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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion

Reflexões sobre a
“teoria do pensar”, de Bion
Reflection about the “theory of thinking”, by Bion
Waleska Pessato Farenzena Fochesatto

Resumo
O artigo surge em decorrência de uma reflexão sobre a teoria do pensar de Bion. A teoria
do pensar não se refere a uma função meramente cognitiva, mas fala da inauguração de um
espaço de autoria. Segundo Bion, a experiência de frustração vivida a partir de um aparelho
psíquico capaz de suportá-la origina um protopensamento, desenvolvendo então um aparelho
psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma solução para se lidar
com a frustração. A teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psi-
quismo, afinando a escuta para a aquisição da capacidade simbólica.

Palavras-chave: Teoria do pensar, Bion, Psicanálise.

Ao longo da formação psicanalítica entramos Partindo de Freud, sabemos que o proces-


em contato com a obra de alguns importan- so primário está ligado à satisfação imediata
tes psicanalistas que no decorrer do último das necessidades básicas portanto ligado ao
século vêm dando continuidade à obra de princípio do prazer, ao passo que o proces-
Freud. Melanie Klein aprofundou o concei- so secundário está relacionado ao princípio
to de fantasia, deu ênfase ao mundo inter- da realidade, o qual vai se impondo sobre o
no, introduziu a ideia de posição. Winnicott princípio do prazer, gerando a capacidade de
descreveu fenômenos como a regressão à de- adiar a descarga pulsional e abrindo espaço
pendência, elaborou o conceito de mãe sufi- para a capacidade simbólica.
cientemente boa, abriu caminho para a aná- Segundo Bion, a experiência de frustração
lise de pacientes difíceis. Em relação a Bion, oriunda desse processo — também chamada
antes de iniciar as leituras sobre sua obra, já de experiência do não seio, vivida a partir de
conhecia sua importante contribuição acerca um aparelho psíquico capaz de suportá-la —
dos fenômenos grupais. Mas, mesmo assim, origina um protopensamento desenvolven-
me questionava: Qual a originalidade de suas do, então, um aparelho psíquico para pensá-
contribuições? E foi dessa forma que pensei -lo. Em outras palavras, o pensar surge como
em escrever sobre a teoria do pensar, elabo- uma saída, uma espécie de solução para se
rada por ele em 1962. lidar com a frustração. Mas, se ao contrário
Segundo Zimerman (1995), no curso das disso, a capacidade de tolerar frustração for
análises de psicóticos, Bion ficou fortemen- precária, o não seio ou o seio mau deve ser
te tentado a se aprofundar nos problemas de expulso através do uso maciço de identifica-
linguagem e nos problemas da origem e fun- ções projetivas.
ção dos pensamentos. Para tanto, se inspirou Dessa forma, Zimerman (1995), ao expli-
nos postulados de Freud sobre o princípio do car a teoria do pensar de Bion, coloca que, se
prazer e da realidade, além de ter sido influen- o ódio resultante da frustração não exceder
ciado pelas ideias de Melanie Klein e Ferenczi. a capacidade do ego do lactante de suportá-
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Reflexões sobre a “teoria do pensar”, de Bion

-lo, o resultado será uma sadia formação do Os elementos alfa não são a experiência da
pensamento através do que Bion denominou coisa em si, mas uma abstração e uma repre-
de função alfa, a qual integra as sensações sentação dessa, que enquanto se faz simulta-
provindas dos órgãos dos sentidos com as neamente representada em ambas as formas
respectivas emoções. No entanto, se o ódio consciente e inconsciente, fornece à persona-
for excessivo, protopensamentos denomina- lidade uma “visão binocular” da experiência,
dos por Bion de elementos beta — experiên- de onde deriva o “sentimento de confiança” na
cias sensoriais primitivas e caóticas que não sua realidade (MELTZER, 1998, p. 73).
puderam ser pensadas — encontram saída
através do alívio imediato de descarga, o que Os elementos beta, ao contrário, se proli-
é feito por meio de agitação motora, atuações feram de forma caótica e constituem o que
ou somatizações, mas que sempre utiliza a Bion chamou de pantalha beta, não possibi-
identificação projetiva como mecanismo. litando uma diferenciação entre consciente e
Assim, de acordo com essa teoria, a cons- inconsciente, entre fantasia e realidade, não
ciência de si depende da função alfa. Clara- permitindo a elaboração dos sonhos. Bion
mente influenciado por Melanie Klein, Bion (1994) mostra que nos pacientes psicóticos
coloca que é o êxito da posição depressi- prevalece a formação da pantalha beta, bem
va que permite a formação de símbolos, os como há uma prevalência da posição esqui-
quais substituem e representam todas as per- zoparanoide sobre a posição depressiva. Des-
das inevitáveis do curso do desenvolvimen- sa forma, o pensamento adquire uma con-
to. Consequentemente, a formação de sím- cretude, uma dureza, capaz de causar danos
bolos possibilita a capacidade de abstração e reais e precisam ser expulsos imediatamente.
criatividade, inscrevendo o sujeito no campo Não há possibilidade de simbolização. Re-
do simbólico. ferindo-se aos pensamentos que ainda não
Bion extraiu o termo função do campo da adquiriram um sentido tampouco um nome,
matemática e, segundo Zimerman, a equi- Bion coloca que nos psicóticos predomina o
valência entre ambos é que na matemática pensamento vazio, por isso nas situações de
função alude a um elemento variável que sa- angústia ele vem acompanhado de um estado
tisfaz os termos de uma equação, e do mes- psíquico que ele chamou de terror sem nome.
mo modo a função alfa representaria uma Além das duas formações citadas — alfa
incógnita à espera de uma realização para sa- e beta, Bion coloca uma terceira forma pos-
tisfazer-se. Assim, a função alfa, na teoria de sível de subjetivação que veio a denominar
Bion, é a primeira que predominantemente reversão da função alfa. Trata-se de casos
existe no aparelho psíquico. Ou seja, se o in- em que a função alfa já opera no psiquismo,
divíduo tiver capacidade de tolerar frustra- mas, por alguma dor vivida em excesso, ela
ção, é a função alfa que vai transformar as recua e produz elementos beta, já diferentes
primeiras impressões emocionais (prazer e dos originais. Nesses casos ocorre uma re-
dor) em elementos alfa. Estes últimos, sendo gressão rumo a um pensamento concreto, o
processados pela função alfa, abrirão passa- que, segundo Bion, pode regredir ao ponto
gem para os pensamentos oníricos, produção de chegar ao nível da linguagem das sensa-
de sonhos, memória e funções do intelecto. ções psíquicas corporais, como ocorre nos
Os elementos alfa é que darão origem ao que distúrbios psicossomáticos.
Bion chamou de barreira de contato, tendo a Ao propor sua teoria, Bion entende o
função de separar interno e externo, incons- pensar como um processo que depende de
ciente e consciente, estabelecendo uma espé- dois desenvolvimentos básicos: o primeiro é
cie de contorno e de alguma forma fornecen- o dos pensamentos que requerem um apare-
do ao sujeito uma sensação de integração. lho mental que deles se encarregue, e o se-

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gundo é o desenvolvimento do aparelho que tece desde muito cedo. Realizações na teoria
inicialmente chamou de faculdade de pensar. bioniana, segundo Zimerman, consistem em
“O pensar passa a existir para dar conta dos experiências emocionais resultantes de frus-
pensamentos” (BION, 1994, p. 128). trações da onipotência do lactente e, por isso,
Isso significa que para Bion existe um ele precisa se voltar para o mundo real (real-
pensamento que é anterior à capacidade de -ização). Essa realização pode se desenrolar
pensar e que denominou pensamento sem de forma positiva ou negativa. Na realização
pensador. O próprio autor diz que sua teoria positiva há uma confirmação de que o objeto
difere de qualquer teoria do pensamento na necessitado está realmente presente e atende
medida em que considera o pensar um de- às suas necessidades. Na realização negativa
senvolvimento imposto à psique pela pressão o lactante não encontra um seio disponível
dos pensamentos, e não o contrário. para a satisfação, e essa ausência é vivencia-
Através do texto Uma teoria sobre o pen- da com a presença de um seio ausente mau
sar, Bion classifica os pensamentos conforme dentro dele.
sua natureza evolutiva: pré-concepções, con- De acordo com a teoria de Bion, o surgi-
cepções e conceitos. Coloca que a concepção mento da capacidade de pensar depende do
inicia através da conjunção de uma pré-con- quanto de frustração o bebê tem condições
cepção com uma realização. Por exemplo, de suportar, e isso também tem relação com
quando o bebê é colocado em contato com suas inatas demandas pulsionais. Mas, além
o seio real, a pré-concepção, que nada mais disso, Bion afirma que a capacidade de tole-
é do que a expectativa inata por um seio — rância do bebê em relação às frustrações de-
conhecimento a priori de um seio, se une à pende também fundamentalmente da forma
realização, dando origem a uma concepção. pela qual o cuidador recebe suas identifica-
Assim, as concepções estão associadas a uma ções projetivas. É aí que introduz a noção
experiência emocional de satisfação. O ter- de capacidade de reverie. Reverie vem do
mo pensamento é empregado por Bion para francês, significa ‘sonho’ e, segundo Zimer-
se referir ao resultado de uma pré-concepção man (1995), designa uma condição pela qual
com uma frustração. Seguindo essa lógica, o a mãe é capaz de captar o que se passa com
pensamento vazio equivale a uma pré-con- seu filho muito mais através de um estado de
cepção à espera de uma realização. Nas pa- sonho e intuição do que propriamente atra-
lavras de Bion: vés dos órgãos do sentido. A mãe-reverie é
aquela que consegue acolher, conter e fazer
O modelo que proponho é o de um bebê cuja ressonância com o que é projetado dentro
expectativa de um seio se una a uma “realiza- dela, dando sentido aos elementos beta ma-
ção” de um não-seio disponível para satisfação. ciçamente projetados e devolvendo elemen-
Essa união é vivida como um não seio, ou seio tos alfa nomeados e significados. Bion parte
“ausente”, dentro dele. O passo seguinte depen- da noção de que todos nós temos a priori
de da capacidade de o bebê tolerar frustração. recursos para desenvolver o pensar, por isso
Depende de que a decisão seja fugir da frustra- diz que há um pensamento em busca de um
ção ou modificá-la (BION, 1994, p. 129). pensador. Entretanto, essa capacidade pode
ser desenvolvida ou não, dependendo tam-
E modificá-la nesse contexto é abrir ca- bém da capacidade de reverie do cuidador.
minho para o universo simbólico e, conse-
quentemente, para a capacidade de pensar. O Considerações finais
pensar ao qual Bion se refere não fala de uma A produção deste artigo foi uma tentativa de
função meramente cognitiva, mas da inau- responder à pergunta introduzida no início,
guração de um espaço de autoria que acon- e ao término é possível constatar a impor-

