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As Bases Celular e Molecular da Cognicao G.W, era uma estudante de 21 anos quando sua vida sofreu um revés. Durante seu tiltimo ano na fa- culdade, comesou a ter dificuldades em lidar com alguns detalhes de sua vida. Embora assistisse as aulas regularmente, suas notas estavam prejudicadas em fun¢4o do mau desempenho nos exames, tendo sido até mesmo reprovada nas disciplinas. Seus pais estavam preocupados com a possibilidade de ela ter se envolvido com drogas ou estat sofrendo de depresso, mas nenhuma dessas era a razdo de seus problemas. Seu comportamento em casa, durante as visitas das férias, deixava seus pais ainda mais preocupados. G.W. Ihes contava de planos sobre as quais nunca tinham ouvido antes. Falava em fazer viagens pelo mundo ou de cursar faculdade de direito ou medicina ~ 0 que néo seria uma idéi incomum para uma estudante universitria - mas a organizacao de seus planos tinha algumas falhas evidentes, as quais ela nao parecia estar ciente. Quando seus pais Ihe perguntaram porque estava ten- do problemas na faculdade, ela insistia em que seus professores nao valorizavam ou compreendiam suas idéias, e sugeria que estavam “de perseguicdo com ela”. Sua familia acreditava que ela estava “es- tressada” com as exigéncias das atividades da faculdade, de forma que ofereceram apoio e encoraja- mento, ¢ G.W. retornou a escola. Varios meses depois, ela volta para casa de novo, sem condigSes de continuar a faculdade; havia pedido uma licenga por sugesto de seu tutor da faculdade. Durante os meses seguintes, houve uma piora ainda mais significativa do quadro. G.W. comegou a expressar, as vezes de forma agressiva, que estava sendo perseguida pelos amigos e pela familia e, depois, que ouvia vozes que a advertiam sobre os perigos que a cercavam. Queixava-se em rela¢ao a um dente e estava convencida de que seu dentista havia feito alguma coisa terrivel para ela durante sua diltima consulta, algo que deveria ter relacdo com seus problemas “emocionais” freqtientes. Outro dentista néo encon- trou nenhuma evidéncia de alguma coisa errada com seus dentes. O médico da familia [he encami- nhou a um especialista, Por recomendacao deste médico, ela foi internada em um hospital psiquidtei- co particular para observacao ¢ tratamento. Apés um més de tratamento, G.W. parecia muito melhor e voltou para casa e, no semestre seguinte, retomou a faculdade. Ela seguiu tomando a medicagao, con- forme recomendacao de seu médico. G.W., entretanto, nfo terminou a faculdade e passou os proxi- mos anos sendo hospitalizada varias vezes. Vivia em casa, onde seus pais faziam 0 melhor possivel pa- ra ajuda-la. Embora esse apoio parecesse fazer diferenca, ela tinha declinios repentinos, caracterizados por surtos de parandia, pensamento desordenado e comportamento altamente passional. G.W. escre- via longas historias em cartas para sua avé. Estas cartas foram se tornando progressivamente confusas tanto em estilo como em contetido, mostrando estranhas associagGes entre os assuntos e, algumas ve~ zes, envolvendo referéncias a conspitagdes contra ela e mencionando pessoas proeminentes com quem ela alegava ter algum tipo de ligacdo. Para sua avé, parecia como se G.W. nao pudesse mais dis- tinguir entre 0 real e 0 imaginario. G.W. sofia de uma doenga psiquiatrica antes denominada de de- ‘méncia precoce, mas atualmente conhecida como esquizofrenia, um termo cunhado pelo psiquiatra suiso Eugen Bleuler (1857-1939) em seu livro sobre o assunto, datado de 1911. Y= cara cin 0 que é esquizofienia? Expondo de forma simples, & tum distérbio cognitivo, algumas vezes chamado de “dis- tiirbio do pensamento”. A esquizofrenia afeta cerca de 19% da populacéo mundial. Possui um componente ge- nético: existe uma probabilidade aumentada para uma pessoa desenvolver esquizofrenia se umn membro de sua familia possui o distirbio, e a probabilidade de desen- volvé-lo é cetca de 50% para gémeos idénticos de uma pessoa com esquizofrenia. Estes dados sao uma evidén- cia clara de que a esquizofrenia tem um componente bioldgico. Mas qual é a base neurobiolégica para o dis- tarbio? No momento, essa questo permanece sem res- posta, mas uma das principais pistas é 0 fato de que cer- tas drogas que agem sobre os principais sistemas de transmissores quimicos cerebrais possam influenciar de maneira positiva 0s sintomas da doenca. E por essa ra. 240 que introduzimos Capitulo 2 com uma histéria sobre um distarbio psiquidtrico. O delicado equilibrio ra comunicasao entre os neurdnios do encéfalo produz aprendizagem, e, quando este equilibrio € perturbado por lesio ou doenga, a percepedo, o movimento e o pen samento em si podem ser colocados em risco. Neste ca pitulo, examinaremos como as células neurais se comu- hicam, retornando, mais tarde, & questo da esquizofre- nia e de transmissio quimica. No Capitulo 1, descrevemos os registtos histéricos da neurocigncia cognitiva moderna para apresentar co- mo a psicalogia e a biologia cresceram juntas para criar esta subarea de conhecimento. Desta forma, introduzi- mos as teorias, as idéias e as personalidades da historia da psicologia ¢ das neurociéncias. Embora o conheci- mento sobre a mente e o cérebro possa ser tragado des- de civilizagSes antigas, a maior parte do que considera mos constituir a base biol6gica do sistema nervoso ini- ciou de forma modesta na Gltima metade do século XIX. Somente nos tiltimos cem anos as neurociéncias assen- taram os fundamentos para o conhecimento sobre como as células do cérebro humano ¢ seus citcuitos tormam possivel o comportamento. Os neurocientistas compreendem atualmente os aspectos-chave da sinalizagao neuronal, da transmissio sinaptica e da codificagio neuronal da informagio para armazenamento e processamento. Os pesquisadores tém trabalhado intensamente para descrever os proces- sos celulares e moleculares elementares da atividade dos neurdnios individuais e da atividade das circuitos neuronais. Embora a maneira precisa pela qual os even- 108 biolégicos originam os comportamentos esteja ape- nas comecando a ser compreendida, hove um amplo acémulo de conhecimento sobre 05 eventos no ambito neuronal, Algumas descobertas slo suficientemente bem-compreendidas para constituir um conjunto de principios elementares da ciéncia do cérebro. Neste ca- pitulo, revisaremos, de forma sucinta, esses primeiros principios das neurociéncias, por representarem os fun- amentos necessérios para 0s capftulos que se seguem. Enfatizaremos aqui a anatomia celular e a fisiologia dos neurdnios, enquanto que, no Capitulo 3, apresentare- ‘mos a anatomia e a organtizacao em termos basicos do sistema nervoso. Para desenvalver uma compreensio da biologia do processamento da informagao, levanta~ mos as seguintes questdes: Coma os neurénios se co- municam? Quais sao 08 sinais qufmicos que medeiam essa comunicaco? Como as drogas modificam essas interagSes, algumas vezes para o bem e em outras em detrimento do individuo? AS CELULAS DO SISTEMA NERVOSO Oscientistas freqiientemente adotam uma estratégia re- ducionista na esperanca de compreender o todo, identi- ficando primeiro suas partes constituintes, Por exemplo, na fisica e na quimica, as unidades constituintes funda- mentais da matéria foram significativamente pesquisa~ das por 400 anos, uma busca que levou 3 identificagéo dos elementos bésicos dos quais todas as moléculas s40 feitas ~e, evidentemente, aos principios da estrutura su- batomica. Essa fascinacdo com os elementos constituin- tes essenciais do mundo que nos cerca foi também com- partilhada por bidlogo, que, nos séculos XVI e XVIII, tentaram visualizar os constituintes dos tecidos biolégi- cos com a utilizagio de lentes ce aumento, Desse esfor- 50 originot-se um principio fandamental, a teoria celu- lar. A idéia era de que o corpo era composto de unidades elementares, ou células. Como foi observado no Capitu- lo 1, aidéia de que células individuais formavam as uni- dades funcionais elementares do sistema nervoso era, contudo, controversa, mesmo na virada do século XX No fim, o conceito de Cajal sobre o sistema nervoso ser composto de neur6nios individuais prevaleceu. Cajal observou que, embora os neurénios estejam muito préximos uns dos outros, estao separados por pe- ‘quenos espagos. A partir dessas observacées, Cajal defi- niu dois importantes principios sobre os neurdnios: es- pecificidade de conexdes e polatizagio dinamica. A espe- cificdade de conexées incorpora as idéias de que as células 40 sepatadas, pois os citoplasmas dos neurSnios nio es- to em contato, e as conexdes entre 0s