Professional Documents
Culture Documents
ALINE NEUSCHRANK
PELOTAS, RS
2015
1
ALINE NEUSCHRANK
PELOTAS, RS
2015
2
AGRADECIMENTOS
Enfim, chegou o momento de agradecer, ainda que pareçam faltar palavras para tanta
gratidão que tenho por demonstrar...
Agradeço à minha família, em especial aos meus pais, Cristina e Alvacir, os que
primeiro me incentivaram a desenvolver o gosto pelos estudos: sem esse primeiro passo,
talvez eu nem estivesse vivendo este momento hoje.
Ao meu esposo, Ricardo, que compartilhou comigo, nesses três anos e meio de
Doutorado, meus anseios, angústias, conquistas, e que acima de tudo sempre teve uma
palavra de incentivo, nas horas mais difíceis para me motivar, e nas horas boas para
conservar a serenidade. Obrigada por todo amor, carinho e compreensão desmedidos.
Aos amigos, os de longa e os de mais recente data, pelo constante incentivo e carinho.
Em especial às amigas Miriam e Roberta, com quem pude dividir alguns receios, mas
também muitas alegrias e conquistas da vida acadêmico-científica. Obrigada pelo apoio
e pela amizade sincera.
À professora Cíntia Alcântara e ao professor Paulo Borges, por terem aceitado o convite
para participar da banca e porque mais uma vez se prontificaram a contribuir com minha
pesquisa. Obrigada pela disposição de sempre.
3
Aos professores do PPGL-UCPEL, com quem pude compartilhar reflexões as quais me
fizeram amadurecer cientificamente. Em especial, agradeço ao professor Hilário Bohn,
exemplo de profissional, a quem tive o privilégio de acompanhar na disciplina de
Estágio em Docência e com quem aprendi muito sobre o que realmente significa “ser
professor”. Obrigada pela oportunidade de crescimento.
Enfim, agradeço a todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para que este
trabalho se concretizasse e para que mais essa etapa da minha vida fosse concluída, com
a certeza de que, independente da sinuosidade do caminho, o objetivo foi alcançado
fazendo-se o melhor.
4
Não basta saber, é preciso também aplicar.
Não basta querer, é preciso também fazer.
Johann Goethe
5
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal apresentar pesquisa cujo foco é a descrição e
a análise da fonologização na evolução do sistema consonantal do latim ao português, a
partir de material coletado por meio de revisão bibliográfica em manuais e gramáticas
históricas. A fonologização como centro de um estudo diacrônico justifica-se pelo papel
fundamental na constituição da história das línguas, uma vez que é responsável pela
alteração dos inventários fonológicos, com o preenchimento de lacunas existentes no
sistema, seja pela inserção de novos segmentos ou até mesmo pela criação de toda uma
classe de segmentos inexistentes. Apesar de ser um processo essencial na estruturação
dos inventários das línguas, poucos são os trabalhos que exploram sua caracterização e
funcionamento. A explicitação dos processos fonológicos envolvidos e dos traços
distintivos atuantes no referido fenômeno é guiada pelos pressupostos da teoria
Autossegmental (CLEMENTS e HUME, 1995), mais especificamente com base no
Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009). Os dados
foram organizados de forma a explicitar a origem dos novos fonemas do português, o
tipo de processo atuante (sonorização, fricativização, consonantização, palatalização), o
papel dos traços no processo de mudança e as possíveis etapas evolutivas que
culminaram na implementação de novos fonemas no inventário do português, em se
comparando com o sistema consonantal do Latim. A análise dos dados permitiu
concluir que a atuação do Princípio de Economia de Traços e do Princípio de Robustez,
segundo o Modelo de Clements (2009), é tendência atestada na diacronia da língua.
Além disso, foi possível identificar basicamente dois movimentos que guiam a evolução
do sistema consonantal analisado: um que visa à simetria do sistema, favorecendo o
preenchimento de lacunas existentes no inventário fonológico pela expansão do uso
contrastivo de traço já pertinente na gramática, e outro que milita a favor da expansão
do sistema pela criação de novas classes de segmentos. Dos dois movimentos, resultam
novas oposições, estabelecidas tanto por meio da atuação de traços não contrastivos no
sistema de origem, como por traços que, já pertinentes, passam a figurar em novas
coocorrências; nos dois casos, tem-se a atuação de princípios fonológicos universais,
influenciando na escolha e no funcionamento dos traços. Como consequência da ação
de princípios universais subjacentes à fonologização, as análises evidenciaram que não
apenas a estrutura do sistema do latim motivou esse fenômeno na diacronia do
português. Os resultados mostraram que o funcionamento dos traços é capaz de tornar
explícitas as duas forças que estão subjacentes ao processo de fonologização na
evolução do sistema consonantal do português: a estrutura lacunar do sistema que lhe
deu origem e os princípios universais que representam tendências na constituição dos
inventários das línguas do mundo.
6
ABSTRACT
This paper aims to present a research which focuses on the description and analysis of
phonologization in the evolution of the Latin consonant system to Portuguese, from
material collected through literature review on manuals and historical grammars. The
phonologization as the center of a diachronic study is justified by its key role in the
establishment of the history of languages, since it is responsible for changing the
phonological inventories, to fill gaps in the existent system, either by inserting new
segments or even creating a whole class of nonexistent segments. Despite of being an
essential process in the structuring of language inventories, there are few researches that
explore its characteristic and function. The explanation of phonological processes
involved and the active distinctive features in the phenomenon is guided by the
assumptions of the Autosegmental theory (CLEMENTS and HUME, 1995), specifically
based on the Model of Feature-Based Phonological Principles (CLEMENTS, 2009).
Data were organized to explain the origin of new Portuguese phonemes, the kind of
active process (sonorization, fricativization, consonantization, palatalization), the
feature role in the change process, and the possible evolutionary steps that led to the
implementation of new phonemes in the Portuguese inventory, when comparing to the
Latin consonant system. Data analysis showed that the performance of Economy
Feature Principle and the Robustness Principle, according to the model of Clements
(2009), is an attested trend in diachronic language. In addition, it can be basically
identified two movements that guide the evolution of the analyzed consonant system:
one that aims at the system symmetry, favoring the filling of gaps in the phonological
inventory by the expansion of contrastive use of features relevant to the grammar, and
another that militates in favor of a system expansion by creating new classes of
segments. From the two movements, new oppositions are resulted, and both are
established through actions of non-contrastive features in the source system, as well as
through features that, already relevant, shall be placed in new co-occurrences; in both
cases, there is the role of universal phonological principles, influencing features’ choice
and function. As a result of the action of universal principles underlying
phonologization, the analysis did not only show the structure of the Latin system which
motivated this phenomenon in the diachronic Portuguese. The results unveiled that the
function of features are able to make explicit the two forces that underlie the
phonologization process in the evolution of the Portuguese consonant system: the
incomplete structure of the system that gave rise to it, and the universal principles that
represent trends in the constitution of World languages inventories.
7
SUMÁRIO
RESUMO ...................................................................................................................................... 6
ABSTRACT .................................................................................................................................. 7
SUMÁRIO .................................................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 13
8
3.2.5 Nasais ........................................................................................................................ 93
3.2.6 Laterais ...................................................................................................................... 93
3.2.7 Vibrantes.................................................................................................................... 94
3.2.8 Origens do sistema consonantal português ............................................................... 95
3.3 ETAPAS EVOLUTIVAS DO SISTEMA CONSONANTAL DO PB................................................ 98
3.3.1 Sonorização ............................................................................................................... 98
3.3.2 Fricativização ............................................................................................................ 99
3.3.3 Palatalização ........................................................................................................... 101
3.3.4 Consonantização ..................................................................................................... 106
9
LISTA DE QUADROS
QUADRO 9: CONSTITUIÇÃO DAS CLASSES DE SEGMENTOS DE ACORDO COM O MODO DE ARTICULAÇÃO (LATIM X PORTUGUÊS
ARCAICO – 1ª FASE) ......................................................................................................................................... 78
QUADRO 24: EVOLUÇÃO DA SEQUÊNCIA GJ, SEGUNDO WILLIAMS (2001) ............................................................... 104
QUADRO 25: PROPOSTA DE EVOLUÇÃO DA CONSOANTE VELAR SEGUIDA DE VOGAL CORONAL, DE NEUSCHRANK (2011) ... 104
QUADRO 26: EVOLUÇÃO DA SEQUÊNCIA D_I,J .................................................................................................... 104
QUADRO 27: CONTEXTOS DE ORIGEM DO // .................................................................................................... 105
QUADRO 28: EVOLUÇÃO DE KL E TL, NO GALEGO-PORTUGUÊS E NO CASTELHANO (TEYSSIER, 2007) ........................... 105
QUADRO 29: ORIGENS DA NASAL PALATAL / / .................................................................................................. 106
10
QUADRO 30: ESTÁGIOS DA EVOLUÇÃO DE /N/ .................................................................................................. 106
QUADRO 38: PROCESSO DE FONOLOGIZAÇÃO DA FRICATIVA PALATAL SONORA // .................................................... 123
QUADRO 39: RESULTADO DA EVOLUÇÃO DA SEMIVOGAL /J/ - ADAPTADO DE ILARI (2008, P. 81) ................................ 129
QUADRO 40: FONOLOGIZAÇÃO DA NASAL PALATAL // ........................................................................................ 131
11
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: DIAGRAMA ARBÓREO DE ACORDO COM CLEMENTS & HUME (1995) FONTE: CLEMENTS & HUME (1995) ............................. 53
FIGURA 2: REPRESENTAÇÃO DE SEGMENTO SIMPLES DE ACORDO COM CLEMENTS & HUME (1995) FONTE: MATZENAUER (2005) ............ 54
FIGURA 3: REPRESENTAÇÃO DE SEGMENTO COMPLEXO DE ACORDO COM CLEMENTS & HUME (1995) FONTE: MATZENAUER (2005)......... 54
FIGURA 4: GEOMETRIA DE UMA CONSOANTE PRÉ-NASALISADA DE ACORDO COM CLEMENTS E HUME (1995) FONTE: MATZENAUER (2005) 55
FIGURA 5: UMA RAIZ COM LIGAÇÃO DUPLA PARA A CAMADA TEMPORAL: SEGMENTOS GEMINADOS DE ACORDO COM CLEMENTS E HUME
(1995) ................................................................................................................................................................. 56
FIGURA 6: GEOMETRIA DE TRAÇOS DE SEGMENTOS QUE CONSTITUEM UMA CONSOANTE GEMINADA, SEM A OPERAÇÃO DO OCP................. 57
FIGURA 7: EVOLUÇÃO DA SEMIVOGAL /W/ PARA FRICATIVA /V/ ................................................................................................. 113
FIGURA 8: FRICATIVIZAÇÃO DE /B/ ...................................................................................................................................... 114
FIGURA 9: SONORIZAÇÃO DE /S/ ......................................................................................................................................... 116
FIGURA 10: SEQUÊNCIA /TJ/ E ESPRAIAMENTO....................................................................................................................... 116
FIGURA 11: CONSOANTE AFRICADA ALVEOLAR SURDA /TS/ ....................................................................................................... 117
FIGURA 12: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA AFRICADA ALVEOLAR SONORA /DZ/ .................................................................................. 117
FIGURA 13: DESLIGAMENTO DE BORDA DA AFRICADA ALVEOLAR SONORA /DZ/ E GEOMETRIA DE TRAÇOS DA FRICATIVA ALVEOLAR SONORA /Z/
.......................................................................................................................................................................... 118
FIGURA 14 PROMOÇÃO DA ARTICULAÇÃO SECUNDÁRIA ............................................................................................................ 120
FIGURA 15: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA AFRICADA /T/............................................................................................................ 121
FIGURA 16: DESLIGAMENTO DA BORDA ESQUERDA DO /T/ ...................................................................................................... 121
FIGURA 17: ESPRAIAMENTO DO TRAÇO [CORONAL] ................................................................................................................. 122
FIGURA 18: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA FRICATIVA PALATO-ALVEOLAR ......................................................................................... 122
FIGURA 19: SEQUÊNCIA [+ VOGAL CORONAL] ...................................................................................................................... 124
FIGURA 20: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO PARA O PC ........................................................................................................ 125
FIGURA 21: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA CONSOANTE PALATALIZADA /J/ ..................................................................................... 125
FIGURA 22: SUSPENSÃO DO TRAÇO [DORSAL] E REALIZAÇÃO DA ARTICULAÇÃO SECUNDÁRIA .............................................................. 126
FIGURA 23: CONSOANTE PALATALIZADA /DJ/......................................................................................................................... 127
FIGURA 24: PROMOÇÃO DA ARTICULAÇÃO SECUNDÁRIA ........................................................................................................... 127
FIGURA 25: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA CONSOANTE AFRICADA /D/ .......................................................................................... 128
FIGURA 26: DESLIGAMENTO DA BORDA ESQUERDA DE /D/ ..................................................................................................... 128
FIGURA 27: RESULTADO DO APAGAMENTO DA ESTRUTURA DO SEGMENTO PLOSIVO ........................................................................ 128
FIGURA 28: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /NJ/ .......................................................................................................... 132
FIGURA 29: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO ....................................................................................................................... 132
FIGURA 30: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA CONSOANTE NASAL PALATAL ........................................................................................... 132
FIGURA 31: PROCESSO DE ASSIMILAÇÃO-ESPRAIAMENTO DO NÓ DE RAIZ DO /L/ ............................................................................ 135
FIGURA 32: DISSIMILAÇÃO/MUDANÇA DO TRAÇO [VOCOIDE] E ATUALIZAÇÃO DO NÓ VOCÁLICO: ....................................................... 136
FIGURA 33: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO DE /J/ PARA /L/ .................................................................................................. 136
FIGURA 34: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA LATERAL PALATAL // ................................................................................................... 137
FIGURA 35: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO PARA O PC DA CONSOANTE ................................................................................... 137
FIGURA 36: LATERAL PALATAL ............................................................................................................................................ 138
FIGURA 37: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /KJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE /Z/ ........................................................................ 146
FIGURA 38: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /KL/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ........................................................................ 148
FIGURA 39: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /SJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ........................................................................ 151
FIGURA 40: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /I/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 152
FIGURA 41: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /DJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 153
FIGURA 42: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /SJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ........................................................................ 154
FIGURA 43: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /NJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 157
FIGURA 44: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /GN/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ...................................................................... 157
FIGURA 45: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /KL/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 159
12
INTRODUÇÃO
13
segmentos que, em se comparando o sistema atual do Português com o sistema do latim,
se integraram à sua gramática, como parte do processo evolutivo, uma vez que não
pertenciam ao inventário fonológico consonantal latino. Ao buscar o foco aqui referido,
o presente estudo segue o caminho inovador de propor análises com base em uma teoria
fonológica: a Teoria Autossegmental.
A Tese tem, como objetivo geral, propor a descrição, a análise, bem como a
formalização do processo evolutivo do sistema consonantal do português, considerando
sua constituição a partir do latim, sob a ótica dos pressupostos da Teoria
Autossegmental, com foco especial no processo de fonologização.
Mais especificamente, pretende-se:
(1) redefinir o sistema consonantal do latim e, desse ponto de partida, traçar o processo
evolutivo para o português com foco nos traços e processos envolvidos na mudança,
motivadores do processo de fonologização;
(2) analisar a evolução do sistema consonantal do português, formalizando por meio de
traços, em uma visão autossegmental (CLEMENTS e HUME, 1995; CLEMENTS,
2009), o fenômeno da fonologização, que determinou mudanças linguísticas no referido
sistema;
(3) discutir o processo de fonologização de traços e de segmentos consonantais na
diacronia do português, à luz do Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços
(CLEMENTS, 2009), verificando articulações entre princípios universais e a evolução
histórica do inventário fonológico do português;
(4) contribuir para os estudos sobre mudança, especificamente com base na Teoria
Autossegmental e no Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços
(CLEMENTS, 2009).
A fim de buscar atingir os objetivos propostos, esta pesquisa é guiada pelos
seguintes questionamentos:
(1) como se constitui a trajetória evolutiva do latim à língua românica em estudo, em
termos de traços e processos envolvidos no fenômeno da fonologização?
(2) que princípios e que traços, segundo a proposta de Clements (2009), estariam
atuando sobre as unidades do sistema consonantal latino, condicionando o fenômeno da
fonologização de segmentos na história do português?
(3) a robustez dos traços, amplamente evidenciada como o princípio que orienta os
processos de expansão e solidificação dos sistemas em aquisição, pode ter um papel
igualmente fundamental em se tratando das mudanças sofridas pelo sistema consonantal
14
do latim?
(4) pela coocorrência de traços, é possível explicar os caminhos delineados na evolução
das consoantes do latim ao português, em se tratando da expansão do sistema?
O presente trabalho organiza-se da seguinte forma: após apresentada a proposta
de pesquisa, bem como sua justificativa, objetivos e questões norteadoras, passa-se, no
capítulo 2, a uma explanação com base nos pressupostos teóricos que norteiam este
estudo, seção esta dividida em duas partes: a primeira propõe-se tratar das questões
relacionadas aos estudos diacrônicos em fonologia necessárias para que se alcancem os
objetivos aqui almejados, tratando de maneira geral a respeito das fases de evolução das
línguas românicas, mas especificamente do português, apresentando algumas
considerações a respeito de trabalhos que tratam do fenômeno da mudança na fonologia,
mais especificamente do processo de fonologização; a segunda parte apresenta os
fundamentos da Teoria Autossegmental, a fim de tecer considerações importantes sobre
o tratamento dado por essa abordagem para a mudança fonológica. Ao capítulo 3 cabe a
exposição dos procedimentos empregados no estudo, bem como a descrição dos dados
que servirão como base para a análise aqui proposta, caracterizados em termos de traços
e processos envolvidos no fenômeno da fonologização, que é o foco do trabalho. No
capítulo 4 está exposta a análise dos dados relacionados à constituição do sistema
consonantal do português. O capítulo 5 contém as discussões a respeito dos resultados
da análise realizada, buscando evidenciar a atuação dos Princípios Fonológicos
Baseados em Traços nos fenômenos diacrônicos relacionados à fonologização. No
capítulo 6 são apresentadas as considerações finais do trabalho, retomando-se os
objetivos, bem como as questões norteadoras da pesquisa, apresentando-se as principais
conclusões delineadas após a análise dos dados e discussão dos resultados. Na
Bibliografia encontram-se todas as obras consultadas e citadas neste trabalho.
15
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
17
línguas, centrando sua preocupação na morfologia como um estudo estrutural da
palavra.
[...] Apesar de suas deficiências, temos que atribuir a Bopp o mais
importante papel neste tipo de abordagem. Ele abriu o caminho para o
desenvolvimento de um dos dois aspectos da ciência da linguagem ou
linguística propriamente dita – o “Estudo Histórico da Linguagem”
(CÂMARA JR, 1975, p. 40).
18
Outro nome de destaque nos estudos comparatistas é o do linguista August
Schleicher, cuja orientação era fortemente naturalista, tendo desenvolvido seus estudos
na metade do século XIX. Além de propor uma tipologia das línguas e uma
classificação genealógica das línguas indo-europeias, Schleicher desenvolveu uma
tentativa de reconstrução daquilo que ele chamou de “língua remota”, ou seja, a origem
das línguas que formam o grupo indo-europeu. O sistema é representado pelo autor a
partir de uma divisão das línguas indo-europeias em ramos cada vez menores, até
chegar a uma única língua, e tal esquema tenta representar o desenvolvimento das
línguas da família indo-europeia.
Apesar de não considerar em seu estudo inicial a variação dialetal nem as
influências entre as diferentes línguas da família, em pesquisa posterior, sobre o lituano,
Schleicher foi o primeiro a elaborar um estudo sobre uma língua indo-europeia baseado
especificamente na fala, e não em textos, o que representou um avanço metodológico
importante nos estudos linguísticos.
O século XIX, mais especificamente sua última metade, ficou conhecido como a
época dos neogramáticos, que demarcaram um verdadeiro divisor de águas na
linguística histórica: de um lado, pela crítica aos antecessores, imprimindo um rigor
muito maior em certos procedimentos metodológicos; de outro, em razão da direção que
acabou imprimindo aos estudos linguísticos desenvolvidos a partir de então, que ou
seguem, nos seus fundamentos, as trilhas dos neogramáticos, ou polemizam com eles
(FARACO, 2012).
Os neogramáticos imprimiram uma nova visão para o tratamento da mudança
linguística, indo por vezes de encontro aos pressupostos tradicionais da prática
histórico-comparativa. Além disso, para os neogramáticos, “as ‘leis’ da evolução
fonética agem de maneira regular, admitindo exceções apenas quando sua ação é
contrariada pela ação da força psicológica da analogia” (ILARI 2008, p.19). Entretanto,
essa perspectiva da evolução fonética gerou muitas críticas de estudiosos que não
concordavam com a tese de que as leis fonéticas1 agem de forma cega, ou seja, de que a
mudança sonora se subordinava a regras que se aplicavam a todos os casos submetidos
1
No final do século XIX, os neogramáticos formularam uma teoria na qual se assumiu que as mudanças
fonéticas tinham um caráter de absoluta regularidade e, portanto, deveriam ser entendidas como leis que
não admitiam exceções (as chamadas leis fonéticas). As aparentes exceções eram atribuídas a um
processo gramatical denominado analogia, pelo qual elementos da língua tenderiam a ser regularizados
por força de paradigmas estruturais hegemônicos (FARACO, 2012). O conceito de lei fonética foi
apresentado e desenvolvido por Jacob Grimm (1785-1863) e Karl Verner (1846-1896).
19
às mesmas condições.
Ainda assim, não se pode deixar de considerar a importância do refinamento do
método histórico-comparativo proporcionado pelos trabalhos dos neogramáticos em
geral. O pensamento neogramático teve seu grande manual no livro de alemão Hermann
Paul, Princípios fundamentais da história da língua (1880), tomado como obra de
referência para a formação dos diacronistas no início do século XX. Paul negava a
existência de uma linguística que não fosse histórica, afirmando que aquilo que se
considera como um método não histórico, e contudo científico, de estudar a língua, não
é no fundo mais do que um método histórico incompleto. O linguista alemão defendia a
tese de que a fonte de toda mudança linguística era o falante individual e de que a
propagação da mudança se dava por meio do que ele chamava de ação recíproca dos
indivíduos. Além disso, outra tese defendida por Paul e também bastante aceita entre os
linguistas contemporâneos, principalmente os gerativistas, é a ideia de que a mudança
linguística é originada principalmente no processo de aquisição da língua.
Por fim, os estudos de Meyer-Lübke, especificamente as obras Gramática das
línguas românicas (1890) e Dicionário etimológico românico, são ainda hoje
fundamentais nos estudos linguísticos e merecem destaque. Por representarem um
trabalho considerado como exemplo da linguística neogramática e também por sua
abrangência, tiveram importância especial para o desenvolvimento dos estudos
históricos das línguas românicas.
20
Saussure entendia que a mudança das línguas no tempo não se constituía num
complexo sistema de dependências recíprocas, mas apenas alterava o valor de elementos do
sistema tomados isoladamente. Foram os linguistas do Círculo de Praga os responsáveis
pela formulação do princípio estruturalista de que as mudanças da língua deveriam ser
analisadas levando-se sempre em conta o sistema afetado por elas (FARACO, 2012), ou
seja, passa a imperar a defesa por um tratamento sistêmico das mudanças.
Nasceu, portanto, dentro do Círculo Linguístico de Praga a primeira proposta de
aplicação do princípio de abordagem sistêmica da diacronia, apresentada por Roman
Jakobson, em 1931, no livro Princípios de fonologia diacrônica. Nesse estudo,
Jakobson apontou qual seria a maneira estruturalista de se pensar a mudança: cada
unidade fonológica no interior de um sistema dado deve ser analisada nas suas relações
com todas as outras unidades do sistema antes e depois da mudança fônica sob análise.
André Martinet, em 1955, com a publicação do livro Economia das mudanças
fonéticas, desenvolveu mais extensamente essa perspectiva sistêmica da dinâmica da
mudança. No seu entendimento, ainda que os sistemas linguísticos sejam bem
estruturados, ao mesmo tempo nunca estão em perfeito equilíbrio, o que suscita, então,
pontos de desequilíbrio latente que favorecem a mudança. Segundo Martinet (1955), o
sistema da língua sofre permanentemente a ação de duas forças contraditórias: enquanto
que as necessidades humanas de comunicação e expressão exigem a manutenção de
oposições distintivas no interior da língua, há a tendência dos falantes a reduzirem ao
mínimo sua atividade física e mental, o que acaba forçando a eliminação de diferenças
(p. 94). Nesse ambiente “controverso”, a mudança encontra terreno fértil para a sua
implementação.
Martinet conduz seus estudos com base na ideia de que, para se dar um
tratamento coerente às mudanças fônicas, é preciso examinar a economia da língua,
introduzindo, assim, o conceito de rendimento funcional das oposições fônicas: uma
dada oposição tem rendimento funcional forte, sendo assim mais resistente à mudança,
quando é capaz de distinguir uma grande quantidade de pares de palavras na língua, ao
passo que tem rendimento funcional fraco, sendo mais suscetível ao desaparecimento,
se o número de pares de palavras diferenciados por ela for reduzido. Além disso,
Martinet sinaliza para a existência de um fator de desequilíbrio no sistema de natureza
21
estrutural, que diz respeito às correlações de uma unidade fônica com outras no sistema:
são fortes, ou seja, resistentes à mudança, os fonemas que estão em correlação com
vários outros, ao passo que são fracos, portanto, mais suscetíveis à mudança, aqueles
com um número reduzido de correlações. Assim, por exemplo, ainda que um par
opositivo seja de rendimento funcional fraco, por distinguir um número reduzido de
palavras, pode ser estruturalmente forte se pertencer, por exemplo, à correlação [+voz] x
[-voz], que em boa parte das línguas abrange várias outras unidades e é fundamental na
configuração do sistema.
Assim, Martinet propõe que a “função” do fonema é distinguir signos. E
explorando ainda a noção de “rendimento funcional”, que estaria em relação direta com
a maior ou menor estabilidade do fonema no sistema, entende que quanto mais
integrado nesses feixes de correlações e pares opositivos, mais estável é o fonema.
Além disso, a antiga noção de “menor esforço” é retomada pelo autor, embora ele a
reinterprete como “economia”. Para Martinet, esses são os aspectos internos tidos como
basilares para melhor se compreender a mudança fônica. Junto com Edward Sapir e sua
teoria da “deriva2”, proposta no livro Language: an Introduction to the Study of Speech,
Martinet recebeu duras críticas pelo caráter teleológico dado pelo estruturalismo
diacrônico ao fenômeno da mudança: havendo uma direção a ser obedecida, a mudança
teria um fim previsível. Além disso, os fatores externos só eram considerados quando se
esgotavam todas as possibilidades de condicionamentos estritamente internos, o que
praticamente exclui da análise questões relacionadas à história e estrutura social, as
quais vêm sendo constantemente evidenciadas como fatores essenciais na realidade da
mudança linguística.
No gerativismo, que tem seu início marcado pelas publicações Syntactic
Structures, de Noam Chosmky (1957), e The Sound Pattern of English, de Noam
Chomsky e Morris Halle (1968), as reflexões sobre a mudança acabam por perder o seu
espaço e, quando se mantêm, são centradas, sobretudo, no processo de transmissão da
língua de geração para geração: a mudança é então vista como uma reorganização de
2
Edward Sapir (1921), em seu livro A linguagem: introdução ao estudo da fala propõe a chamada teoria
da deriva, a qual entende que as mudanças linguísticas não ocorrem ao acaso; elas na verdade seguem um
curso de tendência geral da língua. A tese defendida por Sapir permite entender-se que há mudanças
previsíveis: formas que atualmente são consideradas erros podem adquirir um status diferente no futuro e
virem a ser as corretas, enquanto as atuais corretas podem desaparecer.
22
regras na gramática. Tanto os neogramáticos como os estruturalistas diacrônicos e
Chomsky/Halle consideram a mudança como intrassistêmica.
Kiparsky (1965) e King (1969) fornecem uma teoria da mudança linguística que
difere das teorias anteriores na medida em que implica que a história da língua é
bidimensional, ou seja, uma gramática histórica não é simplesmente uma lista de leis de
mudança de som em ordem cronológica, mas uma série diacrônica de gramáticas
sincrônicas. Cada gramática sincrônica consiste de uma lista de regras ordenadas e
mudanças históricas incluem não só regra de adição, mas também regra de perda, regra
de reordenação, regra de simplificação e de reestruturação das formas subjacentes. São
esses tipos adicionais de mudança, principalmente regra de reordenamento e
simplificação, que fazem a fonologia diacrônica diferente da fonologia sincrônica e,
portanto, interessante em si mesma (HOLT, 1997).
23
forças internas à língua, retomando-se, assim, aspectos da perspectiva estruturalista. E
essa aproximação pode ser confirmada retomando-se os posicionamentos de Jakobson
e Martinet frente ao processo de mudança: Jakobson (1963, p. 77) dizia que as leis
estruturais do sistema restringem o inventário das transições possíveis de um estado
sincrônico a outro; Martinet (1955) falava que as mudanças estavam submetidas aos
princípios de economia da língua; os gerativistas tomam as mudanças como
submetidas aos princípios restritivos da gramática universal.
24
mudança (MEILLET, 1951, p.74).
Embora Meillet tenha sido um dos primeiros a tentar incorporar nos estudos de
história das línguas uma orientação teórica que levasse em conta sempre a heterogênea
realidade sociocultural das línguas, essa orientação ficou por um longo tempo sem
receber o seu devido destaque, devido à consolidação da perspectiva estruturalista que
se tornou hegemônica no início do século XX.
25
Os estudos em dialetologia evidenciaram que, no mesmo ponto do tempo,
coexistem, em diferentes pontos do espaço, formas integrantes de uma complexa rede
evolutiva. Também, foi possível observar que a distribuição das formas no espaço
geográfico pode sinalizar o processo de difusão de mudanças, sendo possível também
localizar centros inovadores e difusores de mudança. Ainda foi possível perceber
também que as mudanças chegam às vezes mais cedo a algumas palavras, ao passo que
a interpenetração dos dialetos pode bloquear a propagação das inovações, criando assim
áreas mais conservadoras (FARACO, 2012).
Assim, os estudos históricos passaram a consolidar a ideia de que a contínua
heterogeneidade da realidade linguística, bem como o contato entre diferentes
realidades, constituem fatores essenciais para a apreensão da dinâmica da mudança
linguística.
A sociolinguística representa um avanço nos estudos de variação linguística, ao
somar à dimensão geográfica da dialetologia a dimensão social como fator de
diferenciação linguística. Para tanto, propõe o estudo das correlações sistemáticas entre
formas variantes e determinados fatores sociais, tais como classe social, escolaridade,
sexo, entre outros. Esse novo tipo de abordagem passou a ser evidenciadas a partir dos
estudos desenvolvidos por Labov, no início da década de 1960, nos Estados Unidos, a
partir dos quais se passa a conceber a existência da chamada estratificação social das
variantes4.
A sociolinguística também abriu novas perspectivas para o estudo histórico,
operando com o conceito de mudança em progresso5 e buscando sistematizá-lo. Com
esse tipo de abordagem, reforça o princípio de que a mudança não ocorre por meio de
mera substituição discreta de um elemento por outro, mas que o processo histórico
envolve fases em que variantes, estratificadas socialmente e estilisticamente, coexistem
e também fases em que elas competem entre si, até que uma vença a outra. Além disso,
a sociolinguística evidencia que, por trás de um processo de mudança, não há só um
conjunto de variações, mas principalmente uma motivação social.
4
Labov evidenciou em seu estudo desenvolvido em Nova Iorque que a pronúncia do /r/ pós-vocálico
aparece mais frequentemente entre os falantes da classe média alta do que entre aqueles pertencentes a
outras classes, o que evidencia uma clara estratificação social da variável.
55
Quando se evidencia que formas inovadoras estão mais presentes no uso de falantes mais jovens em
relação aos de mais idade, pode haver aí o indício de uma mudança em curso, ou seja, que uma das
variantes está sendo abandonada em favor de outra.
26
Na tentativa de propor uma síntese efetiva da perspectiva imanentista e da
perspectiva mais social, a publicação de Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968])
intitulada Fundamentos empíricos para uma teoria de mudança linguística constitui-se
hoje como uma referência para os estudos sobre mudança linguística, a partir de uma
concepção de língua caracterizada por sua heterogeneidade sistemática. Os autores, em
suas reflexões, apontam várias considerações relacionadas não somente à análise da
estrutura linguística, mas também a questões sociais que estão envolvidas no processo
de mudança. Embora o presente trabalho não seja de cunho sociolinguístico, pois tem
seu foco voltado para a história interna da língua, encontrará fundamento em muitas
considerações feitas nessa linha de argumentação.
Dentre outras explanações, os referidos autores apresentam cinco aspectos que,
segundo eles, devem guiar toda e qualquer pesquisa de cunho histórico no âmbito da
linguística, e que são constantemente retomadas em trabalhos que tratam da diacronia
das línguas. Kiparsky (2012) abre seu texto mencionando esses cinco problemas
definidores de uma teoria de mudança: natureza, transição, encaixamento, avaliação e
implementação, os quais se relacionam diretamente com os cinco princípios empíricos
para a teoria da mudança apresentados por Weinreich et al (2006).
Quanto à natureza da mudança linguística, entende-se que sejam possíveis duas
respostas, que seguem linhas teóricas bastante diferentes: a Hipótese Neogramática6 e a
Difusão Lexical7. A Hipótese Neogramática entende que na mudança os sons se
modificam de forma gradual em todas as palavras que apresentam o contexto necessário
para isso. Na proposta defendida pelos neogramáticos, a mudança sonora observada em
uma determinada língua é a unidade básica na evolução dos sistemas, caracterizando-
se por ser foneticamente gradual e lexicalmente abrupta. Ou seja, essa mudança atinge
todo o léxico ao mesmo tempo, e o som – entendido como a unidade básica da
mudança – passa por um processo de “gradação” (não passa abruptamente de A para
B). A mudança é entendida então como o resultado da aplicação de regras que não
admitem exceções e, caso haja exceções, são explicadas por analogia ou empréstimo.
Seguindo esta linha, Coutinho (1976) propõe que a mudança apresenta três
características fundamentais: ela seria (a) inconsciente, na medida em que as variações
6
A chamada Hipótese Neogramática foi sedimentada dentro dos estudos neogramáticos, sobretudo
fundada nas ideias de Hermann Osthoff (1847-1909) e Karl Brugmann (1849-1919).
7
Wang (1969).
27
na língua são alheias à vontade do povo e seguem as tendências da época em que vivem,
ou sejam, elas não são processadas deliberadamente; (b) gradual, por obedecer a um
processo evolutivo que permitiria a existência de formas intermediárias sucessivas para
as alterações antes de sua implementação; e (c) constante, uma vez que, preenchidos os
requisitos estruturais da mudança, ela deve prevalecer, sem exceções. Desse modo, as
mudanças sonoras são tidas por regulares, graduais e motivadas pela configuração
fonética das palavras, podendo ser previstas pelas leis fonéticas, dentre as quais se
destacam três, que segundo o autor presidiram à evolução das palavras portuguesas:
1) Lei do menor esforço ou da economia fisiológica. Caracteriza-se pela
simplificação dos processos. Desse modo, as modificações e quedas de fonemas
efetivaram-se em obediência a essa lei.
2) Lei da permanência da consoante inicial. Na evolução do latim para o português,
as consoantes iniciais permaneceram intactas, com raras exceções, ao passo que
as consoantes em posição medial e final se mostraram sujeitas a várias
alterações.
3) Lei da persistência da sílaba tônica. No meio das transformações e quedas dos
fonemas, foi o acento tônico que conservou a unidade da palavra. Esta lei se
baseia no fato de que o acento permite uma pausa mais demorada da voz, o que
o torna mais resistente a variações.
As leis fonéticas marcam, assim, o caráter de constância e inflexibilidade do
modelo, pois são concebidas como princípios absolutos de valor preciso e científico. As
exceções são descartadas, já que os casos discordantes podem ser explicados pela
intercorrência de outra causa, como a analogia e o empréstimo.
Os difusionistas contestam essa visão da mudança, principalmente a questão da
regularidade e da gradualidade em termos fonéticos, defendida pelos neogramáticos. Ao
contrário do que preconiza a Hipótese Neogramática, segundo Chen e Wang (1975),
principais representantes do difusionismo, a mudança seria implementada através do
léxico, por difusão lexical, e o que ela afetaria, então, não seria o som, mas a palavra.
Isso implicaria considerar que a mudança ocorre inicialmente em algumas palavras e se
propaga gradualmente para outras, podendo atingir ou não o léxico como um todo.
Nesta visão, o eixo central da mudança deixa de ser o fonema e passa a ser o léxico.
A diferença entre o modelo Neogramático e o Difusionista é que, no primeiro, o
elemento controlador da mudança seria o fonema, enquanto que, no segundo, o
responsável pelo fenômeno seria o léxico. Para o difusionismo, tal qual proposto por
28
Chen e Wang, a mudança sonora é devida a um dispositivo fisiológico e perceptivo dos
falantes, e sua implementação se processa por difusão lexical. Dessa forma, considera-
se a possibilidade de haver itens mais propensos do que outros à mudança.
Além disso, alguns traços lexicais têm sido propostos como favorecedores e/ou
inibidores de uma mudança sonora em relação a um item lexical, como, por exemplo, o
diminutivo de nomes próprios, que indicaria familiaridade e carinho. Ainda há uma
proposta de base difusionista que defende a ideia de que o fator frequência também
tenha um papel na marcação dos itens lexicais mais propensos à mudança: elementos
com maior frequência de uso estariam mais propensos a sofrer os efeitos de uma
mudança, desde que o contexto de uso seja considerado conjuntamente, neste tipo de
análise, devido ao fato de um mesmo item lexical não se comportar igualmente de
falante para falante (BYBEE, 2002; PIERREHUMBERT, 2001).
Labov (1994), por sua vez, considera que as duas vertentes estariam corretas, de
modo que alguns tipos de mudança poderiam ser explicados pela Hipótese
Neogramática, devido a sua natureza, e outros tipos poderiam ser explicados pela
Difusão lexical. O autor assim define estes dois possíveis tipos de mudança.
29
Esta transição ou transferência de traços de um falante para outro
parece ocorrer por meio de falantes bidialetais ou, mais
geralmente, por falantes com sistemas heterogêneos caracterizados
pela diferenciação ordenada. A mudança se dá (1) à medida que
um falante aprende uma forma alternativa, (2) durante o tempo
em que as duas formas existem em contato dentro de sua
competência, e (3) quando uma das formas se torna obsoleta
(WEINREICH et al, 2006, p. 122).
30
comunidade de fala. Tal traço assume um significado social, relacionando-se aos
valores sociais daquele grupo, ao passo que se a mudança linguística está encaixada na
estrutura linguística, é gradualmente generalizada, sem qualquer instantaneidade,
intervindo na estrutura social da comunidade antes que o processo esteja completo.
Novos grupos entram na comunidade de fala, de tal modo que
uma das mudanças secundárias se torna primária. O avanço da
mudança linguística rumo à completação pode ser acompanhado de
uma elevação no nível de consciência social da mudança e do
estabelecimento de um estereótipo social. Por fim, a completação
da mudança e a passagem da variável para o status de uma
constante se fazem acompanhar pela perda de qualquer significação
social que o traço possuía. O alto grau de regularidade que a
mudança sonora exibe é o produto desta perda de significação nas
alternâncias envolvidas e da seleção de uma das alternativas como
uma constante (WEINREICH et al, 2006 p. 124-125).
31
versar sobre a diacronia dessa língua românica, sem necessariamente com isso esgotar
toda a reflexão histórica possível a respeito do tema.
2.2.1 Contexto de origem das línguas românicas: Latim clássico e Latim vulgar
32
2.2.2 Formação das línguas românicas: fatores internos e fatores externos da
mudança
33
Especificamente em relação às mudanças fônicas8, objeto de estudo neste
trabalho, pode-se considerar a existência de dois tipos que se distinguem por sua
motivação: mudanças determinadas por pressões paradigmáticas e mudanças
relacionadas ao entorno (contexto). Considerando que o latim clássico possuía um
sistema consonantal lacunar (ver caracterização completa na Seção 3) e, por isso, podia
ser considerado como tendo um rendimento funcional baixo9 e sendo naturalmente
instável, esse sistema abriu-se a muitas alternativas de reestruturação em busca do
estabelecimento do equilíbrio pretendido. Assim, o latim vulgar eliminou parcialmente
as “falhas” de seu sistema, suprimindo, por exemplo, a aspirada /h/ e atribuindo um
correspondente sonoro à fricativa /f/.
8
Esse tipo de mudança está relacionado a fatores internos da língua, ou seja, elementos de sua própria
estrutura entram em jogo e agem como motivadores da mudança linguística.
9
A ideia de pressão paradigmática foi elaborada pelos estruturalistas, segundo a qual o sistema
fonológico de uma língua reflete a qualquer momento um equilíbrio precário entre a necessidade de
distinguir um número tão amplo quanto possível de unidades significativas e a tendência natural a poupar
o emprego dos meios de expressão. Logo, fonemas e traços deveriam ter uma alto rendimento funcional,
isto é, cada fonema serviria para distinguir um número relativamente alto de palavras, e cada traço
permitiria distinguir um número relativamente alto de fonemas.
34
da consoante /k/ para a consoante seguinte, resultando otto, no português, a assimilação
ocorreu de /k/ para a vogal precedente, resultando em uma semivocalização oito.
Embora não seja o foco desta pesquisa, apresentam-se a seguir algumas questões
de ordem fonético-fonológica do latim relacionadas especificamente ao sistema
vocálico, a fim de que a contextualização da diacronia das línguas românicas aqui
pretendida possa ser realizada de maneira mais completa.
duração breve (//, //, //, //, //) ou longa (//,//,//,//,//)que era uma
característica fonológica, pois distinguia significado (s: osso / s = rosto; lto =
amarelo / lto = lodo); a pertinência da duração na fonologia fez com que o sistema do
da falta de distinção entre o /u/ breve e /o/ longo, causada pela perda da duração.
Câmara Jr (1975, p. 40) amplia essa questão:
35
abrangência do latim vulgar: na região conhecida como Dácia, a distinção entre o /u/
breve e /o/ longo permaneceu, permitindo assim a existência de um sistema composto
de oito vogais, ao passo que, na Sardenha, as vogais longas se assimilaram às breves
correspondentes, resultando um sistema de cinco vogais.
10
A vogal está em posição fraca quando é seguida de oclusiva + r : latim clássico íntegru; latim vulgar
intégru; português inteiro; italiano intero (ILARI, 2008).
11
O acento do afixo é deslocado para o radical, por exemplo, cóntinet é reanalisado como cum+tenét:
latim clássico cóntinet; latim vulgar contínet; português contém; italiano contiène.
12
Latim clássico mulíere; latim vulgar muliére; português mulher; italiano mogliéra.
36
b) Casos de recomposição (compostos). Em latim clássico, a acentuação dessas
formas se regia pela mesma regra de quantidade da penúltima sílaba, que se
observava nas palavras simples. Isso quer dizer que, se o último elemento
dissilábico de um composto tinha a primeira sílaba breve, o acento tônico deste
recuava para a antepenúltima sílaba, portanto para o primeiro elemento; em
latim, geralmente um prefixo: cóntinet, récipit. Já em latim vulgar, recupera-se a
acentuação da palavra simples, o que equivale a deslocar o acento dos afixos
para o radical, ou seja, cóntinet é reanalisado em cum + ténet, prevalecendo a
acentuação da forma simples ténet, contínet.
37
ao dominado sua própria língua, como aconteceu com os romanos”
(BASSETTO 2005, p. 152).
compridas; (b) por meio dos nomes de lugares e designações aplicadas à fauna, à flora e
à cultura material; (c) pela incorporação dos hábitos linguísticos oriundos das línguas
utilizadas pelos povos dominados quando estes falavam o latim, ou seja, a pronúncia
característica de seu próprio idioma fazia-se presente quando o povo dominado se
expressava na “nova” língua. Esse “produto” linguístico, caracterizado como sendo a
língua do dominador atravessada por elementos da língua do dominado, é o chamado
substrato.
Bassetto (2005, p. 153) define substrato como “as marcas linguísticas advindas
do povo que abandona seu idioma, levadas para a língua que passa a adotar”, ao que
corrobora Câmara Jr (1985, 1998). Segundo Basseto, essas marcas estão mais presentes
no léxico e, em alguns casos, também na fonética, sendo mais raras na morfologia e
muito mais ainda na sintaxe. Isso pode ser comprovado em uma reflexão a respeito do
material fornecido pelo substrato tupi13 ao português: inúmeras são as palavras de
origem tupi presentes no léxico do português, as quais compõem o chamado
“vocabulário cultural”. Porém, nenhum fato linguístico de influência tupi pode ser
encontrado no campo na morfologia, da sintaxe e até mesmo da fonética, “o que pode
ser atribuído à grande diversidade dos dois idiomas e ao considerável desnível cultural
dos seus falantes”. A ação do substrato costuma ser lenta e depende de causas sociais,
políticas, históricas e até mesmo estilísticas, podendo sua força permanecer latente
durante séculos, permitindo a coexistência da duplicidade de formas, que seria “a
melhor refutação da tese dos neogramáticos de que os sons mudam rapidamente e com
precisão mecânica, de que as mutações estão completas tão logo se manifestem”
13
Convém considerar a controvérsia em relação à existência ou não de um substrato indígena, apontada
por Câmara Jr (1963). Segundo o autor, não é possível falar nesse tipo de substrato, dado que as línguas
indígenas brasileiras são genética e tipologicamente diferentes. De acordo com o linguista, os defensores
da existência desse tipo de substrato buscaram seus argumentos não nas línguas indígenas reais, mas na
Língua Geral, denominada pelo autor como um “tupi missionário fabricado” pelos jesuítas.
38
(BASSETO 2005, p. 156).
Mattoso Câmara (1970, p. 42) define adstrato como “toda língua que vigora ao
lado de outra, num território dado, e que nela interfere como manancial permanente de
empréstimos”. Para a ocorrência do adstrato bastaria, então, que dois povos vizinhos
cujas línguas fossem diferentes mantivessem uma relação que permitisse a troca entre os
idiomas. A diferença do adstrato para o substrato e o superestrato é que naquele não há
o desparecimento de uma das línguas, como ocorre com estes: as línguas convivem e
influenciam-se. O árabe foi a língua que talvez mais tenha convivido com a língua latina
e suas descendentes na região da Ibéria, fornecendo principalmente elementos lexicais
referentes à matemática, à química, à astronomia, mas também características fonéticas
pois, segundo Bassetto (2005), a população românica assimilou em parte o ritmo
acentual do árabe, mantendo, consequentemente, a tônica nos empréstimos
39
proparoxítonos, nos paroxítonos terminados com líquida e em numerosos oxítonos. “A
conservação dessas tônicas de certa forma contraria tendências acentuais do português
de eliminar os proparoxítonos pela síncope da postônica e fazer coincidir a tônica com
fonemas líquidos e nasais”.
14
Foram tratados na seção 2.2.2: substrato, superestratos, variações dialetais, etc.
40
atestam a diversidade das bases latinas, justificadas pelo período em que determinadas
regiões estiveram submetidas à latinização15, pela dificuldade de acesso e comunicação,
dentre outras questões já abordadas na Seção 2.2.1, embora também não se possa negar
a uniformidade básica existente entre as línguas que se originaram do latim.
Segundo Teyssier (2007) e Silva Neto (1979), embora haja o problema da falta
de documentação linguística desse período, a linha geral de evolução não deixa dúvidas
quanto à possibilidade de confirmar a acelerada derivação que transformou o latim
imperial em proto-romance, além de surgirem certas fronteiras linguísticas.
Provavelmente nessa época, desencadeia-se a evolução da sequência /kl/. Nesta posição,
a dorsal passa a iode e essa evolução é comum a todos os falares hispânicos. Porém, as
consequências não são as mesmas nas diferentes regiões: em galego-português, essa
sequência passa a lateral palatal, ao passo que em castelhano passa à africada (d).
A essa nova variedade deu-se o nome de romance e sabe-se que a atitude das
15
Refere-se ao período em que houve a expansão do Império Romano e, consequentemente, da Língua
Latina que, por sua vez, recebeu influências das línguas dos povos conquistados.
41
pessoas cultas em relação a ele era parecida como a dos gramáticos latinos em relação
ao latim vulgar, ou seja, de certa reprovação16, porém este se constitui como um grande
passo na evolução do latim às línguas românicas. Com a queda do Império, as forças do
substrato e do superstrato, além da falta de um fator de unificação (como foi a
administração romana, por exemplo), aceleraram o processo de fragmentação linguística
na România. Segundo Basseto (2005), no período romance essa desintegração foi tão
grande que nenhuma variedade linguística conseguiu a princípio destacar-se como
comum a alguma região mais vasta.
De modo geral, as línguas românicas tomaram sua forma literária definitiva nos
séculos XV e XVI – é possível identificar uma considerável diferença entre a língua dos
primeiros documentos e a literária moderna, como ocorre, por exemplo, no francês e no
castelhano17. Segundo Lima (2008), no conjunto de línguas românicas, as motivações
para que uma variedade dialetal seja levada à categoria de língua literária são de ordem
cultural e política, porém cada uma delas tem a sua história característica, além de uma
trajetória própria.
16
Prova de que havia, em relação ao latim vulgar, certa desaprovação está presente no Appendix Probi,
uma reunião de 227 verbetes que intencionava preservar o uso da norma culta da língua latina, mas que
acabou registrando ainda a língua falada pelo povo (exemplo: masculus non masclus). Esta é uma fonte
muito consultada também por pesquisadores interessados nos processos fonológicos ocorridos do latim às
línguas românicas.
17
Como pode ser evidenciado nos poemas Chanson de Roland e Cantar del mio Cid, respectivamente.
42
grupo de cinco fonemas.
referidas vogais são sincopadas ou realizadas como []: no PB tem-se fechar (f[e]char),
mantido em sílaba tônica, exceto quando a consoante seguinte é uma líquida ou fricativa
palatal (leite, falei, leito / terceiro ~ tercero, canteiro ~ cantero, beijo ~ bejo), enquanto
que no PE esse ditongo é pronunciado como [j] (l[j]te, cant[j]ro, b[j]jo). Em PE é
18
Essa mesma divergência em relação à abertura é verificada em vogais átonas pré ou postônicas,
pronunciadas fechadas no PB e abertas no PE, assim como as vogais resultantes de antigas crases, que
mantêm a mesma relação (PB: mordomo; PE mòrdomo)
19
Como nos casos em que atua o processo de harmonia vocálica.
43
comum a adição de um [] ao final de uma palavra terminada por líquida (sal[]~ sal,
sol[] ~ sol, Manuel[] ~ Manuel), bem como para se desfazer um hiato, o que não se
verifica no PB, que na verdade recorre à epêntese para facilitar a pronúncia de certos
encontros consonantais (advogado ~ ad[i]vogado/ad[e]vogado; corrupto ~
corrup[i]to), fenômeno este inexistente no PE. Ainda, no Brasil normalmente não há
alternância entre /b/ e /v/, cuja “oscilação” é bastante recorrente em Portugal ([v]ou ~
[b]ou; [v]iste ~ [b]iste)20.
20
Esta alternância entre [b] ~ [v] ocorre apenas em algumas regiões de Portugal.
44
francês e o alemão, trazidas pelo processo de colonização imigrante, amplamente
difundido no Brasil.
2.3 Fonologização
21
Para um melhor detalhamento dessa discussão, ver Tarallo (1994).
45
No estruturalismo, a fonologia diacrônica começou a desenvolver-se a partir dos
estudos de Roman Jakobson, um importante membro do Círculo Linguístico de Praga,
de quem a linguística recebeu inúmeras contribuições relacionadas aos fatos da
linguagem humana. Embora o autor tenha iniciado nesta área propondo restritamente
uma taxionomia22 das mudanças fônicas, deixando em segundo plano suas pretensões
explicativas, as considerações feitas em relação aos tipos de mudança merecem
destaque. Jakobson (1970) propõe uma divisão entre as mudanças que causam alteração
no sistema (fonológicas) e aquelas que não o modificam (extrafonológicas). Estas
últimas, por exemplo, referem-se à mudança que afeta as variantes sem causar
modificação no sistema fonológico. Porém, é importante ressaltar que Jakobson já
previa a possibilidade de fatos fonéticos serem motivadores de mudança fonológica: “as
mudanças fônicas que se manifestam no sistema fonológico podem ser vistas como
veículo de uma mutação fonológica ou de um feixe de mutações fonológicas”
(JAKOBSON 1970, p. 318).
Por outro lado, as mudanças fonológicas foram categorizadas levando-se em
consideração os tipos de processo que implicariam, como desfonologização,
fonologização e refonologização. A desfonologização provoca a perda de uma distinção
fonológica, como o que ocorreu no galego-português, que desfez a distinção fonológica
existente entre a africada /ts/ (cem) e a fricativa /s/ (sem), passando a um único fonema
/s/, ou seja, partindo de uma articulação fonética distinta passou-se a uma produção
idêntica, cuja distinção semântica se mantém sinalizada por meio da ortografia23. O
mesmo ocorreu com os pares /dz/ (cozer- co/dz/er) e /z/ (coser – co/z/er), /t/ (chaga-
/t/aga) e // (leixar-lei//ar), /d/ (trager – tra/d/er) e // (já-//á), em que a distinção
22
Cabe lembrar que esta proposta foi duramente criticada por Martinet (1955, p. 46), por considerar que
Jakobson fazia “uma exposição na qual praticamente atribuía à fonologia diacrônica fins puramente
descritivos”, justamente porque a explicação dos fenômenos descritos não constituía o foco do estudo.
23
No português antigo, grafava-se com a letra “c” o correspondente africado /ts/ e com “s” o que
correspondia ao fonema /s/. Embora foneticamente essa distinção tenha se perdido, a ortografia preserva
até hoje essa diferença.
46
referem-se basicamente a variações fonéticas de um mesmo fonema que passaram a ser
fonemas distintos, como o que ocorreu no polábio antigo24, com os fonemas /x/ e /ç/.
Originalmente, o fonema /x/ era produzido como fricativa palatal surda [ç] ou como
fricativa velar surda [x], dependendo do tipo de vogal que figurava no contexto
seguinte, ou seja, essas eram apenas variantes fonéticas de um mesmo fonema. Quando
as vogais fracas médias e baixas sofreram o processo de coalescência, provocando
assim uma diferenciação em palavras como [sauxa] (feminino) e [sauça] (neutro), o par
x,ç passou a constituir uma oposição fonológica (JAKOBSON 1970, p. 322).
Já a refonologização seria o único processo de mudança fonológica que não
implicaria uma alteração na quantidade de fonemas do sistema, já que consiste em uma
reorganização de oposições fonológicas, ou seja, uma reorganização da própria estrutura
do sistema.
Embora as reflexões elaboradas por Jakobson, assim como o seu método de base
estruturalista e a terminologia proposta, tenham figurado em boa parte dos estudos de
análise diacrônica durante décadas, foram contraditados quanto aos fatores causadores
das mudanças fônicas pelos trabalhos de Martinet e seus seguidores, por exemplo. Para
Jakobson (op. cit), os fatores estruturais e funcionais são capazes de dar conta das
análises referentes à mudança fônica; já Martinet (1955) considera ainda a necessidade
de uma articulação entre os fatores estruturais e funcionais com os fatores acústico-
articulatórios. Logo, tem-se a delimitação de duas versões de uma mesma concepção: a
versão ortodoxa do estruturalismo diacrônico, na linha de Jakobson, e a versão
heterodoxa, na linha de Martinet.
Ambas têm importante papel na constituição da pesquisa em fonologia
diacrônica, até porque, apesar de diferentes, não apresentam qualquer divergência
profunda, apenas o foco da análise é que se diferencia: enquanto as formulações de
Jakobson seguem uma tendência teleológica, ou seja, voltada para a finalidade da
mudança, o modelo de Martinet concentra-se na explicação das causas das mudanças
fônicas.
Para Martinet (1955), assim como Jakobson propôs, haveria três tipos de
processos de mudança fonológica. Segundo o autor, a fonologização seria o surgimento
de um fonema novo, a partir da criação de um traço pertinente inexistente no estágio
linguístico anterior. Por exemplo, entre as vogais do latim vulgar não havia dois graus
24
Dialeto eslavo extinto, outrora falado na região do rio Elba.
47
na abertura das médias. O português implementou o traço /+ média aberta/, surgindo
assim o // e //. Da mesma forma, o latim vulgar não tinha o traço /+
25
Estes traços não são os mesmos considerados por Clements (2009) em seu Modelo, o qual servirá como
base para as análises propostas neste estudo. Tais configurações (traço /+média aberta/ e /+palatal/) são
apresentadas por Castilho (2011), ao exemplificar com dados do Português aquilo que Martinet definia
como fonologização.
26
Isso não quer dizer que o processo tenha produzido os fonemas sonoros exemplificados “ao mesmo
tempo”, já que a fricativa sonora /v/ não constituía o sistema consonantal do latim clássico, porém alguns
autores entendem que possivelmente já integrava o sistema do latim vulgar, conforme atesta quadro
apresentado por Ilari (2008, p. 78).
27
Uma explanação mais completa deste Princípio será apresentada na Seção 2.4.
28
Cabe atentar, porém, para o fato de que há autores os quais defendem a ideia de que o português ainda
possui consoantes geminadas: é o caso de Monaretto (1994), que entende haver no português um único
fonema vibrante – o r-fraco, também nomeado tepe -, sendo que a realização deste segmento em contexto
intervocálico, por exemplo, poderia ocorrer na forma geminada, manifestando-se como r-forte; e Wetzels
(2000), que considera as soantes palatais como geminadas fonológicas no PB, devido ao seu
comportamento particular se comparadas às demais soantes.
48
sistema fonológico latino. No italiano, outra língua românica, diferentemente do
português, porém, essa distinção pela quantidade foi preservada, em grande parte no
sistema consonantal.
Diferente de Jakobson, que restringe suas observações à descrição da mudança,
bem como sua função/finalidade (visão teleológica da mudança) conforme já foi
destacado, Martinet recorre à teorização explicativa ao abordar as possíveis causas da
mudança, articulando os fatores linguísticos com os fatores que ele chama de externos
ou fisiológicos, a fim de apresentar um quadro causal de diversas mudanças. De
qualquer forma, especificamente em relação ao processo de fonologização, ambos
tecem considerações importantes a respeito do fenômeno, as quais serão acolhidas neste
estudo.
Muitas das considerações apresentadas por Jakobson e Martinet em relação aos
processos de constituição dos inventários e a estruturação dos fonemas serviram como
base para o desenvolvimento de diferentes propostas de análise fonológica, alicerçadas
tanto na ideia de que há princípios universais os quais orientam a constituição dos
inventários das línguas (MARTINET, 1955) como no fato de que os traços é que se
constituem como unidades mínimas no sistema fonológico, conforme propõe Jakobson
(1939). Assim, a seguir, são apresentados os pressupostos teóricos que guiam as
análises propostas neste trabalho: Teoria Autossegmental (CLEMENTS e HUME,
1995) e Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009),
que delineiam um constante diálogo com as ideias apresentadas pelos referidos
linguistas.
49
dentro de um sistema de língua, não tão autônomo quanto os blocos de constituição
segmental, que mais tarde se tornaram os “traços distintivos” de Jakobson, e através
dele, aparecem como unidades fundamentais na Fonologia Gerativa de Chomsky e
Halle.
Enquanto a ênfase de Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956)
centrava-se na captura de todos os contrastes fonológicos possíveis das línguas,
Chomsky & Halle (1968) buscavam, como Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson
& Halle (1956), captar os contrastes fonológicos das línguas, além de descrever o
conteúdo fonético dos segmentos derivados por regras fonológicas, bem como os
segmentos fonêmicos. Ainda que o sistema de traços distintivos de Chomsky & Halle
(1968) em The Sound Pattern of English (SPE) seja, em grande parte, baseado nos
trabalhos de Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956), ele apresenta
algumas diferenças, principalmente referentes ao conjunto de traços distintivos
utilizados para captar contrastes, bem como em relação ao conceito de tais traços.
50
Chomsky & Halle (1968) mantiveram traços como consonantal, tenso, vozeado,
contínuo, nasal e estridente, e acresceram novos traços ao sistema de Jakobson, Fant &
Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956), tais como silábico, soante, alto, posterior,
baixo, anterior, coronal, arredondado, ATR e soltura retardada. Com a inserção desses
traços no sistema de Jakobson, proposto anteriormente, Chomsky & Halle (1968)
tinham o objetivo de substituir do antigo sistema aqueles traços cuja orientação era de
base acústica, por traços orientados articulatoriamente.
51
os modelos lineares dá-se considerando basicamente dois aspectos. Primeiro, essa
proposta deixa de conceber a existência de uma relação bijetiva entre o segmento e o
conjunto de traços que o caracteriza, o que permite entender, consequentemente, que os
traços podem estender-se além ou aquém de um segmento e que o apagamento de um
segmento não implica necessariamente o desaparecimento dos traços que o constituem.
Nessa configuração, além de os traços estarem ligados aos nós de classe por
meio de linhas de associação, existe ainda uma relação de dependência entre os traços,
ou seja, o traço do nó imediatamente superior domina o nó inferior, e a mudança no nó
de classe superior implica mudança no nó inferior. Além disso, tal configuração também
permite revelar que os traços podem atuar tanto isoladamente como em um conjunto
solidário.
52
isto é, que existe uma hierarquização entre os traços que compõem cada segmento das
línguas, é possível apresentá-la através de um diagrama arbóreo organizado em camadas
ou tiers, tal como se pode verificar no exemplo em (1):
53
como fica atestado pelas representações em (2):
Figura 2: Representação de segmento simples de acordo com Clements & Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)
Um segmento é considerado complexo quando apresenta um nó de raiz e é
caracterizado por, no mínimo, dois traços de articulação oral. Um exemplo desse tipo
pode ser visualizado a partir da velar /kp/ do iorubá (CLEMENTS e HUME, 1995, p.
253), representado em (3):
Figura 3: Representação de segmento complexo de acordo com Clements & Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)
54
Figura 4: Geometria de uma consoante pré-nasalisada de acordo com Clements e Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)
55
Figura 5: Uma raiz com ligação dupla para a camada temporal: segmentos geminados
de acordo com Clements e Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)
vogais e nunca são precedidos por uma consoante ou por um ditongo. Além disso,
lembra que, em empréstimos, esses segmentos em início de palavra recebem uma vogal
epentética ([i]nhoque, [i]lhama) e que qualquer vogal é nasalizada diante de //.
29
Embora haja propostas de que o PB possui consoantes geminadas, conforme já explicitado na Nota 21.
56
frequentes, em inscrições, exemplos como mile, anus”. Essa simplificação reescreveu as
consoantes dobradas em simples, representada no esquema a seguir, como se verifica no
exemplo: ga /t/ o < ca /tt/ u.
C1 C2 C3 onde C1 = C2 = C3
Figura 6: Geometria de traços de segmentos que constituem uma consoante geminada, sem a
operação do OCP
57
2.4.2 Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009)
Ainda com foco no traço como unidade da fonologia, Clements (2005, 2009)
propôs que princípios universais fundamentados em traços são responsáveis pela
constituição dos inventários das línguas naturais – interpreta-se, portanto, que a noção
de fonologização está presente no modelo do autor. Clements propôs um Modelo de
Princípios Fonológicos Baseados em Traços, que integra cinco princípios
(CLEMENTS, 2009; LAZZAROTTO-VOLCÃO, 2010; MATZENAUER, 2009; 2011):
Limitação de Traços: este princípio faz referência ao poder que os traços possuem para
aumentar o número de categorias potencialmente contrastivas em um sistema. Traços
estabelecem um limite máximo quanto ao número de sons de uma língua, bem como
quanto ao número de contrastes que nela podem aparecer.
Economia de Traços: de acordo com esse princípio, os traços, uma vez presentes em
um sistema, tendem a ser combinados maximamente, embora nenhuma língua do
mundo utilizar todas as combinações possíveis. Nesse sentido, em uma língua
determinado traço mostra-se eficiente se os dois valores deste traço integram o sistema.
58
De fato, os sistemas fonológicos estão organizados a partir de somente alguns
traços, que dão origem a grande número de contrastes. Desse modo, há a tendência para
usar novamente traços que já estejam ativos nessa língua. Segundo Clements (2009,
p.28) o traço [voz] é usado com máxima eficiência em inglês, na classe das oclusivas, já
que permite duplicar o número de sons. Pelo contrário, o traço [lateral] é usado com
mínima eficácia, pois opõe apenas /l/ e /r/. Dessa forma, por exemplo, o índice de
economia do português poderia ser melhorado se fossem acrescentados os fonemas /t/,
/ʤ/ e /ŋ/, pelo fato de que os traços caracterizadores desses sons já estão ativos no
sistema.
59
São evidentes as vantagens teóricas da articulação dos fonemas em
traços distintivos. Numa língua de 12 fonemas consonânticos, se cada
um deles possuir articulação específica, os utentes terão de manter
distintas doze articulações; mas se puderem combinar-se sem
dificuldade 6 articulações com uma ou com a outra de duas acções
diferentes dum mesmo órgão, bastará aos doze fonemas que se
mantenham distintas 8 articulações, das quais cada uma das seis
primeiras se combinará sempre com uma das outras duas. Assim
procede o português, que, combinando os traços [bilabial],
[labiodental], [apical], [sibilante], [chiante] e [dorsal] ora com o traço
[sonoro] ora com o [surdo], obtém os doze fonemas /pbtdkgfvsz/: a
existência da correlação de sonoridade permite uma economia
marcada pela proporção de 8 para 12 (MARTINET, 1973, p. 209).
Evitação de Traços Marcados: esse princípio afirma que certos valores de traços
tendem a ser evitados pelas línguas. A base para a classificação de um traço como
marcado ou não marcado é a frequência, ou seja, “o valor de um traço é marcado se
estiver ausente em algumas línguas; de outro modo, será não-marcado” (Clements,
2009, p. 35). Assim, de acordo com o referido autor, os seguintes valores de traços
correspondem aos mais marcados: [+soante]; [+contínuo]; [+nasal]; [+estridente];
[+posterior]; [+lateral]; [glote aberta].
60
[+voz] no sistema. Essa interação entre os princípios, ainda que de forma antagônica, é
possível pelo fato de estes serem entendidos como forças e não como leis invioláveis,
admitindo, assim, exceções.
61
frequentes nas línguas descritas no UPSID (University of California Los Angeles –
UCLA - Phonological Segment Inventory Database)31
31
Banco de dados disponível em http://www.linguistics.ucla.edu/faciliti/sales/software.htm
62
soantes versus obstruintes apical versus não-apical
labial versus coronal versus dorsal central versus lateral
nasal versus oral aspirado versus não-aspirado
plosivas versus fricativas (contínuas) glotalizado versus não-glotalizados
sonoras versus surdas implosivo versus explosivo
Fonte: Clements (2009)
a) [soante]
[labial]
[coronal]
[dorsal]
b) [contínuo]
[anterior]
c) [voz]
[nasal]
d) [glotal]
e) outros
O autor salienta que os traços apresentados dentro de cada nível não estão
ordenados e que para o grupo “e” podem ser apontados como possibilidades os traços
[lateral], [±estridente], [±distribuído] e [glote aberta]. A partir dessa escala, o autor
propõe o já referido Princípio de Robustez, entendendo que qualquer classe de som na
qual dois traços são potencialmente distintivos, contrastes mínimos envolvendo o traço
ranqueado mais abaixo estarão presentes somente se contrastes mínimos envolvendo
o traço mais altamente ranqueado também estiverem presentes (LAZZAROTTO-
VOLCÃO, 2010, p. 6).
63
estudos têm buscado explicar a gradativa construção dos inventários fonológicos
pelas crianças, seja em processo de desenvolvimento linguístico considerado típico ou
atípico, bem como estabelecer paralelos entre três fatos relevantes para o estudo do
funcionamento dos sistemas fonológicos: a aquisição de contrastes pelas crianças, a
variação linguística na fala de adultos e tipologias de línguas (MATZENAUER,
2008; 2009; LAZZAROTTO-VOLCÃO, 2009; AMORIM, 2015). Muitas destas
pesquisas centram seu foco em um desses princípios, particularmente relacionado à
robustez dos traços, incluindo ainda sua interação com outros dois, que conforme
apontado por Clements (2009) estão intimamente relacionados: o Princípio de
Economia de Traços e o Princípio de Evitação de Traços.
64
se mostra evidente a tendência ao estabelecimento dos contrastes do
nível mais alto, e, consecutivamente, vão sendo incorporados os
outros níveis da Escala (MATZENAUER, 2009; 2011).
Assim, cabe ressaltar que neste estudo é dada especial atenção às considerações
apresentadas por trabalhos relacionados à aquisição, à variação e às tipologias de
65
línguas pelo fato de saber-se que os fenômenos evidenciados nesses níveis se
relacionam diretamente com a diacronia das línguas e constituem o próprio processo de
mudança. A partir do Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços
(Clements, 2009) e a partir dos estudos principalmente sobre aquisição do inventário
fonológico do português, é possível ampliar algumas questões que se pretende sejam
respondidas por meio das análises dos dados de diacronia do português:
- Em que medida é possível estabelecer uma articulação entre princípios universais e a
evolução histórica do inventário fonológico do português?
- Haveria relação entre as forças que atuaram sobre os segmentos do sistema
consonantal latino, condicionando o fenômeno da fonologização, e os Princípios do
Modelo proposto por Clements?
- A robustez dos traços possui na diacronia o mesmo poder de orientação dos processos
de expansão e solidificação dos sistemas, evidenciado em estudos de aquisição?
- Qual o papel da coocorrência de traços nos casos de fonologização identificados na
evolução do sistema consonantal do latim ao português?
Na busca de respostas para estas indagações, que se constituem em
especificações das questões trazidas na introdução desta Tese, encaminha-se nas
próximas seções a descrição dos dados de diacronia do português, bem como a análise
desses dados.
66
3 DELIMITAÇÃO DO CORPUS E DESCRIÇÃO DOS DADOS
67
Roberto Lobuglio Zágari, Fonologia diacrônica do português, Rodolfo Ilari,
Linguística românica; Bruno Gregni Bassetto, Elementos de Filologia Românica vol. 1
e 2; Ismael de Lima Coutinho, Gramática Histórica; Serafim da Silva Neto, História da
Língua Portuguesa; Joaquim Mattoso Câmara Jr, História e Estrutura da Língua
Portuguesa, dentre outros, citados ao longo do texto.
Com a determinação destas fases, além dos dados fornecidos pelos estudos
consultados, é possível a explicitação das etapas evolutivas que constituem a diacronia
do sistema consonantal do português. A partir disso, e com o suporte fornecido pelo
estudo de Neuschrank (2011), construiu-se o quadro evolutivo do sistema consonantal
em estudo, que retrata quais traços estiveram envolvidos nos processos identificados,
além dos contextos de atuação dos mesmos, para, então, na seção que trata da análise,
submeter, ao tratamento dos pressupostos da Teoria Autossegmental (CLEMENTS e
HUME, 1995), os dados referentes ao processo de fonologização. Ao mesmo tempo,
vão sendo estabelecidas relações entre os resultados e os Princípios Fonológicos
Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009).
68
estudo desenvolvido nesta Tese. Muitos são os processos reconhecidos nos estudos
linguísticos no que concerne à evolução fonológica do latim (palatalização, sonorização,
síncope) e muitos deles são retomados nesta pesquisa. Porém, o olhar lançado para os
mesmos diferencia-se em relação ao suporte do modelo teórico que possibilitará
explorar tais processos e torná-los mais explícitos.
e /s/. Algumas lacunas existentes no sistema consonantal do latim clássico, com o passar
do tempo, foram sendo preenchidas de modo a formar uma série de pares contrastivos,
possivelmente já presentes no latim vulgar. Muitas dessas alterações foram introduzidas
por influência do próprio contexto fonológico no qual as consoantes estavam inseridas.
Importante salientar que o sistema consonantal do latim se caracteriza também pela
presença das consoantes geminadas, em consonância com suas homorgânicas simples.
Porém, pelo fato de ser a oposição de quantidade latina pertinente apenas em
contexto intervocálico, as consoantes geminadas, concebidas por Zágari (1988) como
fonemas de baixo rendimento funcional, acabam por desaparecer do sistema no
69
processo de mudança, dando lugar, normalmente, às suas correspondentes simples32.
Segue a seguir o quadro dos possíveis fonemas que compunham o sistema consonantal
do latim vulgar, com base nas informações apresentadas por Câmara Jr (1985, p.50) e
Silva Neto (1979, p.201)
32
Rever Nota 21 sobre possíveis geminadas no português.
70
Quanto às consoantes geminadas, no latim clássico, grafavam-se como
geminadas as consoantes que eram pronunciadas “prolongando a fase de intensão. O
limite de sílaba passava então entre a intensão e a distensão da consoante longa, do que
resultava a impressão de duas consoantes” (ILARI, 2008, p.82). Segundo o autor, o
latim vulgar manteve a distinção de quantidade nas consoantes, o que pode ser
comprovado pelo fato de que as inovações que afetaram as consoantes simples não se
aplicam às geminadas. “Por outro lado, em todos os ambientes onde é relevante a
distinção entre sílabas travadas e sílabas livres, a sílaba que precede consoante
geminada comporta-se como sílaba travada”.
Ao longo do tempo, essa diferenciação foi perdendo-se nas línguas derivadas do
latim, mantendo-se como característica apenas do sardo e do italiano, língua esta que
inclusive registra a formação de geminadas em contextos antes não identificados,
motivada principalmente pelo processo de assimilação. O Quadro 6 apresenta exemplos
de manutenção de consoantes geminadas, bem como a sua implementação, no italiano
que, como o português, é língua derivada do latim.
71
ainda que cedo tenham perdido a labialidade envolvidas em um processo de
desfonologização.
72
nesta Seção, o português arcaico (ou medieval, ou ainda antigo) tem início em fins do
século XII, porém não há consenso em relação à sua delimitação com o português
clássico (ou moderno). Não interessa a este trabalho demarcar uma periodização desta
fase evolutiva do português, porém julga-se pertinente uma possível divisão, à qual
correspondem dois possíveis inventários consonantais distintos.
Presume-se que esta divisão do português arcaico, feita nos moldes aqui
pretendidos, seja pertinente para o tipo de análise proposta nesta Tese, sendo que ela
encontra respaldo nos dados oferecidos pelas gramáticas históricas, bem como nos
manuais de filologia consultados, a partir dos quais se entende que seja pertinente
apresentar um sistema consonantal que se refere a cada um dos períodos. O
conhecimento dos processos responsáveis pela reestruturação do então sistema latino
para a configuração do português arcaico faz-se também importante para que haja uma
perfeita compreensão das composições a serem abordadas neste estudo, por isso serão
brevemente tratadas nesta Seção a fim de caracterizar a passagem do latim ao português
arcaico33.
33
Não há como negar que essa passagem não tenha ocorrido de forma tão direta como possa parecer, já
que séculos de evolução linguística separam cada uma dessas manifestações. O que se pretende aqui é
confrontar essas duas realidades linguísticas a fim de que se possa traçar, ainda que de forma bastante
sutil, o percurso evolutivo que constitui a formação do inventário consonantal do português.
73
negar < negare e legume < legumem. Considera-se a simplificação das geminadas
como a força desencadeadora das demais lenizações, ocorridas em momentos
posteriores.
africadas /ts, dz, t, d/ possuem sua origem em plosivas seguidas de vogal ou
semivogal palatal /e, i/ em boa parte dos casos, ou em sequências formadas por /k/, /f/,
/p/, seguidos de /l/. O fenômeno da anteriorização das velares e a posteriorização das
dentais seguidas de /i/ e /e/, que resultou nas africadas /ts, dz, t, d/, posteriormente /s,
z, /, no início e no meio da palavra, segundo Teyssier (2007, p.9-15), ocorreu no latim
74
também não ocorreu da mesma forma para todos os contextos. Porém, como o interesse
desta pesquisa não é estabelecer uma localização temporal precisa a respeito da
consolidação dos fenômenos ocorridos na evolução do latim ao português, essa
assimetria temporal em que os processos fonológicos evidenciados estão inseridos não
implica qualquer problema para as análises pretendidas.
Com base nas discussões propostas por Maia (1986, p.502) e Teyssier (2007,
p.26), apresenta-se o Quadro 7, que reflete o provável sistema consonantal do português
arcaico, primeira fase, seguido de algumas considerações a respeito de sua formação.
Quadro 7: Sistema consonantal do português arcaico (primeira fase)
Labio- Alveolar Palato-
Bilabiais Palatal Velar
dentais alveolar
Plosivas su
Plosivas so
Africadas su
Africadas so
Fricativas su
Fricativas so
Nasais
Laterais
Vibrantes
simples
múltipla r
Comparando-se os inventários do latim vulgar e do português arcaico, em sua 1ª
fase, é possível identificar consideráveis diferenças entre esses dois sistemas. A
simplificação das geminadas, processo característico da diacronia do português e ainda
presente nos dias de hoje34, implicou dois outros grandes movimentos no sistema, mas
que pouco impacto tiveram em termos de estruturação do inventário: a
34
A degeminação está presente na fonologia das vogais da língua. Bisol (1992) afirma que a degeminação
no português ocorre como resultado de sândi vocálico, que corresponde a um processo de
ressilabificação, o qual ocorre no domínio de um mesmo enunciado, entre duas palavras, desencadeado
pela juntura de vogais idênticas. Tal sequência provoca um choque dos núcleos silábicos envolvidos e,
assim, os segmentos adjacentes iguais no mesmo nível são inibidos pelo Princípio do Contorno
Obrigatório.
75
desfonologização do traço de quantidade35 afetou as consoantes geminadas surdas e
sonoras; a partir dessa simplificação, os fonemas sonoros “caem”, ao passo que os
surdos sonorizam-se e ocupam o lugar das consoantes “perdidas”, atestando a atuação
do traço [+voz] na configuração do sistema. Segundo Zágari (1988), “o debilitamento
da articulação das geminadas, até o ponto de igualarem-se à simples, determinou,
periodicamente, a sonorização das surdas simples e, por consequência, o apagamento
das sonoras em igual posição. Um caso de cadeia de propulsão”.
Essa desfonologização da quantidade, caracterizada como um fato fonêmico e
acústico-articulatório, causado pela pouca distintividade e pequena percepção auditiva,
teve como consequência ainda, na classe das obstruintes, que os fonemas portadores dos
traços [-contínuo] e [-voz] passassem a ser caracterizados pelo traço [+voz] (por
exemplo, p > b; t > d; k > ); e que aqueles portadores dos traços [+contínuo, +anterior,
-voz, labial] e [+contínuo, -anterior, -voz, coronal] formassem um novo par opositivo
com suas homorgânicas marcadas pelo [+voz] (f v; s z).
Além da simplificação dos fonemas geminados, há também a fonologização das
africadas (ts dz t d), marcadas pelo contraste opositivo do traço [± anterior], até então
das obstruintes, contrastaria com o segmento bilabial [+-voz], de acordo com o que
35
O traço de quantidade, por sua natureza prosódica, não figura dentre aqueles usados por Clements
(2009), mas seu uso é recorrente nos trabalhos de Linguística Histórica que tratam das mudanças
ocorridas no sistema fonológico.
36
Sobre os tipos de segmentos, de acordo com Clements e Hume (1995), ver Seção 2.4
76
atesta Castro (1991, p. 108), ao tratar do caminho evolutivo traçado pela semivogal /w/:
“o /w/ passou a uma bilabial fricatizada [], que não teve dificuldade em servir de
com as também coronais [+anteriores] por meio do traço [+contínuo]. Compondo ainda
a classe das coronais, fonologizaram-se duas palatais: a nasal // e a lateral //, ambas
Quadro 8: Constituição das classes de segmentos de acordo com o ponto de articulação (Latim x
Português arcaico – 1ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico
Classe/ponto Latim Latim Português
(1ª fase) Arcaico
(1ª fase)
Labial pbfmw pbfm 5 5
t d ts dz s z n l r t d
Coronal tdsnlrj 7 16
Dorsal k 37 k 2 2
37
Considerando o sistema do latim clássico, haveria ainda os fonemas labializados kw e w e a aspirada h,
que acabaram se desfonologizando já na passagem para o latim vulgar.
77
Quadro 9: Constituição das classes de segmentos de acordo com o modo de articulação (Latim x
Português arcaico – 1ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico
Classe/modo Latim Latim Português
(1ª fase) Arcaico
(1ª fase)
p b f t d ts dz s z t d
Obstruintes pbftdsk 8 16
k
Nasais mn mn 2 3
Laterais l l 1 2
Vibrantes r r 1 2
Tomando como base a distinção que pode ser feita entre o galego-português e o
português atual, vê-se a presença das africadas alveolares e palatais, ausentes no sistema
contemporâneo, além da presença de uma bilabial fricativa sonora e a ausência da
labiodental fricativa sonora. Estas são as situações que distinguem a primeira fase do
português arcaico do português utilizado atualmente (MATTOS e SILVA, 2006).
Houve sempre muita discordância em relação à existência ou não da oposição /b/
: /v/ no português arcaico. Mattos e Silva chama a atenção para a controvérsia existente
entre os autores a respeito de existir ou não a possibilidade dessa oposição, tanto que
registra em seu quadro de consoantes, referente à primeira fase do português arcaico, a
ausência da fricativa labiodental sonora /v/ e a presença de uma bilabial sonora //, a
/t/ e esta oposição só é neutralizada após o século XVI, apesar de, em algumas
38
Quadro adaptado de Mattos e Silva (2006, p. 91).
79
Quadro 10: Sistema consonantal do português arcaico (segunda fase) 39
Labio- Alveolar Palato-
Bilabiais Palatal Velar
dentais alveolar
Plosivas su
Plosivas so
Africadas su
Africadas so
Fricativas su
Fricativas so v
Nasais
Laterais
Vibrantes
Simples
múltipla r
há a fonologização da fricativa labiodental sonora /v/, que passa a contrastar com sua
homorgânica [-voz] surda. Assim como na fase anterior (do latim ao português arcaico
1ª fase), mantém-se o alto índice de contraste do traço [coronal] que, em coocorrência
com o [+ contínuo], o [-anterior] e o [+voz], é responsável pela expansão do sistema
consonantal do português.
Da mesma forma como apresentado anteriormente, contrapondo-se os sistemas
consonantais das duas fases do português arcaico, tem-se a composição apresentada nos
Quadros 11 e 12, considerando-se novamente as classes de segmentos formadas de
acordo com os traços de ponto [labial], [coronal] e [dorsal] e de acordo com o modo de
articulação:
39
Mattos e Silva (2006) e Maia (1986) apresentam, em seu quadro de consoantes da segunda fase do
português arcaico, as fricativas pre-dorsodentais /s z / e ápico-alveolares /s z/. Questiona-se, porém, o
estatuto fonológico deste grupo: parece não natural o sistema abrir mão das fricativas alveolares /s z/, já
integrantes do sistema do galego-português, para depois reintegrá-las novamente. É possível que o que as
autoras apresentam sejam apenas manifestações fonéticas que integram a passagem das africadas /ts dz/
para as correspondentes fricativas /s z/.
80
Quadro 11: Constituição das classes de segmentos de acordo com o ponto de articulação (Português
arcaico – 1ª fase x 2ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico Português arcaico Português Português
Classe/ponto
(1ª fase) (2ª fase) arcaico arcaico
(1ª fase) (2ª fase)
Dorsal k k 2 2
Quadro 12: Constituição das classes de segmentos de acordo com o modo de articulação (Português
arcaico – 1ª fase x 2ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico Português arcaico Português Português
Classe/modo
(1ª fase) (2ª fase) arcaico arcaico
(1ª fase) (2ª fase)
p b f t d ts
Obstruintes dz s z t d p b f v t d s z t k 16 13
k
Laterais l l 2 2
Vibrantes r r 2 2
81
3.1.2.2 O sistema consonantal do Português Moderno
Em relação ao sistema latino, o sistema consonantal do português apresenta a
inserção de fonemas no inventário fonológico (v, z, , , , ) como as fricativas
Fricativas su
Fricativas so
v
Nasais
Laterais
Tepe
Vibrante r
distintivo, realizando-se hoje apenas como uma variante da plosiva alveolar surda. Essa
desfonologização provavelmente tenha ocorrido motivada pela busca da simetria no
interior do sistema, considerando que as [-soantes] são marcadas pela oposição [±voz].
Além disso, é possível considerar que o baixo rendimento funcional das africadas tenha
também endossado a desfonologização de toda a classe, além do fato de que, em
contraste com suas homorgânicas fricativas, possuem um baixo grau de distintividade,
se forem levados em consideração os efeitos acústicos de sua articulação.
Monaretto, Quednau e Hora (2005) apresentam o sistema consonantal do PB de
acordo com a proposta de Câmara Jr, elencando a posição que esses elementos poderão
ocupar na palavra, mostrando que o número e o tipo de oposições encontrados no
sistema consonantal do PB dependem dos contextos apresentados a seguir:
82
Quadro 14: Sistema consonantal do PB (Monaretto, Quednau e Hora, 2005)
Pré-vocálico
Intervocálico CV Segunda consoante Pós-vocálico
CCV
/p/ /b/ /f/ /v/ /m/ /p/ /b/ /f/ /v/ /m/
/t/ /d/ /s/ /z/ /n/ /l/ // /t/ /d/ /s/ /z/ /n/ /l/ /l/ // /S/ /N/ /l/ /r/
/k/ /g/ // // // // /r/ /k/ /g/ // // /r/
[w];
- “s” pós-vocálico, pronunciado como sibilante [s] ou chiante [] de acordo como
- “t” e “d” antes de “i” podem ser pronunciados como africados [t], [d], alveolares [t],
83
Quadro 15: Constituição das classes de segmentos de acordo com o ponto de articulação (Português
arcaico – 2ª fase x Português Moderno)
Número de fonemas
Português arcaico Português moderno
Classe/ponto Port. Port.
(2ª fase)
arcaico moderno
Labial pbfvm pbfvm 5 5
t d s z n l r t
Coronal tdsznlr 13 12
Dorsal k k 2 2
Quadro 16: Constituição das classes de segmentos de acordo com o modo de articulação (Português
arcaico – 2ª fase x Português moderno)
Número de fonemas
Português
Português Português
Classe/modo arcaico Português moderno
arcaico moderno
(2ª fase)
(2ª fase)
pb fvtd sz
Obstruintes pb fvtd szk 13 12
t k
Laterais l l 2 2
Vibrantes r r 2 2
84
Na próxima seção, são descritos os segmentos consonantais do português em
relação direta com os processos fonológicos ocorridos, motivadores das mudanças
identificadas na evolução do sistema consonantal do latim ao português.
lateral palatal //, segmentos que foram surgindo ao longo do processo evolutivo da
língua portuguesa, conforme pode ser verificado na seção sobre o sistema consonantal
do português arcaico (Seção 3.1.2.1).
85
Com relação ao primeiro processo cuja ação foi prevalente – a degeminação –,
tem-se que as consoantes geminadas do latim, as quais ocorriam sempre em posição
intervocálica, sofreram o processo de simplificação, dando origem às suas
correspondentes simples no português. Este movimento é considerado por Martinet
(1955) decisivo para o romanço das Gálias e da Ibéria, por todos os efeitos no sistema,
que vão além da desfonologização do traço [quantidade]. O processo de degeminação
fez surgirem consoantes simples em muito maior número, para cada tipo, ao mesmo
tempo em que suprimiu as oposições /pp/:/p/, /kk/:/k/, e assim por diante. Segundo
Câmara Jr (1985, p. 52), a reação a esse movimento pode ter sido a manutenção das
oposições por meio de lenização da antiga consoante simples, que acaba sonorizando-
se. Por consequência, boa parte das consoantes sonoras acaba caindo, ainda que com
algumas exceções (digitum>dedo; mas plaga>chaga). Esse continuum evolutivo
também é atestado por Castro (1991, p. 108).
86
considerações sobre o processo evolutivo de classes de segmentos consonantais,
considerando-se a distinção de vozeamento - plosivas (surdas e sonoras); fricativas
(surdas e sonoras); nasais e líquidas, e a posição40 em que se encontram na palavra
(onset absoluto e onset medial). O ponto de partida é o sistema consonantal do latim
exposto nos Quadros 4 e 5.
2009).
Considerando-se a posição medial de palavra, observa-se a ocorrência dos
mesmos segmentos simples acima referidos, apresentando-se em palavras como copia,
epicus, emporium, catenas, natam, veritatem, pacatus, ancora. É importante lembrar
que, no latim, para cada segmento consonantal simples havia uma consoante geminada
que ocorria apenas na posição intervocálica: appetitus, appendix, sagittam, vitta,
buccam, siccum. Tal configuração já não se fez mais presente no período evolutivo em
que se encontra o português arcaico, no qual a distinção pela quantidade já não era mais
significativa (veja-se Quadros 7 e 10).
A posição medial da palavra é significativamente suscetível a propiciar
mudanças nos segmentos fonológicos que a constituem. Assim, esse contexto apresenta
no português os mesmos segmentos simples existentes no sistema latino, porém, quando
no latim eram segmentos simples e se encontravam no contexto intervocálico, deram
lugar aos seus homólogos sonoros, em alguns casos, como por exemplo:/p/>/b/: ripa >
riba (ribanceira); lúpus > lobo; sapere > saber; /t/>/d/: vita > vida; rota > roda; mutus >
mudo; /k/>/g/: pacare > pagar; acutus > agudo; focu > fogo
40
Coutinho (1979, p.111) chama a atenção para a necessidade desse tipo de apresentação no estudo das
consoantes.
87
Na classe das plosivas surdas, o processo de sonorização foi frequente na
evolução do inventário consonantal do latim para o do PB, com menor recorrência em
onset absoluto e maior em posição medial de palavra. Além disso, houve também o
processo de degeminação, especificamente relacionado às consoantes geminadas do
latim que passaram a consoantes simples.
debere, dare, dolorem, utta, entem, allum. Essa classe de segmentos, assim como as
específico do , mantiveram-se:
/b/ > /v/ : faba > fava; caballu > cavalo; debet > deve
// seguido de /e/ ou /i/ > //: reinam>rai a; maister>mestre; leem>lei
88
// seguido de /a/, /o/ ou /u/ : leumem>leume; neare>near
Cabe aqui fazer uma observação mais específica em relação ao /d/, que no latim
aparecia de forma recorrente na posição de onset interno, conforme exemplos
anteriormente apresentados. Contudo, na evolução da língua, podem-se referir alguns
exemplos que confirmam o apagamento deste elemento, mais especificamente no
português arcaico, sendo que posteriormente o português brasileiro se encarregou de
inseri-lo novamente nesse contexto, porém não de uma forma categórica, já que se veem
novos segmentos surgindo na posição referida.
Logo, a análise inicial permite atribuir à classe das plosivas sonoras três
processos fonológicos recorrentes: a lenização, em posição medial, responsável pelo
surgimento da fricativa /v/, inexistente no latim41, advinda do segmento /b/ em contexto
intervocálico; a palatalização, que propiciou o surgimento de um novo segmento
consonantal, a palatal //, processo esse ocorrido quando o /g/ se encontra em onset
absoluto ou medial, seguido de /e/ ou /i/; por fim, registra-se também o processo de
degeminação das plosivas sonoras geminadas. Além disso, a degeminação das surdas
41
Segundo Maurer Jr. (1959), “mesmo não sendo totalmente uniforme, em latim o /u/ consonântico
sofreu processo análogo ao /i/ - a lábio-dental sonora /v/ já estaria no sistema do latim vulgar. Ainda
segundo Ilari (1992), “no período do latim vulgar desenvolveu-se a fricativa labial /v/, que o latim
clássico desconhecia”. Logo, fica evidente que possa haver indícios de que já no latim vulgar essa
consoante se fazia presente, merecendo esta questão, porém, estudos mais específicos para um melhor
esclarecimento.
89
teve como consequência a sonorização dos segmentos simples, que impulsionaram a
queda das sonoras já existentes.
contemporâneo (veja-se Quadro 13). Estas são as situações que distinguem a primeira
fase do português arcaico do português utilizado atualmente (MATTOS e SILVA,
2006), ainda que não considerem necessariamente o contexto de atuação dos referidos
segmentos. A surda /ts/ tem origem no /t/ e /k/ palatalizados (kivitatem > tsidade >
sidade) e em alguns casos do /d/ (audio > autso > ouso). A surda /t/ é o resultado
/pl/>//: pluvia > //uva; plenu > //eio; plagam > //aga
em onset interno, possui as seguintes origens, sendo apenas o primeiro contexto o mais
produtivo, visto que os demais representam um número reduzido de exemplos:
90
/kl/, /pl/ e /fl/ precedidos de consoante > //: mas/k/ulu > mas/kl/u > ma//o;
in/l/are>in//ar;
/ski/>//: fa/ski/am>fai//a
assim como também atesta Castro (1991, p. 106). Ainda, o // em contexto inicial de
palavra origina-se também do processo de palatalização sofrido pelo // velar inicial
seguido das vogais palatais /e,i/ (ente>ente, eneru>ênero). Já a fricativa /z/ ocorre
em latim, na referida posição, apenas nas palavras adquiridas por empréstimo de outras
línguas, como o grego (zephyrum>zéfiro).
91
na grafia: para representar na escrita a africada /ts/, usava-se o “c”; para o fonema /s/, a
letra “s”; para a africada /dz/, a letra “z”; e para o fonema /z/, a letra “s”.
passo que hoje o ch de chamar se pronuncia como o x de deixar. A essas duas surdas
correspondia uma única sonora representada /(d)/, como em já. Este fonema foi
inicialmente a africada /d/ que perdeu, muito cedo, o elemento oclusivo inicial,
de palatalização das plosivas sonoras /d/ e // seguidas da semivogal /j/, assim como //
Por ter a classe das fricativas sonoras surgido por inteira na evolução do sistema
latino para o português, os processos identificados, a partir dos constituintes referidos,
ocorrem motivados por diferentes contextos (onset absoluto e medial de palavra) e
42
Teyssier (2007, p. 46-47).
92
segmentos. Faz-se importante ressaltar, no entanto, que a presença das vogais palatais
/i,e/ e da semivogal /j/ é determinante para os processos de palatalização e
consonantização, ainda que não apenas na classe das fricativas.
3.2.5 Nasais
nota-se sua origem principal no contexto medial que apresenta uma nasal alveolar
seguida de uma semivogal nj (ceconja > cegoa, teneo > tenjo > teo, linea > linja >
possível perceber em palavras como linosus > leoso, punus > puo, assim como
quando o /n/ é antecedido pela vogal palatal /i/ (vicinus > vizio, vinu > vio)
(WILLIAMS, 2001).
latim.
3.2.6 Laterais
93
Já na posição medial, além da lateral alveolar, compunha também o sistema
latino a geminada correspondente /ll/, presente em palavras como puella, gallinam,
caballum, e que no PB acabou por ser substituída por sua correspondente simples
(caballum > cavalo, gallinam > galinha). Surge então, no contexto referido, um novo
constituinte desse sistema: a lateral palatal //, que por sua vez tem origem em
sequências como kl, pl, l, bl e tl, desde que as mesmas sejam antecedidas por uma
vogal:
(WILLIAMS, 2001).
Da mesma forma como o ocorrido com a classe das nasais, as laterais sofreram
ora o processo de simplificação da geminada /ll/, resultando em sua homorgânica
simples /l/, ora o processo de palatalização das sequências kl, pl, l, bl, tl e lj
3.2.7 Vibrantes
94
ocorrência ou não de dois segmentos idênticos adjacentes. Há uma clara divergência em
relação ao número de fonemas vibrantes no português: enquanto há propostas de que a
forma subjacente para a única vibrante do PB seja o r-fraco – o valor contrastivo no
contexto intervocálico é resultado de uma geminação, e no contexto de início de palavra
e após consoantes a variante do r-forte é resultado de uma Regra de Reforçamento
(MONARETTO, 1996, p.155) –, há também a proposta de Câmara Jr (1953) que aponta
a existência do r-forte na subjacência e ainda há as propostas subsequentes do autor,
defendendo a presença de dois fonemas róticos no sistema do português.
Quadro 17: Constituição do sistema consonantal do português a partir do sistema latino (adaptado
de Neuschrank, 2011)
EXEMPLOS
95
kl pl fl (onset /kl/amare ; /pl/uvia ; //amar; //uva;
absoluto) /fl/amma //ama
< kl pl fl ks sk mas/k/ulu>mas/kl/u ;
ma//o; in//ar;
(medial) in/fl/are ; co/ks/am ; palatalização [coronal, -anterior]
co//a; fai//a
fa/sk/iam
ssi (medial)
pai//ão
pa/ssi/onem
f (medial) pro/f/ectus pro/v/eito sonorização [+voz]
v < w (onset absoluto) /w/idere /v/er consonantização [-voc, -soante]
b (medial) V_V ha/b/ere ha/v/er fricativização [+contínuo]
j (onset absoluto e //azer
medial) /j/acere //ente consonantização [-voc, -soante]
(onset absoluto //ente
< e medial) ho//e
bei//o
_ /e/, /i/ ho/dj/e
d ; _j (medial) ba/sj/um palatalização [coronal, -anterior]
sj (medial)
s (medial) ou/s/are ou/z/ar sonorização [+voz]
z < t k _j (medial) ra/tj/onem ra/z/ão
k_e,i di/k/ere di/z/er fricativização [+contínuo]
m n (onset /m/ensis ; /n/egatus /m/ês; /n/egado -
mn < absoluto) co/mm/unem ; co/m/unidade;
mm nn (medial) fla/mm/am cha/m/a degeminação [quantidade]
nj (medial) ceco/nj/a cego//a
< in (medial) v/in/u vi//o
n (medial) pu/n/us palatalização [coronal, -anterior]
pu//o
ve//ota
consonantizaram /w, j/ e ainda a plosiva sonora // seguida de /e/ ou /i/, também
palatalizada.
A partir da exposição sistemática do Quadro 17 é possível determinar quais
foram os processos mais recorrentes na evolução do sistema consonantal latino e a que
classes de segmentos foram aplicados. Ainda é possível observar com mais clareza
quais consoantes não sofreram nenhum processo fonológico em toda a diacronia da
língua, como, por exemplo, aquelas presentes em onset absoluto, excluindo-se desse
grupo as já mencionadas, que são alvos de processos de palatalização e
consonantização.
A palatalização, por exemplo, ocorre em onset absoluto apenas em um dos
grupos: quando as sequências kl, pl e fl dão origem à palatal // em início de palavra.
Nos demais casos, o referido processo ocorre sempre no interior do vocábulo, assim
como a sonorização e a degeminação. Referindo apenas alguns dos processos ocorridos
na evolução do sistema consonantal latino abordados nesta pesquisa, é possível ratificar
a importância de considerar-se o contexto silábico em que os processos são
identificados, já que o constituinte da sílaba pode mostrar-se determinante para a
efetivação de mudanças nos segmentos fonológicos.