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tância desse autor no campo psicanalítico. O Abstract


estudo da teoria do pensar possibilita um co- This paper comes from reflection on the Theory
nhecimento sobre a formação do psiquismo of Thinking by Bion. A Theory of Thinking
a partir dos postulados de Bion, afinando a does not simply refer to a cognitive function,
escuta para a aquisição da capacidade sim- but speaks the opening of a space of author-
bólica. Além disso, através dela, é possível ship. According to Bion, the frustration expe-
conhecer um pouco do Bion teórico. O Bion rienced by a psychic apparatus able to bear it
psicanalista aparece claramente no texto So- originates a proto-mental system which deve-
bre uma experiência pessoal com W. R. Bion, lops a psychic apparatus capable for thinking
de Luiz Alberto Py, onde conta pormeno- it. In other words, the thinking comes as a so-
res do seu processo analítico realizado com lution to cope with frustration. The Theory of
Bion. Nesse artigo vemos um Bion bem-hu- Thinking enables an understanding of the for-
morado, perspicaz e sensível na relação com mation of the psyche, tapering listening to the
seu paciente. acquisition of symbolic capacity.
A capacidade de pensar depende de uma
dose de frustração e aponta, mais uma vez, Keywords: Theory of Thinking, Bion, Psycoa-
como o nascer, o crescer e o viver são ex- nalysis.
periências dolorosas na sua essência. Assim
também é o processo analítico: doloroso, na
medida em que nos coloca exatamente numa Referências
posição de consciência de nós mesmos. Por
outro lado, o processo de saber sobre nós mes-
mos nos permite maior flexibilidade diante BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Tradu-
da vida, no sentido de desfazer nós e angús- ção: Wellington M. de Melo Dantas. 3. ed. Rio de Ja-
neiro: Imago, 1994.
tias que nos paralisam e nos aprisionam.
Por fim, também nós enquanto analistas MELTZER, D. O desenvolvimento kleiniano III. O sig-
precisamos dispor da capacidade de reverie nificado clínico da obra de Bion. São Paulo: Escuta,
conceituada por Bion, na medida em que nos 1998.
cabe conter a angústia e devolvê-la aos pa-
ZIMERMAN, D. Bion, da teoria a prática. Uma leitu-
cientes de forma que ela possa ser transfor- ra didática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
mada e nomeada.

R ecebido em : 0 8 / 1 0 / 2 0 1 3
A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3

S ob r e a au tor a

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto


Psicóloga. Mestre em Ciências da Saúde pela PUCRS.
Candidata a psicanalista pelo Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul.

Endereço para correspondência]


Rua Dr. José Montaury, 325/107 - Centro
95330-000 - Veranópolis/RS
E-mail: waleska.pessato@terra.com.br

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