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UM PALIMPSESTO
PAIVA, Ricardo A.
RESUMO
O presente artigo pretende comparar as abordagens acerca da arquitetura moderna brasileira dos autores
Yves Bruand e Hugo Segawa, contidas nos livros “Arquitetura Contemporânea no Brasil” e “Arquiteturas no
Brasil (1900-1990)”, respectivamente, ratificando a tendência e a necessidade de revisão das versões
tradicionais no campo da historiografia da arquitetura. Para tanto, foram elencados fatos presentes nas duas
obras, a fim de revelar a visão analítica de ambos sobre o desenvolvimento das manifestações arquitetônicas
no Brasil, sobretudo na primeira metade do século XX. Embora a abordagem dos autores adquira
posicionamentos na maioria das vezes antagônicos, foram escolhidos eventos comuns às duas obras, a
saber: o processo de urbanização e o urbanismo, o historicismo arquitetônico e a arquitetura moderna no
Brasil. A metodologia utilizada pressupõe que o embate entre visões antitéticas acerca do mesmo objeto,
portanto com base no dissenso, contribui didaticamente para estabelecer critérios de análise mais
aprofundados sobre as rupturas e permanências no desenvolvimento da arquitetura brasileira.
1. INTRODUÇÃO
A compreensão da escrita da história da arquitetura moderna brasileira através da analogia
ao palimpsesto - a escrita feita em pergaminho antigo raspado - adquire relevância neste
trabalho, uma vez que pretende comparar as abordagens dos autores Yves Bruand e Hugo
Segawa, em “Arquitetura Contemporânea no Brasil” e “Arquiteturas no Brasil (1900-1990)”,
respectivamente, verificando como as diferenças entre as abordagens contribuem para o
processo de revisão da historiografia da arquitetura moderna brasileira.
1
Uma das iniciativas mais relevantes pode ser atribuída ao Seminário DOCOMOMO Brasil, além de suas versões regionais.
estudos da produção arquitetônica de arquitetos em contextos específicos - o que
evidentemente não deixa de ser relevante – não possuindo um caráter mais amplo de
manual.
Peter Burke (1992) identifica estas mudanças na historiografia como tendo base nos
princípios da Nova História, herdeira da École des Annales, cuja importância foi capital para
promover a pluridisciplinariedade e a conseqüente união das ciências sociais.
Diferentemente da história dita “tradicional” que priorizava a narração de grandes fatos,
como as questões oficiais e políticas; a “Nova” se baseia em fontes diversas, entre elas, a
história oral. Ao passo que a “tradicional” se interessava pelos documentos oficiais, a Nova
História tem uma dimensão sociológica mais ampla, revelada através do desenvolvimento
da história social, a “tradicional” se importava sobremaneira com o individuo histórico.
Tais aportes se justificam neste artigo porque ao que tudo indica, Bruand se enquadra no
paradigma tradicional de abordagem historiográfica, principalmente no que se refere ao
tempo, pois o considera linear, cumulativo e irreversível. Em contrapartida, Segawa, por
deixar explícito no seu trabalho a ênfase nos processos, na “análise das estruturas”, se
situa dentro de uma visão historiográfica de filiação mais contemporânea 2 .
2
Conforme o próprio autor admite, trata-se de “uma postura que se avizinha às tendências da fragmentação ‘regulamentada’ do
conhecimento, como que uma reação às grandes leituras totalizantes” (SEGAWA: 1997:13)
Contemporânea no Brasil” ainda não foi ultrapassada pela literatura que trata da arquitetura
moderna brasileira.
Embora Bruand admita que sua análise das obras não se restringiu apenas aos seus
valores intrínsecos e estéticos, ampliando a leitura para um enfoque evolutivo na busca de
seus significados históricos (BRUAND, 1981), percebe-se que tais relações obedecem a
um método linear. Esta indicação de abordagem positivista, na qual as produções
arquitetônicas e urbanísticas funcionam como meros reflexos de um determinismo
ambiental, histórico e político-econômico podem ser percebidos na maneira como o autor
discorre sobre estas questões na introdução da obra, que ele denomina “O Meio Brasileiro e
sua Influência sobre a Arquitetura”. O capítulo não considera que estas condicionantes
interagem dialeticamente com o desenvolvimento arquitetônico e urbanístico. Os subitens
são indicações que qualificam através de uma classificação simplista os elementos que
definem a identidade das condições do país, (“relevo, clima, vegetação, ou mesmo
mentalidade brasileira e tradições culturais”), tão ao gosto do olhar estrangeiro, de quem
documenta uma cultura periférica e exótica.