Por fim, ficam evidenciados também os traços envolvidos em cada um dos
processos identificados na evolução do sistema consonantal do latim ao português. É
importante salientar que, além de traços isolados, operam nesse movimento de
constituição do inventário também certas coocorrências de traços, evidenciando a
importância de se considerarem não apenas as possíveis correlações entre segmentos de
um sistema, mas também as correlações entre os traços que constituem esses segmentos.
97
3.3 Etapas evolutivas do sistema consonantal do PB
Para esta tarefa, tomam-se como suporte os dados trazidos por Williams (2001),
que apresenta as origens do sistema consonantal do português a partir de um estudo
histórico que relaciona aspectos da fonética e da fonologia com dados de escrita,
traçando uma linha evolutiva entre o latim e o português. Além disso, foram consultadas
também as considerações tecidas por Castro (1991), Silva Neto (2009), que, da mesma
forma, apontam possibilidades de caminhos evolutivos para a constituição do inventário
consonantal do português. A justificativa para esta consulta reside no fato de que estes
estudos apresentam um alto grau de importância para análises de cunho histórico-
linguístico, comprovado pela recorrente citação dos mesmos em diversos trabalhos que
tratam deste tema e de seus congêneres. Também, são utilizados os dados de
Neuschrank (2011), que analisa, com o suporte da Teoria Autossegmental, os processos
ocorridos na fonologia diacrônica do português a partir do comportamento dos traços
caracterizadores dos segmentos envolvidos. A importância desses estudos para a
presente pesquisa consiste na organização das etapas evolutivas do sistema fonológico
do português, material fundamental para a análise proposta nesta Tese.
3.3.1 Sonorização
98
característica acústica proveniente da vibração das cordas vocais, fenômeno que
transforma consoantes surdas em sonoras. A sonorização, na evolução do latim ao
português, mostra-se como um tipo de assimilação, uma vez que ocorre continuamente
com consoantes em posição intervocálica, as quais acabam recebendo o traço de
sonoridade característico das vogais que estão em seu entorno. É um fenômeno
importante na evolução histórica do português e ainda observável no português
contemporâneo, que apresenta a sonorização da fricativa surda quando esta se encontra
em final de palavra, antecedida e seguida por vogais.
3.3.2 Fricativização
99
enfraquecimento, já que uma consoante plosiva se transforma em fricativa, processo no
qual há uma alteração no traço [± contínuo]: um segmento [-contínuo] passa a ser
[+contínuo]. Considerando-se a escala de sonoridade43, vê-se que a lenização implica
que o segmento sofra alteração na escala, com aumento de sonoridade. A diferença
entre o processo de fricativização e sonorização, ambas exemplos de lenização, está
principalmente na atuação do traços envolvidos: enquanto que a sonorização está
relacionada ao aproveitamento do traço [+voz], a fricativização compreende a
maximização do traço [+contínuo].
O fonema /z/ provém de sequências formadas por plosiva alveolar seguida das
vogais /i, e/ ou semivogal /j/, especificamente em contexto intervocálico. Por vezes, esse
tipo de sequência com a plosiva velar /k/ também deu origem à fricativa alveolar sonora
/z/. As referidas sequências seguem o mesmo desenvolvimento, segundo Williams
(2001, p. 90), devido a uma confusão decorrida do uso comum em latim vulgar de /k/
mais iode pelo /t/ mais iode.
Assim, toma-se como exemplificação do desenvolvimento dessas sequências o
esquema a seguir:
Quadro 19: Desenvolvimento da sequência tj, em contexto intervocálico (exemplo: rationem >
razão)
43
A Escala de sonoridade de Bonet e Mascaró (1996) apresenta o grau de sonoridade das classes de
segmentos: plosivas – 0; fricativas e “r” forte – 1; nasais – 2; líquidas laterais – 3; glides e “r” fraco – 4;
vogais – 5.
44
Na Geometria de Traços, segundo Clements e Hume (1995), um segmento é considerado de contorno
quando possui, em sua estrutura interna, a sequência de valores de um mesmo traço. Há uma motivação
clássica para que esse tipo de segmento seja considerado, que é a existência de efeitos fonológicos de
borda, ou seja, um segmento pode ter o comportamento, em relação aos segmentos vizinhos em uma
borda, conforme o valor (+) de um traço, e, em relação aos segmentos vizinhos da outra borda, pode
comportar-se conforme o valor (-) do mesmo traço. As consoantes africadas e as plosivas pré e pós-
nasalizadas são os candidatos naturais para apresentar essa estrutura (NEUSCHRANK, 2011).
100
abrandamento, em que a bilabial /b/, no latim, se encontra em contexto intervocálico e, a
partir do processo referido, com a atuação do traço [+cont] da vogal, tem-se o novo
segmento: a fricativa sonora /v/. Porém, conforme salienta Borges (1996), não apenas o
contexto intervocálico alimenta a sonorização. Um exemplo trazido pelo autor são as
palavras arbore > árvore e sorbere > sorver: em seu estudo, Borges constata a presença
do traço [+cont] no ambiente fonológico de palavras desse tipo, no caso dos exemplos
citados seria a consoante /r/, que, associada ao ambiente intervocálico, facilita ainda
mais a assimilação do referido traço responsável pela mudança em questão. Ainda, é
possível considerar também que o traço [+soante] seja favorecedor do processo aqui
referido.
3.3.3 Palatalização
surgiram por meio do processo de palatalização e, ao que muitos estudos indicam, pela
mesma motivação, ou seja, a presença de um segmento vocálico palatal. Porém, há
também casos em que o gatilho para o referido processo não se restringe à presença de
um segmento vocálico palatal: a estrutura silábica, ou seja, a sequência de sonoridade na
formação de um constituinte silábico (no caso, o onset) é o que parece determinar a
mudança.
O segmento //, presente no português e inexistente no latim, tem como uma de
suas origens as sequências latinas kl, pl e fl. A palatalização sofrida por esses elementos
encontra inicialmente na estruturação da sílaba a sua motivação de ocorrência. Segundo
proposta de Williams ([1961] 2001, p 75), o desenvolvimento da fricativa palatal surda,
do Latim ao Português, teria ocorrido de acordo com o seguinte esquema:
101
Quadro 20: Esquema de evolução das sequências kl, pl e fl segundo Williams (2001)
Logo,
klave > kjave > tave > ave
Quadro 21: Sonoridade da sequência /kl/, segundo a Escala de Sonoridade de Bonet & Mascaró
(1996)
5 5
3
1
0
k l a v e
45
O enfraquecimento de uma líquida para um glide pode ser considerado processo natural também em se
considerando a estrutura interna dos segmentos: Matzenauer-Hernandorena (1996) propõe que todos as
consoantes líquidas têm potencialmente, em sua estrutura interna, o nó vocálico. Ao superficializar-se o
glide, o nó vocálico se atualiza, desligando-se, nesse caso, o traço de ponto ligado diretamente ao nó PC.
46
Conforme Callou, Leite e Moraes (2002), /l/ “duro” é equivalente a /l/ velar.
102
reforçando o que ocorre quando a líquida se encontra como parte de uma sequência
consonantal.
Quadro 22: Sonoridade da sequência /kj/, segundo a Escala de Sonoridade de Bonet & Mascaró
(1996)
5 5
4
1
0
k j a v e
1º) // inicial ou medial antes de /e/ ou /i/: entem> //ente; iniuam > //en//iva;
vi/de/o>/vi/di/o>ve//o
etapas evolutivas:
103
Quadro 24: Evolução da sequência gj, segundo Williams (2001)
Quadro 25: Proposta de evolução da consoante velar seguida de vogal coronal, de Neuschrank
(2011)
104
esse segmento tem origem na presença de uma lateral alveolar (simples ou geminada)
seguida de vogais altas ou médias anteriores ou, ainda, quando a uma plosiva bilabial,
velar ou alveolar surda sucede o segmento lateral alveolar, sempre em posição medial
de palavra. O quadro a seguir ilustra tais contextos:
1º) /l/,/ll/_/e/,/i/ > // : filium > fio; allium > ao
ou
2º) kl, pl, l, bl, tl> // : auri/k/u/l/a>auri/kl/a>ore//a; scopulu > isco/pl/u > esco//o;
tegula > te/l/a > te//a; tribulo > tri/bl/u > tri//o; vetula > ve/tl/a > ve//ota
Teyssier propõe que, por exemplo, na sequência kl, formada a partir da síncope
da vogal /u/, a plosiva teria passado a iode, formando uma nova sequência: jl. Apesar da
escassez de registros escritos que comprovem que a proposta sugerida por Teyssier
retrata fielmente o caminho seguido pela evolução de sequências do tipo /kl/, segundo o
autor essa evolução é comum a todos os falares hispânicos, porém com consequências
bem diferentes dependendo das regiões: em galego-português /jl/ passa a // (conforme
105
Quadro 29: Origens da nasal palatal / /
De acordo com Ilari (2008), grupos consonantais nos quais a segunda consoante
é uma dental, especificamente no período latino, tendem a desfazer-se pela queda da
primeira consoante, que pode assimilar-se à segunda, vocalizar-se ou simplesmente cair;
dentre os grupos referidos por Ilari, encontra-se a sequência /n/, o último foco de
análise sobre as origens da nasal palatal //. O autor, porém, não especifica exatamente
qual caminho foi percorrido pela sequência /n/ até o surgimento do novo segmento
3.3.4 Consonantização
/w/ é entendida como uma das raízes da fricativa labial /v/, consoantes estas inexistentes
no sistema latino. O processo de consonantização remete a uma alteração do traço de
106
raiz do fonema vocálico [+vocoide] → [-vocoide], à luz da geometria de traços proposta
por Clements & Hume (1995) (veja-se representação em (6)).
Quadro 32: Resultados da evolução fonética de /w/ nas línguas românicas - Ilari (2008, p. 81)
Latim vulg. [cláss] sardo romeno italiano francês espanhol português
Vinu [winu] vinu vin vino vin vino vinho
[v] [u] [b] [v] [v] [v] [] [v]
que também é referido por Ilari. Logo, temos a seguinte configuração para a evolução
da semivogal /w/:
w>>v
107
primeira fase do galego-português, a qual desaparece na segunda fase, mantendo-se
posteriormente apenas a oposição /b/:/v/. A mudança da fricativa bilabial sonora para
fricativa labiodental sonora ocorre a partir da alteração do valor do traço [estridente], já
que // é [-estridente] e /v/ porta o traço [+estridente].
108
Escala de Robustez. Já na fricativização e na palatalização, traços como [coronal] e
[+contínuo], que ocupam os dois primeiros níveis da escala de Robustez de Clements
(2009), oferecem o suporte para a fonologização, o que evidencia que a força
apresentada em (d) pode também atuar na expansão dos sistemas fonológicos.
109
4 ANÁLISE DOS DADOS
Neste capítulo, é dado início à análise dos dados referentes à evolução do
sistema consonantal do latim ao português, com foco especificamente nos contextos que
promoveram a inserção de novos segmentos no inventário, ou seja, casos em que o
fenômeno da fonologização é identificado. Para tanto, são consideradas as possíveis
etapas apresentadas na Seção 3.3, sem que elas, naturalmente, sejam tomadas como
possibilidade única de explicitação do processo alvo de análise.
RESULTADO DA TRAÇOS
PROCESSOS ETAPAS
FONOLOGIZAÇÃO ENVOLVIDOS
47
Somente no prefixo -ex.
110
/l/;/ll/ + /j/ > // [-anterior]
/n/ > /jn/ > //
/i/+/n/> // -
/n/+/j/>//
/j/ → /dj/ → /d/ → // [-
CONSONANTIZAÇÃO
/w/ > // > /v/ [-
Observando o Quadro 34, constata-se que toda uma classe de novos segmentos
(as consoantes palatais) emerge como resultado de diferentes processos que constituem
a fonologização na diacronia do português. Além disso, duas outras lacunas existentes
no sistema latino (Quadros 4 e 5) são preenchidas com as fricativas sonoras /v/ e /z/,
atribuindo um maior equilíbrio ao sistema.
111
/b/ e a sonorização da fricativa labiodental surda /f/. Quanto ao contexto silábico, a
fonologização de /v/ ocorreu tanto em onset absoluto como em onset medial, conforme
apresentado no Quadro 35.
Onset medial Consonantização a/w/ena>a/v/eia Processo de fortalecimento (maior /w/ > // > /v/
da semivogal /w/ tensão articulatória) >> alteração nos
traços da raiz do segmento >>
alteração na ligação do traço de ponto
do segmento [lab]
manutenção apenas da oposição /b/ : /v/. Essa oposição, em termos de traços, é marcada
pela atuação da oposição [+voz], cujo papel passa a ser maximizado na classe das
obstruintes, e pelo traço [±contínuo] na classe das labiais, estabelecendo contraste entre
plosivas e fricativas cujos articuladores ativos são os lábios.
Segundo estudos de Maia (1986) a respeito da grafia portuguesa arcaica, a
oposição /b/ : // mostra-se pertinente principalmente porque havia clara distinção entre
cabo < caput e cavo<cauo, aliado ao fato de existir uma variação gráfica <v,u> ~ <b>
- arbore por árvore; nobenta por noventa48. Assim, é possível chegar-se à proposição
do continuum evolutivo que, a partir da semivogal /w/, resultou na fricativa labiodental:
entende-se que o processo de consonantização da semivogal tenha, em um primeiro
48Na fase galego-portuguesa, ou seja, na primeira fase do português arcaico, no noroeste peninsular, haveria uma
oposição entre bilabial oclusiva e bilabial constritiva (/b/ : //), que convivia com os dialetos portugueses do sul em
que se faria a oposição bilabial oclusiva e constritiva labiodental (/b/ ; /v/). Na segunda fase, a oposição /b/ : // teria
desaparecido nos dialetos setentrionais, neutralizando, portanto, os resultados históricos do /b/ e do /v/ que se mantêm
nos dialetos centro meridionais (MATTOS e SILVA, 2006, p. 86).
112
momento, fonologizado um segmento fricativo bilabial e, só depois, culminado na
fricativa labiodental.
Quanto ao funcionamento do processo em questão (consonantização), entende-se
que o mesmo tenha sido impulsionado por um processo de fortalecimento, ou seja, a
instalação de maior tensão articulatória, que implica, à luz da Geometria de Traços, uma
alteração na raiz do segmento49, a qual, no lugar dos traços [+soant, + aprox, +voc],
passa a apresentar os traços [-soant, -aprox, -voc]. A alteração do valor do traço
[vocoide], presente na raiz do segmento, implica o desligamento do nó PV; como
consequência, o traço de ponto [labial], que era dependente de PV, tem sua ligação
promovida ao nó PC. É importante salientar que os traços de modo [+cont] e [+son],
presentes na semivogal, permanecem inalterados mesmo após o processo de
fonologização como /v/, assim como o traço de ponto [labial] que, na verdade, muda
apenas a sua localização na estrutura do segmento fonologizado, alteração esta
motivada, conforme já foi explicitado, pela mudança ocorrida na raiz do segmento, que
passa de [+ voc] para [-voc].
49 A Teoria Autossegmental, por meio da Geometria de traços, é capaz de explicitar claramente todos os referidos
movimentos dos traços na constituição das etapas evolutivas que resultaram nos processos de fonologização aqui
tratados. Sobre a teoria, consultar Clements (1995) e, para mais detalhes sobre as etapas evolutivas do sistema
consonantal do PB via Teoria Autossegmental, ver Neuschrank (2011).
113
quais possuem este traço em sua estrutura e, no caso em estudo, é a presença de vogais
ou ainda de consoantes com a propriedade [+cont] o gatilho para o referido processo.
Além disso, pode-se considerar a presença de segmentos com o traço [+soante] como
favorecedora da fricativização.
114
fato de que os elementos em posição precedente àqueles fonologizados são importantes
no referido processo, logo o onset absoluto, por não contar com segmentos precedentes,
não atenderia às exigências para a implementação dessa mudança. O quadro a seguir
apresenta os processos que constituíram a fonologização de /z/, bem como as etapas
evolutivas e as implicações resultantes da atuação dos traços no referido fenômeno.
50
Segundo Williams ([1961]2001, p. 90), as duas sequências, tanto a formada por plosiva velar /k/ como
a formada por plosiva dental /t/ seguem o mesmo desenvolvimento, devido a uma confusão decorrida do
uso comum em latim vulgar de /k/ mais iode pelo /t/ mais iode.
115
observável no português contemporâneo51, ainda que atualmente não implique nenhum
caso de fonologização.
51
Quando o morfema de plural <s> se encontra em situação intervocálica <portas [z] abertas>, verifica-se
também o processo de sonorização.
116
Como o espraiamento se dá a partir do nó pertencente ao segmento vocálico para
a raiz da consoante, os traços [-soant, -aprox, -voc] acabam por acarretar, por relação
implicacional, o desligamento do nó Vocálico, já que esse nó só ocorre quando na raiz o
traço [voc] tem o sinal positivo. Em virtude de o traço [cont] manter dois valores
diferentes, como resultado tem-se a formação de uma consoante africada alveolar surda
/ts/, um segmento complexo que apresenta o chamado efeito de borda, com a sequência
dos dois valores de um mesmo traço, nesse caso o [cont].
117
Na etapa seguinte, a africada alveolar sonora /dz/ tem a sua borda esquerda
completamente desligada, provocando uma reorganização na estrutura do segmento
resultante, que passa de segmento de contorno a segmento simples: a fricativa alveolar
sonora /z/.
Figura 13: Desligamento de borda da africada alveolar sonora /dz/ e geometria de traços da
fricativa alveolar sonora /z/
118
identificado dentro do sistema consonantal implica a maximização das possíveis
combinações de traços já ativos, uma vez que o traço [+contínuo], no latim, era muito
pouco econômico, visto que estabelecia contraste entre apenas seis fonemas, do total de
oito obstruintes existentes, considerando-se o sistema do latim clássico. Em relação ao
Princípio de Robustez, tem-se que os traços atuantes na fonologização de /z/ compõem
o segundo e o terceiro níveis da hierarquia (veja-se Quadro 3), exatamente como havia
ocorrido em relação à fonologização de /v/, citado na seção precedente; esse fato
implica que traços bastante robustos passaram a ter maior papel no estabelecimento de
contrastes no sistema.
52
Segundo estudos diacrônicos, no latim, quando uma lateral se apresenta em posição subsequente a outra
consoante, ela é considerada “turva”, assim, suscetível à vocalização – há, no latim, a tendência à busca
de distanciamento de sonoridade entre elementos que constituem onset complexo.
119
//. Cabe observar que estas mesmas sequências se modificaram também para /kr/, /pr/ e
//. Logo, nas sequências consonantais cujo segundo elemento é a líquida lateral /l/, a
está no traço [coronal] do glide /j/, que motiva que a sequência fique coronalizada, ou
seja, palatalizada na posição de onset silábico. É importante considerar que, nesse
continuum evolutivo, possivelmente tenha havido uma consoante palatalizada /kj/, que
então passa para /tj/, por influência do traço [coronal] do segmento vocálico, para só
depois surgir a africada palato-alveolar /t/. Para isso, considera-se então que, após a
120
Figura 15: Geometria de traços da africada /t/
Por fim, tem-se a passagem do segmento de contorno /t/ para a fricativa //.
Nesse caso, a africada tem a sua borda esquerda desligada. Por influência do processo
ocorrido em /kl/, o mesmo parece ter-se efetivado também nas sequências /pl/ e /fl/.
Ainda sobre a fricativa //, outra origem desse segmento é a sequência /ssj/ em
121
Figura 17: Espraiamento do traço [coronal]
nesta pesquisa, é considerada uma consoante simples, da mesma forma como o faz Mira
Mateus (2000) em resenha sobre Bisol (2005). Segundo a autora, a representação da
consoante fricativa palatal com um traço secundário não corresponde à consoante
palatal do português, que, segundo ela, é uma consoante simples.
122
latino. Destaca-se, no entanto, que, com essa fonologização, o sistema não passou a
contar com a oposição de um novo traço, mas, como ocorreu nos casos de
fonologização de /v/ e /z/, traços já ativos passam a estabelecer novos contrastes.
Observando-se os princípios de organização de inventários fonológicos propostos por
Clements (2009), os traços que atuam na fonologização de // são pertencentes a níveis
altos da Escala de Robustez (veja-se Quadro 3): o traço [coronal] integra o nível (a) da
Escala e os traços [contínuo] e [anterior] fazem parte do nível (b) da Escala; esses traços
atuam conjuntamente de forma decisiva na busca pela expansão do sistema.
123
+e,i (precedidos Característica vocálica passa a fazer
gin/i/vam< parte da estrutura da consoante >>
de consoante)
gen//iva desligamento de articulação primária +e,i,j>j>j>dj>d>
(efeito suspensivo) >> articulação de
+e,i (precedidos segmento puramente vocálico >> traço
de vogal) vi/i/lare>vi//iar default [coronal] preenche o “espaço
+j vazio” da articulação potencial >>
promoção do traço [coronal] da
fu/j/o>fu//o
articulação secundária para articulação
primária >> segmento de contorno
(africada) >> desligamento de borda
esquerda do segmento complexo >>
segmento simples
s+j ecle/sj/a>igre//a Sonoridade e o traço [-anterior] da s+j>
vogal >> reestruturação da fricativa >>
implementação de
Consonantização Realização de pronúncia palatal, como j>dj>d>
j intervocálico cu/j/ium>cu//o em /+e,i/ >> traço default [coronal]
preenche o “espaço vazio” da
articulação potencial >> promoção do
traço [coronal] da articulação
secundária para articulação primária >>
segmento de contorno (africada) >>
desligamento de borda esquerda do
segmento complexo >> segmento
simples
124
Figura 20: Espraiamento do nó Vocálico para o PC
apresentam podem ser motivadas pela desassociação de um dos traços das consoantes
complexas quando da sua realização pelo falante (realização como [l] ou como [j] para
//, por exemplo). Matzenauer (1999), ao tratar das variantes da lateral palatal //,
aponta para o desligamento do nó vocálico, o que levaria à realização da constrição
125
consonantal, originando, assim, a líquida lateral [l].
No caso da consoante palatalizada /j/, segundo Neuschrank (2011), o traço
[dorsal] da articulação primária fica desligado com efeito suspensivo, suscitando, assim,
a produção apenas da articulação secundária, que caracteriza um segmento vocálico. O
fato apresentado pela autora como provavelmente inovador é a possibilidade de se
considerar todo apagamento como uma suspensão, o que explicaria a possibilidade de,
na evolução envolvendo a consoante palatalizada em questão, haver, em um momento,
o desligamento de sua borda esquerda, destacando as características vocálicas presentes
no segmento e, em momento subsequente, novamente voltar a se efetivar o mesmo tipo
de segmento (complexo), mudando, porém, de [dorsal] para [coronal], resultando assim
em uma africada sonora. Em se comparando com a de Williams (2001), essa proposta
apresenta uma etapa a mais na evolução da sequência /j/, mas estruturalmente mostra
um caminho mais natural da língua.
[dorsal], ou seja, sua articulação primária, que é a consonantal. Após essa suspensão e
realização apenas vocálica, a língua trata de preencher o espaço “vazio” do segmento,
que guarda uma “articulação potencial”, antes ocupado pelos traços consonantais. Esse
126
preenchimento ocorre por recuperação da estrutura interna de //, contaminada porém
pelo traço [coronal] do glide, e o resultado acaba fazendo surgir o segmento /d j/. Dessa
forma, surge novamente uma consoante palatalizada, porém agora com os traços
[coronal] [-anterior], por influência da articulação secundária.
africada /d/, segundo Clements (1991) e Bisol & Hora (1993), há a promoção do traço
127
Figura 25: Geometria de traços da consoante africada /d/
128
desenvolvimento de uma consoante palatal a partir do /j/. Segundo o autor:
Período latino: o i-semivogal adquire uma pronúncia acentuadamente
palatal, confundindo-se na pronúncia com o g(e,i).
Período românico: resultam as mesmas três situações descritas para
g(e,e): a palatalização involui no sardo, que conserva a semivogal; na
România oriental desenvolve-se numa africada /d/; na România
ocidental chega-se a uma fricativa.
Para uma melhor visualização do que propõe Ilari, o autor apresenta um quadro
semelhante ao que segue.
Quadro 39: Resultado da evolução da semivogal /j/ - adaptado de Ilari (2008, p. 81)
Latim sardo romeno italiano francês espanhol português
vulgar
iugu juu jug giogo joug yugo jugo
/j/ /d/ /d/ // /j/ //
129
default, há uma reorganização estrutural do segmento necessária para caracterização da
constrição vocálica desse segmento. Resulta, assim, a consoante complexa /dj/, que
contém uma articulação primária consonantal e uma secundária vocálica, proveniente
do espraiamento do traço [coronal] do PV da vogal para o PC da consoante. Logo, os
nós Ponto de Vogal e Vocálico acabam sendo inseridos no segmento consonantal /d/,
para que o traço [coronal] proveniente da vogal se mantenha com sua natureza de Ponto
de Vogal. Além disso, sendo toda vogal [coronal] também [-anterior], o espraiamento
desse traço vocálico faz com que a articulação primária consonantal passe a ser [-
anterior].
Para a consoante complexa /dj/ passar à consoante africada /d/, novamente
considera-se o que propõem Clements (1991) e Bisol & Hora (1993): promoção do
traço secundário [coronal] à articulação primária e posterior cisão no segmento. Após o
espraiamento do traço [coronal] da vogal /i/ ou da semivogal /j/ seguintes à consoante
plosiva coronal, a africada /d/, que possui sequências de diferentes traços, com valores
fricativa // a partir da perda total do elemento plosivo de sua estrutura (vejam-se
Figuras 23 a 27).
Por fim, na sequência /sj/ em onset medial, que também se fonologiza em //, a
fricativa alveolar possivelmente tenha sofrido influência tanto do traço [-anterior] como
do traço [+ voz] do segmento vocálico palatal, influenciando uma reestruturação da
fricativa, que passa de alveolar para palatal.
Assim, é possível identificar que para a fonologização do fonema //
130
[coronal], é responsável pelo surgimento de uma nova classe dentro das [-soantes]. Em
relação à Escala de Robustez, é possível constatar que a coocorrência dos traços
[coronal,-soante] dá base para a expansão do sistema: estes são traços que ocupam o
mais alto nível da hierarquia proposta por Clements (2009) – veja-se Quadro 3.
A nasal palatal tem sua origem restrita ao contexto de onset medial, visto que as
palavras que, no português, começam por este segmento são empréstimos de outras
línguas. Além disso, nos empréstimos, para desfazer esse onset absoluto não atestado na
língua portuguesa, normalmente os falantes tendem a inserir uma vogal epentética antes
da palatal nasal, assim como também ocorre com a lateral palatal. Apesar de serem três
as sequências que dão origem a este segmento, todas elas acabam convergindo para um
mesmo caminho, devido à atuação dos mesmos traços, por isso as suas etapas
assemelham-se, conforme pode ser visualizado no Quadro 40.
percurso, já que há apenas uma inversão na ordem dos segmentos envolvidos, cujas
características fonológicas são praticamente idênticas. Adotando a proposta de
complexidade da estrutura interna da consoante palatal nasal (WETZELS, 1992), o
processo de palatalização em análise dá-se a partir do espraiamento do nó Vocálico do
segmento palatal para o PC da consoante nasal precedente, dando origem, assim, a um
131
segmento com dupla articulação: um consonantal e outra vocálica.
132
Em relação a /n/ como uma das bases da fonologização de //, o primeiro
processo pelo qual a sequência passa é a vocalização da plosiva velar //, conforme
referem Coutinho (1979), Williams (2001), Ilari (2008). A partir daí, o caminho seguido
é o mesmo verificado nas sequências anteriores: espraiamento do nó Vocálico do
segmento palatal para o PC da consoante nasal, originando um segmento com dupla
articulação: um consonantal e outra vocálica (consoante complexa).
Assim, é possível identificar que uma mudança no traço de ponto de articulação
(alveolar > palatal), juntamente com a atuação dos traços [-anterior] e [-contínuo]
compõem o processo de fonologização de // quando sua origem é uma sequência de
nasal com traço [+anterior] e vogal palatal, que inerentemente porta o traço [+contínuo].
De acordo com os pressupostos de Clements (2009), mais uma vez se confirma o
funcionamento do sistema de acordo com o Princípio de Economia de Traços no
processo evolutivo da língua, no sentido de que há uma maximização das combinações
dos traços já ativos. Além disso, nesse processo de fonologização de um novo
segmento, há a manutenção dos traços [+soante] e [coronal], que pertencem ao mais alto
nível da Escala de Robustez; assim, esse processo diacrônico evidencia, assim como os
outros já aqui apresentados, a tendência à preservação dos traços mais robustos nos
casos de fonologização de segmentos.
Quando a fonologização de // tem sua origem em uma sequência de plosiva
velar surda [-soante, dorsal] e nasal alveolar [+soante, coronal], a primeira consoante
sofre a influência do traço [+vocoide], passando então a uma semivogal palatal; os
traços da nasal são mantidos [+soante, coronal], porém há uma mudança no ponto de
articulação por influência do segmento vocálico (alveolar > palatal) e o traço [-anterior]
atua decisivamente na implementação do novo segmento. Todo esse “movimento”
ratifica a busca pela maior combinação possível dos traços existentes no sistema, o que
está de acordo com o princípio de Economia de Traços de Clements (2009).
133
Quadro 41: Fonologização da lateral palatal //
As sequências de consoantes das quais surgiu o // são /kl/, /l/, /pl/, /bl/, /tl/. É
53
A Escala de sonoridade de Bonet e Mascaró (1996) apresenta o grau de sonoridade das classes de
segmentos: plosivas – 0; fricativas e “r” forte – 1; nasais – 2; líquidas laterais – 3; glides e “r” fraco – 4;
vogais – 5.
134
ocidentais, de onde surgiu o galego-português, de falares do centro da Península, de
onde provém o castelhano, por exemplo. O autor supõe que provavelmente nessa época
tenha ocorrido a evolução do grupo consonantal /kl/ e, segundo ele, após a síncope da
vogal /u/, a plosiva /k/ passa a iode, formando uma nova sequência /jl/.
Possivelmente, em uma primeira etapa, a sequência presente no referido
contexto tenha sido /ll/. O /k/ passaria a /l/, primeiramente, por um processo de
assimilação: em formalização pela Geometria de Traços, a lateral alveolar espraia todo
o seu nó de raiz para a plosiva, formando assim um segmento idêntico. Borges (1996)
apresenta vários casos em que, na diacronia do português, é possível considerar-se a
ocorrência de assimilações totais de traços entre segmentos adjacentes, como n > l e r >
l. No primeiro contexto, assim como o caso aqui analisado, a formação de uma
sequência consonantal tendo como um dos segmentos a lateral /l/ ocorre a partir da
queda de uma vogal interveniente (n > l: molinariu > *molnariu > *mollairo > moleiro;
lunula > *lulla > lula; coronula > *corolla > corola; esmolina > *esmolla > esmola; r >
l: per+lo > pello > pelo).
Quando a lateral alveolar /l/ espraia todo o seu nó de raiz para a plosiva, ocorre o
desligamento de toda a característica estrutural que está imediatamente abaixo e que
caracteriza o segmento /k/, mantendo-se apenas a unidade de tempo fonológico, a qual,
por sua vez, se liga ao nó de raiz do segmento imediatamente adjacente /l/, formando-
se então uma sequência de duas consoantes idênticas, o que seria a primeira etapa do
processo que culminará em uma palatalização. Porém, sabe-se que uma sequência desse
tipo viola um princípio fundamental da Teoria Autossegmental: o Princípio do Contorno
Obrigatório (OCP); por isso, como segunda etapa do processo em questão, ter-se-ia uma
dissimilação. Assim, o traço de raiz [-vocoide] do primeiro /l/ passaria a [+vocoide],
motivado pela necessidade de não haver violação ao OCP. Segundo Clements & Hume
135
(1995) e Matzenauer (2005, p.66), muitas são as línguas que fazem uso do processo de
dissimilação para não incorrer em uma violação ao Princípio do Contorno Obrigatório.
A mudança de valor do traço [vocoide] do segmento implica a inserção de um nó
Vocálico potencial em razão dos traços [+ soante] e [+aprox], presentes na raiz, fazendo
surgir a semivogal [j], que mantém o traço [coronal] em sua estrutura, porém agora
imediatamente abaixo do nó ponto de vogal, e o traço [anterior], especificado agora
como [-anterior] também em razão da mudança do traço [vocoide] na raiz do segmento
(toda vogal é [-anterior]).
Após essa segunda etapa, na qual o primeiro segmento da sequência /ll/ passa a
/j/, tem-se uma nova sequência: /jl/. A última etapa do processo de evolução da
sequência /kl/, agora alterado para a sequência /jl/, configura o surgimento de um novo
segmento: a lateral palatal //, motivado pela presença da semivogal palatal /j/, que
136
Após o espraiamento do nó Vocálico da semivogal palatal, é desencadeada uma
reorganização das estruturas envolvidas, culminando em um novo segmento, o //, que
possui em sua estrutura interna uma dupla articulação (WETZELS, 1992): uma
consonantal e uma vocálica; ocorre o desligamento da estrutura do segmento /j/ acima
do nó Vocálico; esse nó Vocálico passa a ficar vinculado à estrutura da consoante
lateral, dando origem à lateral palatal //, aqui configurada como consoante complexa
(Figura 34).
137
vocálica. A estrutura da lateral palatal considerada como segmento complexo permite
entender-se por que, na aquisição da fonologia do português, muitas vezes no lugar do
segmento consonantal é produzido um glide [j]: é apenas o nó Vocálico dessa estrutura
consonantal que se manifesta (MATZENAUER, 1999).
combinação possível dos traços existente no sistema, o que está de acordo com o
princípio de Economia de Traços de Clements (2009).
As mudanças sofridas pelo sistema consonantal do português, ao longo de sua
evolução, sinalizam basicamente dois movimentos dentro do sistema: (a) busca de
simetria no interior das classes de segmentos e (b) busca de expansão do sistema pela
emergência de uma nova classe de segmentos.
O primeiro é o que se verifica na fonologização de /v/ e /z/: há a busca de
simetria no interior da classe das consoantes [-soante], cujo equilíbrio foi alcançado por
meio do preenchimento de lacunas existentes, já que o inventário contava com /f/ e /s/.
138
Os traços implicados nesses casos de fonologização já eram pertinentes no sistema,
como o [+voz], no processo de sonorização, ou ainda o traço [+contínuo], no processo
de fricativização.
Pelo movimento de expansão do sistema, visível a partir da emergência de uma
nova classe, o sistema do português recebeu a fonologização das palatais. Para a
fonologização das palatais [-soante], o traço [coronal] impera como o gatilho desse
processo, acompanhado ainda pelos traços [+contínuo] e [-anterior]; para a
fonologização das palatais [+soante], o traço [- anterior] mostra-se atuante, enquanto os
traços [coronal] e [± contínuo] se mantêm inalterados.
Além disso, cabe mencionar também as mudanças ocorridas em se considerando
o ponto de articulação das consoantes: apenas no processo de sonorização, não há
alteração do ponto, tomando-se o contexto de origem da fonologização e o seu
resultado; já a fricativização e a palatalização implicam modificações no ponto de
articulação dos segmentos.
Observada a constituição do sistema consonantal do português sob o prisma do
modelo de Clements (2009), relativo à formação de sistemas fonológicos, vê-se que o
movimento diacrônico seguiu em boa parte as tendências das línguas quando da
composição de seus inventários, descritas por meio dos Princípios Fonológicos
Baseados em Traços. Na diacronia do português, tais Princípios sinalizam tendências
consistentemente confirmadas, se observada a atuação dos traços nos processos
envolvidos nos casos de fonologização descritos e analisados nesta pesquisa.
Por exemplo, os contrastes estabelecidos na busca da expansão do sistema dão-
se por meio do estabelecimento de contrastes novos por meio da atuação dos traços
presentes nos mais altos níveis da hierarquia de robustez de traços (mas não do 1º
nível), como [±anterior] e [±contínuo], inserindo-se no grupo de contrastes altamente
favorecidos nos inventários das línguas, o que é previsto pela Escala de Robustez. Além
disso, a utilização de traços já ativos na língua de modo a maximizar as combinações
possíveis também é um movimento que se faz presente na história da constituição do
sistema consonantal do Português, no sentido de que traços como [+voz] e [+contínuo],
por exemplo, passam a ser mais amplamente combinados, em novas coocorrências de
traços, o que indica maior economia da língua, de acordo com o Princípio de Economia
de Traços.
Clements (2009) aponta que as línguas tendem a evoluir na direção dessa
economia, no sentido de passarem a ter contrastes estabelecidos por traços já existentes
139
em sua gramática e, também, no sentido de eliminarem traços responsáveis por um
único contraste: é o que prevê o Princípio de Economia de Traços.
Por fim, cabe apontar que a continuidade da análise poderá evidenciar a atuação
de outros princípios do modelo de Clements (2009) na evolução do sistema consonantal
do português. Pode-se aventar, por exemplo, que o Princípio de Reforço Fonológico,
que refere a necessidade que as línguas às vezes têm de licenciar a ativação de traços
considerados mais marcados, a fim de reforçar contrastes perceptuais mais fracos,
justifica a ativação do traço [+contínuo] que, embora considerado mais marcado, atua
de modo significativo em muitos dos casos de fonologização ocorridos na evolução do
sistema consonantal do português.
140
segmentos. Nos casos de fonologização na diacronia do português tratados neste estudo,
evidencia-se que os novos fonemas inseridos no inventário fonológico ao longo do
processo evolutivo do sistema consonantal do português são produtos, em sua maioria,
de novas combinações de traços já pertinentes na língua54.
e //. Cada um desses acréscimos ao sistema fonológico encontra relação direta com a
54
Dos traços que integram os segmentos fonologizados no português, apenas o traço [anterior] não era
pertinente no sistema consonantal do latim.
55
O traço [anterior] não era responsável pelo estabelecimento de contraste no sistema do latim, uma vez
que não havia, no inventário consonantal latino, coronais [-anteriores]. Assim, o traço [+anterior] acabava
sendo redundante, já que toda consoante com traço [labial] comporta também o traço [+anterior], ao
passo que toda consoante com traço [dorsal] comporta o traço [-anterior].
141
consoantes: nas obstruintes e nas consoantes soantes.
classe das obstruintes passou a contar com o mesmo número de segmentos plosivos e
fricativos, todos distribuídos em pares com contraste estabelecido pelo traço [voz].
Considerando-se o português arcaico como etapa intermediária da evolução do sistema
consonantal do português moderno, é possível entender que o jogo de equilíbrio e
desequilíbrio no sistema, apontado por Martinet (1973), pode ser identificado se forem
considerados os processos de fonologização e desfonologização ocorridos e que
constituem as mudanças estabelecidas no inventário consonantal desde o latim até o
português56.
56
Embora não seja o foco deste trabalho a análise dos casos de desfonologização na diacronia do
português, é importante para este estudo que tal conceito seja resgatado ao tratar-se daquilo que Martinet
classifica como jogo de equilíbrio e desequilíbrio através do qual todo e qualquer sistema se constitui.
Assim, um caso evidente de desfonologização na diacronia do português é o das geminadas: no momento
em que o traço de [quantidade] perde o seu papel de estabelecimento de contraste, os fonemas que
dependiam deste traço para figurarem em uma relação de oposição acabam reduzindo-se a consoantes
simples.
142
consoantes na aquisição do sistema consonantal do PB são de três tipos:
Tais considerações são retomadas neste estudo porque parecem também orientar
os caminhos percorridos na evolução do sistema consonantal do português. Os tipos de
“pressão” que conduzem os processos de fonologização parecem ser de mesma natureza
na diacronia e na aquisição. Além disso, é possível estabelecer ainda uma relação com
o ordenamento da emergência das consoantes que integram gradativamente os
inventários das línguas, também na aquisição, apresentado por Matzenauer (op. cit.) em
referência às observações feitas por Jakobson (1968 [1941]):
143
sistema consonantal do português arcaico. Aliás, o traço [-anterior] foi o principal
atuante no processo de fonologização da classe das palatais.
A fonologização dos segmentos /z/, //, //, // e // no sistema consonantal do
144
dos novos fonemas integrantes do sistema consonantal do português. O que se pretende
é explicitar, a partir das análises que evidenciarão o tipo de coalizão estabelecida entre
os traços, como os Princípios fonológicos propostos por Clements podem ter papel
fundamental nos casos de fonologização identificados na diacronia do português.
Para tanto, serão retomadas as geometrias de traços já apresentadas na Seção 4.1,
a fim de que possam ser explicitados, além dos tipos de coalizão ocorridos, também as
novas correlações estabelecidas entre os traços, que permitiram a integração de novos
fonemas no inventário fonológico do português. É importante salientar que vão ser aqui
destacadas apenas as etapas evolutivas pertinentes para evidenciar o movimento de
traços no processo que deu origem a consoantes do português que não integravam o
inventário de segmentos do latim.
A linha de análise a ser seguida pressupõe que os traços da estrutura interna dos
segmentos envolvidos no processo evolutivo sejam examinados à luz dos Princípios
Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009): Economia de Traços, Evitação
de Traços Marcados, Robustez e Fortalecimento Fonológico57. Assim, a fonologização
de cada um dos segmentos que se originou de sequências latinas será analisada, nesta
seção, com base no tipo de coalizão ocorrido entre os traços envolvidos e nas
consequentes correlações estabelecidas; além disso, serão buscadas evidências sobre a
pertinência dos Princípios Fonológicos Baseados em Traços nesse movimento que,
envolvendo traços, permitiu a fonologização na diacronia do português.
57
Para uma caracterização dos Princípios, veja-se Seção 2.2.1.
58
Veja-se Seção 3.3
145
Figura 37: Coalizão de traços da sequência /kj/ na fonologização de /z/
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
146
Porém, o Princípio de Robustez parece não ser o único com papel fundamental
na determinação do tipo de movimento ocorrido no processo de coalizão entre os traços
dos segmentos das sequências latinas que se fonologizaram em segmentos que não
integravam o inventário de consoantes do latim. Quanto à preferência pela manutenção
do traço [coronal] em relação ao [dorsal]59, é possível entender ainda que o Princípio de
Evitação de Traços Marcados também possa estar sendo evidenciado como responsável
pelos caminhos seguidos pelo sistema em se considerando os casos de fonologização
ocorridos.
59
Conforme já referido neste trabalho, Williams (2001, p. 90) aponta para o fato de que a sequência [tj] já
no latim vulgar, passou a ser utilizada no lugar de [kj], sem distinção.
60
A expansão do sistema dá-se dentro de uma classe já existente, que é a classe das fricativas.
61
Clements (2009) propõe uma lista que apresenta quais são os traços considerados mais marcados na
constituição dos inventários consonantais das línguas: [+soante], [+contínuo], [+nasal], [+estridente],
[+posterior], [+lateral], [glote aberta], [glote constrita].
147
sistema62. Assim, o Princípio de Economia de Traços de Clements também pode ser
evidenciado como determinante para o tipo de coalizão ocorrida na fonologização de
/z/, a partir da sequência /tj/63. Este também é um princípio que interage continuamente
com os demais, especialmente com o princípio de Robustez e o princípio de Evitação de
Traços Marcados, conforme já foi acima mencionado: ao mesmo tempo em que o
sistema busca uma combinação máxima dos traços ativos, os contrastes estabelecidos
pelos traços mais robustos são os favorecidos, e isso ocorre principalmente a partir de
valores não marcados.
das sequências kl, pl, fl, em onset absoluto ou, quando medial, após consoante. É
possível visualizar o tipo de coalizão de traços ocorrida se forem expostos, lado a lado,
os diagramas arbóreos da sequência consonantal e o segmento fonologizado, conforme
Figura 38.
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
62
O traço [+voz] era responsável pela oposição existente exclusivamente na classe das plosivas. Já o traço
[+contínuo], dentro da classe das [-soante], estabelecia a oposição somente entre fricativas, todas [-voz], e
plosivas.
63
Outro contexto de fonologização de /z/ são as sequências /ks/ e /sk/, ainda que representem um menor
número de ocorrências. Nestes casos, entende-se que tenha havido a suspensão da estrutura da plosiva e,
estando a referida sequência em contexto intervocálico, o traço [+voz] das vogais adjacentes acaba
motivando também o vozeamento da fricativa surda. Neste caso específico de fonologização de /z/, é
possível definir o Princípio de Economia de Traços como atuante no processo, visto que, pelo
aproveitamento de um traço já ativo no sistema, porém ainda pouco econômico, uma lacuna na classe das
fricativas é preenchida, permitindo a oposição [±voz] dentro desta classe e propiciando, novamente, um
maior equilíbrio na classe das [-soante], a partir do contraste proporcionado pelo traço [±contínuo].
148
Por meio da disposição apresentada na Figura 38, que representa em parte64 o
processo evolutivo da fonologização de // a partir da sequência /kl/, é possível
64
As possíveis etapas evolutivas envolvidas nos processos de fonologização tratados nesta pesquisa,
representadas por meio dos diagramas arbóreos, são apresentadas e analisadas na Seção 4.1. Neste
momento, interessa discutir a respeito dos tipos de coalizão ocorridos no processo evolutivo de
constituição do sistema consonantal do português, no sentido de explicitar quais traços de cada um dos
segmentos que dão origem aos novos fonemas estão presentes na estrutura arbórea dos segmentos
fonologizados.
149
nível (b) da hierarquia. Isso significa que o traço [-anterior] estabelece contrastes bem
mais específicos do que aqueles proporcionados pelos traços mais robustos, como é o
caso do [soante], que promove o contraste entre toda a classe de obstruintes e todas as
soantes.
150
português é /sj/, cujos diagramas arbóreos são apresentados na Figura 39, a fim de que
seja possível visualizar o tipo de coalizão de traços ocorrida neste processo.
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
151
aproveitamento dos traços [+contínuo] e [-anterior], que já estavam ativos no sistema,
porém combinavam-se minimamente no estabelecimento de oposições.
de três princípios gerais, que, segundo Clements (2009), respondem pela estruturação
dos inventários das línguas do mundo: o Princípio de Economia de Traços, o Princípio
de Robustez e o Princípio de Marcação de Traços. Assim, ao lado da tendência
estrutural de preenchimento de lacunas existentes em classes de segmentos, princípios
de caráter universal mostram-se também atuantes no processo de fonologização de
segmentos na diacronia do português.
segmentos, a saber /gi/, /dj/ e /sj/. Os diagramas arbóreos das duas primeiras são
apresentados nas Figuras 40 e 41.
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
152
Figura 41: Coalizão de traços da sequência /dj/ na fonologização de //
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
153
em relação ao traço [dorsal] presente na estrutura do segundo segmento, visto que este
último, por estar ausente no inventário de diversas línguas, é considerado um traço
marcado.
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
65
Considera-se latente a possibilidade do uso contrastivo do traço [±anterior] no sistema do latim, uma
vez que incluía consoantes coronais anteriores; havia, portanto, a latência do uso desse traço para o
estabelecimento de novas oposições no inventário segmental.
154
Assim como ocorre nos demais casos de fonologização atestados até aqui, os
traços de raiz do novo segmento têm como base aqueles presentes na estrutura do
primeiro fonema da sequência: [-soante], [-aprox] e [-voc]. Já a coocorrência [coronal, -
anterior] tem sua origem no segundo fonema da sequência, assim como o traço que dá a
característica de vozeamento [+voz] ao novo segmento.
66
Considerando o sistema consonantal do Português Arcaico, é possível identificar sete novos fonemas
que apresentam a coocorrência [-soante, coronal]: /ts/, /dz/, /z/, /t/, /d/, // e //.
155
Assim, identifica-se também, no caso de fonologização analisado, a ação do
Princípio de Economia de Traços, mais uma vez encaminhando um melhor
aproveitamento de traços já ativos no sistema, porém minimamente combinados. É esse
princípio que favorece a presença dos traços [-anterior] e [+voz] na estrutura do
segmento fonologizado, ainda que os mesmos sejam portadores de valores de traços
mais marcados e não estejam no topo da Escala de Robustez. Dessa forma, novamente é
possível evidenciar a coocorrência [coronal, -anterior] sendo mais ativa no sistema, no
sentido de que passa a responder pelo estabelecimento de contrastes antes não
identificados no sistema.
ao português mostra curso paralelo com a fonologização de //, também com a ação
Em relação à nasal palatal //, de acordo com a descrição dos dados apresentada
na Seção 3.3.3, sabe-se que três foram as sequências latinas que motivaram a sua
fonologização no português, a saber: /nj/, /in/ e /gn/. Embora sejam identificados três
contextos distintos, em todos eles o movimento entre os traços, ao que tudo indica,
parece ser o mesmo, visto que envolve um processo de assimilação de parte da estrutura
vocálica pela consoante, formando assim um segmento complexo67. Esse movimento
pode ser visualizado nas Figuras 43 e 44.
67
Inclusive na sequência /gn/ é este o movimento identificado, já que, de acordo com os dados, o
segmento [-soante, dorsal] da sequência passa a constituir-se pelos traços [+soante, coronal], ou seja,
acaba passando a glide e carrega em sua estrutura características vocálicas.
156
Figura 43: Coalizão de traços da sequência /nj/ na fonologização de //
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
157
O Princípio de Robustez favorece a manutenção dos traços [+soante] e [coronal],
por sua alta capacidade de estabelecimento de contraste dentro do sistema de consoantes
do português, já que são traços mais robustos, que ocupam o primeiro nível da Escala de
Robustez (veja-se Quadro 3). Esses resultados confirmam o poder de previsibilidade do
princípio em relação à constituição do inventário fonológico do português, em sua
diacronia: as mudanças ocorridas no sistema seguem a mesma tendência verificada na
constituição natural dos inventários das línguas, bem como no processo de aquisição, ou
seja, são privilegiados no processo de fonologização os traços responsáveis pelo
estabelecimento dos mais robustos contrastes dentro do sistema.
latim ao português evidenciam, assim como na fonologização das fricativas palatais // e
68
Segundo Clements (2009), o [coronal] é o traço default, não marcado, uma vez que está presente no
inventário de todas as línguas, diferentes dos traços [labial], que está presente em algumas, e o [dorsal],
presente em outras, considerados, desta forma, como traços marcados.
158
//, também com a ação efetiva de três princípios gerais presentes no modelo de
preencher lacuna na classe das nasais, mas o faz de modo a atender princípios de caráter
universal.
Na fonologização de //, o contexto base para que o novo fonema possa emergir
no sistema do português é a sequência /lj/69, que se constitui também como uma das
etapas evolutivas das sequências /kl/, /l/, /pl/, /bl/, /tl/70. O processo evolutivo de
Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante
69
Embora as sequências de obstruinte mais lateral se constituam também como a origem do referido
fonema, evidencia-se nas Seções 3.3.3 e 4.1.6 que há uma assimilação total da estrutura da lateral, com
posterior vocalização, o que justifica ser apresentada a sequência /lj/ como a base para a fonologização de
//.
70
Segundo Williams (2001) e Teyssier (2008), o caminho evolutivo percorrido por essas sequências é o
mesmo: assimilação total da consoante lateral e subsequente vocalização.
159
Por meio do diagrama arbóreo do fonema //, bem como da representação do
/bl/. Porém, novamente a sua ação acaba sendo minimizada em relação a outros traços,
por força da atuação do princípio que orienta para um máximo aproveitamento dos
traços ativos no sistema, inclusive aqueles considerados mais marcados.
71
Apenas a fonologização de /v/ não encontra respaldo na coocorrência [soante, coronal], já que o
referido fonema é constituído pelo traço [labial].
160
rendimento em termos de contraste que proporcionava. Da mesma forma, o Princípio de
Economia de Traços orienta para o melhor aproveitamento do traço [+contínuo], ainda
que este seja considerado um traço marcado. Conforme Clements aponta, se um dado
valor de traço marcado está no ativo no sistema, caracterizando um número reduzido de
fonemas, a tendência é que o mesmo passe a constituir novas oposições, contribuindo
assim para a expansão do sistema, como o que ocorreu na diacronia do sistema
consonantal do português, especificamente com o traço [+contínuo], que no latim
caracterizava apenas duas fricativas (f, s)72, uma lateral (l) e dois glides (w, j). Por fim,
o referido princípio também milita a favor da combinação do traço [-anterior], que no
latim não estabelecia contrastes dentro do sistema, mas que no português, em
coocorrência com os traços [- soante, coronal], é responsável pela oposição existente
dentro da classe das fricativas, ao passo que em coocorrência com os traços [+soante,
coronal] estabelece contraste dentro da classe das laterais e das nasais, aumentando
assim o índice de economia do sistema consonantal do português.
na classe das laterais, como também respondeu a princípios gerais que norteiam a
organização de inventários segmentais das diferentes línguas humanas.
72
Se considerado o possível sistema do Latim clássico apresentado no Quadro 5, haveria ainda mais uma
fricativa: a dorsal //.
161
5 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
162
Na diacronia do português, então, pode interpretar-se que este é mais um
princípio que norteia o continuum evolutivo do sistema, visto que toda uma classe de
africadas foi inserida no sistema (no português arcaico), ainda que posteriormente
tenham evoluído para suas correspondentes fricativas. Para além da atuação isolada
desse princípio, é preciso considerar a possibilidade de sua interação, por exemplo, com
o Princípio de Evitação de Traços Marcados, visto que esses princípios geram
movimentos contrários no sistema, pois o Reforço pode dar-se a partir da inserção de
um traço marcado no sistema, para o que o Princípio de Evitação tenderá sempre impor
certas barreiras, o que pode explicar a supressão das africadas no sistema do português.
163
a um momento de plena simetria e estabilidade, embora os feixes de relações
mais firmes sejam sempre aqueles que menos se prestam a possíveis mudanças –
essa observação de Martinet pode ser relacionada diretamente com a noção de
robustez dos traços proposta por Clements.
164
português apresenta dezenove. Quanto ao número de traços, evidencia-se a perda do
contraste por meio do traço [quantidade] e do traço [estridente], por exemplo, no
entanto, observa-se também a maior produtividade do contraste de outros traços já
atuantes no inventário.
encaminhada por meio das novas correlações estabelecidas pelos traços [anterior], [voz]
e [contínuo], que são os responsáveis por grande parte da fonologização na diacronia do
português.
fricativa [coronal, +anterior], /s, z/; na classe das nasais, o novo contraste é estabelecido
por meio da coocorrência [coronal, ±anterior], opondo assim nasal [coronal, -anterior],
// e nasal [coronal, +anterior], /n/, o que também se efetiva na classe das laterais, em
que o contraste estabelecido se dá entre lateral [coronal, -anterior], // e lateral [coronal,
165
+anterior], /l/; por fim, na classe das palatais cabe ao traço [±soante], assim como ao
traço [±contínuo], o papel de contrastar /, / e /, /.
73
A única exceção a essa tendência parece ser as sequências /sk/ e /ks/, pelo fato de que, ao que indicam
as gramáticas históricas, o segmento plosivo caiu, fazendo com que não se constitua mais uma sequência
de fonemas, atuando, então, o processo de sonorização da fricativa /s/.
166
evolutivo que culmina com a fonologização, enquanto que os traços de ponto [coronal,
anterior] são oriundos do segundo fonema, que, nos casos da fonologização de
segmentos palatais, é uma vogal ou semivogal palatal. O traço [+contínuo] do segundo
fonema sempre supera o [-contínuo] do primeiro, nos casos em que tal oposição se faz
presente na sequência. Já o traço [+voz] provém ou do segundo fonema, ou dos
segmentos vocálicos adjacentes à sequência.
167
Tais apontamentos ratificam a ideia, aqui já defendida, de que as mudanças
ocorridas no inventário consonantal do português são implementadas não apenas pela
configuração estrutural do sistema, como defendiam os estruturalistas diacrônicos. A
motivação para a mudança não está, portanto, somente na existência de lacunas no
sistema e na busca pelo mantenimento ou restabelecimento de seu equilíbrio interno74,
mas no tipo de relação existente entre os traços que constituem os segmentos do
sistema. E as correlações possíveis entre os traços, por sua vez, são estabelecidas de
acordo com princípios fonológicos universais, que agem de forma integrada, uma vez
que não representam leis invioláveis, mas tendências universais na formação dos
inventários das línguas do mundo, evidenciadas também na constituição histórica do
sistema consonantal do português.
74
Segundo Lucchesi (2004, p. 146), o equilíbrio interno seria proporcional à simetria de sua configuração
interna.
168
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
169
Considerando o contexto silábico, a fonologização atuou na diacronia do
português da seguinte forma: em onset absoluto fonologizaram-se os segmentos //;
//;/v/, enquanto que em onset medial se fonologizaram //; //; //; //; /v/; /z/. É
170
o terceiro objetivo desta pesquisa: discutir o processo de fonologização de traços e de
segmentos consonantais na diacronia do português, à luz do Modelo de Princípios
Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009), verificando articulações entre
princípios universais e a evolução histórica do inventário fonológico do português. As
observações apresentadas sumarizam também as respostas obtidas na pesquisa para as
demais questões norteadoras desta Tese: que princípios e que traços, segundo a
proposta de Clements (2009), estariam atuando sobre as unidades do sistema
consonantal latino, condicionando o fenômeno da fonologização de segmentos na
história do português? A robustez dos traços, amplamente evidenciada como o
princípio que orienta os processos de expansão e solidificação dos sistemas em
aquisição, pode ter um papel igualmente fundamental em se tratando das mudanças
sofridas pelo sistema consonantal do latim? Pela coocorrência de traços, é possível
explicar os caminhos delineados na evolução das consoantes do latim ao português, em
se tratando da expansão do sistema?
172
BIBLIOGRAFIA
Bisol, L.; HORA, D. da. Palatalização da oclusiva dental e fonologia lexical. Actas do
IX Encontro da Associação Portuguesa de Linguística. Coimbra: APL, p. 61-80, 1993.
173
no português do Brasil. In: ABAURRE, M. B & RODRIGUES, A. (orgs.) Gramática do
português falado. v. VIII: novos estudos descritivos. Campinas: UNICAMP/FAPESP,
2002.
CHEN, M., WANG, W.S.-Y. Sound change: actuation and implementation. Language
51(2), 255—281, 1975.
75
Foi consultada também a versão de 1985.
76
Foi consultada também a versão de 1979.
174
CHOMSKY, N.; HALLE, M. The Sound Pattern of English. New York: Harper and
Row. 1968.
CLEMENTS,G.N & HUME, E.V. The internal organization of speech sounds. In:
GOLDSMITH, J.(ed.) Handbook of Phonological Theory. Oxford: Blackwell, 1995.
77
Foi consultada também a versão de 1976.
175
DIAS, E. F. Processos de palatalização das consoantes velares e alveolares no português
arcaico / Elaine Ferreira Dias. Belo Horizonte, 137f. PUC Minas – Belo Horizonte,
2009.
FARIA, E. Fonética histórica do latim. 2. ed., rev. e aum. Rio de Janeiro: Acadêmica,
1957.
HARRIS, J. Syllable Structure and Stress in Spanish. A non linear analisys. Cambridge,
Mass.: MIT Press, 1983.
176
_____________. Child language, aphasia and phonological universals. The Hague:
Mouton, 1968.
177
______________. Uma proposta de Escala de Robustez para a aquisição fonológica do
PB. Revista Letrônica, Porto Alegre v.3, n.1, p.64, julho 2010.
78
Também é referida a versão de 1973.
178
2008.
179
BISOL, L. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 4. ed. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2005.
SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral. 34. ed. Organizado por Charles Bally e
Albert Sechehaye, com a colaboração de Albert Riedlinger. Prefácio à edição brasileira:
Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Cultrix, 2012.
180
TEYSSIER, P. História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, [1997] 2007.
WANG, W. S-Y. Competing changes as a cause of residue. Language 45. p. 9-25. 1969.
181