosto humano, aparece A criança torna-se capaz de agarrar os objectos coloca­
nele a reacção de sorriso (que falta no estado filogenético dos para lá das grades do berço e é capaz de gatinhar.
correspondente: trata-se de uma ‘Gestalt privilegiada'). Aprende mesmo a existência de certos objectos que não
Ainda nesta fase, surge o reflexo à adaptação óptica, con­ consegue ver. De facto, se lhe esconderem um brin­
sequência do facto de os olhos funcionarem em sincronia. quedo, ela procura-o. O que prova que, embora vaga­
O objectivo do nível dez é a procura de um prazer mente, já adquiriu o conceito de tempo; agora, aquele
que já não é indiferenciado, mas que se liga a estímulos objecto tem para ela uma 'duração'. Imitando a mãe, a
particulares. criança aprende a emitir alguns sons que, inicialmente,

54 55
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO SEGUNDO «SUPERSTRATOi

não têm nenhuma finalidade de comunicação, mas que muito bem a passagem da primeira para a segunda fase,
emite apenas como divertimento. numa criança dc catorze meses. Durante muito tempo,
O objectivo do nível doze consiste no prazer derivado a criança tentou sem sucesso tirar um anel de uma caixa
do conhecimento do que se possui. semiaberta. De repente, interrompeu os seus esforços,
observou a abertura da caixa, escancarou a boca e, final­
NÍVEL TREZE — Corresponde, na filogénese, ao oli- mente, com uma expressão de triunfo, abriu-a completa­
goceno. O antepassado do homem era nesse tempo seme­ mente e apoderou-se do anel. Quer dizer, antes de passar
lhante a um símio (atenção, não «era um símio», como à acção tinha conseguido 'representar-se' interiormente o
afirmam os que simplificam arbitrariamente a teoria de mecanismo de abertura da caixa.
Darwin). Surge a imitação, mesmo se o nosso progenitor No campo das emoções, neste período manifesta-se o
não é ainda capaz de apreender o significado daquilo que ciúme. A criança escolheu a mãe afectivamente e não está
imita. disposta a partilhar o seu amor com ninguém. O objec­
Na ontogénese, é o período que vai do décimo mês ao tivo deste nível é o afecto de quem se ama.
décimo segundo. Pela própria experiência, a criança des­
cobre novos esquemas de acção ('reacção circular terciá­
ria'). Por exemplo, puxa para si uma coberta para sc apo­
derar de um brinquedo que se encontra em cima dela,
mas fora do seu alcance. Imita a linguagem dos adultos
mesmo sem a compreender. É precisamente nisto que
consiste o 'macaquear'. Por outro lado, começa a dis­
tinguir as diferenças de forma e de grandeza entre os di­
versos objectos que a rodeiam.
Com o desenvolvimento das próprias capacidades, a
criança adquire um novo sentimento, o orgulho. De facto,
o objectivo do nível treze é a demonstração da própria
habilidade.
NÍVEL CATORZE — Na filogénese, corresponde ao
mioceno. O nosso avô era semelhante aos símios antro-
póides, que são capazes de uma 'conduta com critério'.
São animais em que a memória é duradoira, e que por
isso podem desejar mesmo coisas não visíveis no mo­
mento. De igual modo, mostram hostilidade ou afecto
para com os seres que, em ocasiões precedentes, se mos­
traram respectivamente inimigos ou amigos.
Na ontogénese, é o período que vai do décimo se­
gundo ao décimo quarto mês. Agora, a criança é capaz
de resolver os mesmos problemas que um chimpanzé.
Passou da ‘fase sensomotora’ para a ‘fase da representa­
ção'. Para obter um resultado já não tem que fazer lon­
gas tentativas, pois doravante é capaz de ‘representar-se'
os efeitos das próprias acções. Piaget conseguiu observar

56
TERCEIRO «SUPERSTRATO».
OBJECTIVO: O ÜTIL E O CERTO

Eis-nos agora nos últimos sete níveis, que constituem


o terceiro 'superstrato'. Estes níveis já não visam o al­
cance do prazer (no homem adulto, a única conduta real­
mente motivada pelo hedonismo é a sexual), mas o al­
cance do que é 'certo', em cujo conceito também se in­
clui o 'útil'. E, visto que o critério para identificar o que
é certo se baseia no conhecimento, quando este último se
modifica também se modifica o objectivo a atingir.
Como já dissémos a propósitos do segundo 'supers­
trato', persistem no cérebro do homem os objectivos dos
níveis precedentes. Por isso, as suas acções não estarão
relacionadas só com os elementos cognoscitivos, mas tam­
bém com os afectivos, ou seja, com os desejos. Assim, o
comportamento humano torna-se mais complexo, sendo
governado por uma multiplicidade de motivações.
NÍVEL QUINZE — Corresponde, na filogénese, ao
plioceno. 0 nosso antepassado era semelhante ao aus-
tralopiteco. Tinha uma posição erecta e, embora o seu
psiquismo fosse muito baixo, era capaz de procurar os
instrumentos de que tinha necessidade, ou seja, as pe­
dras que usava para combater as feras.
Na ontogénese, é o período que vai do décimo ao dé­
cimo oitavo mês. Agora, a criança destaca-se de todos os
animais, mesmo dos evolutivamente mais próximos do
homem. Adquire a posição erecta e começa a pronunciar
algumas palavras, embora a sua linguagem seja incom­
preensível. O aparecimento da 'reacção pedálica', que

59
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO TERCEIRO «SVPERSTRAIO.

consiste em agarrar os objectos com os pés, significa que verificar-se crises de rebelião. É o que os psicanalistas
a criança superou agora o estádio dos quadrúmanos. É ao definem como a 'fase sádico-anal'. A rebelião da criança
nível quinze que pertencem os centros, situados no lobo tem origem no facto de que a mãe a obriga a manter-se
frontal, que permitem a previsão do futuro. Assim, a limpa, a controlar o esfíncter, a toda uma série de re­
criança aprende que é melhor renunciar a certos prazeres núncias, formando-se assim na criança impulsos agressi­
porque, com base na experiência, sabe que daí lhe advi­ vos e o gosto selvagem pela oposição.
rão consequências negativas. (Também os australopitecos Não será inútil determo-nos sobre o nível dezasseis,
possuíam uma previsão do futuro; prova-o justamente o porque as estruturas desse nível têm um papel funda­
facto de recolherem as pedras que em seguida utilizavam mental na evolução. A obediência — que, repita-se, diz
na luta contra as feras.) respeito aos pais na ontogénese, aos chefes e feiticeiros
O objectivo deste nível é o que resulta útil. na filogénese — permite aos indivíduos aprender muito
mais do que lhes seria possível com base na simples ex­
NÍVEL DEZASSEIS — Corresponde, na filogénese, ao periência pessoal. Não é por acaso que o próximo degrau
pleistoceno inferior e médio, quando o nosso antepassado da escala evolutiva será o homo sapiens. Se, todavia,
era semelhante ao Homo erectus, uma espécie hoje ex­ devido a circunstâncias particulares, no homem adulto
tinta. Como testemunham as descobertas arqueológicas, de hoje as estruturas deste nível se tornam activas — e a
este progenitor do homem acreditava na sobrevivência nossa teoria refere-se justamente à causa e aos mecanis­
dos mortos. Por isso, é provável que depositasse confiança mos de uma tal reactivação — o indivíduo tomar-se-à
nos feiticeiros, capazes de interpretar o sobrenatural, e extremamente influenciável e capaz de imitar tudo o que
que obedecesse cegamente às suas ordens. Também é vê fazer aos outros. São os centros do nível dezasseis
provável que neste estádio evolutivo a linguagem se tenha que determinam o comportamento da multidão, dis­
tornado um meio de comunicação social. posta a seguir todo aquele que se autoproclame chefe,
Na ontogénese, é o último período da primeira infân­ conquanto as directivas que dele partem correspondam
cia, que vai do décimo oitavo ao trigésimo ou, segundo às paixões do momento e mesmo se estas paixões não
alguns, ao trigésimo sexto mês. Doravante, a criança ca­ tiverem qualquer relação com as reais tendências dos in­
minha erecta e começa a compreender o significado sim­ divíduos. Os indivíduos-massa parecem-se todos entre si
bólico das palavras. Por exemplo, faz a relação entre a porque a semelhança deriva da imitação recíproca. E
palavra 'não' e uma proibição. Pela imitação, a criança dado que no nível dezasseis estão presentes dispositivos
não só assimila a linguagem como também o modo de correlacionados com a agressividade e com o sadismo,
pensar, de sentir e de agir das pessoas que aos seus como vimos na criança que se encontra nesta fase, a
olhos gozam de prestígio. (Na verdade, pode tratar-se de multidão pode ser muito cruel, embora, tal como na
um irmão mais velho, nunca de um irmão mais novo.) hipnose, as acções do indíduo-massa nunca contradigam
Considera omniscientes e omnipotentes todos quantos as suas tendências pessoais.
lhe satisfazem as necessidades e prazeres, tomando-os Uma vez que falámos na hipnose, acrescentemos que
como modelos. Uma ordem é seguida pelos simples facto também nas pessoas hipnotizadas volta a funcionar o ní­
de se ter respeito pela pessoa que a dá, ou seja, não é vel dezasseis. E é provável que algumas manifestações
submetida a crítica. Falta o sentido da responsabilidade esquizofrênicas, como por exemplo a ecolalia, isto é, a
pessoal. repetição de palavras, também sejam determinadas pelas
Portanto, nesta fase procura-se o útil com base na estruturas presentes no nível dezasseis. Por outro lado, o
confiança acrítica depositada em pessoas com autori­ elemento 'confiança' característico deste nível falta nos
dade. Donde a obediência aos pais na ontogénese, aos esquizofrênicos. Assim, na base do delírio desses doentes
feiticeiros e aos chefes na filogénese. Podem, no entanto, encontra-se precisamente o oposto da confiança, ou seja.

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO TERCEIRO tSUPERSTRATOi

a desconfiança, a suspeita. E então? Tal como a con­ sexo, ligação erótica a que, como é conhecido, foi dado o
fiança induziu a criança a controlar o esfíncter neste es­ nome de complexo de Edipo).
tádio evolutivo, assim também as perturbações do esfínc- 0 objectivo deste nível é o que a sociedade considera
ter que às vezes se verificam nos esquizofrênicos, e ou­ certo.
tras manifestações do seu comportamento, derivam da
não-confiança. Como se disse, também na criança se ve­ NÍVEL DEZOITO — Na filogénese, corresponde à
rificam nesta fase crises de rebelião. idade neolítica. Vivia então um homem primitivo sujeito
aos tabus. Todavia, enquanto no estádio evolutivo prece­
NÍVEL DEZASSETE — Corresponde, na filogénese, à dente as obrigações correspondiam às exigências da vida
idade paleolítica (pleistoceno médio e superior). A partir comunitária, agora elas adquirem um carácter sagrado,
de agora, o nosso antepassado pertence à espécie Homo pois foram assimiladas culturalmente, graças ao prestígio
sapiens. É um ser social, que vive em comunidade, pelo daqueles que as impuseram.
que já não pode satisfazer os desejos que contradizem as Na ontogénese, estamos no quinto ano de vida. As
exigências do grupo. Em suma, deve submeter-se às re­ proibições, que antes provinham do exterior sob a forma
gras da sociedade. evidente de ordens, são agora fruto de uma auto-impo-
O homem vive da caça e da pesca. Se durante a noite sição. A criança fez sua a autoridade dos pais e, com ela,
é despertado por um ruído imprevisto, e em si o ruído as suas obrigações. As regras de qualquer jogo são con­
anuncia um perigo, o nosso antepassado fica aterrorizado. sideradas absolutas e imutáveis, ai de quem as infrinja.
Nele, a lógica ainda está ausente, o pensamento é mágico. Forma-se a consciência moral, o Super-Eu de Freud, que
Na ontogénese, este é o período que vai do trigésimo- no entanto ainda não é autônoma, estando ligada quase
-trigésimo sexto mês a todo o quarto ano de vida. Em exclusivamente ao juízo dos adultos. (Segundo a psica­
oposição às tendências imitativas, emergem na criança nálise, os desejos 'proibidos' que a criança desta idade
as tendências individuais. Antes, a criança falava de si na reprime são removidos da consciência, mas não elimina­
terceira pessoa, agora começa a usar a primeira; quer dos: são simplesmente repelidos para o inconsciente).
tornar-se autônoma; graças aos jogos, frequentemente Também o objectivo do nível dezoito é o comporta­
de caça ou de guerra, afirma a própria personalidade; mento 'certo', tal como está estabelecido pela comuni­
a sua linguagem enriquece-se, tornando-se meio de co­ dade a que se pertence.
municação social.
Contudo, o pensamento da criança é ainda pré-lógico. NÍVEL DEZANOVE — Na filogénese, estamos nos al­
A criança pensa que a vida se desenrola por artes má­ vores da civilização. O homem inventou a escrita. Nas­
gicas, tal como nas fábulas que lhe contam. Os objectos cem as lendas, que transmitem de uma geração a outra
são animados; se a criança choca casualmente com a as gestas dos heróis míticos. São as origens da história.
perna de uma mesa, bate-lhe com rancor, como se ti­ A comunidade estabelece as primeiras leis, em substi­
vesse sido esta que se lançasse intencionlamente contra tuição dos tabus. Aos feiticeiros sucedem-se o sacerdote,
ela. o médico, o juiz, ou seja, os novos chefes.
Ainda nesta fase, a criança começa a ter medo do es­ Na ontogénese, o nível dezanove corresponde ao sexto
curo (nalguns verifica-se o pavor nocturnus). Sabe que ano de vida. A criança socializa-se. O seu interesse, antes
deve submeter-se às obrigações impostas pelos pais e exclusivamente concentrado no próprio Eu, volta-se agora
pelos professores, e que um desejo seu que não esteja também para o mundo exterior e a linguagem mímica
de acordo com as regras não será satisfeito. Verifica-se perde importância face à linguagem verbal. A criança já
nela um certo despertar do sexo (segundo a escola psi- não fala só em voz alta, mas também em voz baixa. Nesta
canalítica, a líbido dirige-se para o progenitor do outro fase também surge a linguagem interior.

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO TERCEIRO 'SUPERSTRATO

0 mundo da criança alarga-se. Primeiro era consti­ mento lógico, Euclides elaborou a geometria que tem o
tuído apenas pelo grupo familiar, agora compreende tam­ seu nome. Este estádio tem início no tempo da civilização
bém a escola. Estando o pensamento da criança ainda egípcia e dura até ao século dezassete.
numa fase pré-lógica, o sucesso do ensino consiste na Na ontogénese, o nível vinte corresponde ao período
aceitação acrítica, por parte do aluno, dos juízos expres­ compreendido entre os sete e os dez anos. Aparece na
sos pelo professor. Os jogos tomam-se colectivos e as criança o pensamento lógico, a reflexão ocupa o lugar
regras menos rígidas do que eram antes. De facto, podem da fantasia, começa a manifestar-se a vontade, os senti­
ser modificadas quando há consenso geral. Agora, a mentos e a consciência moral tornam-se mais indepen­
criança já não olha os objectos como se fossem animados, dentes. A criança é agora capaz de compreender os prin­
mas antes como um material que se utiliza para atingir cípios euclideanos e possui uma visão clara do tempo e
um fim. Aprende a ler e escrever, e também pode ter do espaço. No seu comportamento, os factores culturais
intuições criativas. Por exemplo, aos seis anos, o futuro e sociais (como a escola, a família, a comunidade, a reli­
matemático Gauss chegou intuitivamente a uma nova gião) ainda prevalecem sobre os factores individuais. Os
formulação de determinado problema, que lhe tornava a jogos reproduzem simbolicamente a vida dos adultos. As
solução mais rápida. acções projectam-se no futuro, o que dá lugar ao sentido
Dado que nesta fase, tal como nas precedentes, a da responsabilidade e, especialmente, a um estado de
criança deposita uma confiança total nos pais e nos pro­ ansiedade.
fessores, o seu comportamento é determinado pelo que 0 objectivo do nível vinte é o comportamento se­
eles lhe ordenam (como se disse, no correspondente está­ gundo a razão.
dio da filogénese, o homem conforma-se às directivas dos
chefes). Contudo, em relação ao tipo de obediência carac­ NÍVEL VINTE E UM — Na filogénese, corresponde
terístico do nível dezasseis, regista-se agora uma dife­ ao estádio do homem actual. As descobertas científicas
rença importante. Na realidade, a obediência não pode do século dezassete modificaram a visão do mundo e en­
entrar em conflito com as normas ético-sociais interiori­ fraqueceram o pensamento mágico. A caça às bruxas e,
zadas. Isto porque, embora a razão ainda só esteja pre­ em caso de epidemias, a caça aos 'curandeiros', perten­
sente de forma esporádica, no entanto, como dissémos, as cem ao passado. Agora, o homem, esforça-se por encontrar
intuições são possíveis. Portanto, enquanto no estádio uma explicação natural para os fenômenos que observa.
correspondente ao nível dezasseis o psiquismo era muito Todavia, dado que o pensamento mágico não desapa­
baixo, ele agora é elevado. Por isso, a obediência, que rece completamente (podemos mesmo dizer que, especial­
antes era um 'objectivo de massa', é agora um 'objectivo mente nos últimos tempos, se registam 'acessos de re­
individual', ou seja, fruto de uma confiança que já não torno'), pode-se deduzir que o nível vinte e um ainda se
é cega, mas que nasce do amor-próprio. encontra numa fase inicial. De resto, a sua maturação
Para esclarecermos melhor a diferença decisiva que só começou há três séculos, o que é um período de tempo
existe entre os dois tipos de comportamento, diremos insuficiente para que no encéfalo se formassem novos
centros funcionais. Isto significa que a maior parte das
que age através do nível dezasseis aquele que se deixa nossas funções ainda está ligada às estruturas do nível
envolver num linchamento. Pelo contrário, age através vinte. Como já assinalámos, é provável que, desde que o
do nível dezanove o homem que segue as instruções de homem não decrete antes a extinção violenta da própria
um chefe livremente eleito, na base de ideais comuns. espécie, se formem no futuro novos centros, talvez des­
tinados a controlar funções ligadas de qualquer forma à
NÍVEL VINTE — Corresponde, na filogénese, a uma exploração do Cosmos.
fase em que o homem atingiu um nível de civilização ele­ Na ontogénese, o nível vinte e um corresponde ao pe­
vado. Surgiu a linguagem abstracta, formou-se o pensa­ ríodo que vai dos dez aos doze-catorze anos. Com a pu­

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

berdade termina a evolução ligada a esquemas bioló­


gicos. As funções mentais estão definitivamente desen­
volvidas e a linguagem, além de ser instrumento de
comunicação social, tornou-se também instrumento de
representação cognoscitiva. Desaparecem os resíduos do
pensamento mágico (mas, se estão ainda presentes nesta
fase, as superstições dificilmente serão eliminadas no
futuro) e desenvolve-se a aptidão para o pensamento
abstracto. 0 jovem é agora capaz de encarar objectivos
não imediatos. (A estreita ligação existente entre lingua­
gem e ideia é demonstrada pela conhecida história de
Helen Keller que, tendo ficado surda e cega na idade de A CONCESSÃO DAS FUNÇÕES
nove anos, só leve idéias quando aprendeu a falar.)
Agora, as decisões são voluntárias e a consciência mo­
ral é autônoma, isto é, desvinculada das influencias exte­ Neste momento, talvez se pergunte que importância
riores. Os agrupamentos característicos da fase prece­ pode ter, do ponto de vista da ciência médica, a recons­
dente, constituídos essencialmente por pares, são substi­ tituição que fizémos do processo evolutivo, pelo menos
tuídos por grupos compostos de jovens que têm aproxi­ no que se refere às estruturas nervosas.
madamente a mesma idade e que normalmente frequen­ Para responder a esta questão, precisamos de voltar
tam a mesma escola. É, pois, uma selecção ainda invo­ aos dois fenômenos que constituem os pontos essenciais
luntária. da nossa hipótese: a 'estratificação' e a 'concessão' (e a
0 objectivo do nível vinte e um é o comportamento 'restituição').
segundo 'conhecimento e consciência'. Recorde-se o que entendemos por 'estratificação'. No
Com este nível, termina a evolução ontogenética. Uma encéfalo estratificam-se as estruturas nervosas corres­
vez atingida a puberdade, o homem está apto a procriar pondentes às sucessivas fases da evolução. Neste ponto,
um ser que, no estado adulto, terá superado as várias fa­ pode ser interessante recordar que o princípio da estra­
ses da evolução da espécie. Por outras palavras, a ontogé- tificação já foi aceite há bastante tempo pela psicanálise,
nese 'atingiu' a filogénese. Dado que a evolução pós-pu- assim como por certa escola psicológica que se chama
beral já não se refere à espécie mas apenas ao indivíduo, precisamente ‘psicologia dos estratos'. Naturalmente, os
definimos como 'nível extra' a fase que se abre após a 'estratos' de que falam estes estudiosos não têm corres­
chegada à puberdade. pondentes em estruturas anatómico-fisiológicas, sendo de
ordem puramente mental. Pelo contrário, nós estamos
NÍVEL EXTRA — Corresponde ao estádio em que o convencidos de que a estratificação relativa às estruturas
indivíduo superou as fases evolutivas fixadas pela here­ nervosas surge em cada momento da filogénese, ou ama­
ditariedade biológica. Agora, a evolução já não segue es­ durece em cada fase da ontogénese. Isto significa que
quemas comuns a todos os seres humanos. Os factores todas as sucessivas 'organizações funcionais', ou seja, to­
culturais colectivos são substituídos pelos individuais, dos os circuitos que presidem sucessivamente ao compor­
quer dizer, estreitamente ligados à personalidade de cada tamento, persistem estratificados no cérebro, formando,
um de nós. como se disse, os 'níveis'.
O objectivo do nível extra é o comportamento que Aqui entra em jogo o fenômeno da 'concessão'.
cada um adopta com base na própria razão e na própria Quando se forma um novo nível cerebral, as estruturas
consciência. Por outras palavras, é a autodeterminação. do nível precedente 'concedem' as respectivas funções às

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A CONCESSÃO DAS FUNÇÕES
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

O fenômeno explica-se perfeitamente se tivermos pre­


estruturas correspondentes do nível mais recente (para sentes os mecanismos da concessão e da restituição. Gra­
não maçar o leitor, também neste caso não entraremos ças ao primeiro, que actua tanto na filogénese como na
na explicação 'técnica' do seu mecanismo). Assim se ex­ ontogénese, as funções nervosas — como, por exemplo, a
plica o fragmento oito do nosso puzzlc. O efeito dife­ capacidade de se mover — 'destacam-se' dos circuitos
rente da intervenção cirúrgica no gato adulto e no gato mais antigos e 'unem-se' aos circuitos mais recentes. Por
recém-nascido deve-se ao facto de que, neste último, a que razão o cão descorticado perde a mobilidade 'especí­
função da vista é controlada por centros diversos dos fica'? Porque no cão actual a mobilidade depende de
que a regulam no galo adulto. centros corticais, ao passo que no seu progenitor depen­
O facto de a sua função ser 'concedida' não significa dia de centros subcorticais. No decurso da evolução, es­
que todos os centros inferiores desapareçam. Pelo con­ tes últimos concederam a função motora aos centros
trário, a maior parte deles é simplesmente desactivada; corticais mais recentes, ficando desactivados por acção
depois, alguns vêm a ser 'integrados' nos níveis superio­ de estruturas inibitórias pertencentes ao novo nível. Se
res. o cão volta a correr tal como fazia o seu antepassado, ou
Recordemos agora o elemento mais significativo da seja, de modo 'genérico', isso significa que a destruição
nossa hipótese, que pode abrir perspectivas particular­ das estruturas inibitórias devida à descorticação originou
mente interessantes à medicina. Se, por qualquer motivo, o fenômeno oposto ao da concessão, isto é, a restituição
um centro pertencente a um nível superior deixa de fun­ da função motriz ao centro arcaico por parte do centro
cionar, o centro de um nível inferior subjacente à mesma superior.
função pode ser integrado no nível superior e permitir Mas a restituição não está exclusivamente ligada à
assim a recuperação da função perdida, mesmo se a re­ destruição das estruturas inibitórias. Os centros antigos
ferida função for menos perfeita. Analogamente, se todo também se podem tornar activos noutras circunstâncias.
o circuito superior for desactivado, o inferior pode vol­ Por exemplo, se os centros superiores forem temporaria­
tar à actividade. Neste caso, dar-se-á a recuperação de mente desactivados (é o que se verifica durante o sono,
todas as funções, embora, também aqui, o comporta­
mento seja menos perfeito que antes. na hipnose e noutras situações particulares) ou se os
Vejamos um exemplo. Se percorrermos ao invés o centros arcaicos forem excitados de forma anormal (pela
caminho evolutivo do cão, constatamos que o progenitor estimulação eléctrica provocada pelo neurofisiólogo ou
deste animal corria sem uma finalidade precisa. Por ou­ pela presença de um tumor). Voltaremos em breve a es­
tras palavras, o seu acto motriz era 'genérico'. Porém, tas várias situações.
com a evolução, este acto torna-se 'específico'. O cão de Entretanto, para esclarecer de que modo uma mesma
hoje dá um objectivo à sua corrida, corre para o dono função se transforma ao longo do processo evolutivo, e
ou persegue uma bola lançada para longe por brinca­ para mostrar como, nas diversas fases da evolução, essa
deira, etc. Visto que as estruturas arcaicas que permi­ função se relaciona com centros localizados nas diversas
tiam ao cão a mobilidade 'genérica' ainda estão presentes zonas do encéfalo, daremos o exemplo da 'discriminação
no cérebro do animal, podem voltar a controlar-lhe a fun­ visual', ou seja, a capacidade de identificar o que vemos.
ção motora no caso de os centros subjacentes à mobili­ Além do centro superior da discriminação visual, tam­
dade 'específica' deixarem de funcionar. E então, o que bém existem no nosso cérebro os centros que controlam
acontecerá? Sucede que o cão ainda poderá correr, mas a mesma função em animais colocados mais abaixo na
já não para o dono ou atrás de uma bola. Com efeito, é escala zoológica. No homem, estes centros arcaicos estão
isto que acontece aos cães 'descorticados', que se tornam inactivos. Tanto assim é que, se sofrerem lesões, a fun­
semelhantes aos animais situados mais abaixo na escala ção não será minimamente prejudicada. Em contrapar-
evolutiva.
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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO
A CONCESSÃO DAS FUNÇÕES

tida, neste caso fica diminuída a 'memória visual’, ou


seja, a capacidade de evocar as imagens. Como é isso? gidos sucede o contrário. De facto, a lesão da área 19 de
Broadmann impede o reconhecimento de um objecto pela
Num estádio anterior da evolução, cada imagem que vista; o doente só o poderá identificar através doutros
o nosso progenitor percebia, era confrontada com outras sentidos, como por exemplo o tacto, porque nele as ima­
imagens que ele anteriormente percebera (as chamadas gens-experiência não se perderam, tendo ficado intacto
imagens-experiência'), quer dizer, com as recordações. o centro arcaico que preside à memória visual.
Contudo, ao longo da evolução, à memória-experiência
junta-se a memória conceptual. A imagem-conceito de Também para outras funções além da discriminação
homem’ reune em si muitas imagens-experiência: recor­ visual se pode demonstrar a existência no encéfalo de
dações de homens conhecidos, de desenhos representando um centro superior e de vários centros inferiores, es­
homens, de fotografias de homens, etc. Numa fase ainda tando estes últimos situados em áreas cerebrais diferen­
mais recente da evolução, as imagens percebidas podem tes daquela em que se localiza o primeiro.
estar ligadas aos símbolos, às palavras escritas. Neste Vejamos a linguagem. Nas diversas etapas do processo
caso, a discriminação visual opera-se através da leitura. evolutivo, esta função aperfeiçoa-se cada vez mais, pas­
Ora, os centros superiores que permitem a discrimi­ sando dos vagidos e dos sons desarticulados do recém-
nação visual através das imagens-conceitos e das imagens -nascido a elaborações cada vez mais complexas. Num
verbais estão situados em determinadas áreas cerebrais primeiro momento, a criança repete as sílabas pelo sim­
(precisamente, as áreas 19 e 39 de Broadmann), enquanto ples prazer de ouvir a própria voz, depois descobre no­
os centros mais antigos, que permitem a discriminação vas combinações de sons, em seguida serve-se destas
visual só através das imagens-experiência, se localizam combinações para indicar as suas necessidades e desejos.
no lobo límbico e no lobo temporal. No homem adulto, Todavia, neste estádio, que como talvez o leitor recor­
o centro do lobo temporal está activo só no que respeita dará corresponde ao nível dezasseis, a palavra ainda está
à 'memória visual', e é precisamente por esse motivo que associada com objectos e situações concretas, a função
a lesão desse centro provoca uma insuficiência da capa­ simbólica da linguagem ainda está para vir. Numa fase
cidade de evocar as imagens, mas não da capacidade de seguinte, tem lugar a organização gramatical do discurso.
identificar os objectos. Depois, durante o sexto ano de vida, ou seja, no estádio
O leitor terá notado que dissémos 'no homem adulto'. do nível dezanove, surge a linguagem interna. Finalmente,
De facto, durante a infância, a discriminação visual é con­ vem a linguagem abstracta.
trolada por centros localizados noutras áreas cerebrais. Ora, o centro da linguagem cognoscitiva, que pertence
Por exemplo, na criança de poucos meses, que se encon­ ao nível vinte da nossa classificação, localiza-se no hemis­
tra numa fase ontogenética correspondente ao estádio fério dominante, enquanto os centros arcaicos da lin­
filogenético dos carnívoros, a discriminação visual de­ guagem se localizam em ambos os hemisférios cerebrais.
pende de um centro arcaico (precisamente límbico). No Por isso, se a lesão de um centro da linguagem se verifica
meio de outras pessoas, a criança só reconhece a mãe antes do sétimo ano, nunca é seguida de afasia dura­
quando ela veste a roupa habitual; ou seja, a imagem doura.
deve ser perfeitamente igual à anteriormente percebida A afasia, isto é, a perda total ou parcial da capaci­
(imagem-experiência) para que possa ser identificada dade de falar, manifesta-se quando numa pessoa adulta
pela criança. se lesiona o centro superior da linguagem. Nesse caso,
A provar o que se disse, observe-se que se no homem segundo a teoria da evolução estratificada, a função da
adulto a lesão dos centros inferiores provoca a insufi­ fala pode ser restituída a um centro mais antigo, e a lin­
ciência da memória visual, mas não a da discriminação guagem regressa a um estádio precedente do processo
visual, no caso de serem os centros superiores os atin­ evolutivo. Regressão que será tanto maior quanto mais

70 71
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

antigo for o centro que tiver permitido a recuperação


funcional.
Assim, se a lesão destrói ou danifica os centros dos
níveis vinte e vinte e um, verifica-se a perda da linguagem
abstracta, o doente falará apenas para comunicar com os
outros sobre temas concretos. Se for lesionado o centro
do nível dezanove, desaparecerá também a linguagem
interior. Se, em seguida, a lesão atingir o centro do nível
dezoito, a linguagem perderá a organização sintáctica. E
perderá a organização gramatical, o doente já não usará
pronomes nem artigos, se o centro atingido for o do ní­ REGRESSÕES PSÍQUICAS EXPERIMENTAIS:
vel dezassete. Finalmente, se a função da fala for resti- A HIPNOSE
tuída ao centro do nível quinze, registar-se-à a perda
tanto da linguagem cognoscitiva como da linguagem co­
municativa, o indivíduo emitirá sons incompreensíveis, Como dissemos, a restituição de uma função a cen­
muito semelhantes aos da criança de um ano. tros arcaicos do encéfalo não se verifica apenas em caso
Poderá ser interessante notar que a lesão do centro de lesão de um centro superior. Existe toda uma série
pertencente ao nível vinte e um também provoca a perda de outras circunstâncias em que esta restituição pode ter
das noções verbais adquiridas em adulto. Assim, uma pes­ lugar. Teremos então as chamadas ‘regressões psíquicas'.
soa que tivesse aprendido uma língua estrangeira, após As regressões psíquicas podem ser provocadas expe­
essa lesão já não poderá falá-la. Continuará, no entanto, rimentalmente, como é o caso da hipnose. Mas as suas
a exprimir-se na língua materna, aprendida na primeira causas também podem ser fisiológicas (o sono, os auto-
infância, porque os dispositivos correspondentes, além de matismos, as emoções), ou patológicas (os estados cre-
se situarem no centro do nível vinte e um, também se pusculares, as personalidades alternantes, a psicose con-
situam nos centros do nível vinte, que ficaram ilesos. fuso-onírica). As percepções inconscientes exigirão um
tratamento especial.
Comecemos pela regressão experimental, ou seja, pela
hipnose. Para que uma pessoa possa ser hipnotizada, é
necessário que ela esteja física e psiquicamente relaxada,
o que se consegue anulando a chamada 'atenção voluntá­
ria'. Seguir-se-à uma calma absoluta, um estado seme­
lhante ao que se verifica quando se está prestes a ador­
mecer (não é por acaso que os electroencefalogramas das
duas situações são análogos). Se ao indivíduo hipnoti­
zado não se indicar qualquer tarefa para cumprir, terá
precisamente o aspecto de estar mergulhado num sono
tranquilo.
De facto, o estado hipnótico consiste numa espécie de
sono provocado por uma pessoa, o hipnotizador, que
possui excepcionais capacidades de sugestão. Entre o hip­
notizado e o hipnotizador estabelece-se assim uma rela­
ção muito particular: o primeiro obedece passivamente

72 73
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO REGRESSÕES PSÍQUICAS EXPERIMENTAIS

ao segundo, quase lhe põe à disposição o próprio corpo motivação do acto que se cumpre, ou seja, a ordem rece­
(no entanto, se as ordens recebidas contrariarem os ins­ bida no estado hipnótico, embora escapando à consciên­
tintos do hipnotizado, este último não as cumprirá). cia do indivíduo, está no entanto presente no seu incons­
Até hoje, a explicação dada do mecanismo hipnótico ciente; 2) que o indivíduo procura racionalizar o acto
é uma 'degradação do estado de consciência'. Mas esta cumprido, dando a si próprio e aos outros uma explica­
explicação não resiste a um exame sumário. De facto, ção lógica dele.
muitas vezes o hipnotizador dá ao hipnotizado uma or­ Vejamos agora como a teoria da evolução estratifi-
dem para ser cumprida após o despertar, ao fim de um cada explica o mecanismo hipnótico. Os leitores recor-
prazo determinado, por exemplo, meia hora mais tarde. dar-se-ão de que na nossa escala evolutiva existe um
Ora, a ordem será pontualmente cumprida, apesar de, estádio, tanto do indivíduo como da espécie, em que o
com o despertar, o hipnotizado regressar à sua condi­ comportamento é condicionado por aqueles que gozam
ção normal de lucidez e, na realidade, não se recordar de um prestígio particular (os feiticeiros na filogénese,
do que lhe aconteceu durante o estado de hipnose (tal­ os pais e os professores na ontogénese). As suas ordens
vez alguns leitores tenham assistido às experiências efec- são cumpridas sem serem submetidas a qualquer crítica.
tuadas há meses num programa televisivo). Sc alguém É o estádio correspondente ao nível dezasseis da nossa
lhe perguntar por que motivo cumpriu determinada classificação.
acção, o ex-hipnotizado alegará várias motivações, mas Portanto, nós afirmamos que o hipnotizado receberá
sempre diferentes da real, que ele ignora, e que consiste a ordem do hipnotizador através de um centro que per­
precisamente na obediência a uma ordem recebida. tence ao nível dezasseis, centro esse que, inibido com a
Vejamos um exemplo. 0 hipnotizador diz ao hipnoti­ consciência lúcida, se reactiva durante o estado hipnó­
zado: «Vinte minutos depois de teres despertado, irás tico. Nesta altura, objectar-se-á: mas como pode acon­
àquele quarto, pegarás em tal livro, lerás tal página e tecer que o ex-hipnotizado cumpra a ordem recebida
depois voltarás a pôr o livro no lugar». Pontualmente, mesmo depois de, com o despertar, ter readquirido a lu­
vinte minutos depois de ter despertado do sono hipnó­ cidez? Por este motivo: a carga afectiva da ordem rece­
tico, o indivíduo sente um impulso irresistível, que o faz bida em estado de hipnose é 'deslocada' para o centro
realizar todas as acções prescritas pelo hipnotizador. superior, através do centro integrado da afectividade de
Ele sabe perfeitamente o que está a fazer, mas não sabe que já falámos, influenciando assim o comportamento do
'por que' o faz; afirmará, por exemplo, que foi buscar o indivíduo mesmo depois do seu regresso ao estado nor­
livro porque lhe deu vontade de saber melhor certo as­ mal. Todavia, dado que a ordem foi recebida através de
sunto, tratado naquela página daquele livro. um centro que em consciência lúcida está inibido, a moti­
É interessante sublinhar que as ordens do hipnotiza­ vação do acto a executar será ignorada por aquele que
dor são cumpridas mesmo no caso em que são publica­ o cumpre.
mente absurdas (repita-se que só se verifica desobediên­ Já nos referimos às percepções inconscientes. Já de­
cia quando a ordem repugna às tendências pessoais do mos um exemplo destas percepções, quando recordámos
sujeito). Freud conta que um estudioso, o doutor Ber- a projecção a grande velocidade das imagens que im­
nheim, ordenava aos seus hipnotizados que abrissem o pressionam a retina do observador por um tempo infe­
guarda-chuva na sala de aula, após o despertar, o que eles rior ao necessário para que se verifique o reconheci­
cumpriam pontualmente, apesar de terem recuperado a mento visual. No entanto, como se disse, se a imagem
lucidez. Eis porque a hipótese da ‘degradação da cons­ projectada for a de um deserto, o observador terá uma
ciência' é de rejeitar. sensação de sede, sem poder dar-lhe uma explicação. Eis
A propósito deste fenômeno, os psicanalistas chega­ a nossa reconstrução do fenômeno: devido à velocidade
ram às duas conclusões seguintes: 1) que a verdadeira de projecção, as imagens não conseguem excitar as estru-

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

turas do nível superior, a que pertence o centro da dis­


criminação visual; no entanto, conseguem excitar cen­
tros presentes em níveis arcaicos, e assim a sua carga
afectiva influenciará na mesma os observadores.
A percepção inconsciente também pode ser de natu­
reza acústica. Tal era, por exemplo, no caso recordado
no princípio —o fragmento 6 do nosso puzzle— da
senhora que tinha perdido a audição devido a uma afec-
ção histérica, mas que ao cantar se adaptava à mudança
de tonalidade no acompanhamento ao piano.
REGRESSÕES PSÍQUICAS FISIOLÓGICAS:
SONHOS, AUTOMATISMOS, EMOÇÕES

Vejamos agora as regressões fisiológicas. Como já


aconteceu a todos, no sonho aceitamos acriticamente
situações que, no entanto, fogem quer à lógica quer
às leis naturais. Conseguimos voar, ouvimos os animais
falar, etc. Ou seja, durante o sonho os acontecimentos
desenvolvem-se por artes mágicas. E quanto mais rico
em imagens é o sonho, tanto mais nele estão eliminadas
as categorias abstractas como, por exemplo, o futuro
e o passado, existindo apenas o presente.
A regressão do sonho pode ser maior ou menor. Há
sonhos relativamente verosímeis e coerentes. Em con­
trapartida, outros apresentam-se confusos, nebulosos,
sem qualquer sequência lógica. Se aplicarmos a teoria
da evolução estratificada ao mecanismo do sonho, che­
gamos à conclusão de que a maior ou menor coerência
do sonho depende do nível reactivado no cérebro de
quem está sonhando. Por exemplo, se volta à actividade
o nível dezanove —que, recorde-se, é o que permite as
intuições criativas —, aquele que sonha pode ainda alcan­
çar resultados intelectualmente relevantes. Loewi intuiu
em sonho a explicação de como a estimulação do desejo
é seguida pela libertação de acetilcolina; Gauss, Burdach
e Kruger conseguiram resolver complexos problemas
científicos; e Tartini —outro fragmento do nosso puzzle
que encontra o seu lugar no mosaico— compõe em
sonho o famoso 'Canto do Diabo*.
A hipótese da regressão durante o sonho já foi for­
mulada pelos psicólogos. No entanto, a análise que dela
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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO REGRESSÕES PSÍQUICAS FISIOLÓGICAS

nos dão não explica a afectividade presente no sonho, se verifica uma deslocação afectiva. Mas também podem
afectividade que não é certamente de criança, mas é, ser imagens estreitamente ligadas às emoções 'actuais'
pelo contrário, na maior parte das vezes, expressão das daquele que dorme e que, seja pela sua intensa carga
emoções do indivíduo adulto, dos seus desejos e temores. afectiva, seja pela sua repetição, excitam as estruturas
Por outras palavras, a hipótese da regressão tal como arcaicas e, através delas, chegam ao adormecido (neste
foi avançada na psicologia, se pode esclarecer a 'cons­ segundo caso não se trata, pois, de imagens de 'camu­
trução' infantil do sonho, não pode esclarecer o seu flagem').
'conteúdo'. No sonho, dada a inibição dos níveis superiores, os
Segundo a psicanálise freudiana, o sonho revelaria estímulos externos não podem ser percebidos, mas é-se
os complexos afectivos que durante o estado de vigília influenciado pela carga afectiva a que estão ligados esses
não conseguem aflorar à nossa consciência, impedidos estímulos. Por exemplo, os sons habituais não nos des­
que são pelo recalcamento, que os repele para o incons­ pertam mas, em contrapartida, o nosso sono é interrom­
ciente. No sonho, pelo contrário, estas emoções podem pido por um som que, embora fraco, representa um
manifestar-se, se bem que sob uma forma mascarada, sinal de alarme. Uma mulher pode continuar a dormir
que as revela e esconde ao mesmo tempo. A análise tem mesmo quando à sua volta há ruídos muito grandes, mas
precisamente como objectivo identificar o que se encon­ acorda imediatamente com o fraco choro do seu bebé.
tra por detrás da máscara. Portanto, segundo Freud, o Em casos do gênero, o despertar é determinado pelo
sonho constitui um dos 'documentos' mais importantes que se definiu como 'percepções afectivas específicas'.
para conhecer um indivíduo, os seus sentimentos, as suas Mas existem também as ‘percepções afectivas não-espe-
necessidades, os seus desejos, numa palavra, a sua rea­ cíficas', quer dizer, cargas afectivas 'separadas' das ima­
lidade. gens com que estão relacionadas. Estas percepções não
Vejamos agora qual é o mecanismo do sonho à luz nos chegam a despertar, mas podem provocar em nós
da nossa teoria. Durante o estado de vigília, as nossas sonhos que se definem como sendo 'de origem senso-
tendências afectivas estão sob o controlo das normas rial'. Vejamos um exemplo. 0 Doutor Scholz, director
ético-sociais, 'geridas' pelos centros dos níveis superiores. do Hospital Psiquiátrico de Brema nos finais do sé­
Quando adormecemos, estes níveis desactivam-se e as culo XIX, sonhou uma noite que se encontrava em
tendências afectivas têm possibilidade de se manifestar França no tempo da Revolução. Sonhou também que
livremente. £ por isso que concordamos com a escola foi preso durante o Terror, condenado à morte e condu­
psicanalítica quanto ao facto de os sonhos poderem reve­ zido ao patíbulo numa carroça. No momento em que a
lar a psicologia mais profunda. lâmina da guilhotina lhe caía no pescoço, Scholz acordou.
Mas em que consistem exactamente as imagens do Aconteceu que foi atingido, precisamente no pescoço, por
sonho? Trata-se de imagens presentes em centros arcai­ uma barra metálica que se tinha separado da cabeceira
cos do nosso cérebro. É por iso que o nado-cego nunca da cama. Todos nós já tivemos mais ou menos sonhos
sonha, ao passo que um indivíduo que ficou cego pode deste gênero. O primeiro a referir-se-lhes foi Descartes,
sonhar com imagens, mas apenas com as relativas às que revelou que se, durante o sono, somos picados por
experiências que teve no período em que possuía a um alfinete, sonharemos que estamos a ser apunhalados.
visão. E também por isso que o nado-surdo nunca sonha Os sonhos de origem sensorial são provocados por
com sons. cargas afectivas ligadas a estímulos predominantemente
Naturalmente, as imagens presentes nos centros arcai­ tácteis, como nos dois casos que recordámos, ou acústi­
cos podem ser de natureza diferente. Por exemplo, podem cos. Por exemplo, o som do despertador transforma-se no
ser imagens que o adormecido percebeu nos primeiros toque de uma campainha. Pelo contrário, por motivos
cinco-seis anos de vida, e sobre as quais, como se disse. óbvios, a carga afectiva ligada aos estímulos visuais é

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO REGRESSÕES PSÍQUICAS FISIOLÓGICAS

ineficaz. Em nossa opinião, as imagens destes sonhos ocupa continuamente os pensamentos da pessoa durante
ocorrem mediante um mecanismo semelhante ao que a vigília, ou porque a pessoa em questão está emotiva-
provoca a chamada 'revisualização': se ouvimos o baru­ mente envolvida na tentativa de o resolver, esse pro­
lho do mar, 'vemos' o mar. blema deve excitar no adormecido as estruturas do nível
Portanto, pode-se concluir que, se é verdade que o dezanove, cujos centros, repita-se, presidem às intuições
sono representa uma separação do Eu do mundo exte­ criativas. Portanto, também neste caso, as imagens so­
rior, esta separação apenas diz respeito ao Eu consciente. nhadas não constituem 'fachadas' ou 'camuflagens'.
De facto, no sonho percebemos a carga afectiva ligada Mas, objectar-se-á, como é possível que, por vezes,
a determinados estímulos exteriores (como o choro do depois do despertar, ou seja, quando o nível superior
bebé pela mãe adormecida). voltou à actividadc, persista a recordação das imagens
Todavia, estas cargas afectivas não estão necessaria­ sonhadas? Este fenômeno verifica-se quando o ‘centro
mente ligadas a estímulos que se produzem durante o da memória consciente', que é um centro integrado,
sono. Suponhamos que determinado acontecimento ocor­ 'tem tempo' de fixar as imagens do sonho nos centros
rido durante o estado de vigília nos excitou particular­ mnésicos do nível superior.
mente. Porque se inibe o centro da percepção, que só O facto de, durante o sono, e também durante a sono­
está activo durante o estado de vigília, a recordação desse lência, certas estruturas arcaicas se tornarem activas,
acontecimento aparece no sonho, mas a afectividade a explica o mecanismo do sonambulismo, que foi definido
ele ligada persiste. Só que se desloca para outras ima­ como ‘um sono acompanhado de acções'. De facto, o
gens, presentes no centro que está em funcionamento comportamento do sonâmbulo tem lugar através de um
durante o sono. Os estudiosos registaram numerosos nível inferior. Os seus movimentos são mais governados
exemplos desta deslocaçâo afectiva, chamada 'mnésia', por centros vestibulares do que por centros visuais,
precisamente porque se dá através do centro arcaico da como acontece nos mamíferos inferiores relativamente
memória. Limitar-nos-emos a referir dois desses exem­ próximos do homem. É precisamente este controlo dife­
plos. rente que lhes permite caminhar por cima de um para­
Um escritor adormeceu pensando em como modifi­ peito sem cair. Por outro lado, no sonâmbulo manifesta-
car um passo do seu romance que não lhe agradava. No -se uma insuficiência da crítica — sai de casa em pijama,
sonho, perdura nele o desejo de 'ajustar', de 'melhorar'. não se preocupa com os perigos que vai encontrando — e,
Mas do romance, a imagem presente no centro activo uma vez despertado, não se lembra de nada do que fez
em estado de vigília, este desejo transfere-se para uma ou do que lhe aconteceu durante o estado sonambúlico.
imagem presente no centro arcaico reactivado. Assim, Também os actos automáticos têm lugar através de
o nosso romancista sonha que está a aplainar e a polir estruturas arcaicas. Quando um estímulo se repete mui­
uma prancha de madeira. Segundo exemplo: depois de tas vezes, já não põe em actividade a atenção volun­
um dia passado a braços com grandes preocupações fi­ tária (nível superior), mas excita centros mnésicos arcai­
nanceiras, um homem sonha que está a ser atormentado cos, determinando assim o automatismo psíquico. Por ou­
por piolhos. A sensação de aflição e de sofrimento cau­ tras palavras, realizamos acções sem termos consciência
sada pelas dívidas deslocou-se para os insectos. delas e sem a intervenção da vontade. Ao sair de casa,
Voltemos agora às 'intuições criativas' que se podem fechamos a porta à chave e metemos pela rua que habi­
ter durante o sonho. Para que estas intuições aconte­ tualmente percorremos, mesmo que nesse momento quei­
çam, são necessárias pelo menos duas condições. Pri­ ramos dirigir-nos a outro lado. Pode acontecer cami­
meiro, a pessoa que sonha deve possuir a capacidade nharmos ao lado de um amigo, falando com ele de um
intelectual e os instrumentos cognoscitivos para resolver assunto que nos agrada particularmente. A discussão
aquele problema concreto. Em segundo lugar, ou porque absorve completamente a nossa atenção e, entretanto,

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO REGRESSÕES PSÍQUICAS FISIOLÓGICAS

realizamos toda uma série de actos automáticos. Mexe- Não há dúvida que, como foi revelado pela escola
mo-nos com desenvoltura, evitamos ser atropelados pelos psicanalítica, esquecemos com grande facilidade as coisas
carros, evitamos chocar com outros transeuntes, etc. Em desagradáveis, os desejos de que nos envergonhamos e
resumo, apercebemos toda uma série de estímulos que os episódios a eles ligados. E o recalcamento não se
nos fazem reagir de forma adequada, mas nenhuma refere apenas ao passado, mas também ao futuro. Esque­
dessas percepções será fixada por nós e não nos recor­ cemos um apontamento que não queríamos manter ou
daremos delas. não cuidamos de meter no correio uma carta escrita
De igual modo, pode acontecer que, imediatamente contra-vontade. É muito conhecido o caso daquele cien­
depois de realizarmos um acto que nos absorveu a aten­ tista que, no dia do casamento, em vez de ir para a
ção por completo, esquecemos outros que, no entanto, igreja, onde era esperado pela noiva, pelos parentes e
segundo a lógica, deveriam constituir o seguimento do pelos amigos, se fechou, como habitualmente, no labo­
primeiro. Este fenômeno verifica-se sobretudo nas crian­ ratório. Depois, atribuindo ao esquecimento um signi­
ças. Maria, de oito anos, abre o frigorífico para tirar uma ficado de mau agoiro, o homem renunciou ao matrimô­
taça com natas. Pega na taça e, depois, esquece-se de nio. É fácil deduzir que, na realidade, o cientista não
voltar a fechar a porta. João, de dez anos, acende a luz desejava casar ou, pelo menos, não desejava casar com
para encontrar um livro. Depois, sai do quarto deixando aquela mulher.
a luz acesa. Voltar a fechar a porta do frigorífico c apa­ Analogamente, pode suceder que esqueçamos nomes
gar a luz são actos motivados por considerações de que, por qualquer razão, nos provocam sensações peno­
natureza econômica, ou pelo gosto da ordem, etc. Mas sas. Por exemplo, uma senhora que ficou viúva aos qua­
não estão ligados com o objectivo que as crianças que­ renta anos não conseguia recordar-se do nome do famoso
riam alcançar e sobre o qual se tinham concentrado com­ psicanalista Jung. E isto porque lhe era intolerável o
pletamente. Daí o esquecimento. pensamento da juventude perdida (como se sabe, em
Deve-se precisar que a atenção pode ser flutuante, alemão, Jung significa precisamente 'jovem').
quer dizer, pode iluminar ora uma ora outra das coisas Segundo a teoria de Frcud, seriam removidas da nossa
que fazemos ao mesmo tempo. Deu-se mais acima o consciência todas as questões que nos ferem o orgulho.
exemplo de quem caminha pensando noutra coisa e, por Mas, nesse caso, fica por explicar por que no homem
isso, já não se dirige para onde deve ir, mas para onde adulto também desaparecem as recordações dos primei­
costuma ir. Ora, basta que a pessoa em causa volte a ros cinco-seis anos de vida, que certamente não se po­
atenção para a rua que vai percorrendo para que modi­ dem incluir todas na categoria dos episódios penosos ou
fique a direcção no sentido desejado. Isto quer dizer dos desejos censurados. Portanto, é claro que o recal­
que, mal a atenção recai sobre um acto errado, seguido camento deve ter outras causas. A nosso ver, o desapa­
até então de forma automática, ela corrige, ligando-o ao recimento das recordações relativas aos primeiros anos
circuito superior voluntário. de vida explica-se pelo facto de as imagens correspon­
Temos vindo a falar da mobilidade. Outro exemplo dentes (agradáveis, desagradáveis ou neutras) estarem
é o da linguagem, particularmente os 'lapsos'. Um sujeito armazenadas em centros arcaicos, que pertencem a ní­
diz a um amigo: «A minha mulher é friel». Que suce­ veis inibidos no indivíduo adulto. De facto, só depois
deu? Sem reflectir, o homem estava prestes a confiar dos cinco-seis anos se forma no nosso cérebro o centro
ao amigo que a mulher era 'fria'. Depois, a intervenção menésico do nível dezanove. Por outro lado, é preciso ter
da atenção voluntária leva-o a substituir a palavra 'fria' em conta que, quando se forma o novo centro, o arcaico
pela palavra 'fiel'. Porém, o atraso com que a atenção fica activo durante um certo tempo e colabora com o
voluntária entra em acção origina o lapso: assim, a pala­ mais recente. Se forem evocadas durante este período
vra pronunciada é 'friel'. de transição, as imagens do centro inferior transferem-

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO REGRESSÕES PSÍQUICAS FISIOLÓGICAS

-se para o centro do novo nível e, como consequência Todavia, um dia, o doente foi encontrado morto na
disso, poderão voltar à superfície mesmo na idade adulta. cama. A autópsia constatou a existência de um tumor no
Donde as reminiscências que por vezes temos dos nossos mesencéfalo. Conclui-se que a sede excessiva do rapaz,
primeiros anos de vida. embora sendo o sintoma de uma doença orgânica, tinha
Esta hipótese é confirmada pelo facto de que as re­ estabelecido uma relação com as tendências e o pensa­
cordações relativas a esses anos recmergem sempre que mento do doente, relação que se tinha tornado tão
as estruturas arcaicas são estimuladas, através da tera­ estreita que permitiu os bons resultados alcançados pelo
pia psicanalítica, da hipnose, graças à acção de certos tratamento psicanalítico.
fármacos ou, ainda, devido a emoções particularmente Em contrapartida, nós damos uma interpretação dife­
intensas, etc. rente da ocorrência. A enorme ingestão de água era
No que respeita ao recalcamento das recordações de­ devida, na realidade, ao facto de o tumor ter lesionado
sagradáveis, a teoria freudiana explica apenas por que o centro da sede. Ao avançar a hipótese de representar
essas recordações são repelidas. No que respeita ao como, uma espécie de ‘rito de purificação', o analista conse­
a nossa hipótese é que se trata de um mecanismo análogo guiu simplesmente sugestionar o doente nesse sentido.
ao que descrevemos a propósito das recordações rela­
tivas aos primeiros anos de vida. Há, contudo, uma dife­ O facto de a sede diminuir, demonstra apenas que a
rença: no caso dos 'conteúdos' desagradáveis, as imagens estrutura dos níveis superiores pode influenciar os cen­
não se formaram nos centros mnésicos arcaicos, mas fo­ tros homostáticos e modificar a sua actividade.
ram para lá repelidas. Anulando a atenção voluntária, o Voltemos agora às regressões psíquicas de natureza
tratamento psicanalítico substitui o pensamento 'guiado' fisiológica, particularmente às causadas pelas emoções.
pelo pensamento 'espontâneo' e, assim, as imagens repe­ As emoções são, de facto, estímulos tão intensos que
lidas para os centros inferiores —ou seja, os ‘conteúdos anulam a acção inibitória normal que as estruturas do
recalcados'— regressam à consciência. nível superior exercem sobre os centros arcaicos. Se
Neste ponto, façam-se algumas observações a respeito acontece termos de enfrentar um perigo imprevisto, so­
da terapia psicanalítica. Os inegáveis e importantes su­ mos obrigados a uma resposta rápida, ao chamado ‘pen­
cessos que ela tem obtido em muitos casos conduzem a samento de emergência'. A situação faz-nos assim voltar
que se recorra a ela mesmo quando a acção patogênica temporariamente a um estádio evolutivo precedente
tem uma origem que, na realidade, nada tem que ver àquele em que surge a razão. Ora, a reacção emotiva
com as imagens 'perturbadoras' presentes nos centros era útil ao homem primitivo, quando este tinha que
arcaicos, que a terapia psicanalítica evoca através do cen­ combater. De facto, ela consiste na aceleração do ritmo
tro integrado da memória consciente. Ora, quando não cardíaco e da respiração, no aumento da tensão, na
se justifica, o uso desta terapia pode ser perigoso. supressão da fadiga muscular pela secreção de adrena­
Daremos um exemplo, a fim de explicar esta preo­ lina, na suspensão das funções digestivas, numa palavra,
cupação. Aconteceu com um rapaz que foi internado na mobilização geral dos recursos do organismo.
numa clínica por sofrer de diabetes insípidos. No mo­
mento em que foi internado, o paciente ingeria diaria­ Mas, hoje em dia, uma reacção deste tipo não é ne­
mente cerca de onze litros de água. Examinado por um cessariamente a mais útil. Assim, o homem enfrenta
psicanalista, este diagnosticou que o rapaz tinha o hábito melhor o perigo se conservar o sangue-frio, e conservar
de se masturbar e interpretou a doença como sendo a o sangue-frio significa agir através dos centros dos níveis
tentativa, por parte do jovem, de 'se lavar', de se liber­ superiores. Por outro lado, mesmo se em certos casos
tar do próprio conflito interior ingerindo aquela água a conduta emotiva pode resultar adequada ao objectivo,
toda. Efectivamente, devido à terapia psicanalítica, a a sua maior ou menor utilidade relaciona-se com o nível
quantidade de água ingerida reduziu-se para litro e meio. excitado pelo impulso nervoso provocado pela carga afec-

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

tiva, pela emoção. Se o referido impulso atinge níveis


relativamente recentes, a conduta emotiva será adequada
ao objectivo (emoção positiva). Por exemplo, o homem
ameaçado foge, subtraindo-se assim ao perigo (objec­
tivo que, por outro lado, também teria podido conseguir
através de um comportamento racional). Se, pelo contrá­
rio, o nível atingido é menos recente, a nossa reacção
será inadequada (emoção negativa). Face ao perigo, tre­
memos e ficamos imóveis. Ora, este tremor e esta imo­
bilidade eram úteis nos estádios mais antigos da filo- REGRESSÕES PSÍQUICAS PATOLÓGICAS:
génese. A mímica do susto num simples animal servia ESTADOS CREPUSCULARES,
para advertir todo o grupo da existência de um perigo DUPLA PERSONALIDADE
e, quando as agressões só eram dirigidas contra seres em
movimento, ficar quietos apresentava, evidentemente,
vantagens. Em contrapartida, para o homem, essa mí­ Passamos agora às regressões psíquicas devidas a cau­
mica já não serve. Aquele que fica sem fala pelo medo sas patológicas. Tal é o caso das doenças caracterizadas
não consegue pedir auxílio, e de nada servirá a careta pela degradação do estado de consciência. Durante as
de terror que se lhe estampa no rosto. Ainda menos crises mórbidas, desactivam-se os níveis superiores do
útil é a imobilidade. Se ficamos paralisados pelo medo, enccfalo e, em seu lugar, funcionam os níveis arcaicos.
certamente não conseguiremos salvar-nos dum incêndio, Assim, nos 'estados crcpusculares', precisamente devido
de um terramoto ou de um assalto de bandidos. Outro à desactivação do nível superior, o doente separa-se do
exemplo de conduta emotiva inadequada, c portanto re­ seu passado c do seu futuro. Por outras palavras, perde
lacionada com um centro arcaico: quando irados, ran­ a personalidade própria. Em consciência lúcida, não se
gemos os dentes, o que não será absolutamente nada útil recorda do que lhe aconteceu durante o estado de cons­
)Ois, na verdade, hoje já não costumamos morder aque-
Í es que nos fazem zangar.
ciência crcpuscular. Se se verifica um segundo episódio
crepuscular, rccordar-se-á do que lhe aconteceu durante
Um mecanismo análogo ao que acabamos de descre­ o primeiro episódio. É mais ou menos o que se verifica
ver age sobre quem se encontra no meio de uma multi­ na embriaguês, pois o álcool também exerce uma acção
dão. Os estímulos afectivos provenientes do ambiente inibitória sobre os centros do nível superior. Vejamos
circundante excitam no homem-massa um nível arcaico, um exemplo. Em estado de embriaguês, um alcoolizado
pelo que o seu comportamento deixará de ser controlado esconde as chaves de casa. Quando sóbrio, não consegue
pelos centros superiores, tornando-se acrítico. Ê por essa recordar-se onde as meteu. Para que o esconderijo esco­
razão que a multidão facilmente se abandona a actos de lhido lhe volte à mente, tem que se embriagar de novo.
vandalismo, de violência, de prepotência. No entanto, (Todos recordarão a famosa cena de um filme de Chapim,
como já dissémos, e como repetimos a propósito da hip­ em que um embriagado estabeleceu amizade com Charlot
nose, ninguém executa acções contrárias aos próprios e o enche de favores; quando sóbrio, o homem expulsa
instintos. Por isso, o homem-massa não pode invocar violentamente de sua casa o pobre vagabundo.)
atenuantes para os delitos eventualmente cometidos. Poder-se-á dizer mais ou menos a mesma coisa a pro­
pósito do que se define como 'dupla personalidade', ou
melhor, ‘personalidades altemantes'. A única explicação
possível deste fenômeno é, em nossa opinião, que cada
uma das personalidades está ligada ao funcionamento de

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO REGRESSÕES PSÍQUICAS PATOLÓGICAS

imi nívd diferente. Por isso, é diferente o comportamento abrandamento do ritmo 'alfa’ e um aparecimento do
do indivíduo, conforme o 'estado* em que se encontra. ritmo 'teta'. E o mesmo se verifica nas pessoas èm estado
Por outro lado, diga-se de passagem que, se a existên­ de delírio alcoólico. Como já dissémos várias vezes, estes
cia de vários níveis no cérebro humano é a condição ‘ne­ dados demonstram que o nível superior está inactivo.
cessária’ para que se verifique o fenômeno das persona­ Existem perturbações causadas pela hiperactividade
lidades alternantes, não é contudo uma condição sufi­ de uma estrutura nervosa que faz parte do nível superior.
ciente. De outro modo, todos deveriamos possuir pelo Por exemplo, o tremor característico da doença de Par-
menos duas personalidades diferentes. Pelo contrário, kinson. Este tremor é provocado precisamente pela hiper­
o fenômeno é bastante raro. Porquê? A nossa hipótese é actividade de estruturas pertencentes ao nível superior,
a seguinte: o centro da consciência em que se apresen­ a qual é devida ao facto de a doença ter lesionado os
tam os dispositivos afectivos é um centro integrado, ou centros arcaicos que as neutralizam. Por isso, durante o
seja, comum aos vários níveis. Portanto, a nossa cons­ sono o tremor atenua-se ou desaparece mesmo; de facto,
ciência abrange-os todos e o nosso Eu não sofre soluções como sabemos, no sono o nível superior inibe-se. Mas,
de continuidade. Pelo contrário, nos casos de dupla per­ como o nível superior também se inibe noutras situações,
sonalidade, existe uma nítida separação entre os vários como sejam a hipnose ou o sonambulismo, eis porque a
dispositivos afectivos, ligando-se uns a um nível e outros síndroma parkinsoniana também se atenua ou desaparece
a outro. Isto impede a continuidade afectiva do Eu, emer­ nessas situações.
gindo no mesmo indivíduo personalidades com tendên­ Provavelmente, os leitores já terão chegado por si
cias afectivas diferentes. próprios à solução das questões implícitas nos três pri­
A hipótese de que, numa das duas personalidades, o meiros fragmentos do nosso puzzle■ Comecemos pelo
comportamento se dá através de um nível inferior é caso Mário-Fiacca. Sob hipnose, em Mário des activava-se
confirmada pelo facto de esta personalidade vir à super­ o nível superior. Com a entrada em função de um nível
fície durante a hipnose, ou então durante uma crise his­ arcaico, emergia nele a personalidade do palhaço Fiacca
térica, ou ainda quando se usam técnicas destinadas a e vinham à superfície as imagens armazenadas no centro
desactivar o nível superior. Por outro lado, também pode arcaico da memória — o cão, os espectáculos do circo.
acontecer que a segunda personalidade substitua espon­ Por outro lado, os impulsos nervosos que permitem a cor­
taneamente a primeira. Era precisamente o caso de Fé- rida tinham ocasião de atingir a via motora final, e por
lida, o fragmento 4 do nosso puzzle. As imagens que se isso Fiacca corria sem dificuldade, enquanto Mário se
formavam durante o 'estado segundo' não podiam ser movia com muito custo. Isto porque, estando nele activo
evocadas por Félida quando se encontrava no ‘estado pri­ o nível superior ‘desorganizado’ pela doença, os impulsos
meiro', porque as estruturas cerebrais em que essas ima­ da corrida não conseguiam, por assim dizer, 'passar'.
gens estavam armazenadas não funcionavam em condi­ Depois, o facto de Fiacca, ao contrário de Mário, não sen­
ções normais. Em contrapartida, quando a rapariga se tir a dor, constitui implicitamente uma confirmação da
encontrava no 'estado segundo' não se verificava a inibi­ nossa teoria. Na realidade, no homem adulto a percepção
ção das estruturas activas no ‘estado primeiro’ e, por da dor está ligada com um centro do nível superior. Não
isso, Félida número dois recordava tudo da Félida nú­ é por acaso que a sensação de dor desaparece no sono, na
mero um. hipnose, no sonambulismo e nos estados afectivos inten­
A reactivação das estruturas arcaicas também ocorre sos, ou seja, em todas as situações em que o nível supe­
na chamada psicose confuso-onírica (devida a um estado rior se desactiva. Como se recordará o primeiro sinal
tóxico infeccioso). Tal como no caso de uma pessoa pres­ que indicava o 'regresso' da personalidade de Mário con­
tes a adormecer, naquele que se encontra em estado de sistia precisamente na percepção de uma dor aguda pro­
psicose onírica o exame electroencefalográfico revela um vocada por uma pinça aplicada na coxa do doente. En­

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quanto permanecia na personalidade de Fiacca não sentia


nenhuma dor.
A mesma explicação é válida no caso do campeão de
baseball também atingido pela doença de Parkinson.
Neste caso, era a reevocação súbita dos feitos desportivos
passados que permitia ao doente recuperar a capacidade
de correr. A intensidade da emoção era tal que punha em
actividade um circuito arcaico, permitindo ao atleta os
actos automáticos, que, como se disse, se dão através de
estruturas de um nível inferior.
Quanto ao terceiro parkinsoniano do nosso puzzle OS «PERSUASORES»
— o homem que, durante um bombardeamento aéreo, NAO ESTÃO ASSIM TÃO OCULTOS
não só conseguiu saltar da cama onde há tempos jazia
quase imóvel, como conseguiu mesmo descer as escadas
a correr, com uma criança nos braços —, o mecanismo A teoria da evolução estratificada esclarece o meca­
do aparente prodígio é o mesmo: devido à emoção in­ nismo de outro fenômeno conhecido: o dos condiciona­
tensa, reactiva-se no doente um nível arcaico que, ao mentos que actuam sobre os consumidores da técnica
contrário do superior, não estava desorganizado pela publicitária. Há tempos, falou-se muito destes condicio­
doença. namentos; bastará recordar o livro Os Persuasores Ocul­
Noutras situações patológicas, o aparecimento de tos do americano Vance Packard, que saiu há cerca de
uma insuficiência deve-se, não à hiperactividade, como vinte anos e que então alcançou um grande sucesso em
na doença de Parkinson, mas à lesão dos centros superio­
res. Por exemplo, na afasia encontra-se lesionado o cen­ todo o mundo. Os especialistas sabem muito bem, por
tro superior da linguagem. Mas se o centro inferior esti­ exemplo, que ouvir continuamente referência a determi­
ver ileso, e regressar à actividade, temos que a insuficiên­ nada marca pode levar à sua aquisição. E isto não se
cia funcional se atenua ou desaparece. O doente, que refere apenas à pressão das 'mensagens' radiofônicas, te­
'voluntariamente' é incapaz de falar, readquire o uso da levisivas, ou dos mass media em geral. Suponhamos o
palavra. É conhecido o caso de um afásico que já não caso de um vendedor ambulante que apregoa a qualidade
conseguia recordar-se como se chamava a neta. Pertur­ de certo artigo. Nós passamos à frente porque o assunto
bado, o homem começou a chorar e soluçou: 'Minha po­ não nos interessa. Mas, se o mesmo artigo nos é apre­
bre Jacqueline, até o teu nome esqueci’. Outro caso: um goado por toda uma série de vendedores ambulantes,
empregado de comércio, doente, só conseguia pronunciar espalhados ao longo da rua que estamos percorrendo, não
um número de palavras muito limitado. Tendo sido le­ é de excluir, e é mesmo provável, que por fim nos decida­
vado ao estabelecimento, ou seja, recolocado no seu am­ mos a comprá-lo. Tal é o motivo porque é vantajoso para
biente de trabalho habitual, o homem reencontrou mui­ um estabelecimento comercial estar situado numa rua
tas expressões automáticas («Que deseja?», etc.). onde há muitos estabelecimentos da mesma espécie. E é
O que dissémos a propósito da afasia pode repetir-se este o motivo porque no Oriente, e não só no Oriente,
para a apraxia. Aqui, é o centro superior da psicomobi- existem bairros exclusivamente comerciais.
lidade que está lesionado e, também, graças à reactiva- Procuremos agora compreender o mecanismo do fenô­
ção do centro arcaico, o doente readquire a capacidade meno. Já tivemos ocasião de dizer que as estruturas ar­
de fazer gestos durante os estados emotivos ou os auto- caicas são postas em actividade por estímulos particula­
matismos. Assim, um apráxico que já não conseguia fazer res — como, por exemplo, as percepções inconscientes —
o sinal da cruz, voltava a ser capaz de persignar-se se en­ e também por estímulos repetidos. É justamente o caso
trava na igreja.

90 91
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO
OS •PERSUASORES» NAO ESTÃO ASSIM TÃO OCULTOS

da mensagem publicitária, que recorre à repetição para


influenciar o nosso comportamento. E não é apenas a ouço um segundo tiro, ponho-me novamente a correr.
publicidade que se serve dos 'estímulos repetidos' para No entanto, se continuo a ouvir disparar durante algum
alcançar o seu objectivo; a mesma técnica é adoptada tempo, a certa altura os disparos já não me farão correr».
com sucesso também em política. Isto verifica-se sobre­ Por outras palavras, estará estabelecida a habituação. O
tudo nos países de regime totalitário, que em relação aos hábito atenua, ou anula mesmo, os efeitos das cargas afec­
sistemas democráticos têm a vantagem de monopolizar tivas, e não apenas das desagradáveis. Eis porque o pra­
os mass media. É conhecido, por exemplo, que o nazismo, zer se desvanece quando falta a 'novidade'; e eis porque
para conquistar e manter o apoio popular, recorreu às ele pode recuperar a sua intensidade se o objccto que o
técnicas publicitárias experimentadas com sucesso nos suscita — pessoa ou coisa — reaparece depois de um in­
Estados Unidos. tervalo de tempo suficientemente longo. Isto explica
Em suma, quais são os factores que determinam o também como é possível que pessoas que vivem em de­
sucesso de uma campanha propagandíslica? São funda­ terminados lugares ou fazem determinados trabalhos su­
mentalmente três. O primeiro factor consiste, evidente­ portem maus-cheiros e grandes ruídos, indo mesmo ao
mente, em dispor de um slogan eficaz. O segundo é re­ ponto de já os não sentirem. Numa palavra, com o hábito,
presentado pela frequência da sua repetição. O terceiro o feio torna-se sempre menos feio e o belo menos belo;
é a escolha do momento preciso para 'o ataque'. só o que é raro possui uma intensa carga afectiva. Com
O slogan constitui a premissa de toda a operação, ou efeito, demonstrou-se que os neurônios rinencefálicos
seja, a indispensável carga afectiva. A sua repetição es­ (precisamente os centros que presidem à afectividade)
timula as estruturas afectivo-automáticas de um nível deixam de responder aos estímulos quando estes se re­
inferior do cncéfalo, onde a crítica —que poderia neu­ petem com excessiva frequência.
tralizar a acção da carga afectiva— está ausente. Todos Daqui a importância do momento escolhido para o
se recordam de um slogan publicitário que conheceu um 'ataque', em qualquer campanha publicitária. Quem se
certo sucesso: os entendidos escolhem tal marca de proponha influenciar o comportamento das outras pes­
brandy. Pois bem: através da repetição da mensagem e soas— seja para as levar a comprar determinado artigo,
da consequente estimulação das estruturas afectivas ar­ seja para as convencer a votar de certo modo — deve evi­
caicas, o potencial consumidor esquece que essa frase é tar o risco de que, no momento decisivo, os potenciais
um simples truque publicitário (como já dissémos, nas 'clientes' já não respondam à mensagem pelo facto desta
estruturas estimuladas a crítica está ausente) e identifica ter sido repetida excessivamente.
mentalmente a escolha da referida marca de brandy com
uma demonstração de prestígio. Eis porque já foi afir­
mado que a publicidade não vende calças, sabonetes ou
máquinas de barbear, mas antes beleza, fascínio e su­
cesso.
Há, no entanto, que ter em conta o terceiro factor in­
dispensável ao sucesso da operação propagandística: o
ataque no momento propício. Isto porque as estruturas
afectivas facilmente cedem ao hábito. Um estudioso des­
tes fenômenos observou: «Se ouço nas costas um dis­
paro, ponho-me a correr. Nesta acção, a minha vontade
não tem qualquer peso, dada a intensa carga afectiva
associada à detonação. Se, alguns minutos mais tarde.

92
93
OS NEUROLÉTICOS, OS ANIMAIS
E O HOMEM

A introdução dos neuroléticos em psiquiatria repre­


senta uma viragem que se pode considerar revolucioná­
ria. Para falar verdade, actualmente condena-se muito
o uso que se tem feito e se continua a fazer destes fár-
macos. No entanto, e pelo menos isto não pode ser posto
em dúvida, só graças aos neuroléticos inúmeros doentes
tiveram possibilidade de se voltar a inserir no seu am­
biente familiar, assim como de voltar a desenvolver
uma actividade profissional.
Em todo o caso, qualquer que seja a opinião que se
tenha desta terapia, uma coisa é certa: o seu mecanismo
de acção continuou desconhecido ate agora. Ora, parece-
-nos que a teoria da evolução estratificada é capaz, não
só de esclarecer o referido mecanismo, mas também de
abrir novos caminhos à investigação psicofarmacológica.
É preciso saber que o efeito de um fármaco está rela­
cionado com a acção química ou físico-química que exerce
sobre as células do organismo com que entra em contacto.
Para que isso aconteca, o fármaco deve possuir uma
‘afinidade* com essas células. Se há afinidade com todos
os tecidos do organismo, a acção do fármaco é 'universal';
se, pelo contrário, se limita a um tecido determinado, ou
a uma parte dele, a acção do fármaco será 'selectiva'.
Segundo a nossa hipótese, as estruturas pertencentes
a determinado nível estratificado no nosso encéfalo apre­
sentam as mesmas características biológicas. Caracterís­
ticas diferentes serão comuns às estruturas que fazem
I parte dos outros níveis. Por isso, se um fármaco é 'afim'
%
95

f
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO OS NEUROLÉTICOS, OS ANIMAIS E 0 HOMEM

aos neurônios de um nível determinado, e apenas a eles, nece a corrente, faz-se tocar uma campainha. Se se esta­
o fármaco actuará sobre as estruturas desse nível, mas beleceu no animal o correspondente reflexo condicionado
não sobre as estruturas dos outros. E visto que as estru­ (som da campainha = choque eléctrico), mal ouve o to­
turas pertencentes ao mesmo nível ontofilogenético são que, manifesta medo e corre a refugiar-se em cima da
idênticas nos homens e nos animais (sempre que, natural­ haste.
mente, se trate dos animais em que esse nível exista), Ora, suponhamos que se administra ao rato um neu-
um fármaco actua no homem e nos animais sobre as rolético antes de se efectuar a experiência. Resultado: o
mesmas estruturas. som da campainha não provocará no animal nenhuma
Apesar disto, os efeitos clínicos podem ser completa­ reacção, não manifestará terror e não correrá a trepar
mente diferentes nos dois casos. E isto por um motivo pela haste. Só reagirá quando sentir o choque. Neste
muito simples: no encéfalo das diversas espécies animais, caso, porém, trata-se de um reflexo 'incondicionado'.
é diferente a localização dos centros que presidem à Se se empregar uma dose menor do fármaco, o rato
mesma função. (Falámos disso a propósito da 'concessão' ficará calmo ao ouvir o som da campainha, mas ainda
que certos centros arcaicos, situados em determinada área trepará pela haste. Quer dizer, desapareceu a reacção
cerebral, fazem da sua função a centros novos, situados emotiva, mas não o reflexo condicionado. Isto significa
noutra área cerebral). Portanto, se o fármaco actua sobre que, com esta dose, o neurolético apenas exerce uma
centros que no homem são arcaicos — e por isso, em cir­ acção ansiolítica.
cunstâncias normais, estão inactivos-—, não provocará Isto no que respeita aos animais. Vejamos agora qual
nenhum efeito se administrado em seres humanos. Pelo é a acção que os neuroléticos exercem sobre o homem
contrário, terá efeito nos animais, em cujo enccfalo esses sao. Uma vez superado o estádio evolutivo a que perten­
centros estão a funcionar. cem as estruturas 'afins' ao fármaco, este último limi­
E, ao contrário, se um fármaco corresponde a estru­ tará a sua acção aos centros integrados, que, como se re­
turas que só estão presentes no homem, não terá nenhum cordará, são as estruturas que, embora cooptadas para o
efeito quando for administrado em animais. Tal é o caso, nível superior, conservam as características biológicas
por exemplo, dos fármacos que modificam o estado de que possuíam no nível arcaico original. Disso deriva que
ânimo, ou seja, os timoléticos: nos animais, a sua acção os neuroléticos, afins a estruturas inactivas no homem,
é nula. Por isso, é evidente que, se determinado fármaco num indivíduo normal actuam exclusivamente sobre o
actua exclusivamente sobre centros próprios do homem, centro relacionado com a afectividade ligada ao mundo
os resultados das experiências feitas com esse fármaco exterior, que é precisamente um centro integrado. Eis
sobre animais em laboratório não se podem considerar porque o efeito do neurolético se traduz na diminuição
válidos para a clínica humana. da tensão emotiva. A sua administração prolongada em
Teremos ocasião de voltar em breve a este problema, doses elevadas poderia provocar neurolepsia, ou seja, um
quando nos ocuparmos do 'acidente' da talidomida, que estado de total indiferença para com o que acontece à
todos ainda recordamos. Por agora, continuemos com o nossa volta.
tema dos neuroléticos. Mas, e se a pessoa a quem o fármaco é administrado
Um dos efeitos que estes fármacos provocam nos ani­ não for normal? É preciso ter presente que nos psicopa-
mais é de natureza ansiolítica, outro efeito consiste no tas, devido à lesão ou à desactivação das estruturas per­
desaparecimento dos reflexos condicionados. Como sem­ tencentes ao nível superior, funcionam estruturas nervo­
pre, vejamos um exemplo. Numa gaiola em que foi en­ sas arcaicas. Assim, nestes doentes verifica-se uma hiper-
cerrado um rato, faz-se passar uma corrente eléctrica. actividade dessas estruturas: agitação psicomotriz, por
Todavia, o animal pode evitar o choque se trepar por excitação das estruturas motoras inferiores, e alucina­
uma haste revestida de material isolante. Quando se for­ ções, por excitação das estruturas sensoriais inferiores.