Apesar de considerar que “o título da obra não comporta limites cronológicos rigidamente
definidos” (BRUAND, 1981:8), as indicações dos capítulos e suas derivações obedecem a
uma delimitação rigorosa nos recortes temporais. O autor se propõe a analisar as obras
construídas no território brasileiro de 1900 a 1969. Embora o recorte temporal seja
genérico, compreendido entre 1900 e 1969, há uma sucessão linear na abordagem dos
fatos e acontecimentos.
Bruand se interessa por uma produção oficial e erudita, excluindo toda e qualquer
manifestação de natureza pragmática e popular, além do fato de que “sua investigação está
centrada nos talentos individuais da arquitetura brasileira e nas condições propícias ao
desenvolvimento do movimento moderno” (TINEM, 2002:38). O recorte espacial se
restringe à arquitetura e ao urbanismo das cidades mais desenvolvidas, como o Rio de
Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e, finalmente, Brasília. O autor dedica ainda um
pequeno espaço para os desdobramentos do modernismo em Salvador e Recife. Estas
últimas, coincidentemente, são justamente as que carregam uma herança colonial
relevante, período histórico que Bruand exalta. Por conta disto, descarta a diversidade da
produção arquitetônica no Brasil, característica presente desde o processo de colonização.
Carneiro et alli (1984:35) sintetiza e critica a metodologia utilizada por Bruand ao afirmar
que:
“... a história é vista como um encadeamento de fatos e admite-se que a
realidade pode ser reconstruída através da colagem de informações
levantadas em fontes primárias. Com este proceder, Bruand não privilegia
uma dinâmica das relações; aborda a produção dos grandes talentos
individuais, a arquitetura erudita, e estabelece uma cronologia que se
prende, basicamente, à evolução formal desta produção”.
As referências de Bruand são múltiplas, o que para Tinem (2002) constitui seu principal
mérito e também sua maior debilidade, uma vez que não discute “as contradições contidas
nos textos consultados”.
3. A (RE)VISÃO DE SEGAWA
O livro “Arquiteturas no Brasil (1900-1990)” de Hugo Segawa, arquiteto, professor Doutor
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, teve sua gênese
relacionada a um compêndio sobre a arquitetura brasileira do século XX, encomendado
pela Universidade Autônoma Metropolitana do México como parte de uma série de
monografias sobre a arquitetura latino-americana (SEGAWA, 1997:14). A edição brasileira
de 1997 foi precedida também por uma publicação ligada à Revista Projeto, denominada
“Arquiteturas no Brasil (1900-1980)”, que consistia numa coletânea de artigos, incluindo de
outros autores, que sintetizavam a geografia da arquitetura brasileira até então.
O título da obra, por si só, já contém um dos principais pontos valorizados por Segawa,
trata-se da diversidade, sugerida pela variação do substantivo “Arquiteturas”, que é
empregado no plural. O autor estabelece como ponto de partida a diversidade da produção
da arquitetura brasileira, inclusive moderna. O objetivo do autor é:
No entanto, a obra não está isenta de críticas. Para Borges (2004) a interpretação genérica
acerca dos temas “acarretou em algumas abordagens mais superficiais, incorrendo
também em algumas insuficiências discursivas e conceituais nas diversas modernidades e
na ausência de um maior rigor metodológico”.
3
« Quatro Séculos de Arquitetura » (1965) de Paulo Santos ; « Arquitetura Brasileira »(1979) de Carlos Lemos; “Modern Architecture In
Brazil” (1956) de Henrique Mindlin; “Arquitetura Moderna Brasileira (1982) de Silva Fischer e Marlene Acayaba; entre os mais relevantes.
de Janeiro e Salvador, em função das suas respectivas relevâncias históricas; e na “criação
de novas cidades”, analisando Belo Horizonte, Goiânia e Brasília.
No que se refere às influências, tanto nas cidades antigas, como nas novas, Bruand
considera a preponderância das influências européias, mais precisamente as francesas,
representadas pelas experiências de Haussmann em Paris. Desta forma, nega a influência
americana na fisionomia das cidades brasileiras.
A conclusão que ele retira da análise do arranjo das cidades antigas é que, malgrado suas
especificidades, estas cidades são representações do urbanismo caótico, que ele atribui ao
individualismo anárquico e às heranças culturais. As cidades novas por ele analisadas são
qualificadas sob a ótica da sua produção arquitetônica, consoante a sua visão: o
menosprezo ao ecletismo da nova capital das Minas Gerais; a indiferença ao Art Déco de
Goiânia; e a celebração da arquitetura moderna em Brasília. Bruand, acertadamente,
adverte sobre as contradições entre o modelo de cidades propostos e sua execução,
denunciando a perda de qualidade na ocasião das realizações, fato recorrente no
desenvolvimento urbano no Brasil.