neurénios nao 840 a0 acaso ~ 08 circuitos passam informaco por meio de vias espectficas. A polarizagdo dintmica é a hipétese de Cajal de que algumas partes dos neurénios sio especiali- zadas em receber informagées, enquanto outras so es- pecializadas em enviar informacdes para outros neurd- jos ou miisculos, Esses dois principios, juntamente coma teoria da doutrina do neurdnio, constituem o foco de atencdo para a primeira parte deste capitulo, o qual revi- saa estrutura e a fungio das células do sistema nervoso. eee Bxistem duas classes principais de células no siste- ma nervoso: neurOnios e células gliais. Os neurdnios nfo apenas compartilham similaridades com todas as.cé- Iulas, mas também possuem propriedades fisiol6gicas € morfoldgicas tinicas para desempenhar funcoes espe- ciais. As células gliais so uma classe de células nao- neurais localizadas no sistema nervoso e que, em geral, possuem uma fungao de sustentagao. AEstrutura des Neurénios (Os neur6nios, as unidades sinalizadoras bisicas, sfo dis- tinguidos por sua forma, fungio, localizacio e interco- nectividade dentro do sistema nervoso (Figura 2.1). Co- ‘mo Cajal e outros de sua época deduziram, os neurOnios recebem informagéio, tomam uma “decisio” sobre ela, obedecenclo algumas regras relativamente simples, e, en ‘Go, por meio de mudancas em seus niveis de atividade, passam essa informacdo para outros neurénios. Essas fungGes estdo intimamente relacionadas com as especia- lizaghes dos neuténios (© neurdnio consiste em um corpo celular, ou soma, que significa “corpo” em grego (Figura 2.2). Como a maioria das células, 0 corpo celular contém a maquinaria metabélica que mantém 0 neurdnio. Os componentes da maquinaria incluem um nticleo, reticulo endoplasmitico, ribossomos, mitocéndria, aparelho de Golgi e outras orga nelas intracelulares em comum com a maiaria das células. wevrccencicoonnna «43 Essas estruturas esto circundadas pela membrana neuro- nal, a qual é composta pot uma dupla camada lipidica, e estdo suspensas no citoplasma, no fluido intracelular que esté presente no interior de todas as células do corpo. Além do corpo celular, os neurénios também pos- suem processos especializados, os dendritos eo ax6- nio, que se estendem para além do corpo celular. © pa~ pel desses dois tipos de estrutura reflete o principio da polatizacio dinamica, Os dendritos sao (usualmente) grandes processos semelhantes a arborizaroes, que re- cebem aferéncias de outros neurénios em locais deno- minados sinapses. Como estéo localizados aps as nnapses, considerando o sentido do fluxo de informacao, 08 dendritos de um neurdnio sao ditos pés-sinapticos (apés a sinapse). O axdnio é dito pré-sindptico por es- tar antes da sinapse, levando em consideracdo o sentido do fluxo de informagao. Fm termos gerais, podemos, portanto, referitmo-nos aos neurdnios como sendo pré- sindpticos ou ps-sindpticos, com relagao a uma sinap- se em patticular, mas 2 maioria dos neurOnios é tanto pré-sindptica como pés-sinptica ~ s4o pré-sinapticos quando seus axénios fazem conexdo com outros neuré- nios ¢ pés-Sinépticos quando recebem conexses de ou- tos neurdnios através dos seus dendritos. & importan- te salientar, aqui, que 08 neurénios sinalizam de forma elétrica, mas, nas sinapses, o sinal entre os neurénios é comumente mediado por transmissao quimica, como Cajal supés. Em citcunstancias limitadas, contudo, al- Figura 2.1. Neurdrio de mamifera mostrando 0 capa celular (Goma) no centro crcundade por dendos. © axtnio est vist ‘el como um fino fo de cabelo que emerge do quadkante ite tio dieito do soma e desapareceno lado deta da imagem. Esta imagen mostra um neurnia expressando o receptor ‘ransfrrina (TR), uma protena denriticamarcada com protet- na fluorescente verde (GFP; green fuorescent prota TR fol produids no corpo celular transportada aos denditos.O co ‘ante vermlo 6 ure ant-TFR, que dstingue outrafonte de TAR. ‘Acoloragio para MAP2, uma proteina da citoesqueeto espec: fica do dendrit, esté em azul, Observe a semelhanga coma neu idealizado na Figura 2.2. Entretanto, observe também 0 tamanho relativamente grande do campo denditica en com paragfo ao soma. Cortesia de MichaoSiverman e Gary Ban ey da Universidade de Ciencias da Sabde de Oregon,

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