96 97
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

Dada a afinidade dos neuroléticos com as estruturas ar­


caicas, eles eliminam a sua hiperactividade e, por conse­
guinte, fazem desaparecer a agitação motora e as aluci­
nações, sem no entanto alterar a mobilidade normal e as
percepções normais. Portanto, é claro que o fármaco com­
bate apenas os sintomas da doença e não a sua causa, tal
como os barbitúricos não eliminam a causa da epilepsia,
embora eliminem as crises convulsivas.

DO ACIDENTE DA TALIDOMIDA
À RECUPERAÇÃO DAS FUNÇÕES PERDIDAS

Há alguns anos, o uso de talidomida pelas senhoras


grávidas provocou uma catástrofe farmacológica que nin­
guém certamente ainda esqueceu: os bebês apresentavam
à nascença malformações muito graves (focomelia). Após
a catástrofe, efectuaram-se em muitos países investiga­
ções profundas sobre os efeitos dessa substância, quer
no homem quer em animais pertencentes a diversas espé­
cies.
No que diz respeito ao homem adulto, não há dúvida
que a talidomida se limita a exercer uma fraca acção se­
dativa sobre o sistema nervoso, favorecendo o sono. De
facto a administração do fármaco modifica o traçado
electroencefalográfico, tornando-o idêntico ao do sono.
Mas se, numa determinada fase da gravidez — e só nessa
fase—, precisamente no período compreendido entre a
terceira e a oitava semana, a futura mãe toma talido­
mida, o fármaco exercerá a acção teratogénica que bem
conhecemos. Nos símios verifica-se o mesmo fenômeno:
se um símio fêmea ingerir talidomida durante a mesma
fase da gravidez, as suas crias nascerão com malforma­
ções análogas às que em casos semelhantes surgem nas
crianças. Pelo contrário, em animais que se situam num
degrau mais baixo na escala evolutiva, não tem lugar o
efeito focomélico do fármaco.
Tais são os resultados das investigações. Mas quanto
ao como e porquê do fenômeno não foi formulada ne­
nhuma hipótese. Vejamos se a nossa teoria será capaz de
dar algum esclarecimento também a este caso.

98 99
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO DO ACIDENTE DA TALIDOMIDA...

Parta-se da hipótese de que a talidomida é 'afim' às Se, em vez de serem feitas com roedores, as experiên­
estruturas de um nível que está presente no homem e no cias feitas em laboratório com a talidomida tivessem
símio, mas que, pelo contrário, falta nos animais de um sido efectuadas com símios, os seus efeitos ter-se-iam
estádio evolutivo precedente. De que nível se trata? Com manifestado plenamente e o fármaco não teria sido in­
todas as probabilidades, do nível imediatamente a seguir troduzido na terapêutica humana. A nosso ver, por esta
ao que funciona nos carnívoros primitivos, precisamente razão, se se deseja que os resultados das investigações
o que corresponde aos primatas não-humanos, o nível sejam válidos também para o homem, é absolutamente
doze da nossa classificação. Como se recordará, para se indispensável que os animais utilizados no laboratório
proteger da agressividade das feras, o antepassado do estejam o mais possível próximos dele.
homem que viveu no eoceno superior foi obrigado a refu­
giar-se nas árvores. Pelo contrário, outros mamíferos fi­ A nossa teoria esclarece o mecanismo da acção de
zeram uma escolha diferente e voltaram a viver na água. outro 'célebre' fármaco: a anfetamina. No mundo despor­
Por conseguinte, do estádio do carnívoro primitivo, a evo­ tivo, falou-se e continua-se a falar muito desta substância,
lução ramificou-se em três direcções diferentes: a dos a propósito do chamado doping. Se a regulamentação
carnívores actuais, a dos mamíferos aquáticos e a dos 'antidoping' fosse aplicada aos cavalos, não teríamos nada
primatas. a contrapor. Efectivamente, demonstrou-se que, sob a
Neste momento, não será inútil recordar que existe acção da substância anfetamínica, até o cavalo menos
uma semelhança notável entre algumas ordens de mamí­ dotado é capaz de vencer concorrentes muito mais velo­
feros aquáticos, como por exemplo as focas, e os carní­ zes que ele.
voros terrestres. De facto, a diferença principal consiste Em contrapartida, no que diz respeito às competi­
na rudimentarização dos membros que se verifica nos ções desportivas reservadas aos seres humanos, a nosso
mamíferos aquáticos, devida ao facto de, na água, os ver, a regulamentação 'antidoping' baseia-se num erro
membros se terem tornado inúteis. Neste ponto do pro­ científico. Isto porque no homem a acção da anfeta­
cesso evolutivo verifica-se, pois, o que podemos definir mina é apenas psicotónica, mais ou menos como a do
como uma 'modificação organizativa' dos membros. Nos café. É verdade que a anfetamina é 'afim' a estruturas
primatas, que levam uma vida arborícola, os membros que presidem à mobilidade; mas trata-se de estruturas
transformaram-se de órgãos de apoio em órgãos de preen- activas nos mamíferos inferiores — como são, precisa­
são. Nas focas, que levam uma vida aquática, tendem a mente, os cavalos—, donde as excepcionais proezas de
rudimentarizar-se. Nos carnívoros, ficam inalterados. ‘pilecas’ a que foi administrada uma substância anfeta­
Eis, pois, na base da nossa teoria, o mecanismo de mínica. Pelo contrário, as estruturas humanas atingidas
acção da talidomida. Inibindo as estruturas que permitem por este fármaco são centros arcaicos integrados, que
a transformação dos membros em órgãos de preensão, o presidem a outras funções diferentes da mobilidade,
fármaco provoca no embrião humano e no embrião do como por exemplo o centro da vigília. E, de facto, ao
símio um desvio para uma via colateral da evolução, estimular este centro, a anfetamina dissipa a sensação
a via que foi seguida pelos mamíferos aquáticos, ou seja, de sono e faz com que não se sinta o cansaço.
a rudimentarização dos membros, a focomelia. Por esta Em conclusão, sob a acção deste fármaco, um atleta
razão, o período da gravidez em que a futura mãe ingere dará o melhor de si, mas nunca mais do que isso. Um
o fármaco é decisivo. É perigosa a fase em que no em­ corredor medíocre nunca conseguirá bater o recorde
brião se organizam as estruturas dos vários níveis que mundial dos cem metros, nem chegará nunca à meta an­
entram sucessivamente em actividade, incluindo pois as tes de um novo Meneias, seja qual for a dose de anfeta­
do nível doze 'afins' à talidomida, ou seja, as estruturas mina por ele ingerida antes da competição. Portanto, o
que presidem à formação dos membros. controlo 'antidoping', sendo muito útil clinicamente (por­

100 101
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO DO ACIDENTE DA TALIDOMIDA...

que o uso prolongado desta substância pode ser peri­ perior afectado forem atingidos todos os centros que lhe
goso), não tem nenhuma razão de ser do ponto de vista pertencem, nunca se conseguirá obter a recuperação das
da equidade desportiva. Senão, dever-se-ia também con­ funções que eles controlam. Quando muito, através da
siderar ilícita a ingestão de café antes de uma competição. estimulação e da consequente reactivação do centro de
um nível inferior, será possível fazer com que a criança
Passemos agora a outro problema, que a nossa teoria adquira uma função mais limitada, precisamente a fun­
pode contribuir para formular melhor: a reabilitação das ção controlada pelo centro arcaico reactivado. Por exem­
crianças deficientes devido a lesões cerebrais. plo, se o nível afectado for o nível vinte, incluindo o cen­
Entre os métodos que têm sido aplicados para conse­ tro da leitura que nele se encontra, desde que a terapia
guir a reabilitação motora destas crianças, ou seja, para tenha sucesso, a criança deficiente poderá servir-se do
as tornar aptas a andar, temos aquele a que se chama centro da leitura presente no nível inferior reactivado.
global. Recorrendo a estimulações particulares, tenta-se Mas este último centro permite unicamente a leitura em
que o pequeno paciente percorra as diversas etapas do voz alta. Portanto, será inútil, só alimentará esperanças
desenvolvimento motor na mesma ordem cronológica em infundadas e, como tal, provocará amargas desilusões,
que estas se sucedem na evolução ontogenética normal. qualquer tentativa de fazer com que a criança adquira a
Nalguns Centros de Reabilitação, com esta terapia, conse­ capacidade de leitura interior, porque um centro des­
guiram-se resultados de grande interesse que, no entanto, truído não pode, obviamente, ser reposto em actividade.
ainda não estão completamente esclarecidos para os pró­
prios monitores. Não só uma percentagem significativa Mas é sobretudo no campo da neurocirurgia que a
das crianças submetida ao tratamento registou melho­ nossa hipótese poderá permitir progressos mais interes­
rias decisivas no plano motriz, como algumas delas, que santes.
também apresentavam deficiências de linguagem, em Os dados obtidos nos últimos anos pela investigação
determinada altura do tratamento, começaram a falar neurocirúrgica desconcertaram os cientistas. De facto,
sem terem sido submetidas a 'logoterapia'. esses dados são completamente diferentes dos que os in­
Estes dados representam uma confirmação da nossa vestigadores esperavam. Por exemplo, registaram-se casos
hipótese. Em primeiro lugar, demonstram que no encé- em que a extracção de um centro lesionado por um tu­
falo humano existem, como afirmamos, os níveis corres­ mor, não só não acentuou a deficiência funcional, como a
pondentes às várias etapas da ontogénese. Em segundo fez desaparecer.
lugar, demonstram que um centro ileso de um nível su­ O que até aqui temos vindo a dizer poderá certamente
perior afectado pode ser integrado num nível inferior, per­ antecipar a explicação que damos destes fenômenos. Mas
mitindo asim a recuperação de uma função perdida. Em vejamos primeiro que hipóteses alternativas até agora
terceiro lugar, demonstram que as funçõe não dependem foram formuladas. Segundo alguns estudiosos, a recupe­
só da maturação das estruturas nervosas que as gover­ ração funcional que se verifica após a extracção de uma
nam, mas também da sua estimulação. Só assim as pre­ área cerebral dever-se-ia a uma 'adaptação'. As partes sãs
disposições funcionais se transformam em ‘funções ad­ de determinado centro 'adaptar-se-iam', de modo a ate­
quiridas'. nuar as consequências para o organismo da súbita ca­
Posto isto, acrescentamos uma observação que parece rência. Ao contrário, segundo outros cientistas, a função
pertinente: se um melhor conhecimento da organização seria transmitida do centro lesionado para tecidos de re­
neurológica vier a aperfeiçoar a terapia de reabilitação serva, até então em repouco. É a hipótese da 'suplência',
das crianças deficientes, o sucesso desta terapia nunca à semelhança de uma partida de futebol, em que um jo­
poderá ultrapassar certos limites. À luz da nossa teoria, é gador lesionado é substituído por um companheiro da
evidente quais são estes limites. De facto, se no nível su­ 'bancada'. Mas nenhuma destas hipóteses foi aceite.

102 103
LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO DO ACIDENTE DA TAL1DOMIDA...

E agora, passemos à nossa explicação, que, como dis- doença de Parkinson. Porém, efectuam a intervenção
sémos, os leitores já provavelmente adivinharam. Se, empiricamente, na medida em que lhe conhecem anteci­
quando da ablação de um centro superior lesionado, se padamente os efeitos positivos, embora ignorem o meca­
extrai também a estrutura inibitória que impede o fun­ nismo que os determina. Segundo a nossa teoria, como
cionamento do centro arcaico que preside à mesma fun­ vimos, a explicação está em que aquelas estruturas, en­
ção (embora mais limitada), normalmente este último trando em fase de hiperactividade, desorganizam o nível
volta à actividade. Numa palavra, verifica-se o fenômeno superior.
da 'restituição'. É esta a razão porque, após a extracção Mas voltemos às intervenções destinadas a permitir a
da área cerebral lesionada por um tumor, o homem de recuperação funcional graças à extracção das estruturas
que falámos no fragmento 9 do nosso puzzle registou inibitórias, quando os centros superiores estão lesiona-
sensíveis melhoras da sua capacidade de falar. dos. No caso de os centros inferiores também estarem
Todavia, a ‘libertação’ do centro inferior não é sufi­ lesionados, é evidente que não pode haver recuperação.
ciente para determinar a recuperação de uma função. Portanto, antes de se intervir, será necessário assegurar-
Também são precisos treino e reeducação. Como dissé- -se da funcionalidade do centro arcaico. Outra grande
mos, a maior parte das funções são funções ‘adquiridas’. dificuldade deriva do facto de, em nossa opinião, a mesma
Isto significa que os estímulos externos modificaram as função poder estar localizada em áreas cerebrais diferen­
estruturas nervosas onde residem as predisposições fun­ tes, conforme os indivíduos. Consequentemente, a extrac­
cionais. Ora, se uma função adquirida deixa de ser exer­ ção da mesma área cerebral poderia ter efeitos diferentes
citada— precisamente o que acontece depois de um cen­ em pessoas diferentes.
tro inferior ter restituído a sua função a um centro gene­ Como vemos, o caminho a percorrer não é nem fácil
ticamente mais recente—, as modificações introduzidas nem curto. Mas convenhamos que a teoria exposta abre
na estrutura arcaica acabarão por desaparecer. Por esta à investigação neurocirúrgica perspectivas cientifica­
razão, um centro inactivo há muito tempo precisa de mente fascinantes, de uma importância ‘humana’ que nos
treino (espontâneo) ou de reeducação, para readquirir a parece supérfluo sublinhar.
sua capacidade funcional. Vejamos se o nosso desafio é aceite.
Por outro lado, muitas vezes, a lesão de um centro
superior não implica a destruição das estruturas inibitó-
rias que impedem o funcionamento do centro inferior que
preside à mesma função. Consequentemente, neste caso
não se dará a recuperação funcional e a reeducação não
terá sucesso. Assim, o neurocirurgião deverá extrair as
estruturas inibitórias (depois de identificadas, natural-
mente) sem ter de recorrer à ablação de toda a zona cere­
bral correspondente ou mesmo à hemisferoctomia.
Esboça-se assim o que poderia e, em nossa opinião,
deveria constituir o próximo objectivo da investigação
neurocirúrgica: como e onde intervir para libertar um
centro inferior capaz de recuperação funcional e, deste
modo, restituir a capacidade motora e da fala a pessoas
hoje consideradas deficientes incuráveis. Aliás, hoje em
dia, pela destruição de certas estruturas cerebrais, os
neurocirurgiões já conseguem eliminar os tremores da

104 105
POSFÁCIO

Já tive ocasião de observar noutra altura que não é


esta a melhor forma de temperar as armas culturais de
uma esquerda que hoje se debate com dificuldades após
a reconhecida crise do marxismo e, mais genericamente,
do humanismo. Será possível que não se tenha consciên­
cia da inutilidade ou, pior ainda, do prejuízo, da recusa
apriorística de qualquer tese só porque ela nos «desa­
grada»? Só porque, caso fosse aceite, podería corromper
ou, pelo menos, manchar uma construção que se pretende
monolítica? Porque não se submete, pelo contrário, aque­
la tese a um exame desapaixonado? De facto, se essa tese
POSFÁCIO viesse a ser confirmada pela realidade, mesmo que num
só aspecto, a derrocada seria irremediável, não apenas
parcial mas total. Quando nos convenceremos, de uma
O debate sobre as motivações do comportamento vez por todas, que não existem dois tipos de ciência,
humano tem-se vindo a tornar cada vez mais intenso e uma reaccionária e outra revolucionária, mas que reaccio­
renhido nos últimos tempos. Após decênios de ditadura nário ou revolucionário é apenas o uso que se pode fa­
positivista, que condenava o homem a obedecer, em to­ zer, e efectivamente se faz, dos dados científicos?
dos os seus gestos, em todas as suas «aparentes» opções, Em vez disso, sobre estas questões, ou seja, sobre a
às inflexíveis leis de ordem biológica, o pêndulo inclinou- importância ou irrelevância do factor genético no com­
-se para o lado oposto. De facto, constituiu-se outra es­ portamento humano, o confronto desapaixonado foi subs­
cola do pensamento, de inspiração marxista — mas não tituído pelo anátema, com o resultado dc que muitos es­
apenas marxista — que atribui uma importância priori­ tudiosos de esquerda, embora estivessem disponíveis
tária, para não dizer única, ao «histórico», ao «social». para esse confronto, preferiram calar-se a arriscar serem
Segundo essa escola, é o meio ambiente que faz o homem; acusados de «traidores».
o homem não «é», mas «toma-se». E dado que os defen­ Alguns exemplos? Bastaria recordar o caso da socio-
sores do determinismo biológico são implicitamente de­ biologia. 0 professor Edward Wilson, zoólogo de Har-
fensores da conservação do «sistema» — de facto, para ward que propôs a aplicação às ciências humanas, isto é,
eles, a natureza humana não se altera —, de nada servindo ao estudo do homem, do método por ele seguido para
transformar a ordem social; em novas estruturas even­ explicar o comportamento dos animais, foi levado ao
tuais, as injustiças, as humilhações, as prepotências, as banco dos réus. Contra ele foram pronunciados violen­
violências poderíam quando muito diminuir de diferentes tíssimos requisitórios. Afirmou-se que queria reduzir o
ser humano a uma máquina «fechada», programada des­
maneiras, mas é utópico acreditar no seu desapareci­ de o nascimento, destinada a funcionar segundo regras
mento — eis porque, entre a esquerda, se estabeleceu uma pré-determinadas, independentemente de qualquer estí­
equação muito mais ideológica que científica; se um mulo ambiental. Afirmou-se ainda que justificava as in­
cientista dá importância ao «inato», é um reaccionário. justiças da sociedade e ofendia a dignidade da pessoa
Mau-grado a própria vontade de quem a formulou, esta humana... E assim por diante.
equação acabou por se tomar numa espécie de dogma Análogo ou ainda pior tratamento foi reservado ao
que, como todos os dogmas deste mundo, também provo­ professor Eysenck, outro estudioso americano, segundo
cou intolerância e repressão contra todos aqueles que o o qual cada um de nós nasce com uma «dotação» de inte­
pretenderam pôr em causa. ligência precisa. Por outras palavras, para Eysenck, tal

106 107
r

LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO POSFACIO

como uns nascem mais belos e outros mais feios, assim Num livro recentemente publicado em França com
também uns nascem mais e outros menos inteligentes. o título Marx e Darwin, Yves Christen escreve que, en­
Também aqui assistimos a reacções violentíssimas. Em quanto os adeptos do evolucionismo modificaram pro­
vez de se contrapor aos «dados» de Eysenck eventuais gressivamente as posições teóricas do cientista inglês,
«dados» de sinal contrário, recorreu-se a um igualita- permitindo que o seu pensamento se adaptasse aos novos
rismo equívoco. Podia-se responder que uma coisa é a dados fornecidos pela investigação, os marxistas ortodo­
dotação genética de inteligência e outra o seu desenvol­ xos preferiram cerrar fileiras em tomo da doutrina do
vimento, que está incontestavelmentc ligada ao meio am­ mestre, mesmo que isso se traduzisse na recusa da rea­
biente, pelo que, se as condições familiares e sociais fo­ lidade: «já pouco científico na origem, o marxismo não
rem desfavoráveis, nem o indivíduo potencialmente do­ cessou de se afastar da ciência, o que explica que todas
tado da mais viva inteligência conseguirá desenvolvê-la. as suas aplicações neste terreno, sem excepção, tenham
Podia-se ainda observar que a maior ou menor inteligên­ falhado».
cia de um ser humano, tal como a sua maior ou menor O que não significa, precisa ainda Christen, que Marx
beleza, não pode nem deve justificar uma desigualdade e Engels fossem menos inteligentes do que Darwin (aqui,
de direitos. Pelo contrário, escolheu-se a via de «todas as paradoxalmentc, reaparece Eysenck em cena). Pelo con­
crianças são gênios». Isto fora afirmado pelos alunos da trário, provavelmente até eram mais inteligentes. Mas o
Escola de Barbiana na «Carta a uma Professora». Nesse facto é que eles «conduziram os seus sucessores por um
contexto, a frase tinha um evidente cariz de provocação caminho que os obrigava a submeter os factos, particu­
política, e nesse sentido era «correcta». Mas, só nesse larmente os factos novos, posteriores à teoria original,
sentido. à censura do dogma definido a priori. Esta concepção
Que dizer ainda das polemicas suscitadas há alguns do mundo pode ser definida como fechada ou, melhor, im­
meses por 0 meu Tio da América, o filme de Alain permeável. Ao contrário, Darwin deu origem a um mo­
Resnais que punha em imagens as teses do cientista fran­ vimento científico, ou seja, a um movimento de idéias
cês Henri Laborit sobre os condicionamentos biológicos susceptíveis de se modificarem em contacto com os ele­
do comportamento humano? Também aqui, na maior mentos novos... Esta concepção do mundo pode ser
parte dos casos não se discutiu, mas apenas se protestou. definida como aberta. Portanto, não é de admirar que,
E, no entanto, só um louco podería acusar o realizador cerca de um século depois da morte dos grandes percur-
de A Noite e o Nevoeiro de racismo. sores, os dois sistemas tenham cada vez mais dificulda­
Ültimo exemplo. Como se sabe, os intérpretes «radi­ de em coincidir.»
cais» das teses psiquiátricas de Franco Basaglia encaram 0 processo de acabar positivamente com esse desen­
a doença mental como um produto «exclusivo» do meio contro poderia ser, não a coincidência, mas talvez aquilo
ambiente. Se, apesar do medo, devido ao temor que atrás que Giorgio Celli define como «contaminação», no seu co­
referimos, qualquer estudioso ousa observar que, pelo mentário às reacções provocadas pelas teses de Wilson,
contrário, certas perturbações psíquicas se devem a Tal desencontro tem sido muito pouco «científico».
agentes químicos e que, por consequência, são curadas Isto porque como sublinha ainda Celi, não compete ao
farmacologicamente e não ‘no terreno' (ou, quando cientista consolar a humanidade, mas procurar a verdade.
muito, não apenas 'no terreno'), acusam-no logo de fazer E, como escrevia Renan, «quem sabe se a verdade não é
o jogo de todos quantos querem regressar aos horrores triste?»
do manicômio. Perante isto, diremos apenas que o sen­ Observa Celli que já se vão manifestando sintomas
tido cartesiano das distinções parece pertencer a um de «contaminação». Certos cientistas colocam «os fenô­
passado cada vez mais remoto. menos culturais em paralelo, quase como metáforas, com

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LONGA VIAGEM AO CENTRO DO CÉREBRO

os fenômenos biológicos»; e não nos devemos admirar


disso, porque «depois de tantas declarações culturalistas,
depois da irrelevância da biologia na antropologia... um
pouco de materialismo ‘para rebater' parece-me ser um
antídoto feliz».
A teoria exposta neste livro, assim o espero, será tes­
tada e verificada em locais mais especificamente cientí­
ficos. Mas num plano cultural mais vasto parece-me que
ela constitui um avanço considerável para a salutar «con­
taminação» de que se falou entre «inato» e «adquirido»,
entre natureza e história, entre biologia e sociedade.
Efectivamente, ela afirma que nós possuímos «predispo­
sições funcionais», mas que ao mesmo tempo serão os ÍNDICE
estímulos exteriores, obviamente diferentes para cada
um, que amadurecem as funções, isto é, que dão forma Prefácio ................................................................................... 9
ao nosso comportamento. Diz ainda que os «valores»
adquiridos se sobrepõem aos impulsos «biológicos» para Prólogo .................................................................................... 13
uma conduta acrítica e imitativa. Quem «sabe» que não A evolução e a lei de Haeckel................................................ 19
quer matar nunca se deixará envolver num linchamento. A vida sobre a terra na cra arcaica ................................. 23
Em conclusão, espero que esta «viagem ao centro do A vida afasta-se da água ..................................................... 29
cérebro» forneça aos leitores que nela nos acompanha­ O nosso antepassado refugia-se nas árvores ....................... 33
ram várias pistas para reflectirem sobre um tema que, A inteligência substitui a força ........................................... 39
hoje mais do que nunca, é de uma actualidade gritante: Nasce a linguagem .................................................................. 43
o homem e a sua liberdade. Primeiro «superstrato». Objectivo: asobrevivência ............ 47
Segundo «superstrato». Objectivo: oprazer ........................ 53
Rosellina Balbi Terceiro «superstrato». Objectivo: o útil e o certo............. 59
A concessão das funções ..................................................... 67
Regressões psíquicas experimentais: a hipnose ................. 73
Regressões psíquicas fisiológicas: sonhos, automatismos,
emoções ............................................................................. 77
Regressões psíquicas patológicas: estados crepusculares, du­
pla personalidade ............................................................. 87
Os «persuasores» não estão assim tão ocultos ................. 91
Os neuroléticos, os animais e o homem................................. 95
Do acidente da talidomida à recuperação das funções
perdidas............................................................................. 99
Posfácio ................................................................................... 106

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Composição c impressão
de Guide-Artes Gráficas, Lda.
para EDIÇÕES 70
em Julho de 1982
Colocando-se numa perspectiva rpanifestamente não acadêmica, os autores deste
livro põem em causa alguns esquemas tradicionais relativos ã explicação do modo
como se lormou e evoluiu o cérebro humano. Livro fascinante e polêmico, aborda
não só a formação da inteligência e da linguagem como a manifestação das regressões
psíquicas experimentais (hipnose), fisiológicas (os sonhos, os automatismos, as
emoções) e patológicas (os estados creóusculares, a dupla personalidade). >

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