A narrativa sobre as novas cidades é conduzida com o intuito de demonstrar uma evolução
no pensamento e nas realizações urbanísticas no Brasil. Tal processo se inicia em Belo
Horizonte, ícone da cidade liberal de influência estrangeira, passando por Goiânia, que
embora introduza melhoramentos, representou apenas uma transição em direção ao triunfo
que viria a ser Brasília. As qualidades de Goiânia são identificadas apenas quando
prenunciam alguns princípios aplicados em Brasília, que para o autor é a “apoteose do
urbanismo brasileiro”, pois a considera a expressão máxima do potencial criativo e
progressista da arquitetura e do urbanismo no Brasil.
Bruand parece se isentar da problemática que justifica o “o urbanismo caótico”, que são na
verdade, a relação dialética entre modernização paradoxal e o processo de urbanização
desigual.
Segawa explica que os temas sobre o urbanismo e cidades têm um lugar privilegiado nos
três primeiros capítulos, para depois se diluírem no trabalho (SEGAWA: 1997:15). O autor
esclarece que as questões relativas às cidades, pela complexidade que lhe são
particulares, foram tratadas na relação que mantém com o tema modernidade, matriz que
ele utiliza para discorrer sobre o desenvolvimento arquitetônico e urbanístico.
Brasília ocupa um lugar modesto na obra de Segawa (parte final do capítulo “Afirmação de
uma Escola”), para ele a materialização da maturidade da arquitetura moderna brasileira.
Segawa se limita a descrever os antecedentes e os fatores que nortearam sua construção,
para no final lançar sua posição sobre as contradições da cidade ideal e a real, ao
reconhecer que Brasília sofreu o mesmo processo de conurbação e metropolização comum
às outras importantes cidades do Brasil. De modo semelhante, enxerga as particularidades
que maximizam seus problemas, caracterizadas pelo fato de possuir um setor planejado e
de ser tombada pela Unesco. (SEGAWA, 1997:127).
“(...) não é só difícil citar um único ponto de vista estético, como também
parece que os arquitetos e construtores rivalizavam-se numa incrível
competição de feiúra. São bem variadas as razões deste fracasso total. Uma
das causas principais era, com certeza, a falta de gosto e, na maioria dos
casos, a falta de conhecimentos arqueológicos dos responsáveis. (...) Os
arquitetos, então, tinham de criar suas próprias soluções – o que
evidentemente era catastrófico quando se tratava de profissionais
medíocres, que não se destacavam pelo seu talento natural” (BRUAND,
1981:42-43).
A visão de Bruand em relação ao neocolonial é muito lúcida, pois enxerga os seus “prós e
contras”, atitude que não se manifesta na análise dos outros movimentos historicistas. As
contradições contidas no movimento são vistas através do seu apelo estético e da visão
nostálgica, da impossibilidade de atender aos novos programas e da ausência de fidelidade
e respeito formal à diversidade regional que conformava o vocabulário colonial. Em
contrapartida, o início do conhecimento sobre a arquitetura colonial, a conseqüente
valorização do patrimônio existente e sua conservação serviram de lastro para desenvolver
um espírito de identidade na assimilação do modernismo. O autor considera que o
neocolonial foi o elo que deu consistência ao modernismo, construindo, assim, suas bases
na tradição colonial, alertando que:
Embora perceba o caráter paradoxal da modernidade que se construía com base nos
valores estilísticos hegemônicos da Europa, Segawa lança uma luz sobre as contribuições
destes movimentos no incremento de uma série de avanços técnicos e espaciais,
imprescindíveis para a assimilação dos preceitos do racionalismo.
Bruand coloca à margem toda e qualquer produção arquitetônica que transita fora do
circuito do modernismo, cujo mérito é marcado pela atitude transgressora com que os
arquitetos brasileiros digerem os princípios normativos do racionalismo europeu. Outro
traço característico é o formalismo, uma vez que “o predomínio do afetivo, do irracional e do
místico, explicaria, para Bruand o caráter formalista da arquitetura brasileira dirigida a um
público francamente impressionável” (TINEM, 2002:41).
4. NOTA CONCLUSIVA
A importância desta discussão consiste nem tanto em julgar o quanto certas ou erradas
estão as abordagens dos autores, pelo contrário, pretende despertar como a partir delas se
pode evoluir na compreensão da arquitetura moderna brasileira, principalmente no que se
refere as suas conseqüências na arquitetura contemporânea.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS