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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS

ALINE NEUSCHRANK

Fonologização na diacronia: do Latim ao Português Moderno

PELOTAS, RS
2015

1
ALINE NEUSCHRANK

Fonologização na diacronia: do Latim ao Português Moderno

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Letras da Universidade Católica de Pelotas
como requisito parcial à obtenção do título de
Doutora em Letras.
Área de concentração: Linguística Aplicada
Linha de pesquisa: Aquisição, Variação e Ensino

Orientadora: Profª. Drª. Carmen Lúcia Barreto


Matzenauer

PELOTAS, RS
2015

2
AGRADECIMENTOS

Enfim, chegou o momento de agradecer, ainda que pareçam faltar palavras para tanta
gratidão que tenho por demonstrar...

Agradeço à minha família, em especial aos meus pais, Cristina e Alvacir, os que
primeiro me incentivaram a desenvolver o gosto pelos estudos: sem esse primeiro passo,
talvez eu nem estivesse vivendo este momento hoje.

Ao meu esposo, Ricardo, que compartilhou comigo, nesses três anos e meio de
Doutorado, meus anseios, angústias, conquistas, e que acima de tudo sempre teve uma
palavra de incentivo, nas horas mais difíceis para me motivar, e nas horas boas para
conservar a serenidade. Obrigada por todo amor, carinho e compreensão desmedidos.

À minha orientadora, professora Carmen Matzenauer, não somente pelas orientações,


que foram fundamentais para a concretização deste trabalho, mas por sempre acreditar
que eu seria capaz de vencer os desafios que se apresentavam. Obrigada por
compartilhar seu conhecimento e, acima de tudo, sua amizade, em um momento tão
especial como este.

Aos amigos, os de longa e os de mais recente data, pelo constante incentivo e carinho.
Em especial às amigas Miriam e Roberta, com quem pude dividir alguns receios, mas
também muitas alegrias e conquistas da vida acadêmico-científica. Obrigada pelo apoio
e pela amizade sincera.

À amiga Liliane Prestes-Rodrigues, pela amizade verdadeira e pelo constante incentivo


nessa dura caminhada de crescimento profissional e científico. Obrigada por estar
sempre torcendo pelas minhas conquistas.

Às professoras Valéria Monaretto e Susiele Machry, pelo olhar atento ao texto


submetido à Qualificação e pelas valiosas contribuições, que com certeza permitiram o
amadurecimento deste trabalho. Obrigada por compartilharem seu conhecimento.

À professora Cíntia Alcântara e ao professor Paulo Borges, por terem aceitado o convite
para participar da banca e porque mais uma vez se prontificaram a contribuir com minha
pesquisa. Obrigada pela disposição de sempre.

3
Aos professores do PPGL-UCPEL, com quem pude compartilhar reflexões as quais me
fizeram amadurecer cientificamente. Em especial, agradeço ao professor Hilário Bohn,
exemplo de profissional, a quem tive o privilégio de acompanhar na disciplina de
Estágio em Docência e com quem aprendi muito sobre o que realmente significa “ser
professor”. Obrigada pela oportunidade de crescimento.

À Rosangela Pereira, secretária do PPGL, pela constante disposição e prontidão para


auxiliar em todos os momentos. Obrigada pela presteza de sempre.

À FAPERGS/CAPES, pela bolsa concedida, sem a qual o ingresso no Doutorado


provavelmente precisaria aguardar um pouco mais.

Enfim, agradeço a todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para que este
trabalho se concretizasse e para que mais essa etapa da minha vida fosse concluída, com
a certeza de que, independente da sinuosidade do caminho, o objetivo foi alcançado
fazendo-se o melhor.

4
Não basta saber, é preciso também aplicar.
Não basta querer, é preciso também fazer.
Johann Goethe

5
RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal apresentar pesquisa cujo foco é a descrição e
a análise da fonologização na evolução do sistema consonantal do latim ao português, a
partir de material coletado por meio de revisão bibliográfica em manuais e gramáticas
históricas. A fonologização como centro de um estudo diacrônico justifica-se pelo papel
fundamental na constituição da história das línguas, uma vez que é responsável pela
alteração dos inventários fonológicos, com o preenchimento de lacunas existentes no
sistema, seja pela inserção de novos segmentos ou até mesmo pela criação de toda uma
classe de segmentos inexistentes. Apesar de ser um processo essencial na estruturação
dos inventários das línguas, poucos são os trabalhos que exploram sua caracterização e
funcionamento. A explicitação dos processos fonológicos envolvidos e dos traços
distintivos atuantes no referido fenômeno é guiada pelos pressupostos da teoria
Autossegmental (CLEMENTS e HUME, 1995), mais especificamente com base no
Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009). Os dados
foram organizados de forma a explicitar a origem dos novos fonemas do português, o
tipo de processo atuante (sonorização, fricativização, consonantização, palatalização), o
papel dos traços no processo de mudança e as possíveis etapas evolutivas que
culminaram na implementação de novos fonemas no inventário do português, em se
comparando com o sistema consonantal do Latim. A análise dos dados permitiu
concluir que a atuação do Princípio de Economia de Traços e do Princípio de Robustez,
segundo o Modelo de Clements (2009), é tendência atestada na diacronia da língua.
Além disso, foi possível identificar basicamente dois movimentos que guiam a evolução
do sistema consonantal analisado: um que visa à simetria do sistema, favorecendo o
preenchimento de lacunas existentes no inventário fonológico pela expansão do uso
contrastivo de traço já pertinente na gramática, e outro que milita a favor da expansão
do sistema pela criação de novas classes de segmentos. Dos dois movimentos, resultam
novas oposições, estabelecidas tanto por meio da atuação de traços não contrastivos no
sistema de origem, como por traços que, já pertinentes, passam a figurar em novas
coocorrências; nos dois casos, tem-se a atuação de princípios fonológicos universais,
influenciando na escolha e no funcionamento dos traços. Como consequência da ação
de princípios universais subjacentes à fonologização, as análises evidenciaram que não
apenas a estrutura do sistema do latim motivou esse fenômeno na diacronia do
português. Os resultados mostraram que o funcionamento dos traços é capaz de tornar
explícitas as duas forças que estão subjacentes ao processo de fonologização na
evolução do sistema consonantal do português: a estrutura lacunar do sistema que lhe
deu origem e os princípios universais que representam tendências na constituição dos
inventários das línguas do mundo.

Palavras-chave: Fonologização; Diacronia do Português; Sistema Consonantal; Traços


Distintivos; Princípios Universais.

6
ABSTRACT

This paper aims to present a research which focuses on the description and analysis of
phonologization in the evolution of the Latin consonant system to Portuguese, from
material collected through literature review on manuals and historical grammars. The
phonologization as the center of a diachronic study is justified by its key role in the
establishment of the history of languages, since it is responsible for changing the
phonological inventories, to fill gaps in the existent system, either by inserting new
segments or even creating a whole class of nonexistent segments. Despite of being an
essential process in the structuring of language inventories, there are few researches that
explore its characteristic and function. The explanation of phonological processes
involved and the active distinctive features in the phenomenon is guided by the
assumptions of the Autosegmental theory (CLEMENTS and HUME, 1995), specifically
based on the Model of Feature-Based Phonological Principles (CLEMENTS, 2009).
Data were organized to explain the origin of new Portuguese phonemes, the kind of
active process (sonorization, fricativization, consonantization, palatalization), the
feature role in the change process, and the possible evolutionary steps that led to the
implementation of new phonemes in the Portuguese inventory, when comparing to the
Latin consonant system. Data analysis showed that the performance of Economy
Feature Principle and the Robustness Principle, according to the model of Clements
(2009), is an attested trend in diachronic language. In addition, it can be basically
identified two movements that guide the evolution of the analyzed consonant system:
one that aims at the system symmetry, favoring the filling of gaps in the phonological
inventory by the expansion of contrastive use of features relevant to the grammar, and
another that militates in favor of a system expansion by creating new classes of
segments. From the two movements, new oppositions are resulted, and both are
established through actions of non-contrastive features in the source system, as well as
through features that, already relevant, shall be placed in new co-occurrences; in both
cases, there is the role of universal phonological principles, influencing features’ choice
and function. As a result of the action of universal principles underlying
phonologization, the analysis did not only show the structure of the Latin system which
motivated this phenomenon in the diachronic Portuguese. The results unveiled that the
function of features are able to make explicit the two forces that underlie the
phonologization process in the evolution of the Portuguese consonant system: the
incomplete structure of the system that gave rise to it, and the universal principles that
represent trends in the constitution of World languages inventories.

Keywords: Phonologization; Portuguese Diachrony; Consonant System; Distinctive


Features; Universal Principles.

7
SUMÁRIO

RESUMO ...................................................................................................................................... 6

ABSTRACT .................................................................................................................................. 7

SUMÁRIO .................................................................................................................................... 8

LISTA DE QUADROS ............................................................................................................... 10

LISTA DE FIGURAS ................................................................................................................. 12

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 13

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................................ 16

2.1 A LINGUÍSTICA HISTÓRICA E OS ESTUDOS SOBRE MUDANÇA ........................................... 16


2.1.1 O início dos estudos históricos: do método comparativo ao manifesto neogramático
............................................................................................................................................ 17
2.1.2 A história das línguas sob uma perspectiva imanentista........................................... 20
2.1.3 Uma concepção mais integrativa para os estudos diacrônicos ................................ 24
2.2 DIACRONIA DAS LÍNGUAS ROMÂNICAS ............................................................................. 31
2.2.1 Contexto de origem das línguas românicas: Latim clássico e Latim vulgar............. 32
2.2.2 Formação das línguas românicas: fatores internos e fatores externos da mudança 33
2.2.3 Fases da evolução das línguas românicas: do latim ao português ........................... 40
2.3 FONOLOGIZAÇÃO .............................................................................................................. 45
2.4 OS TRAÇOS COMO OBJETO DE ANÁLISE DA LINGUÍSTICA .................................................. 49
2.4.1 Modelos não lineares: Teoria Autossegmental ......................................................... 51
2.4.2 Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009) ........ 58

3 DELIMITAÇÃO DO CORPUS E DESCRIÇÃO DOS DADOS ....................................... 67

3.1 DESCRIÇÃO DOS DADOS .................................................................................................... 68


3.1.1 Sistema consonantal latino: latim clássico x latim vulgar ........................................ 69
3.1.2 Sistema consonantal do português ............................................................................ 72
3.1.2.1 O português arcaico: visão geral e variações do sistema consonantal ............... 72
3.1.2.2 O sistema consonantal do português contemporâneo......................................... 82
3.2 DO LATIM AO PORTUGUÊS: SEGMENTOS CONSONANTAIS E PROCESSOS ........................... 85
3.2.1 Plosivas surdas .......................................................................................................... 87
3.2.2 Plosivas sonoras ........................................................................................................ 88
3.2.3 Fricativas surdas ....................................................................................................... 90
3.2.4 Fricativas sonoras ..................................................................................................... 91

8
3.2.5 Nasais ........................................................................................................................ 93
3.2.6 Laterais ...................................................................................................................... 93
3.2.7 Vibrantes.................................................................................................................... 94
3.2.8 Origens do sistema consonantal português ............................................................... 95
3.3 ETAPAS EVOLUTIVAS DO SISTEMA CONSONANTAL DO PB................................................ 98
3.3.1 Sonorização ............................................................................................................... 98
3.3.2 Fricativização ............................................................................................................ 99
3.3.3 Palatalização ........................................................................................................... 101
3.3.4 Consonantização ..................................................................................................... 106

4 ANÁLISE DOS DADOS ...................................................................................................... 110

4.1 A FONOLOGIZAÇÃO CONSONANTAL: DO LATIM AO PORTUGUÊS .................................... 110


4.1.1 Sobre a fonologização da fricativa /v/ .................................................................... 111
4.1.2 Sobre a fonologização da fricativa /z/ ..................................................................... 114
4.1.3 Sobre a fonologização da fricativa palatal // ......................................................... 119

4.1.4 Sobre a fonologização da fricativa palatal surda // ............................................. 123

4.1.5 Sobre a fonologização da nasal palatal // ............................................................ 131

4.1.6 Sobre a fonologização da lateral palatal // .......................................................... 133

4.2 PRINCÍPIOS FONOLÓGICOS BASEADOS EM TRAÇOS E A CONSTITUIÇÃO DO INVENTÁRIO


CONSONANTAL NA DIACRONIA DO PORTUGUÊS ................................................................... 140

4.2.1 Correlações entre traços na constituição do inventário consonantal do Português


.......................................................................................................................................... 140
4.2.2 A fonologização de segmentos do português a partir de sequências do latim ........ 144
4.2.2.1 Coalizão de traços na fonologização de /z/ ...................................................... 145
4.2.2.2 Coalizão de traços na fonologização de // ...................................................... 148

4.2.2.3 Coalizão de traços na fonologização de // ...................................................... 152

4.2.2.4 Coalizão de traços na fonologização de // ...................................................... 156

4.2.2.5 Coalizão de traços na fonologização de // ...................................................... 159

5 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS.................................................................................... 162

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 169

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 173

9
LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – FREQUÊNCIA DE CONTRASTES – UPSID (CLEMENTS, 2009, P.44-45) ................................................. 62


QUADRO 2: CONSTRASTES ROBUSTOS ................................................................................................................. 62
QUADRO 3: ESCALA DE ROBUSTEZ (CLEMENTS, 2009, P. 46-47) ............................................................................ 63
QUADRO 4: SISTEMA CONSONANTAL DO LATIM CLÁSSICO........................................................................................ 69
QUADRO 5: SISTEMA CONSONANTAL DO LATIM VULGAR ......................................................................................... 70
QUADRO 6: MANUTENÇÃO E FORMAÇÃO DE CONSOANTES GEMINADAS LATIM-ITALIANO .............................................. 71
QUADRO 7: SISTEMA CONSONANTAL DO PORTUGUÊS ARCAICO (PRIMEIRA FASE).......................................................... 75
QUADRO 8: CONSTITUIÇÃO DAS CLASSES DE SEGMENTOS DE ACORDO COM O PONTO DE ARTICULAÇÃO (LATIM X PORTUGUÊS
ARCAICO – 1ª FASE) ......................................................................................................................................... 77

QUADRO 9: CONSTITUIÇÃO DAS CLASSES DE SEGMENTOS DE ACORDO COM O MODO DE ARTICULAÇÃO (LATIM X PORTUGUÊS
ARCAICO – 1ª FASE) ......................................................................................................................................... 78

QUADRO 10: SISTEMA CONSONANTAL DO PORTUGUÊS ARCAICO (SEGUNDA FASE) ....................................................... 80


QUADRO 11: CONSTITUIÇÃO DAS CLASSES DE SEGMENTOS DE ACORDO COM O PONTO DE ARTICULAÇÃO (PORTUGUÊS ARCAICO
– 1ª FASE X 2ª FASE) ........................................................................................................................................ 81
QUADRO 12: CONSTITUIÇÃO DAS CLASSES DE SEGMENTOS DE ACORDO COM O MODO DE ARTICULAÇÃO (PORTUGUÊS ARCAICO
– 1ª FASE X 2ª FASE) ........................................................................................................................................ 81
QUADRO 13: SISTEMA CONSONANTAL DO PB ....................................................................................................... 82
QUADRO 14: SISTEMA CONSONANTAL DO PB (MONARETTO, QUEDNAU E HORA, 2005) ............................................. 83
QUADRO 15: CONSTITUIÇÃO DAS CLASSES DE SEGMENTOS DE ACORDO COM O PONTO DE ARTICULAÇÃO (PORTUGUÊS ARCAICO
– 2ª FASE X PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO)......................................................................................................... 84
QUADRO 16: CONSTITUIÇÃO DAS CLASSES DE SEGMENTOS DE ACORDO COM O MODO DE ARTICULAÇÃO (PORTUGUÊS ARCAICO
– 2ª FASE X PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO)......................................................................................................... 84
QUADRO 17: CONSTITUIÇÃO DO SISTEMA CONSONANTAL DO PORTUGUÊS A PARTIR DO SISTEMA LATINO (ADAPTADO DE
NEUSCHRANK, 2011) ...................................................................................................................................... 95
QUADRO 18: EXEMPLOS DE SONORIZAÇÃO LATIM>PORTUGUÊS E PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO ................................... 99
QUADRO 19: DESENVOLVIMENTO DA SEQUÊNCIA TJ, EM CONTEXTO INTERVOCÁLICO (EXEMPLO: RATIONEM > RAZÃO)...... 100
QUADRO 20: ESQUEMA DE EVOLUÇÃO DAS SEQUÊNCIAS KL, PL E FL SEGUNDO WILLIAMS (2001) ................................. 102
QUADRO 21: SONORIDADE DA SEQUÊNCIA /KL/, SEGUNDO A ESCALA DE SONORIDADE DE BONET & MASCARÓ (1996) ... 102
QUADRO 22: SONORIDADE DA SEQUÊNCIA /KJ/, SEGUNDO A ESCALA DE SONORIDADE DE BONET & MASCARÓ (1996) ... 103
QUADRO 23: CONTEXTOS DE ORIGEM DE / / .................................................................................................... 103

QUADRO 24: EVOLUÇÃO DA SEQUÊNCIA GJ, SEGUNDO WILLIAMS (2001) ............................................................... 104
QUADRO 25: PROPOSTA DE EVOLUÇÃO DA CONSOANTE VELAR SEGUIDA DE VOGAL CORONAL, DE NEUSCHRANK (2011) ... 104
QUADRO 26: EVOLUÇÃO DA SEQUÊNCIA D_I,J .................................................................................................... 104
QUADRO 27: CONTEXTOS DE ORIGEM DO // .................................................................................................... 105

QUADRO 28: EVOLUÇÃO DE KL E TL, NO GALEGO-PORTUGUÊS E NO CASTELHANO (TEYSSIER, 2007) ........................... 105
QUADRO 29: ORIGENS DA NASAL PALATAL / / .................................................................................................. 106

10
QUADRO 30: ESTÁGIOS DA EVOLUÇÃO DE /N/ .................................................................................................. 106

QUADRO 31: EVOLUÇÃO DA SEMIVOGAL /J/ ...................................................................................................... 107


QUADRO 32: RESULTADOS DA EVOLUÇÃO FONÉTICA DE /W/ NAS LÍNGUAS ROMÂNICAS - ILARI (2008, P. 81) ................ 107
QUADRO 33: EVOLUÇÃO DA SEMIVOGAL /W/..................................................................................................... 107
QUADRO 34: FONOLOGIZAÇÃO NA DIACRONIA DO PB – PROCESSOS, ETAPAS E TRAÇOS .............................................. 110
QUADRO 35: O PROCESSO DE FONOLOGIZAÇÃO DO SEGMENTO /V/ ........................................................................ 112
QUADRO 36: O PROCESSO DE FONOLOGIZAÇÃO DO SEGMENTO /Z/ ........................................................................ 115
QUADRO 37: O PROCESSO DE FONOLOGIZAÇÃO DO SEGMENTO // ........................................................................ 119

QUADRO 38: PROCESSO DE FONOLOGIZAÇÃO DA FRICATIVA PALATAL SONORA // .................................................... 123

QUADRO 39: RESULTADO DA EVOLUÇÃO DA SEMIVOGAL /J/ - ADAPTADO DE ILARI (2008, P. 81) ................................ 129
QUADRO 40: FONOLOGIZAÇÃO DA NASAL PALATAL // ........................................................................................ 131

QUADRO 41: FONOLOGIZAÇÃO DA LATERAL PALATAL // .................................................................................... 134

11
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: DIAGRAMA ARBÓREO DE ACORDO COM CLEMENTS & HUME (1995) FONTE: CLEMENTS & HUME (1995) ............................. 53
FIGURA 2: REPRESENTAÇÃO DE SEGMENTO SIMPLES DE ACORDO COM CLEMENTS & HUME (1995) FONTE: MATZENAUER (2005) ............ 54
FIGURA 3: REPRESENTAÇÃO DE SEGMENTO COMPLEXO DE ACORDO COM CLEMENTS & HUME (1995) FONTE: MATZENAUER (2005)......... 54
FIGURA 4: GEOMETRIA DE UMA CONSOANTE PRÉ-NASALISADA DE ACORDO COM CLEMENTS E HUME (1995) FONTE: MATZENAUER (2005) 55
FIGURA 5: UMA RAIZ COM LIGAÇÃO DUPLA PARA A CAMADA TEMPORAL: SEGMENTOS GEMINADOS DE ACORDO COM CLEMENTS E HUME
(1995) ................................................................................................................................................................. 56
FIGURA 6: GEOMETRIA DE TRAÇOS DE SEGMENTOS QUE CONSTITUEM UMA CONSOANTE GEMINADA, SEM A OPERAÇÃO DO OCP................. 57
FIGURA 7: EVOLUÇÃO DA SEMIVOGAL /W/ PARA FRICATIVA /V/ ................................................................................................. 113
FIGURA 8: FRICATIVIZAÇÃO DE /B/ ...................................................................................................................................... 114
FIGURA 9: SONORIZAÇÃO DE /S/ ......................................................................................................................................... 116
FIGURA 10: SEQUÊNCIA /TJ/ E ESPRAIAMENTO....................................................................................................................... 116
FIGURA 11: CONSOANTE AFRICADA ALVEOLAR SURDA /TS/ ....................................................................................................... 117
FIGURA 12: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA AFRICADA ALVEOLAR SONORA /DZ/ .................................................................................. 117
FIGURA 13: DESLIGAMENTO DE BORDA DA AFRICADA ALVEOLAR SONORA /DZ/ E GEOMETRIA DE TRAÇOS DA FRICATIVA ALVEOLAR SONORA /Z/
.......................................................................................................................................................................... 118
FIGURA 14 PROMOÇÃO DA ARTICULAÇÃO SECUNDÁRIA ............................................................................................................ 120
FIGURA 15: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA AFRICADA /T/............................................................................................................ 121
FIGURA 16: DESLIGAMENTO DA BORDA ESQUERDA DO /T/ ...................................................................................................... 121
FIGURA 17: ESPRAIAMENTO DO TRAÇO [CORONAL] ................................................................................................................. 122
FIGURA 18: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA FRICATIVA PALATO-ALVEOLAR ......................................................................................... 122
FIGURA 19: SEQUÊNCIA [+ VOGAL CORONAL] ...................................................................................................................... 124
FIGURA 20: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO PARA O PC ........................................................................................................ 125
FIGURA 21: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA CONSOANTE PALATALIZADA /J/ ..................................................................................... 125
FIGURA 22: SUSPENSÃO DO TRAÇO [DORSAL] E REALIZAÇÃO DA ARTICULAÇÃO SECUNDÁRIA .............................................................. 126
FIGURA 23: CONSOANTE PALATALIZADA /DJ/......................................................................................................................... 127
FIGURA 24: PROMOÇÃO DA ARTICULAÇÃO SECUNDÁRIA ........................................................................................................... 127
FIGURA 25: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA CONSOANTE AFRICADA /D/ .......................................................................................... 128
FIGURA 26: DESLIGAMENTO DA BORDA ESQUERDA DE /D/ ..................................................................................................... 128
FIGURA 27: RESULTADO DO APAGAMENTO DA ESTRUTURA DO SEGMENTO PLOSIVO ........................................................................ 128
FIGURA 28: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /NJ/ .......................................................................................................... 132
FIGURA 29: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO ....................................................................................................................... 132
FIGURA 30: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA CONSOANTE NASAL PALATAL ........................................................................................... 132
FIGURA 31: PROCESSO DE ASSIMILAÇÃO-ESPRAIAMENTO DO NÓ DE RAIZ DO /L/ ............................................................................ 135
FIGURA 32: DISSIMILAÇÃO/MUDANÇA DO TRAÇO [VOCOIDE] E ATUALIZAÇÃO DO NÓ VOCÁLICO: ....................................................... 136
FIGURA 33: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO DE /J/ PARA /L/ .................................................................................................. 136
FIGURA 34: GEOMETRIA DE TRAÇOS DA LATERAL PALATAL // ................................................................................................... 137
FIGURA 35: ESPRAIAMENTO DO NÓ VOCÁLICO PARA O PC DA CONSOANTE ................................................................................... 137
FIGURA 36: LATERAL PALATAL ............................................................................................................................................ 138
FIGURA 37: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /KJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE /Z/ ........................................................................ 146
FIGURA 38: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /KL/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ........................................................................ 148
FIGURA 39: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /SJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ........................................................................ 151
FIGURA 40: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /I/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 152
FIGURA 41: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /DJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 153
FIGURA 42: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /SJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ........................................................................ 154
FIGURA 43: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /NJ/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 157
FIGURA 44: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /GN/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ...................................................................... 157
FIGURA 45: COALIZÃO DE TRAÇOS DA SEQUÊNCIA /KL/ NA FONOLOGIZAÇÃO DE // ....................................................................... 159

12
INTRODUÇÃO

Todas as línguas mudam com o passar do tempo, em todos os componentes que


as constituem. A percepção da mudança, aos usuários das línguas, torna-se mais
evidente no nível lexical, quando, por exemplo, é possível verificar a diferença entre
palavras de emprego atual e outras utilizadas por gerações anteriores; no entanto, os
outros níveis da estrutura das línguas, como o fonológico, o morfológico, o sintático e o
semântico, também são alvo de mudança no tempo. A mudança linguística foi, e
continua sendo, objeto de estudos históricos, os quais foram também acompanhados de
investigações comparativas, que logo de início permitiram, inclusive, falar-se em
famílias de línguas. Os estudos linguísticos que se preocupam com a mudança ao longo
do tempo foram definidos por Saussure como diacrônicos, em oposição aos estudos
sincrônicos, ou seja, estudos sobre um estado da língua (SAUSSURE, 2012[1916], p.
123-124).
A abordagem diacrônica permite a definição de estágios das línguas, com a
descrição dos diferentes fenômenos que os caracterizam. A perspectiva diacrônica tem-
se mostrado bastante satisfatória quando se busca particularmente a compreensão de
certos fenômenos recorrentes nos estágios das línguas, uma vez que as mudanças
ocorridas muitas vezes têm como base a repetição de fenômenos já identificados na
história. Além disso, conhecer a evolução de uma língua permite também o
estabelecimento de comparações entre diferentes sistemas linguísticos provindos de
uma fonte comum (como é o caso das línguas românicas, derivadas do latim),
permitindo, assim, a identificação de padrões de similaridade entre as línguas e também
características de singularidade de cada um dos sistemas. Ainda, a partir da
identificação desses padrões, é possível prever que caminhos poderão ser seguidos na
evolução linguística, quando identificados determinados comportamentos das línguas,
fazendo-se relação do nível da variação com o da mudança.
Reconhecendo a relevância das pesquisas diacrônicas, o presente estudo tem
como foco a história interna do sistema linguístico do Português, considerando mais
especificamente aspectos fonológicos do sistema analisado, a fim de explicitar como o
processo de fonologização atuou no caminho evolutivo dessa língua neolatina. Esta
investigação mostra-se importante no sentido de examinar o caminho da inclusão de
novos segmentos e o estabelecimento do equilíbrio na constituição do inventário
fonológico consonantal da língua em questão, considerando principalmente os

13
segmentos que, em se comparando o sistema atual do Português com o sistema do latim,
se integraram à sua gramática, como parte do processo evolutivo, uma vez que não
pertenciam ao inventário fonológico consonantal latino. Ao buscar o foco aqui referido,
o presente estudo segue o caminho inovador de propor análises com base em uma teoria
fonológica: a Teoria Autossegmental.
A Tese tem, como objetivo geral, propor a descrição, a análise, bem como a
formalização do processo evolutivo do sistema consonantal do português, considerando
sua constituição a partir do latim, sob a ótica dos pressupostos da Teoria
Autossegmental, com foco especial no processo de fonologização.
Mais especificamente, pretende-se:
(1) redefinir o sistema consonantal do latim e, desse ponto de partida, traçar o processo
evolutivo para o português com foco nos traços e processos envolvidos na mudança,
motivadores do processo de fonologização;
(2) analisar a evolução do sistema consonantal do português, formalizando por meio de
traços, em uma visão autossegmental (CLEMENTS e HUME, 1995; CLEMENTS,
2009), o fenômeno da fonologização, que determinou mudanças linguísticas no referido
sistema;
(3) discutir o processo de fonologização de traços e de segmentos consonantais na
diacronia do português, à luz do Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços
(CLEMENTS, 2009), verificando articulações entre princípios universais e a evolução
histórica do inventário fonológico do português;
(4) contribuir para os estudos sobre mudança, especificamente com base na Teoria
Autossegmental e no Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços
(CLEMENTS, 2009).
A fim de buscar atingir os objetivos propostos, esta pesquisa é guiada pelos
seguintes questionamentos:
(1) como se constitui a trajetória evolutiva do latim à língua românica em estudo, em
termos de traços e processos envolvidos no fenômeno da fonologização?
(2) que princípios e que traços, segundo a proposta de Clements (2009), estariam
atuando sobre as unidades do sistema consonantal latino, condicionando o fenômeno da
fonologização de segmentos na história do português?
(3) a robustez dos traços, amplamente evidenciada como o princípio que orienta os
processos de expansão e solidificação dos sistemas em aquisição, pode ter um papel
igualmente fundamental em se tratando das mudanças sofridas pelo sistema consonantal

14
do latim?
(4) pela coocorrência de traços, é possível explicar os caminhos delineados na evolução
das consoantes do latim ao português, em se tratando da expansão do sistema?
O presente trabalho organiza-se da seguinte forma: após apresentada a proposta
de pesquisa, bem como sua justificativa, objetivos e questões norteadoras, passa-se, no
capítulo 2, a uma explanação com base nos pressupostos teóricos que norteiam este
estudo, seção esta dividida em duas partes: a primeira propõe-se tratar das questões
relacionadas aos estudos diacrônicos em fonologia necessárias para que se alcancem os
objetivos aqui almejados, tratando de maneira geral a respeito das fases de evolução das
línguas românicas, mas especificamente do português, apresentando algumas
considerações a respeito de trabalhos que tratam do fenômeno da mudança na fonologia,
mais especificamente do processo de fonologização; a segunda parte apresenta os
fundamentos da Teoria Autossegmental, a fim de tecer considerações importantes sobre
o tratamento dado por essa abordagem para a mudança fonológica. Ao capítulo 3 cabe a
exposição dos procedimentos empregados no estudo, bem como a descrição dos dados
que servirão como base para a análise aqui proposta, caracterizados em termos de traços
e processos envolvidos no fenômeno da fonologização, que é o foco do trabalho. No
capítulo 4 está exposta a análise dos dados relacionados à constituição do sistema
consonantal do português. O capítulo 5 contém as discussões a respeito dos resultados
da análise realizada, buscando evidenciar a atuação dos Princípios Fonológicos
Baseados em Traços nos fenômenos diacrônicos relacionados à fonologização. No
capítulo 6 são apresentadas as considerações finais do trabalho, retomando-se os
objetivos, bem como as questões norteadoras da pesquisa, apresentando-se as principais
conclusões delineadas após a análise dos dados e discussão dos resultados. Na
Bibliografia encontram-se todas as obras consultadas e citadas neste trabalho.

15
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 A Linguística Histórica e os estudos sobre mudança

Em se tratando de mudança linguística, apesar de todos os estudos até então


elaborados neste âmbito, muitas são as questões ainda no aguardo de uma explanação
capaz de resolvê-las. Perguntas como "Por que as línguas mudam?”, “Como essas
mudanças podem ser mais adequadamente representadas?”, “Por que algumas mudanças
são absolutas, enquanto outras parecem afetar apenas um subconjunto de potenciais
alvos?", “Por que os inventários fonológicos podem ser acrescidos de novos segmentos
no decorrer da evolução das línguas?” e muitas outras tornam o terreno, no qual o
pesquisador em fenômenos da diacronia circula, bastante fértil em possibilidades de
estudo, ainda que esta também nem sempre seja uma tarefa muito fácil, devido ao alto
poder de observação da língua em seus mais variados estados ser imprescindível neste
tipo de abordagem.

A linguística diacrônica, como proposta por Saussure (2012, [1916]), ocupa-se


com o estudo das relações entre os termos sucessivos que substituem uns aos outros no
tempo. Todas as partes da língua estariam sujeitas a mudança e a cada período
corresponde uma evolução mais ou menos considerável, que varia em rapidez e
intensidade: “o rio da língua corre sem interrupção; que seu curso seja tranquilo ou
caudaloso é consideração secundária” (SAUSSURE 2012 [1916], p. 193).
De acordo com Mattos e Silva (2008, p. 41), é possível conceber a mudança
linguística por dois vieses: no sentido estrito, podendo ser trabalhada sob a orientação
da Linguística Sócio-histórica ou da Linguística Diacrônica; e no sentido lato, lidando
com dados datados e localizados, “como qualquer Linguística que trabalhe com corpus,
como a Dialetologia e a Sociolinguística Laboviana, a Etnolinguística e mesmo a teoria
da conversação, desde que use corpora”. Dessa forma, cabe salientar que a presente
pesquisa se localiza, então, dentro do viés estrito da Linguística Histórica, sob a
orientação da Linguística Diacrônica, já que não se vale de dados datados ou
informações de cunho social para proceder às análises pretendidas.
Nesta seção, apresenta-se, ainda que de forma sintetizada, o percurso formador
da Linguística Histórica, por meio da explanação a respeito dos principais nomes que,
de uma forma ou outra, contribuíram substancialmente para o desenvolvimento dos
estudos relacionados à história das línguas, tratando-se também sobre a forma como as
principais correntes teóricas conceberam os estudos diacrônicos.
16
Para tanto, essa apresentação está dividida em três partes, que correspondem aos
grandes períodos da linguística histórica. A primeira trata do início dos estudos
históricos, focando principalmente o método comparativo; a segunda apresenta as
principais ideias que conduziram os estudos diacrônicos pautados em uma perspectiva
imanentista da língua; a terceira condensa as principais contribuições dos estudos
diacrônicos a partir de uma visão mais integrativa, que concebe a mudança como um
evento condicionado por uma conjunção de fatores estruturais e sociais.

2.1.1 O início dos estudos históricos: do método comparativo ao manifesto


neogramático

O interesse pela história das línguas remonta à antiguidade, quando já os


filólogos alexandrinos estudavam as antigas fases da língua, além dos traços distintivos
dos dialetos gregos, como bem refere Câmara Jr (1975). Porém, o ano de 1786 é
comumente apontado como a data do início dos estudos relacionados à história das
línguas. O marco desse período coincide com a comunicação apresentada por William
Jones à Sociedade Asiática de Bengala, na qual destaca as muitas semelhanças entre o
sânscrito, o latim e o grego. Surge então, dessa percepção de possível parentesco entre
diferentes línguas, o interesse por estudos centrados na comparação entre línguas e,
consequentemente, a criação do método comparativo.
A publicação do texto Sobre a língua e a sabedoria dos hindus, de Friedrich
Schlegel (em 1808), é tomada como o ponto de partida dos estudos comparativistas na
Alemanha. No referido trabalho, Schlegel reforçou a tese de W. Jones de existência de
um parentesco entre o sânscrito, o latim e o grego, incluindo ainda o germânico e o
persa. Era preciso, então, desenvolver um trabalho de comparação entre as línguas, para
assim estabelecer seu parentesco e sua ascendência comum (FARACO, 2012 [2005]).
O desenvolvimento de tal programa de análise das línguas foi amplamente
explorado por Franz Bopp que, em 1816, publicou o livro Sobre o sistema de
conjugação da língua sânscrita em comparação com o da língua grega, latina, persa e
germânica. Neste estudo, Bopp demonstrou as correspondências sistemáticas existentes
entre as línguas analisadas, o que fundamentou a revelação empírica de seu real
parentesco. Estava, assim, criado o método comparativo, o procedimento central nos
estudos de linguística histórica. Segundo Câmara Jr (1975), é inegável a importância de
Bopp para o desenvolvimento das investigações em linguística histórica, embora,
conforme o autor, Bopp não tenha dado a devida importância às questões fonéticas das

17
línguas, centrando sua preocupação na morfologia como um estudo estrutural da
palavra.
[...] Apesar de suas deficiências, temos que atribuir a Bopp o mais
importante papel neste tipo de abordagem. Ele abriu o caminho para o
desenvolvimento de um dos dois aspectos da ciência da linguagem ou
linguística propriamente dita – o “Estudo Histórico da Linguagem”
(CÂMARA JR, 1975, p. 40).

Ainda que Bopp tenha desenvolvido ao máximo os estudos comparativos, não


focava no percurso histórico: seu interesse estava no estabelecimento de parentesco entre as
línguas. Por isso, costuma-se dizer que o estudo propriamente histórico foi desenvolvido
por Jacob Grimm que, em seu livro Gramática alemã (1819), cuja segunda edição é tomada
como ponto de referência, interpretou a existência de correspondências fonéticas
sistemáticas entre as línguas como resultado de mudanças no tempo. Ao estudar o ramo
germânico das línguas indo-europeias, Grimm trabalhou com dados dispostos em uma
sequência de catorze séculos, podendo assim estabelecer a sucessão histórica das formas
que estavam sendo comparadas, diferentemente de Bopp, que analisou dados do
sânscrito anterior a 1000 a. C. e do latim do século V a. C., por exemplo. A partir dos
estudos de Grimm passou-se a considerar que a sistematicidade das correspondências
entre as línguas tinha a ver com o fluxo histórico e a regularidade dos processos de
mudança (FARACO 2012, p. 135-136).
Cabe ainda fazer menção ao trabalho desenvolvido pelo dinamarquês Rasmus
Rask que, paralelamente a Bopp e independentemente dele, desenvolveu importantes
estudos comparativos entre as línguas nórdicas, as demais línguas germânicas, o grego,
o latim, o lituano, o eslavo e o armênio. Porém, pelo fato de sua obra só ter sido
publicada dois anos depois do primeiro trabalho de Bopp e pelo fato de ser escrita em
dinamarquês, uma língua pouco acessível, não teve a mesma repercussão.
Nas décadas posteriores ao trabalho pioneiro desenvolvido por Bopp, Rask e
Grimm, surgem novas pesquisas comparativas especializadas em cada subgrupo das
línguas indo-europeias e a chamada filologia românica destacou-se, encarregada de
tratar especificamente das línguas oriundas do latim, tendo como seu precursor o
linguista alemão Friedrich Diez. Este ramo dos estudos comparatistas obteve grandes
êxitos no processo de reconstrução linguística, uma vez que, diferentemente das demais
subfamílias, é vasta a documentação em latim, o que permitiu testar os procedimentos
de análise que, em outros subgrupos, se restringiam a dados hipotéticos.

18
Outro nome de destaque nos estudos comparatistas é o do linguista August
Schleicher, cuja orientação era fortemente naturalista, tendo desenvolvido seus estudos
na metade do século XIX. Além de propor uma tipologia das línguas e uma
classificação genealógica das línguas indo-europeias, Schleicher desenvolveu uma
tentativa de reconstrução daquilo que ele chamou de “língua remota”, ou seja, a origem
das línguas que formam o grupo indo-europeu. O sistema é representado pelo autor a
partir de uma divisão das línguas indo-europeias em ramos cada vez menores, até
chegar a uma única língua, e tal esquema tenta representar o desenvolvimento das
línguas da família indo-europeia.
Apesar de não considerar em seu estudo inicial a variação dialetal nem as
influências entre as diferentes línguas da família, em pesquisa posterior, sobre o lituano,
Schleicher foi o primeiro a elaborar um estudo sobre uma língua indo-europeia baseado
especificamente na fala, e não em textos, o que representou um avanço metodológico
importante nos estudos linguísticos.
O século XIX, mais especificamente sua última metade, ficou conhecido como a
época dos neogramáticos, que demarcaram um verdadeiro divisor de águas na
linguística histórica: de um lado, pela crítica aos antecessores, imprimindo um rigor
muito maior em certos procedimentos metodológicos; de outro, em razão da direção que
acabou imprimindo aos estudos linguísticos desenvolvidos a partir de então, que ou
seguem, nos seus fundamentos, as trilhas dos neogramáticos, ou polemizam com eles
(FARACO, 2012).
Os neogramáticos imprimiram uma nova visão para o tratamento da mudança
linguística, indo por vezes de encontro aos pressupostos tradicionais da prática
histórico-comparativa. Além disso, para os neogramáticos, “as ‘leis’ da evolução
fonética agem de maneira regular, admitindo exceções apenas quando sua ação é
contrariada pela ação da força psicológica da analogia” (ILARI 2008, p.19). Entretanto,
essa perspectiva da evolução fonética gerou muitas críticas de estudiosos que não
concordavam com a tese de que as leis fonéticas1 agem de forma cega, ou seja, de que a
mudança sonora se subordinava a regras que se aplicavam a todos os casos submetidos

1
No final do século XIX, os neogramáticos formularam uma teoria na qual se assumiu que as mudanças
fonéticas tinham um caráter de absoluta regularidade e, portanto, deveriam ser entendidas como leis que
não admitiam exceções (as chamadas leis fonéticas). As aparentes exceções eram atribuídas a um
processo gramatical denominado analogia, pelo qual elementos da língua tenderiam a ser regularizados
por força de paradigmas estruturais hegemônicos (FARACO, 2012). O conceito de lei fonética foi
apresentado e desenvolvido por Jacob Grimm (1785-1863) e Karl Verner (1846-1896).

19
às mesmas condições.
Ainda assim, não se pode deixar de considerar a importância do refinamento do
método histórico-comparativo proporcionado pelos trabalhos dos neogramáticos em
geral. O pensamento neogramático teve seu grande manual no livro de alemão Hermann
Paul, Princípios fundamentais da história da língua (1880), tomado como obra de
referência para a formação dos diacronistas no início do século XX. Paul negava a
existência de uma linguística que não fosse histórica, afirmando que aquilo que se
considera como um método não histórico, e contudo científico, de estudar a língua, não
é no fundo mais do que um método histórico incompleto. O linguista alemão defendia a
tese de que a fonte de toda mudança linguística era o falante individual e de que a
propagação da mudança se dava por meio do que ele chamava de ação recíproca dos
indivíduos. Além disso, outra tese defendida por Paul e também bastante aceita entre os
linguistas contemporâneos, principalmente os gerativistas, é a ideia de que a mudança
linguística é originada principalmente no processo de aquisição da língua.
Por fim, os estudos de Meyer-Lübke, especificamente as obras Gramática das
línguas românicas (1890) e Dicionário etimológico românico, são ainda hoje
fundamentais nos estudos linguísticos e merecem destaque. Por representarem um
trabalho considerado como exemplo da linguística neogramática e também por sua
abrangência, tiveram importância especial para o desenvolvimento dos estudos
históricos das línguas românicas.

2.1.2 A história das línguas sob uma perspectiva imanentista

Desde a sua origem, a linguística histórica concedeu considerável atenção a


questões fônicas da língua por meio de diferentes trabalhos voltados para esse âmbito da
linguagem, recebendo destaque considerável, porém, no estruturalismo diacrônico.
O estruturalismo, concebido como um conjunto de diferentes elaborações teóricas,
as quais compartilham a mesma concepção imanentista da linguagem verbal, tem como
nome de referência o linguista suíço Ferdinand Saussure. Em seu projeto teórico, Saussure
fixou a rígida separação entre os estudos relacionados aos estados das línguas e às
mudanças linguísticas, a conhecida dicotomia sincronia / diacronia. Além disso, também
estabeleceu a necessária precedência do estudo sincrônico sobre o diacrônico, e tais
diretrizes tiveram um forte impacto nos encaminhamentos dados aos estudos linguísticos no
século XX.

20
Saussure entendia que a mudança das línguas no tempo não se constituía num
complexo sistema de dependências recíprocas, mas apenas alterava o valor de elementos do
sistema tomados isoladamente. Foram os linguistas do Círculo de Praga os responsáveis
pela formulação do princípio estruturalista de que as mudanças da língua deveriam ser
analisadas levando-se sempre em conta o sistema afetado por elas (FARACO, 2012), ou
seja, passa a imperar a defesa por um tratamento sistêmico das mudanças.
Nasceu, portanto, dentro do Círculo Linguístico de Praga a primeira proposta de
aplicação do princípio de abordagem sistêmica da diacronia, apresentada por Roman
Jakobson, em 1931, no livro Princípios de fonologia diacrônica. Nesse estudo,
Jakobson apontou qual seria a maneira estruturalista de se pensar a mudança: cada
unidade fonológica no interior de um sistema dado deve ser analisada nas suas relações
com todas as outras unidades do sistema antes e depois da mudança fônica sob análise.
André Martinet, em 1955, com a publicação do livro Economia das mudanças
fonéticas, desenvolveu mais extensamente essa perspectiva sistêmica da dinâmica da
mudança. No seu entendimento, ainda que os sistemas linguísticos sejam bem
estruturados, ao mesmo tempo nunca estão em perfeito equilíbrio, o que suscita, então,
pontos de desequilíbrio latente que favorecem a mudança. Segundo Martinet (1955), o
sistema da língua sofre permanentemente a ação de duas forças contraditórias: enquanto
que as necessidades humanas de comunicação e expressão exigem a manutenção de
oposições distintivas no interior da língua, há a tendência dos falantes a reduzirem ao
mínimo sua atividade física e mental, o que acaba forçando a eliminação de diferenças
(p. 94). Nesse ambiente “controverso”, a mudança encontra terreno fértil para a sua
implementação.

Sob o efeito dessas pressões, ocorrem, então, mudanças que,


destruindo e reconstruindo oposições, se aproveitam dos pontos de
desiquilíbrio latente no sistema, pontos estes que são de duas
naturezas: funcionais ou estruturais (FARACO, 2012, p. 158).

Martinet conduz seus estudos com base na ideia de que, para se dar um
tratamento coerente às mudanças fônicas, é preciso examinar a economia da língua,
introduzindo, assim, o conceito de rendimento funcional das oposições fônicas: uma
dada oposição tem rendimento funcional forte, sendo assim mais resistente à mudança,
quando é capaz de distinguir uma grande quantidade de pares de palavras na língua, ao
passo que tem rendimento funcional fraco, sendo mais suscetível ao desaparecimento,
se o número de pares de palavras diferenciados por ela for reduzido. Além disso,
Martinet sinaliza para a existência de um fator de desequilíbrio no sistema de natureza
21
estrutural, que diz respeito às correlações de uma unidade fônica com outras no sistema:
são fortes, ou seja, resistentes à mudança, os fonemas que estão em correlação com
vários outros, ao passo que são fracos, portanto, mais suscetíveis à mudança, aqueles
com um número reduzido de correlações. Assim, por exemplo, ainda que um par
opositivo seja de rendimento funcional fraco, por distinguir um número reduzido de
palavras, pode ser estruturalmente forte se pertencer, por exemplo, à correlação [+voz] x
[-voz], que em boa parte das línguas abrange várias outras unidades e é fundamental na
configuração do sistema.
Assim, Martinet propõe que a “função” do fonema é distinguir signos. E
explorando ainda a noção de “rendimento funcional”, que estaria em relação direta com
a maior ou menor estabilidade do fonema no sistema, entende que quanto mais
integrado nesses feixes de correlações e pares opositivos, mais estável é o fonema.
Além disso, a antiga noção de “menor esforço” é retomada pelo autor, embora ele a
reinterprete como “economia”. Para Martinet, esses são os aspectos internos tidos como
basilares para melhor se compreender a mudança fônica. Junto com Edward Sapir e sua
teoria da “deriva2”, proposta no livro Language: an Introduction to the Study of Speech,
Martinet recebeu duras críticas pelo caráter teleológico dado pelo estruturalismo
diacrônico ao fenômeno da mudança: havendo uma direção a ser obedecida, a mudança
teria um fim previsível. Além disso, os fatores externos só eram considerados quando se
esgotavam todas as possibilidades de condicionamentos estritamente internos, o que
praticamente exclui da análise questões relacionadas à história e estrutura social, as
quais vêm sendo constantemente evidenciadas como fatores essenciais na realidade da
mudança linguística.
No gerativismo, que tem seu início marcado pelas publicações Syntactic
Structures, de Noam Chosmky (1957), e The Sound Pattern of English, de Noam
Chomsky e Morris Halle (1968), as reflexões sobre a mudança acabam por perder o seu
espaço e, quando se mantêm, são centradas, sobretudo, no processo de transmissão da
língua de geração para geração: a mudança é então vista como uma reorganização de

2
Edward Sapir (1921), em seu livro A linguagem: introdução ao estudo da fala propõe a chamada teoria
da deriva, a qual entende que as mudanças linguísticas não ocorrem ao acaso; elas na verdade seguem um
curso de tendência geral da língua. A tese defendida por Sapir permite entender-se que há mudanças
previsíveis: formas que atualmente são consideradas erros podem adquirir um status diferente no futuro e
virem a ser as corretas, enquanto as atuais corretas podem desaparecer.

22
regras na gramática. Tanto os neogramáticos como os estruturalistas diacrônicos e
Chomsky/Halle consideram a mudança como intrassistêmica.

Kiparsky (1965) e King (1969) fornecem uma teoria da mudança linguística que
difere das teorias anteriores na medida em que implica que a história da língua é
bidimensional, ou seja, uma gramática histórica não é simplesmente uma lista de leis de
mudança de som em ordem cronológica, mas uma série diacrônica de gramáticas
sincrônicas. Cada gramática sincrônica consiste de uma lista de regras ordenadas e
mudanças históricas incluem não só regra de adição, mas também regra de perda, regra
de reordenação, regra de simplificação e de reestruturação das formas subjacentes. São
esses tipos adicionais de mudança, principalmente regra de reordenamento e
simplificação, que fazem a fonologia diacrônica diferente da fonologia sincrônica e,
portanto, interessante em si mesma (HOLT, 1997).

As alterações teóricas admitidas no gerativismo após o abandono do modelo


tradicional de gramática3 como um sistema constituído de regras específicas em favor
de um modelo em que a gramática opera restringida por alguns princípios gerais,
concentrando-se não mais na obtenção de sentenças da língua, mas na justificação de
representações gramaticais possíveis, produziram reflexos nos estudos diacrônicos. A
história das línguas não é mais tratada como um processo de alterações de regras, mas
de eventos submetidos a princípios gerais, e a hipótese inatista da linguística gerativa
prevê que as mudanças estruturais estão restringidas por condicionamentos biológicos,
os quais cumpre ao linguista explicitar em suas análises.

A mudança, nessa perspectiva, passa então a ser correlacionada com alterações


na fixação de parâmetros, ou seja, a história passa a ser vista como um processo de
mudança tipológica. Segundo Lightfoot (1981, p. 257), a mudança na fixação de um
parâmetro pode estar por trás de um conjunto aparentemente não relacionado de
mudanças simultâneas. Esse novo posicionamento retoma a perspectiva estruturalista,
que prevê um tratamento sempre sistêmico das mudanças, sendo estas pensadas como
constituintes de conjuntos relacionados.

O pensamento gerativista em diacronia, então, identifica-se plenamente com a


ideia tradicional em linguística de considerar as mudanças como direcionadas por
3
Segundo Faraco (2012, p.167), essa mudança ocorreu no final da década de 1970.

23
forças internas à língua, retomando-se, assim, aspectos da perspectiva estruturalista. E
essa aproximação pode ser confirmada retomando-se os posicionamentos de Jakobson
e Martinet frente ao processo de mudança: Jakobson (1963, p. 77) dizia que as leis
estruturais do sistema restringem o inventário das transições possíveis de um estado
sincrônico a outro; Martinet (1955) falava que as mudanças estavam submetidas aos
princípios de economia da língua; os gerativistas tomam as mudanças como
submetidas aos princípios restritivos da gramática universal.

Uma das grandes contribuições trazidas pelo gerativismo aos estudos


diacrônicos foi certo refinamento metodológico, além de um rigor analítico. Em
contrapartida, o ponto de maior divergência em relação às demais perspectivas de
análise concentra-se na forma de proceder à interpretação da mudança, valendo-se de
critérios fundamentalmente imanentes, excluindo, assim, da história das línguas
qualquer perspectiva que leve em consideração os falantes e sua complexa realidade
histórico-social. Dessa forma, a interpretação universalista da mudança pretendida pelo
gerativismo a partir da concepção de que as restrições propostas teriam fundamento,
pressupõe que as possibilidades de mudança estariam definidas a priori para todas as
línguas pela estrutura do cérebro, o que é altamente questionável, segundo Lightfoot, já
que muitas das mudanças ocorridas se devem a fatores relacionados ao modo como as
gramáticas são usadas, e não propriamente à sua estrutura interna (LIGHTFOOT,
1991).

2.1.3 Uma concepção mais integrativa para os estudos diacrônicos

Ainda no século XIX, foram dados os primeiros passos em direção a uma


concepção de estudo da mudança linguística que leva em consideração não apenas os
fatores internos, mas também os ditos fatores externos à língua. Foi com o linguista
francês Antoine Meillet que uma concepção mais sociológica do falante e da língua
recebeu uma formulação mais consistente e sólida (FARACO, 2012).

Meillet (1926) concebia a língua como um fato social e elaborou uma


perspectiva de análise em que as condições sociais eram vistas como fatores
determinantes para a mudança. Segundo sua concepção, a condição principal da
mudança é a realidade heterogênea das línguas: considerando que a história dos homens
não é linear nem homogênea, como consequência as sociedades são heterogêneas e essa
característica do social é determinante da heterogeneidade linguística e condicionante da

24
mudança (MEILLET, 1951, p.74).

Embora Meillet tenha sido um dos primeiros a tentar incorporar nos estudos de
história das línguas uma orientação teórica que levasse em conta sempre a heterogênea
realidade sociocultural das línguas, essa orientação ficou por um longo tempo sem
receber o seu devido destaque, devido à consolidação da perspectiva estruturalista que
se tornou hegemônica no início do século XX.

Porém, mesmo ficando à margem em relação aos estudos de cunho estruturalista,


no começo do século XX, surgem os dialetologistas que, segundo Câmara Jr. (1975),
desenvolvem um estudo do arrolamento, sistematização e interpretação dos traços
linguísticos dos dialetos. Para tanto, utilizam a técnica da geografia linguística, que
consiste na elaboração de mapas que representem a distribuição geográfica de cada
traço linguístico dialetal, constituindo um atlas linguístico, com as isoglossas do
território estudado.

O fundamento da dialetologia é o fato de que a distribuição de uma comunidade


em uma determinada área geográfica é fator de diferenciação linguística, já que cada
parte dessa área tem experiências sociais, históricas, culturais diferentes que acabam
repercutindo na linguagem.

Segundo Câmara Jr (op. cit), o verdadeiro criador da geografia linguística foi o


estudioso suíço Jules Gilliéron que, entre 1879 e 1901, dirigiu uma alentada pesquisa de
campo que consistiu em aplicar um questionário cujo objetivo era levantar não só dados
fonéticos, mas também sobre morfologia e sintaxe, aplicados em 639 pontos dos
dialetos galo-românicos. Desta pesquisa, surge o Atlas Linguístico da França, publicado
entre 1902 e 1912.
Gillerón contribuiu significativamente com seus trabalhos, sobretudo pelas
descobertas por ele apresentadas, as quais obrigaram de certa forma que se abandonasse
a concepção comparatista segundo a qual a dialetação do latim resultaria de um
tratamento fonético diferenciado que as expressões do latim vulgar teriam recebido em
cada região. Ao contrário, o linguista suíço mostrou que, além da evolução fonética,
operou crucialmente na formação dos dialetos românicos a criatividade dos falantes,
particularmente ativa toda vez que se tornava necessário desfazer colisões homonímicas
e salvar palavras foneticamente pouco consistentes (ILARI, 2008, P. 26).

25
Os estudos em dialetologia evidenciaram que, no mesmo ponto do tempo,
coexistem, em diferentes pontos do espaço, formas integrantes de uma complexa rede
evolutiva. Também, foi possível observar que a distribuição das formas no espaço
geográfico pode sinalizar o processo de difusão de mudanças, sendo possível também
localizar centros inovadores e difusores de mudança. Ainda foi possível perceber
também que as mudanças chegam às vezes mais cedo a algumas palavras, ao passo que
a interpenetração dos dialetos pode bloquear a propagação das inovações, criando assim
áreas mais conservadoras (FARACO, 2012).
Assim, os estudos históricos passaram a consolidar a ideia de que a contínua
heterogeneidade da realidade linguística, bem como o contato entre diferentes
realidades, constituem fatores essenciais para a apreensão da dinâmica da mudança
linguística.
A sociolinguística representa um avanço nos estudos de variação linguística, ao
somar à dimensão geográfica da dialetologia a dimensão social como fator de
diferenciação linguística. Para tanto, propõe o estudo das correlações sistemáticas entre
formas variantes e determinados fatores sociais, tais como classe social, escolaridade,
sexo, entre outros. Esse novo tipo de abordagem passou a ser evidenciadas a partir dos
estudos desenvolvidos por Labov, no início da década de 1960, nos Estados Unidos, a
partir dos quais se passa a conceber a existência da chamada estratificação social das
variantes4.
A sociolinguística também abriu novas perspectivas para o estudo histórico,
operando com o conceito de mudança em progresso5 e buscando sistematizá-lo. Com
esse tipo de abordagem, reforça o princípio de que a mudança não ocorre por meio de
mera substituição discreta de um elemento por outro, mas que o processo histórico
envolve fases em que variantes, estratificadas socialmente e estilisticamente, coexistem
e também fases em que elas competem entre si, até que uma vença a outra. Além disso,
a sociolinguística evidencia que, por trás de um processo de mudança, não há só um
conjunto de variações, mas principalmente uma motivação social.

4
Labov evidenciou em seu estudo desenvolvido em Nova Iorque que a pronúncia do /r/ pós-vocálico
aparece mais frequentemente entre os falantes da classe média alta do que entre aqueles pertencentes a
outras classes, o que evidencia uma clara estratificação social da variável.
55
Quando se evidencia que formas inovadoras estão mais presentes no uso de falantes mais jovens em
relação aos de mais idade, pode haver aí o indício de uma mudança em curso, ou seja, que uma das
variantes está sendo abandonada em favor de outra.

26
Na tentativa de propor uma síntese efetiva da perspectiva imanentista e da
perspectiva mais social, a publicação de Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968])
intitulada Fundamentos empíricos para uma teoria de mudança linguística constitui-se
hoje como uma referência para os estudos sobre mudança linguística, a partir de uma
concepção de língua caracterizada por sua heterogeneidade sistemática. Os autores, em
suas reflexões, apontam várias considerações relacionadas não somente à análise da
estrutura linguística, mas também a questões sociais que estão envolvidas no processo
de mudança. Embora o presente trabalho não seja de cunho sociolinguístico, pois tem
seu foco voltado para a história interna da língua, encontrará fundamento em muitas
considerações feitas nessa linha de argumentação.
Dentre outras explanações, os referidos autores apresentam cinco aspectos que,
segundo eles, devem guiar toda e qualquer pesquisa de cunho histórico no âmbito da
linguística, e que são constantemente retomadas em trabalhos que tratam da diacronia
das línguas. Kiparsky (2012) abre seu texto mencionando esses cinco problemas
definidores de uma teoria de mudança: natureza, transição, encaixamento, avaliação e
implementação, os quais se relacionam diretamente com os cinco princípios empíricos
para a teoria da mudança apresentados por Weinreich et al (2006).
Quanto à natureza da mudança linguística, entende-se que sejam possíveis duas
respostas, que seguem linhas teóricas bastante diferentes: a Hipótese Neogramática6 e a
Difusão Lexical7. A Hipótese Neogramática entende que na mudança os sons se
modificam de forma gradual em todas as palavras que apresentam o contexto necessário
para isso. Na proposta defendida pelos neogramáticos, a mudança sonora observada em
uma determinada língua é a unidade básica na evolução dos sistemas, caracterizando-
se por ser foneticamente gradual e lexicalmente abrupta. Ou seja, essa mudança atinge
todo o léxico ao mesmo tempo, e o som – entendido como a unidade básica da
mudança – passa por um processo de “gradação” (não passa abruptamente de A para
B). A mudança é entendida então como o resultado da aplicação de regras que não
admitem exceções e, caso haja exceções, são explicadas por analogia ou empréstimo.
Seguindo esta linha, Coutinho (1976) propõe que a mudança apresenta três
características fundamentais: ela seria (a) inconsciente, na medida em que as variações

6
A chamada Hipótese Neogramática foi sedimentada dentro dos estudos neogramáticos, sobretudo
fundada nas ideias de Hermann Osthoff (1847-1909) e Karl Brugmann (1849-1919).
7
Wang (1969).

27
na língua são alheias à vontade do povo e seguem as tendências da época em que vivem,
ou sejam, elas não são processadas deliberadamente; (b) gradual, por obedecer a um
processo evolutivo que permitiria a existência de formas intermediárias sucessivas para
as alterações antes de sua implementação; e (c) constante, uma vez que, preenchidos os
requisitos estruturais da mudança, ela deve prevalecer, sem exceções. Desse modo, as
mudanças sonoras são tidas por regulares, graduais e motivadas pela configuração
fonética das palavras, podendo ser previstas pelas leis fonéticas, dentre as quais se
destacam três, que segundo o autor presidiram à evolução das palavras portuguesas:
1) Lei do menor esforço ou da economia fisiológica. Caracteriza-se pela
simplificação dos processos. Desse modo, as modificações e quedas de fonemas
efetivaram-se em obediência a essa lei.
2) Lei da permanência da consoante inicial. Na evolução do latim para o português,
as consoantes iniciais permaneceram intactas, com raras exceções, ao passo que
as consoantes em posição medial e final se mostraram sujeitas a várias
alterações.
3) Lei da persistência da sílaba tônica. No meio das transformações e quedas dos
fonemas, foi o acento tônico que conservou a unidade da palavra. Esta lei se
baseia no fato de que o acento permite uma pausa mais demorada da voz, o que
o torna mais resistente a variações.
As leis fonéticas marcam, assim, o caráter de constância e inflexibilidade do
modelo, pois são concebidas como princípios absolutos de valor preciso e científico. As
exceções são descartadas, já que os casos discordantes podem ser explicados pela
intercorrência de outra causa, como a analogia e o empréstimo.
Os difusionistas contestam essa visão da mudança, principalmente a questão da
regularidade e da gradualidade em termos fonéticos, defendida pelos neogramáticos. Ao
contrário do que preconiza a Hipótese Neogramática, segundo Chen e Wang (1975),
principais representantes do difusionismo, a mudança seria implementada através do
léxico, por difusão lexical, e o que ela afetaria, então, não seria o som, mas a palavra.
Isso implicaria considerar que a mudança ocorre inicialmente em algumas palavras e se
propaga gradualmente para outras, podendo atingir ou não o léxico como um todo.
Nesta visão, o eixo central da mudança deixa de ser o fonema e passa a ser o léxico.
A diferença entre o modelo Neogramático e o Difusionista é que, no primeiro, o
elemento controlador da mudança seria o fonema, enquanto que, no segundo, o
responsável pelo fenômeno seria o léxico. Para o difusionismo, tal qual proposto por

28
Chen e Wang, a mudança sonora é devida a um dispositivo fisiológico e perceptivo dos
falantes, e sua implementação se processa por difusão lexical. Dessa forma, considera-
se a possibilidade de haver itens mais propensos do que outros à mudança.
Além disso, alguns traços lexicais têm sido propostos como favorecedores e/ou
inibidores de uma mudança sonora em relação a um item lexical, como, por exemplo, o
diminutivo de nomes próprios, que indicaria familiaridade e carinho. Ainda há uma
proposta de base difusionista que defende a ideia de que o fator frequência também
tenha um papel na marcação dos itens lexicais mais propensos à mudança: elementos
com maior frequência de uso estariam mais propensos a sofrer os efeitos de uma
mudança, desde que o contexto de uso seja considerado conjuntamente, neste tipo de
análise, devido ao fato de um mesmo item lexical não se comportar igualmente de
falante para falante (BYBEE, 2002; PIERREHUMBERT, 2001).
Labov (1994), por sua vez, considera que as duas vertentes estariam corretas, de
modo que alguns tipos de mudança poderiam ser explicados pela Hipótese
Neogramática, devido a sua natureza, e outros tipos poderiam ser explicados pela
Difusão lexical. O autor assim define estes dois possíveis tipos de mudança.

Regular sound change is the result of a gradual transformation of a


single phonetic feature of a phoneme in a continuous phonetic space.
It is characteristic of the initial stages of a change that develops within
a linguistic system, without lexical or grammatical conditioning or any
degree of social awareness ("change from below").
Lexical diffusion is the result of the abrupt substitution of one
phoneme for another in words that contain that phoneme. The older
and newer forms of the word will usually differ by several phonetic
features. This process is most characteristic of the late stages of an
internal change that has been differentiated by lexical and
grammatical conditioning, or has developed a high degree of social
awareness or of borrowings from other systems ("change from
above"). (LABOV, 1994, p. 342)

Em relação à forma como se dá a mudança de uma estrutura para a outra, ou


seja, a transição, entende-se que a característica mais recorrente nesse aspecto do estudo
histórico seja o fato de a mudança não ser discreta: a forma antiga não é simplesmente
substituída pela nova; há uma fase de coexistência dessas formas, que vão
gradativamente cedendo ou tomando seu espaço. Além disso, observa-se ainda que a
difusão dessa mudança não ocorre de forma homogênea, tanto no interior da língua
quanto nos espaços social e geográfico, mas em ritmos e direções diferenciados. De
acordo com Weinreich et al. (2006), a transição de um traço arcaico para um inovador
está relacionada à transferência de traços de um falante para outro.

29
Esta transição ou transferência de traços de um falante para outro
parece ocorrer por meio de falantes bidialetais ou, mais
geralmente, por falantes com sistemas heterogêneos caracterizados
pela diferenciação ordenada. A mudança se dá (1) à medida que
um falante aprende uma forma alternativa, (2) durante o tempo
em que as duas formas existem em contato dentro de sua
competência, e (3) quando uma das formas se torna obsoleta
(WEINREICH et al, 2006, p. 122).

A avaliação de um determinado conjunto de variantes relaciona-se com a atitude


social frente à língua, com o valor atribuído a A, B, C dentro da estrutura
sociolinguística, sendo responsável pela definição das variantes de prestígio e
estigmatizadas. As reações avaliativas tendem a ser sistemáticas e nem sempre o
ouvinte consegue percebê-las de forma consciente, principalmente nas etapas iniciais da
mudança. Em estágios mais avançados, é possível já perceber a preferência dada à
forma inovadora, especialmente em situações informais de fala, ocorrendo com maior
frequência entre os grupos socioeconômicos intermediários.

À medida que a mudança passa a ser mais consciente, observa-se também o


surgimento de reações por vezes negativas, atribuindo-se à forma inovadora um status
estigmatizado. Paralelamente, ocorrem reações corretivas em direção à forma mais
conservadora. A progressiva mudança desses valores é que vai favorecer a difusão da
forma inovadora, que começa a ocorrer mais frequentemente entre falantes de grupos
socioeconômicos mais altos, em situações mais formais de fala e finalmente passa a
integrar também a linguagem escrita.
(...) o estudo do problema da avaliação na mudança linguística é
um aspecto essencial da pesquisa que conduz a uma explicação da
mudança. Não é difícil ver como traços de personalidade
inconscientemente atribuídos a falantes de um dado subsistema
determinariam a significação social de alternância para esse
subsistema e assim seu desenvolvimento ou obsolescência como
um todo (WEINREICH et al, 2006, p. 103).

Segundo Labov (1982), o problema de implementação de uma mudança, ou


seja, o fato de por que uma mudança é desencadeada ou implementada numa dada
época e em um lugar determinado e não em outros constitui-se como uma das maiores
dificuldades que o linguista pode ter ao tratar sobre a história de uma língua. Essa
dificuldade, segundo Weinreich et al., deve-se ao fato de a mudança envolver os
estímulos e restrições tanto sociais quanto linguísticos.

Entendem os autores que a mudança possa começar no momento em que um dos


muitos traços característicos da variação se difunde através de um subgrupo da

30
comunidade de fala. Tal traço assume um significado social, relacionando-se aos
valores sociais daquele grupo, ao passo que se a mudança linguística está encaixada na
estrutura linguística, é gradualmente generalizada, sem qualquer instantaneidade,
intervindo na estrutura social da comunidade antes que o processo esteja completo.
Novos grupos entram na comunidade de fala, de tal modo que
uma das mudanças secundárias se torna primária. O avanço da
mudança linguística rumo à completação pode ser acompanhado de
uma elevação no nível de consciência social da mudança e do
estabelecimento de um estereótipo social. Por fim, a completação
da mudança e a passagem da variável para o status de uma
constante se fazem acompanhar pela perda de qualquer significação
social que o traço possuía. O alto grau de regularidade que a
mudança sonora exibe é o produto desta perda de significação nas
alternâncias envolvidas e da seleção de uma das alternativas como
uma constante (WEINREICH et al, 2006 p. 124-125).

O encaixamento da mudança é entendido tomando como base dois aspectos, o


social e o linguístico, e refere-se ao espaço da mudança na estrutura sociolinguística,
inserida numa “cadeia complexa de relações” (WEINREICH ET AL 2006, p.113).
Sob o aspecto linguístico, segundo os autores, seria necessário verificar o
encaixamento do fenômeno analisado na gramática da língua e sua relação com
outros fenômenos. Em termos sociais, o encaixamento seria analisado em relação à
estrutura sociolinguística, isto é, se característico de uma faixa etária, de uma classe
social, de um grupo étnico, de maior ou menor escolaridade, do sexo feminino ou
masculino, do discurso formal ou informal, entre outros aspectos.

Finaliza-se aqui uma tentativa de síntese dos encaminhamentos ocorridos na


esfera dos estudos históricos, de modo a apresentar as principais contribuições dos
linguistas históricos na formação desta disciplina. As informações apresentadas
intencionam refletir as ideias basilares que guiaram e ainda guiam as pesquisas que se
interessam pelo fenômeno da mudança linguística e pela história das línguas, sem com
isso esgotar as possibilidades de discussão suscitadas pelas diferentes correntes teóricas
existentes.

2.2 Diacronia das línguas românicas

Nesta seção, serão apresentadas algumas considerações importantes a respeito


das origens, bem como dos fatores de formação das línguas românicas, especificamente
do português. Busca-se dessa forma contextualizar o objeto de estudo desta tese, bem
como levantar questões que possam ser fundamentais em uma análise que pretende

31
versar sobre a diacronia dessa língua românica, sem necessariamente com isso esgotar
toda a reflexão histórica possível a respeito do tema.

2.2.1 Contexto de origem das línguas românicas: Latim clássico e Latim vulgar

Diferentemente do que por vezes se imagina, o latim clássico e o vulgar


coexistiram, sem haver necessariamente uma sucessão entre os dois. Enquanto a
vertente clássica era aquela empregada na literatura e dominada pela pequena parcela de
romanos alfabetizados e “estudados”, o latim vulgar era empregado no dia a dia, pela
maioria dos romanos, e caracterizava-se como sendo uma língua com finalidades
práticas e imediatas, diferente do latim clássico, “rebuscado”, de escritores como Cícero
e Virgílio.
O latim, assim como qualquer outra língua, foi suscetível a variações dialetais,
socioletais e de registro, as quais, conforme Ilari (2008), podem ser chamadas de
verticais (socioletos) e horizontais (diferenças geográficas). Logo, é de se esperar que
no latim houvesse muitos registros diferentes, dependendo do contexto sociolinguístico,
bem como diversos dialetos, principalmente em razão do intenso contato entre a língua
latina e as línguas dos diversos povos dominados. A esse conjunto de variações do latim
– faladas nas regiões que compreenderam o império romano – é que se refere o termo
latim vulgar, cunhado pela primeira vez por Diez, em oposição ao latim conhecido
através das obras clássicas, o latim literário (ILARI 2008, p.58).
É possível afirmar que entre o latim clássico ou literário e o latim vulgar há uma
relação paralela àquela estabelecida entre a norma culta do português e o português
coloquial nas diversas regiões e extratos sociais do Brasil. Ambas as variantes aparecem
na fala e na escrita, ainda que em diferentes níveis (na escrita, há preferência pela norma
culta, enquanto na fala, pelas variantes coloquiais).
Os estudos histórico-comparativos das línguas românicas indicam que, tal como
a norma culta do português tende a ser arcaizante e conservadora, não refletindo
diretamente os dialetos correntemente falados no Brasil, o latim clássico também tinha
um caráter eminentemente literário, não refletindo as variedades do latim geralmente
faladas pela população do império romano, embora essa variedade (clássica)
provavelmente fosse falada pela aristocracia romana em determinados contextos
(ILARI, op. cit). Por sua vez, o latim vulgar também teve registro escrito, embora numa
escala muito menor, como os estudos históricos evidenciam.

32
2.2.2 Formação das línguas românicas: fatores internos e fatores externos da
mudança

Muitos são os fatores responsáveis pelo surgimento de diferentes línguas a partir


de uma variedade razoavelmente uniforme (latim do período imperial). Com a expansão
do Império Romano, nas regiões conquistadas o contato com outras línguas foi dando à
língua latina novas formas, processo conhecido como “dialetação do latim”, a partir do
qual se formaram as conhecidas línguas românicas ou neolatinas. Essas línguas, então,
tiveram sua origem nos dialetos latinos que acabaram se sobrepondo aos demais que
coexistiam (no final do primeiro milênio), por questões de prestígio político, econômico
ou cultural da região em que eram falados. Uma pergunta bastante comum quando se
está frente a um panorama como este, em que uma única língua é capaz de “gerar” uma
dezena de outras “novas”, é como ocorre o processo de dialetação, neste caso, do latim
vulgar?
A diferenciação dialetal do latim tem sua motivação em diferentes aspectos,
dentre os quais se podem destacar as diferenças de época da romanização; a diversidade
dos substratos linguísticos e culturais dos povos conquistados; a descentralização
política e administrativa do império, que ocasionou a criação de doze regiões
administrativas e levou Roma a perder o poder para ditar a “moda literária e
linguística”; divisão do Império Romano. Essa diferenciação regional constitui-se em
uma das principais causas da derivação do latim para as línguas românicas. O latim
vulgar, diversificado de região para região, é que deu origem aos falares neolatinos
regionais, chamado romances, dos quais derivaram as atuais línguas românicas. Essas
forças desagregadoras, associadas à invasão dos bárbaros, fizeram com que os falares
regionais, no final do século V, já estivessem mais próximos dos idiomas neolatinos que
do próprio latim.

Além disso, os falantes também contribuem substancialmente para que uma


língua mude ao longo do tempo, assim como ocorreu com o latim. Pressionados pela
necessidade de tornar sua fala mais exata ou expressiva, a todo o momento criam novas
palavras e padrões sintáticos a partir do material disponível em sua própria língua. Da
mesma forma, mudanças fônicas surgem pelas tensões que ocorrem no interior do
sistema, porém sempre respeitando a própria estrutura desse sistema, o que evidencia
que as alterações ocorridas nos inventários não ocorrem de forma aleatória ou
desordenada.

33
Especificamente em relação às mudanças fônicas8, objeto de estudo neste
trabalho, pode-se considerar a existência de dois tipos que se distinguem por sua
motivação: mudanças determinadas por pressões paradigmáticas e mudanças
relacionadas ao entorno (contexto). Considerando que o latim clássico possuía um
sistema consonantal lacunar (ver caracterização completa na Seção 3) e, por isso, podia
ser considerado como tendo um rendimento funcional baixo9 e sendo naturalmente
instável, esse sistema abriu-se a muitas alternativas de reestruturação em busca do
estabelecimento do equilíbrio pretendido. Assim, o latim vulgar eliminou parcialmente
as “falhas” de seu sistema, suprimindo, por exemplo, a aspirada /h/ e atribuindo um
correspondente sonoro à fricativa /f/.

Porém, o sistema consonantal do latim vulgar ainda se manteve em certo ponto


desequilibrado, pela ausência de uma correspondente sonora para /s/, caso resolvido em
todas as línguas românicas, com exceção do castelhano, que adquiriu, e em seguida
perdeu, o fonema /z/. O principal tipo de mudança fônica devido ao entorno é a
assimilação, quer seja em razão do ponto ou modo de articulação dos segmentos
adjacentes (adversu > avesso), quer seja em razão da sonoridade presente nos
segmentos do entorno (vípera > víbora). As assimilações que contribuíram em todo o
território da România para a dialetação do latim foram, por exemplo, a sonorização, a
nasalização, a palatalização e a metafonia, conforme aponta Ilari (2008) e ratifica Silva
Neto (1979) por meio de seus exemplos sobre o consonantismo.

É importante salientar, porém, que nem sempre o processo de assimilação


produziu um mesmo resultado, ou seja, ela não ocorreu com a mesma rapidez e
intensidade em todas as regiões, o que fez emergirem sistemas fonológicos distintos,
como se pode observar através da comparação entre as línguas românicas: no caso do
grupo consonântico -ct-, por exemplo, a assimilação motivou soluções diferentes
comparando-se o italiano com o português: enquanto no italiano a assimilação ocorreu

8
Esse tipo de mudança está relacionado a fatores internos da língua, ou seja, elementos de sua própria
estrutura entram em jogo e agem como motivadores da mudança linguística.
9
A ideia de pressão paradigmática foi elaborada pelos estruturalistas, segundo a qual o sistema
fonológico de uma língua reflete a qualquer momento um equilíbrio precário entre a necessidade de
distinguir um número tão amplo quanto possível de unidades significativas e a tendência natural a poupar
o emprego dos meios de expressão. Logo, fonemas e traços deveriam ter uma alto rendimento funcional,
isto é, cada fonema serviria para distinguir um número relativamente alto de palavras, e cada traço
permitiria distinguir um número relativamente alto de fonemas.

34
da consoante /k/ para a consoante seguinte, resultando otto, no português, a assimilação
ocorreu de /k/ para a vogal precedente, resultando em uma semivocalização oito.

Embora não seja o foco desta pesquisa, apresentam-se a seguir algumas questões
de ordem fonético-fonológica do latim relacionadas especificamente ao sistema
vocálico, a fim de que a contextualização da diacronia das línguas românicas aqui
pretendida possa ser realizada de maneira mais completa.

Em se comparando o latim clássico com o latim vulgar, pode-se discorrer a


respeito de algumas características fonológicas importantes que diferenciam estas duas
variantes latinas. Por exemplo, quanto à duração, o latim clássico apresentava cinco
vogais (/a/, /e/, //, /o/, /u/), sendo que cada uma delas podia ser pronunciada com

duração breve (//, //, //, //, //) ou longa (//,//,//,//,//)que era uma

característica fonológica, pois distinguia significado (s: osso / s = rosto; lto =

amarelo / lto = lodo); a pertinência da duração na fonologia fez com que o sistema do

latim integrasse dez segmentos vocálicos.

No latim vulgar, a duração deixou de ser uma característica fonológica e acabou


sendo substituída pelo traço de abertura, o que é atestado por diferentes estudos, dentre
os quais refere-se Câmara Jr (1975), Ilari (2008) e Bassetto (2010). De forma
sintetizada, as vogais longas tornaram-se fechadas e as breves passaram a ser
pronunciadas mais abertas, daí a existência de um sistema com sete vogais em algumas
línguas românicas, motivada também pela confusão entre o // breve e o /e/ longo, além

da falta de distinção entre o /u/ breve e /o/ longo, causada pela perda da duração.
Câmara Jr (1975, p. 40) amplia essa questão:

No quadro tônico, as dez vogais latinas evoluíram para um quadro


triangular de sete vogais: houve confluências e diferenciações que
modificaram todo o sistema de oposições latinas. O dado novo foi o
aparecimento de dois graus de elevação da língua em posição
intermediária entre a posição baixa (/a/) e alta (/i/, /u/). Com isso, se
criou uma oposição distintiva entre um /e/ ou /o/ abertos, com pouca
elevação da língua, e um /e/ ou /o/ fechados, com maior elevação da
língua. O grau médio aberto resultou de /e/ ou /o/ breves,
respectivamente; o grau médio fechado foi a confluência das vogais
médias longas e das altas breves. Assim só /i/ e /u/ longos, perdendo a
sua quantidade distintiva, continuaram como vogais altas.

Porém, essa mudança não ocorreu de forma homogênea em todo o território de

35
abrangência do latim vulgar: na região conhecida como Dácia, a distinção entre o /u/
breve e /o/ longo permaneceu, permitindo assim a existência de um sistema composto
de oito vogais, ao passo que, na Sardenha, as vogais longas se assimilaram às breves
correspondentes, resultando um sistema de cinco vogais.

Além da diferença na composição do sistema vocálico, o latim clássico e o latim


vulgar distinguiam-se em relação à natureza do acento. Segundo Ilari (2008, p. 74),
“paralelamente à perda da quantidade, desapareceu em latim vulgar o acento tonal do
latim literário que foi suplantado pelo acento ‘tônico’, ou seja, o acento de intensidade
tal como o conhecem hoje as línguas românicas”. Normalmente o acento de intensidade
recaía sobre a mesma sílaba portadora do acento tonal, exceto em três situações: (a)
quando a vogal está em posição fraca10; (b) nos casos de recomposição11; (c) nos hiatos
formados por /,e/ + vogal12.
De acordo com Quednau (2000), em latim clássico, a atribuição de acento às
palavras baseia-se na quantidade silábica, ou seja, no peso relativo das sílabas. A
quantidade das sílabas é determinada em função do tempo despendido em sua
pronunciação, podendo ser elas longas ou breves.

O acento em latim vulgar recai normalmente sobre a mesma sílaba portadora do


acento no latim clássico. Porém, são evidenciados deslocamentos em três situações
principais (MAURER Jr., 1959, p.68-69; QUEDNAU, 2000, p.17-18; WILLIAMS,
2001, p.16; ILARI, 2008, p.74-75):

a) Vogal da penúltima sílaba seguida de um grupo consonântico de oclusiva + r em


palavras de três ou mais sílabas. Em latim clássico, a posição do acento depende
nesse caso da quantidade da vogal, seguindo a regra de acentuação geral do
latim clássico: íntegrum, tónitrum, álacrem, ténebras, cólubra. Já em latim
vulgar, o acento cai sempre nessa sílaba: intégrum, tonítrum, alácrem, tenébras,
colóbra.

10
A vogal está em posição fraca quando é seguida de oclusiva + r : latim clássico íntegru; latim vulgar
intégru; português inteiro; italiano intero (ILARI, 2008).
11
O acento do afixo é deslocado para o radical, por exemplo, cóntinet é reanalisado como cum+tenét:
latim clássico cóntinet; latim vulgar contínet; português contém; italiano contiène.
12
Latim clássico mulíere; latim vulgar muliére; português mulher; italiano mogliéra.

36
b) Casos de recomposição (compostos). Em latim clássico, a acentuação dessas
formas se regia pela mesma regra de quantidade da penúltima sílaba, que se
observava nas palavras simples. Isso quer dizer que, se o último elemento
dissilábico de um composto tinha a primeira sílaba breve, o acento tônico deste
recuava para a antepenúltima sílaba, portanto para o primeiro elemento; em
latim, geralmente um prefixo: cóntinet, récipit. Já em latim vulgar, recupera-se a
acentuação da palavra simples, o que equivale a deslocar o acento dos afixos
para o radical, ou seja, cóntinet é reanalisado em cum + ténet, prevalecendo a
acentuação da forma simples ténet, contínet.

c) ĕ ou ĭ (breves) em hiato na antepenúltima sílaba, com uma vogal seguinte breve.


Em latim clássico, o ĕ ou ĭ (breves) eram acentuados de acordo com a regra de
quantidade latina: mulíere, filíolus, lintéolum. Já em latim vulgar, o acento
desloca-se para a vogal seguinte: muliére, filiólus, linteólum.

A partir do desenvolvimento do acento de intensidade, as alterações ocorridas no


sistema vocálico no desenvolvimento do latim vulgar e na formação das línguas
românicas estiveram intimamente ligadas à qualidade tônica ou átona das próprias
vogais. Conforme destaca Ilari (2008), duas seriam as tendências verificadas a este
respeito. A primeira seria aquela que se caracteriza por uma redução do sistema quando
comparadas as posições tônica e átona. Dessa forma, os três sistemas identificados nos
parágrafos anteriores (cinco, sete e oito vogais) mantinham-se completos somente na
posição tônica, contraindo-se na posição átona. A segunda tendência marcaria a queda
das vogais átonas, tanto em posição pretônica como postônica, conforme atesta o
Appendix Probi: speculum non speclum.

Tendo sido apresentados alguns exemplos relacionados a fatores internos que


fizeram parte do processo evolutivo das línguas românicas, passa-se à descrição dos
fatores de natureza externa que também marcaram constituição das línguas de origem
latina. Dentre eles, destaca-se o papel dos substratos, superstratos e adstratos, sem
desconsiderar, porém, a presença do bilinguismo, comum em situações como aquela
que se desenhou entre o Império Romano e os territórios por ele conquistados.

“Subjugado um povo de língua diferente e ocupado seu território,


segue-se uma fase de bilinguismo, em que dominadores e dominados
continuam a usar seu próprio idioma por período de tempo muito
variável, sobretudo se não houver disposição do dominador de impor

37
ao dominado sua própria língua, como aconteceu com os romanos”
(BASSETTO 2005, p. 152).

Assim, nessa situação de bilinguismo, era natural que o latim sofresse a


influência das línguas pré-romanas que, segundo Ilari (2008), foi sentida basicamente de
três formas: (a) através da incorporação completa de palavras que representavam, por
exemplo, objetos desconhecidos dos romanos, como os termos gauleses carrum e
brac, os quais se referiam, respectivamente, à carruagem de quatro rodas e às calças

compridas; (b) por meio dos nomes de lugares e designações aplicadas à fauna, à flora e
à cultura material; (c) pela incorporação dos hábitos linguísticos oriundos das línguas
utilizadas pelos povos dominados quando estes falavam o latim, ou seja, a pronúncia
característica de seu próprio idioma fazia-se presente quando o povo dominado se
expressava na “nova” língua. Esse “produto” linguístico, caracterizado como sendo a
língua do dominador atravessada por elementos da língua do dominado, é o chamado
substrato.

Bassetto (2005, p. 153) define substrato como “as marcas linguísticas advindas
do povo que abandona seu idioma, levadas para a língua que passa a adotar”, ao que
corrobora Câmara Jr (1985, 1998). Segundo Basseto, essas marcas estão mais presentes
no léxico e, em alguns casos, também na fonética, sendo mais raras na morfologia e
muito mais ainda na sintaxe. Isso pode ser comprovado em uma reflexão a respeito do
material fornecido pelo substrato tupi13 ao português: inúmeras são as palavras de
origem tupi presentes no léxico do português, as quais compõem o chamado
“vocabulário cultural”. Porém, nenhum fato linguístico de influência tupi pode ser
encontrado no campo na morfologia, da sintaxe e até mesmo da fonética, “o que pode
ser atribuído à grande diversidade dos dois idiomas e ao considerável desnível cultural
dos seus falantes”. A ação do substrato costuma ser lenta e depende de causas sociais,
políticas, históricas e até mesmo estilísticas, podendo sua força permanecer latente
durante séculos, permitindo a coexistência da duplicidade de formas, que seria “a
melhor refutação da tese dos neogramáticos de que os sons mudam rapidamente e com
precisão mecânica, de que as mutações estão completas tão logo se manifestem”

13
Convém considerar a controvérsia em relação à existência ou não de um substrato indígena, apontada
por Câmara Jr (1963). Segundo o autor, não é possível falar nesse tipo de substrato, dado que as línguas
indígenas brasileiras são genética e tipologicamente diferentes. De acordo com o linguista, os defensores
da existência desse tipo de substrato buscaram seus argumentos não nas línguas indígenas reais, mas na
Língua Geral, denominada pelo autor como um “tupi missionário fabricado” pelos jesuítas.

38
(BASSETO 2005, p. 156).

Apesar de ser grande a variedade de substratos presentes na história das línguas


românicas, fato explicado pela grande diversidade de povos da Itália antiga, não é
objetivo deste estudo detalhar exaustivamente estes fatores, mas apenas fornecer um
panorama a respeito de tudo o que está envolvido e que o linguista não pode deixar de
considerar quando o seu objeto de pesquisa se relaciona ao processo evolutivo das
línguas.

Como superestrato entendem-se os vestígios e as influências de um povo


dominador no idioma do dominado, o qual acaba sendo usado por ambos no caso de a
língua do dominador deixar de ser falada, como o que ocorreu com o franco na Gália,
com o godo na Ibéria e com o lombardo na Itália. Diferencia-se do substrato em razão
da condição do povo cuja língua vem a desaparecer: dominado no substrato e dominante
no superestrato.

Na România, os superestratos germânicos recebem destaque por sua


importância. Na Itália, o superestrato lombardo teve uma significativa influência,
principalmente lexical, atestada pela presença de cerca de 300 palavras no léxico
italiano (lomb. spehon > it. spiare). Especificamente em relação ao romeno, cabe
salientar que este recebeu grande influência do superestrato eslavo nos diversos níveis
linguísticos: na fonologia, emprestou as vogais posteriores guturalizadas //e /â/; na

morfologia, o eslavo legou ao romeno inúmeros sufixos, todos bastante produtivos.

Mattoso Câmara (1970, p. 42) define adstrato como “toda língua que vigora ao
lado de outra, num território dado, e que nela interfere como manancial permanente de
empréstimos”. Para a ocorrência do adstrato bastaria, então, que dois povos vizinhos
cujas línguas fossem diferentes mantivessem uma relação que permitisse a troca entre os
idiomas. A diferença do adstrato para o substrato e o superestrato é que naquele não há
o desparecimento de uma das línguas, como ocorre com estes: as línguas convivem e
influenciam-se. O árabe foi a língua que talvez mais tenha convivido com a língua latina
e suas descendentes na região da Ibéria, fornecendo principalmente elementos lexicais
referentes à matemática, à química, à astronomia, mas também características fonéticas
pois, segundo Bassetto (2005), a população românica assimilou em parte o ritmo
acentual do árabe, mantendo, consequentemente, a tônica nos empréstimos

39
proparoxítonos, nos paroxítonos terminados com líquida e em numerosos oxítonos. “A
conservação dessas tônicas de certa forma contraria tendências acentuais do português
de eliminar os proparoxítonos pela síncope da postônica e fazer coincidir a tônica com
fonemas líquidos e nasais”.

Em face do exposto nesta subseção, ratifica-se a ideia de que as línguas não


podem eximir-se do inter-relacionamento a que estão expostas continuamente, algumas
mais do que outras, mas mesmo aquelas em condição de isolamento acabam em algum
momento recebendo influências de outros idiomas. Conforme explicitado, essa troca é
apenas um dos fatores propulsores da mudança nas línguas, a qual é motivada muitas
vezes também por questões internas, inerentes a sua estrutura. E o fato é que se deve
entender que esse processo evolutivo é marcado pela ação tanto de fatores internos
como de fatores externos, atuando na maior parte das vezes ao mesmo tempo, sem a
existência de uma ordem ou sucessão necessária entre eles.

Após a explicitação, ainda que de forma geral, dos contextos relacionados às


origens das línguas românicas, além dos principais fatores relacionados à mudança, a
próxima seção apresentará resumidamente as fases de evolução das línguas românicas,
com o interesse voltado para o português, língua que constitui o foco deste trabalho.

2.2.3 Fases da evolução das línguas românicas: do latim ao português

Ao tratar-se da diacronia das línguas românicas, é comum proceder-se a uma


divisão que delineia três fases evolutivas nesse processo: a fase latina, a fase romance e
a fase das línguas românicas modernas.

Segundo Bassettto (2005), à fase latina corresponde o período em que o latim


vulgar e urbano era a língua do Império (aproximadamente do século VI a.C. até o
século V ou VI d.C.), a qual já apresentava variações determinadas por razões de
diversas ordens, como é característico de toda e qualquer língua em uso. A atuação dos
fatores de fragmentação da língua latina14 proporcionou uma rápida mudança, de acordo
com a região, produzindo uma série de variedades do latim vulgar. Embora muitos
romanistas defendam a existência de uma homogeneidade absoluta, na busca de uma
fonte latina única, as divergências quando do detalhamento das línguas românicas

14
Foram tratados na seção 2.2.2: substrato, superestratos, variações dialetais, etc.

40
atestam a diversidade das bases latinas, justificadas pelo período em que determinadas
regiões estiveram submetidas à latinização15, pela dificuldade de acesso e comunicação,
dentre outras questões já abordadas na Seção 2.2.1, embora também não se possa negar
a uniformidade básica existente entre as línguas que se originaram do latim.

Segundo Teyssier (2007) e Silva Neto (1979), embora haja o problema da falta
de documentação linguística desse período, a linha geral de evolução não deixa dúvidas
quanto à possibilidade de confirmar a acelerada derivação que transformou o latim
imperial em proto-romance, além de surgirem certas fronteiras linguísticas.
Provavelmente nessa época, desencadeia-se a evolução da sequência /kl/. Nesta posição,
a dorsal passa a iode e essa evolução é comum a todos os falares hispânicos. Porém, as
consequências não são as mesmas nas diferentes regiões: em galego-português, essa
sequência passa a lateral palatal, ao passo que em castelhano passa à africada (d).

A fase romance compreende o período em que o latim vulgar começa a se


modificar e vai até o surgimento das línguas românicas modernas. Sabe-se que esse
processo de transformação foi muito lento, sendo necessários vários séculos até a sua
completa implementação, razão por que se torna quase impossível determinar datas
específicas para seu início ou término. Porém, alguns fenômenos fonéticos, como a
perda de quantidade vocálica e a sua substituição pelo acento de tonicidade, tem a sua
ocorrência admitida entre os séculos IV e V.

Ainda, alterações morfológicas e sintáticas, como a substituição dos casos por


sequências preposicionadas, a criação de artigos, entre outros, tornaram-se claras apenas
nos séculos VII ou VIII. Assim, tem-se evidente a impossibilidade de precisar o
momento em que o latim passou a deixar de ser falado para dar lugar às línguas
românicas, pois esse processo, além de lento, foi gradual, sem a presença de um marco
divisor ou um limite cronológico. O que ocorreu foi que essa série de modificações fez
com que o latim, em um determinado momento, deixasse de ser entendido por grande
parte da população, ficando restrito apenas àqueles que frequentavam as escolas,
normalmente nobres e clérigos.

A essa nova variedade deu-se o nome de romance e sabe-se que a atitude das

15
Refere-se ao período em que houve a expansão do Império Romano e, consequentemente, da Língua
Latina que, por sua vez, recebeu influências das línguas dos povos conquistados.

41
pessoas cultas em relação a ele era parecida como a dos gramáticos latinos em relação
ao latim vulgar, ou seja, de certa reprovação16, porém este se constitui como um grande
passo na evolução do latim às línguas românicas. Com a queda do Império, as forças do
substrato e do superstrato, além da falta de um fator de unificação (como foi a
administração romana, por exemplo), aceleraram o processo de fragmentação linguística
na România. Segundo Basseto (2005), no período romance essa desintegração foi tão
grande que nenhuma variedade linguística conseguiu a princípio destacar-se como
comum a alguma região mais vasta.

De modo geral, as línguas românicas tomaram sua forma literária definitiva nos
séculos XV e XVI – é possível identificar uma considerável diferença entre a língua dos
primeiros documentos e a literária moderna, como ocorre, por exemplo, no francês e no
castelhano17. Segundo Lima (2008), no conjunto de línguas românicas, as motivações
para que uma variedade dialetal seja levada à categoria de língua literária são de ordem
cultural e política, porém cada uma delas tem a sua história característica, além de uma
trajetória própria.

O galego-português surgiu entre os séculos IX e XII; os primeiros textos escritos


apareceram somente no século XIII. Nesta fase, três inovações que interessam ao
presente estudo podem ser assinaladas: a passagem dos grupos iniciais /pl/, /kl/ e /fl/ a
//; a queda de /l/ intervocálico e a queda do /n/ intervocálico. É importante ratificar que,

embora o mesmo fenômeno tenha ocorrido em diferentes regiões, nem sempre os


resultados acabam sendo os mesmos.

Mais algumas considerações, especificamente em relação à fonética e à


fonologia do galego-português merecem ser apresentadas. Por exemplo, o acento tônico
podia recair na última sílaba, na penúltima e muito raramente na antepenúltima. Quando
tônicos, os fonemas vocálicos do galego-português somavam-se em oito; na sílaba átona
final, reduziam-se a quatro, ao passo que na posição átona não final compunham um

16
Prova de que havia, em relação ao latim vulgar, certa desaprovação está presente no Appendix Probi,
uma reunião de 227 verbetes que intencionava preservar o uso da norma culta da língua latina, mas que
acabou registrando ainda a língua falada pelo povo (exemplo: masculus non masclus). Esta é uma fonte
muito consultada também por pesquisadores interessados nos processos fonológicos ocorridos do latim às
línguas românicas.
17
Como pode ser evidenciado nos poemas Chanson de Roland e Cantar del mio Cid, respectivamente.

42
grupo de cinco fonemas.

No sistema consonantal, destaca-se a presença de consoantes africadas, fator que


talvez mais afaste o sistema galego-português medieval do contemporâneo. Segundo
Teyssier (2007), nenhuma confusão ocorria entre as africadas e as fricativas, pois ambas
possuíam um status fonêmico no sistema. E essa distinção era reforçada também pela
grafia: por exemplo, a africada /t/ era escrita com -ch-, ao passo que a fricativa // era

escrita com -x-.

O galego começou a isolar-se do português desde o século XIV e, a partir do


século XVI, deixou de ser cultivado como língua literária e sobreviveu apenas no uso
oral. Além disso, sofreu uma série de “evoluções fonéticas” que o afastaram cada vez
mais do português, como o ensurdecimento das fricativas sonoras [z] e []. Ao mesmo

tempo, acentuam-se no interior do galego algumas diferenças dialetais e o vocabulário


acaba sendo largamente influenciado por hispanismos.

O português brasileiro assemelha-se muito ao de Portugal, na norma culta e na


popular. Segundo Basseto (2005), o português falado no Brasil (PB) seria mais
conservador que o europeu (PE). O autor aponta as principais diferenças fonéticas entre
as duas variantes: no Brasil, vogais seguidas de nasal na sílaba seguinte são
pronunciadas fechadas, enquanto que em Portugal o timbre é aberto18 (contâmos /
contámos); o /e/ pretônico no PB é sempre pronunciado, ainda que por vezes19 seja
realizado como [i] ou ainda sofra um abaixamento []. Em PE, nessa posição as

referidas vogais são sincopadas ou realizadas como []: no PB tem-se fechar (f[e]char),

menino (m[e]inino ~ m[i]nino ~ m[]nino), redondo (r[e]dondo ~ r[]dondo), em PE

f’char ~ f[]char, m’nino ~ m[]nino, r’dondo ~ r[]dondo; no PB, o ditongo /ei/ é

mantido em sílaba tônica, exceto quando a consoante seguinte é uma líquida ou fricativa
palatal (leite, falei, leito / terceiro ~ tercero, canteiro ~ cantero, beijo ~ bejo), enquanto
que no PE esse ditongo é pronunciado como [j] (l[j]te, cant[j]ro, b[j]jo). Em PE é

18
Essa mesma divergência em relação à abertura é verificada em vogais átonas pré ou postônicas,
pronunciadas fechadas no PB e abertas no PE, assim como as vogais resultantes de antigas crases, que
mantêm a mesma relação (PB: mordomo; PE mòrdomo)
19
Como nos casos em que atua o processo de harmonia vocálica.

43
comum a adição de um [] ao final de uma palavra terminada por líquida (sal[]~ sal,

sol[] ~ sol, Manuel[] ~ Manuel), bem como para se desfazer um hiato, o que não se

verifica no PB, que na verdade recorre à epêntese para facilitar a pronúncia de certos
encontros consonantais (advogado ~ ad[i]vogado/ad[e]vogado; corrupto ~
corrup[i]to), fenômeno este inexistente no PE. Ainda, no Brasil normalmente não há
alternância entre /b/ e /v/, cuja “oscilação” é bastante recorrente em Portugal ([v]ou ~
[b]ou; [v]iste ~ [b]iste)20.

Em resumo, pode-se verificar uma tendência à supressão e redução de vogais


átonas no PE, ao passo que no PB elas são mantidas. Em contrapartida, no Brasil é
comum a supressão de consoantes, principalmente as finais (especialmente /s/ e /r/, este
em formas verbais no infinitivo), o que não ocorre em Portugal. De qualquer forma,
apesar das generalizações apresentadas em relação às características fonético-
fonológicas do português, é imprescindível não deixar de considerar que uma
homogeneidade absoluta é completamente inconcebível, devido a diversas questões,
como amplitude do território brasileiro, influência de línguas de imigrantes na formação
do PB, dentre outros fatores responsáveis pela diversidade linguística que compõe o
português falado no Brasil. Porém, essas generalizações intencionam refletir aquilo que
pode ser considerado comum a grande parte das variantes do português no Brasil.

Conforme dados oriundos da História, a língua portuguesa foi trazida para o


território brasileiro, em sua versão europeia, no início do século XVI. Ao aportar em
terra brasileira, a língua imediatamente passou a receber influências das línguas dos
nativos e, posteriormente, dos escravos trazidos para o Brasil.

As línguas e dialetos falados pelos índios nativos e pelos escravos africanos


exerceram enorme influência na língua consolidada como português brasileiro,
sobretudo em aspectos lexicais. Entre as línguas indígenas, por exemplo, a que mais
contribuiu com o léxico do português foi o tupi. Dentre as contribuições das línguas
africanas, os grupos linguísticos que mais influenciaram o português foram o jorubá (ou
iorubá) falado pelas tribos nagôs, do grupo dos sudaneses, e o quimbundo falado pelos
bantos. Além disso, é preciso considerar ainda que a formação do português brasileiro
recebeu grande influência de outras línguas europeias, como o espanhol, o italiano, o

20
Esta alternância entre [b] ~ [v] ocorre apenas em algumas regiões de Portugal.

44
francês e o alemão, trazidas pelo processo de colonização imigrante, amplamente
difundido no Brasil.

Não há dúvidas em relação à percepção das diferenças existentes entre o


português europeu e o português brasileiro, a ponto de muitos linguistas, hoje,
defenderem o status de língua nacional, atribuído ao português do Brasil. Porém, há
uma grande divergência ainda em relação à possibilidade de se conceber a existência de
duas línguas portuguesas: uma europeia e outra brasileira21, fato, porém, que não se
pretende discutir neste trabalho.

Feita essa tentativa de síntese da evolução do latim às línguas românicas, mais


especificamente ao português, as Seções 2.3 e 2.4 tratarão especificamente do aparato
teórico necessário à análise do processo de fonologização na diacronia do português
com vistas à explicitação do funcionamento dos traços envolvidos nesse fenômeno.
Assim, em um primeiro momento, serão apresentadas as principais considerações a
respeito do processo de fonologização

2.3 Fonologização

O termo fonologização, muito recorrente nas explanações apresentadas por


Jakobson e Martinet, retoma seu espaço nas discussões atuais principalmente a partir do
trabalho desenvolvido por Kiparsky (2012), sendo, também, adotado no presente
trabalho. O significado atribuído ao termo é de inclusão de fonema(s) a um determinado
sistema, implicando nova oposição distintiva, acarretando, assim, alteração no
inventário fonológico da língua.

De maneira geral, a fonologização pode ser definida ainda como a alteração do


inventário segmental de determinada língua pela inserção de um fonema e,
consequentemente, a incorporação de novo contraste na fonologia desse sistema
linguístico. Porém, o processo de fonologização é na verdade um movimento bastante
complexo, cuja formalização envolve uma série de considerações ligadas ao
funcionamento da língua, as quais nem sempre são consensuais entre os linguistas.
Nesta seção, serão apresentadas diferentes considerações a respeito do tema, propostas
por dois dos principais linguistas que se debruçaram sobre a questão: Roman Jakobson e
André Martinet.

21
Para um melhor detalhamento dessa discussão, ver Tarallo (1994).

45
No estruturalismo, a fonologia diacrônica começou a desenvolver-se a partir dos
estudos de Roman Jakobson, um importante membro do Círculo Linguístico de Praga,
de quem a linguística recebeu inúmeras contribuições relacionadas aos fatos da
linguagem humana. Embora o autor tenha iniciado nesta área propondo restritamente
uma taxionomia22 das mudanças fônicas, deixando em segundo plano suas pretensões
explicativas, as considerações feitas em relação aos tipos de mudança merecem
destaque. Jakobson (1970) propõe uma divisão entre as mudanças que causam alteração
no sistema (fonológicas) e aquelas que não o modificam (extrafonológicas). Estas
últimas, por exemplo, referem-se à mudança que afeta as variantes sem causar
modificação no sistema fonológico. Porém, é importante ressaltar que Jakobson já
previa a possibilidade de fatos fonéticos serem motivadores de mudança fonológica: “as
mudanças fônicas que se manifestam no sistema fonológico podem ser vistas como
veículo de uma mutação fonológica ou de um feixe de mutações fonológicas”
(JAKOBSON 1970, p. 318).
Por outro lado, as mudanças fonológicas foram categorizadas levando-se em
consideração os tipos de processo que implicariam, como desfonologização,
fonologização e refonologização. A desfonologização provoca a perda de uma distinção
fonológica, como o que ocorreu no galego-português, que desfez a distinção fonológica
existente entre a africada /ts/ (cem) e a fricativa /s/ (sem), passando a um único fonema
/s/, ou seja, partindo de uma articulação fonética distinta passou-se a uma produção
idêntica, cuja distinção semântica se mantém sinalizada por meio da ortografia23. O
mesmo ocorreu com os pares /dz/ (cozer- co/dz/er) e /z/ (coser – co/z/er), /t/ (chaga-

/t/aga) e // (leixar-lei//ar), /d/ (trager – tra/d/er) e // (já-//á), em que a distinção

entre africadas e fricativas deixou de ser fonológica, em favor do traço fricativo.


Por sua vez, a fonologização é caracterizada por Jakobson (1970) como sendo o
processo de mudança que implica a formação de uma nova distinção fonológica, antes
inexistente. É o que marca no português, por exemplo, o surgimento de toda uma classe
inexistente no latim: os fonemas palatais. Os exemplos apresentados por Jakobson

22
Cabe lembrar que esta proposta foi duramente criticada por Martinet (1955, p. 46), por considerar que
Jakobson fazia “uma exposição na qual praticamente atribuía à fonologia diacrônica fins puramente
descritivos”, justamente porque a explicação dos fenômenos descritos não constituía o foco do estudo.
23
No português antigo, grafava-se com a letra “c” o correspondente africado /ts/ e com “s” o que
correspondia ao fonema /s/. Embora foneticamente essa distinção tenha se perdido, a ortografia preserva
até hoje essa diferença.

46
referem-se basicamente a variações fonéticas de um mesmo fonema que passaram a ser
fonemas distintos, como o que ocorreu no polábio antigo24, com os fonemas /x/ e /ç/.
Originalmente, o fonema /x/ era produzido como fricativa palatal surda [ç] ou como
fricativa velar surda [x], dependendo do tipo de vogal que figurava no contexto
seguinte, ou seja, essas eram apenas variantes fonéticas de um mesmo fonema. Quando
as vogais fracas médias e baixas sofreram o processo de coalescência, provocando
assim uma diferenciação em palavras como [sauxa] (feminino) e [sauça] (neutro), o par
x,ç passou a constituir uma oposição fonológica (JAKOBSON 1970, p. 322).
Já a refonologização seria o único processo de mudança fonológica que não
implicaria uma alteração na quantidade de fonemas do sistema, já que consiste em uma
reorganização de oposições fonológicas, ou seja, uma reorganização da própria estrutura
do sistema.
Embora as reflexões elaboradas por Jakobson, assim como o seu método de base
estruturalista e a terminologia proposta, tenham figurado em boa parte dos estudos de
análise diacrônica durante décadas, foram contraditados quanto aos fatores causadores
das mudanças fônicas pelos trabalhos de Martinet e seus seguidores, por exemplo. Para
Jakobson (op. cit), os fatores estruturais e funcionais são capazes de dar conta das
análises referentes à mudança fônica; já Martinet (1955) considera ainda a necessidade
de uma articulação entre os fatores estruturais e funcionais com os fatores acústico-
articulatórios. Logo, tem-se a delimitação de duas versões de uma mesma concepção: a
versão ortodoxa do estruturalismo diacrônico, na linha de Jakobson, e a versão
heterodoxa, na linha de Martinet.
Ambas têm importante papel na constituição da pesquisa em fonologia
diacrônica, até porque, apesar de diferentes, não apresentam qualquer divergência
profunda, apenas o foco da análise é que se diferencia: enquanto as formulações de
Jakobson seguem uma tendência teleológica, ou seja, voltada para a finalidade da
mudança, o modelo de Martinet concentra-se na explicação das causas das mudanças
fônicas.
Para Martinet (1955), assim como Jakobson propôs, haveria três tipos de
processos de mudança fonológica. Segundo o autor, a fonologização seria o surgimento
de um fonema novo, a partir da criação de um traço pertinente inexistente no estágio
linguístico anterior. Por exemplo, entre as vogais do latim vulgar não havia dois graus

24
Dialeto eslavo extinto, outrora falado na região do rio Elba.

47
na abertura das médias. O português implementou o traço /+ média aberta/, surgindo
assim o // e //. Da mesma forma, o latim vulgar não tinha o traço /+

palatal/25configurando o quadro consonantal, ao passo que o português, além de outras


línguas românicas, passou a considerar esse traço. Logo, o sistema consonantal
português foi enriquecido com os fonemas palatais //, //, //, //, figurando juntamente

com as vogais médias abertas como casos de fonologização.


Castilho (2011) diferencia fonologização e transfonologização, definindo a
transfonologização como “o surgimento de um fonema novo, mediante o
aproveitamento de um traço pertinente já existente no sistema” (CASTILHO 2011, p.
67). No português, a influência do traço /+ sonoro/, já existente no sistema,
proporcionou o surgimento dos novos fonemas consonantais /v/ e /z/, inexistentes26 no
latim, como correspondentes aos análogos surdos /f/ e /s/. Assim, o processo de
transfonologização seria fundamental na busca pelo equilíbrio do sistema fonológico, a
partir do preenchimento dos “espaços vazios” decorrentes do não aproveitamento
integral de um traço existente, o que acaba por corroborar o Princípio de Economia de
Traços27 proposto por Clements (2009), no sentido de que as línguas tendem a
maximizar as combinações de traços.
Por fim, a desfonologização constitui-se como a perda de um traço e o
consequente desaparecimento de fonemas. Tomando como base o latim, o português
perdeu o traço de quantidade, eliminando do sistema tanto vogais como consoantes
longas28 com valor fonológico, as quais desempenhavam um papel importante no

25
Estes traços não são os mesmos considerados por Clements (2009) em seu Modelo, o qual servirá como
base para as análises propostas neste estudo. Tais configurações (traço /+média aberta/ e /+palatal/) são
apresentadas por Castilho (2011), ao exemplificar com dados do Português aquilo que Martinet definia
como fonologização.
26
Isso não quer dizer que o processo tenha produzido os fonemas sonoros exemplificados “ao mesmo
tempo”, já que a fricativa sonora /v/ não constituía o sistema consonantal do latim clássico, porém alguns
autores entendem que possivelmente já integrava o sistema do latim vulgar, conforme atesta quadro
apresentado por Ilari (2008, p. 78).
27
Uma explanação mais completa deste Princípio será apresentada na Seção 2.4.
28
Cabe atentar, porém, para o fato de que há autores os quais defendem a ideia de que o português ainda
possui consoantes geminadas: é o caso de Monaretto (1994), que entende haver no português um único
fonema vibrante – o r-fraco, também nomeado tepe -, sendo que a realização deste segmento em contexto
intervocálico, por exemplo, poderia ocorrer na forma geminada, manifestando-se como r-forte; e Wetzels
(2000), que considera as soantes palatais como geminadas fonológicas no PB, devido ao seu
comportamento particular se comparadas às demais soantes.

48
sistema fonológico latino. No italiano, outra língua românica, diferentemente do
português, porém, essa distinção pela quantidade foi preservada, em grande parte no
sistema consonantal.
Diferente de Jakobson, que restringe suas observações à descrição da mudança,
bem como sua função/finalidade (visão teleológica da mudança) conforme já foi
destacado, Martinet recorre à teorização explicativa ao abordar as possíveis causas da
mudança, articulando os fatores linguísticos com os fatores que ele chama de externos
ou fisiológicos, a fim de apresentar um quadro causal de diversas mudanças. De
qualquer forma, especificamente em relação ao processo de fonologização, ambos
tecem considerações importantes a respeito do fenômeno, as quais serão acolhidas neste
estudo.
Muitas das considerações apresentadas por Jakobson e Martinet em relação aos
processos de constituição dos inventários e a estruturação dos fonemas serviram como
base para o desenvolvimento de diferentes propostas de análise fonológica, alicerçadas
tanto na ideia de que há princípios universais os quais orientam a constituição dos
inventários das línguas (MARTINET, 1955) como no fato de que os traços é que se
constituem como unidades mínimas no sistema fonológico, conforme propõe Jakobson
(1939). Assim, a seguir, são apresentados os pressupostos teóricos que guiam as
análises propostas neste trabalho: Teoria Autossegmental (CLEMENTS e HUME,
1995) e Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009),
que delineiam um constante diálogo com as ideias apresentadas pelos referidos
linguistas.

2.4 Os traços como objeto de análise da linguística

Trubetzkoy (1976 [1939]) elaborou detalhadamente o conceito de fonema como


conjunto de traços com valor contrastivo, assim como a ideia de arquifonema como
resultado da neutralização de dois fonemas, estabelecendo ainda princípios para a
análise fonológica, trazendo, para a exemplificação, diferentes línguas (BISOL, 2006).

O autor apresentou a noção de traços em sua obra intitulada Grundzuge der


Phonologie (1939), na qual explica que os traços marcam a fronteira entre uma forma e
outra na cadeia de fala (LYONS, 2009, p. 167). Para o linguista, a fonologia deveria dar
conta da função linguística dos sons como membros de oposições fonêmicas. O fonema
era sua menor unidade fonológica, entendido como “oposição” que existia somente

49
dentro de um sistema de língua, não tão autônomo quanto os blocos de constituição
segmental, que mais tarde se tornaram os “traços distintivos” de Jakobson, e através
dele, aparecem como unidades fundamentais na Fonologia Gerativa de Chomsky e
Halle.

Já para Jakobson (1939), os traços (e não os fonemas) são considerados as


unidades mínimas. Enquanto a teoria de Trubetzkoy consistia em captar as propriedades
fonológicas de contrastes fonéticos mais frequentes, Jakobson, Fant & Halle (1952) e
Jakobson & Halle (1956), entre outros, buscavam desenvolver uma teoria fonológica
que fosse capaz de predizer apenas aquelas oposições possíveis nas línguas.
Particularmente, Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956) tinham
como hipótese que a presença de determinadas oposições fonéticas excluía a presença
de outras oposições, ao mesmo tempo em que haveria um número limitado de traços (12
a 15) que, juntos, dariam conta de todas as oposições encontradas nas línguas do
mundo.

Como muito mais que 12 ou 15 características fonéticas são necessárias para


distinguir os vários sons das línguas do mundo, Jakobson, Fant & Halle (1952) e
Jakobson & Halle (1956) defendem a ideia de que nem sempre o que define uma
distinção fonética é capaz também de distinguir segmentos fonologicamente. Assim,
assumem a ideia de que o conjunto de traços fonológicos pode não ser o mesmo
conjunto de características fonéticas. Para Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson &
Halle (1956), apenas o conjunto de traços fonológicos é necessário para dar conta das
oposições encontradas nas línguas do mundo.

Enquanto a ênfase de Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956)
centrava-se na captura de todos os contrastes fonológicos possíveis das línguas,
Chomsky & Halle (1968) buscavam, como Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson
& Halle (1956), captar os contrastes fonológicos das línguas, além de descrever o
conteúdo fonético dos segmentos derivados por regras fonológicas, bem como os
segmentos fonêmicos. Ainda que o sistema de traços distintivos de Chomsky & Halle
(1968) em The Sound Pattern of English (SPE) seja, em grande parte, baseado nos
trabalhos de Jakobson, Fant & Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956), ele apresenta
algumas diferenças, principalmente referentes ao conjunto de traços distintivos
utilizados para captar contrastes, bem como em relação ao conceito de tais traços.

50
Chomsky & Halle (1968) mantiveram traços como consonantal, tenso, vozeado,
contínuo, nasal e estridente, e acresceram novos traços ao sistema de Jakobson, Fant &
Halle (1952) e Jakobson & Halle (1956), tais como silábico, soante, alto, posterior,
baixo, anterior, coronal, arredondado, ATR e soltura retardada. Com a inserção desses
traços no sistema de Jakobson, proposto anteriormente, Chomsky & Halle (1968)
tinham o objetivo de substituir do antigo sistema aqueles traços cuja orientação era de
base acústica, por traços orientados articulatoriamente.

Embora os referidos autores tenham se debruçado sobre as questões relacionadas


à caracterização dos traços que compõem os fonemas integrantes dos inventários das
línguas, seus modelos teóricos tratam o segmento como uma coluna de traços, dispostos
em uma matriz sem qualquer estrutura interna, por essa razão denominados de modelos
lineares. Porém, propostas posteriores de análise fonológica com base no sistema de
traços evidenciam a possibilidade de se conceber que os traços estejam organizados
hierarquicamente, estabelecendo relações de ordem diferente daquelas previstas nos
modelos lineares, concebendo assim uma maior autonomia para o funcionamento dos
traços. É sobre o que se pretende discorrer a seguir.

2.4.1 Modelos não lineares: Teoria Autossegmental

Diversos estudos têm sido realizados no Brasil com o intuito de compreender o


funcionamento das unidades fonológicas mínimas nos processos de aquisição, variação
e mudança. Essas pesquisas, normalmente, encontram-se amparadas em teorias
fonológicas, dentre elas a Fonologia Autossegmental (GOLDSMITH, 1976), e tal
condução tem permitido a confirmação do seu potencial explicativo, no momento em
que são capazes de dar conta dos fatos relacionados à aquisição por parte da criança e
do adulto, da variação e inclusive da mudança.

Quanto aos modelos não lineares, que preponderam em estudos


contemporâneos, talvez a teoria que mais se desenvolveu ou que ainda mais influencia
os estudos fonológicos, particularmente ao tratar-se do comportamento de segmentos, é
a Fonologia Autossegmental, que por sua vez é a base para os desdobramentos
desenvolvidos por Clements (1985), em sua proposta de Geometria de Traços, e
Clements e Hume (1995), na conhecida Teoria Autossegmental .

A diferença da Fonologia Autossegmental proposta por Goldsmith (1976) para

51
os modelos lineares dá-se considerando basicamente dois aspectos. Primeiro, essa
proposta deixa de conceber a existência de uma relação bijetiva entre o segmento e o
conjunto de traços que o caracteriza, o que permite entender, consequentemente, que os
traços podem estender-se além ou aquém de um segmento e que o apagamento de um
segmento não implica necessariamente o desaparecimento dos traços que o constituem.

O segundo aspecto em que a Fonologia Autossegmental diferencia-se dos


modelos ditos lineares está no fato de que os segmentos se compõem de uma estrutura
interna organizada em níveis, nos quais estão dispostos os traços, estes ligados por meio
de linhas de associação. É essa relação hierárquica que permite o funcionamento
autônomo dos traços, evidenciado através da Geometria de Traços (CLEMENTS,
1985), por meio de um diagrama arbóreo.

A partir do reconhecimento de que há um ordenamento nas relações entre os


traços, os segmentos podem ser analisados em camadas ou tiers, de forma que as partes
dos segmentos podem ser tomadas independentemente. Nesta concepção, os segmentos
são representados a partir de uma organização interna, evidenciada por meio de
configurações de nós hierarquicamente ordenados, sendo que os nós terminais
comportam traços fonológicos, enquanto que os nós intermediários se relacionam a
classes de traços.

Nessa configuração, além de os traços estarem ligados aos nós de classe por
meio de linhas de associação, existe ainda uma relação de dependência entre os traços,
ou seja, o traço do nó imediatamente superior domina o nó inferior, e a mudança no nó
de classe superior implica mudança no nó inferior. Além disso, tal configuração também
permite revelar que os traços podem atuar tanto isoladamente como em um conjunto
solidário.

A Teoria Autossegmental, modelo pós-chomskiano, caracterizando-se por


integrar o conjunto de teorias fonológicas denominadas não lineares, tem, portanto,
como objeto de estudo o segmento e sua estrutura interna – esse foco torna o modelo
teórico de substantiva importância para o presente estudo, cujo objetivo é proceder a
uma análise cujo foco concentra-se no comportamento dos traços no processo de
fonologização, na diacronia do Português.
A partir do entendimento de que o segmento apresenta uma estrutura interna,

52
isto é, que existe uma hierarquização entre os traços que compõem cada segmento das
línguas, é possível apresentá-la através de um diagrama arbóreo organizado em camadas
ou tiers, tal como se pode verificar no exemplo em (1):

Figura 1: Diagrama arbóreo de acordo


Fonte: com Clements & Hume (1995)
........
Fonte: Clements & Hume (1995)
No diagrama apresentado, r representa o nó de raiz, que corresponde ao
segmento propriamente dito. Os nós A, B, C, D representam nós de classe, dominantes
de grupos de elementos que funcionam como unidades ou classes naturais em regras
fonológicas. Os nós C e D mantêm a mesma dependência de B. Os nós terminais
a,b,c,d,e,f,g são traços fonológicos. O nó de raiz é dominado por uma unidade abstrata
de tempo X. As linhas que ligam os nós são chamadas linhas de associação.
Essa estrutura é chamada de geometria de traços, mostrando cada traço em um
tier, possibilitando o seu funcionamento independente, como também vinculado a nós
de classe, permitindo o seu funcionamento em conjuntos solidários. Essa estrutura
interna dos segmentos permite demonstrar a naturalidade dos processos fonológicos que
ocorrem nas línguas do mundo. A existência de cada nó de classe e a subordinação de
traços no diagrama não é aleatória, ou seja, os nós têm razão de existir quando há
comprovação de que os traços que estão sob o seu domínio funcionam como uma
unidade em regras fonológicas (MATZENAUER, 2005).
De acordo com os pressupostos da Fonologia Autossegmental, os segmentos
deixaram de ser compreendidos como conjuntos desordenados de traços, passando a ser
representados através de uma estrutura hierarquizada. Com essa concepção, é possível
estabelecer a distinção entre três tipos de segmentos: segmentos simples, complexos e
de contorno.
Segundo Clements e Hume (1995, p. 253), um segmento é simples ao apresentar
somente um nó de raiz e ser caracterizado por, no máximo, um traço de articulação oral,

53
como fica atestado pelas representações em (2):

Figura 2: Representação de segmento simples de acordo com Clements & Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)
Um segmento é considerado complexo quando apresenta um nó de raiz e é
caracterizado por, no mínimo, dois traços de articulação oral. Um exemplo desse tipo
pode ser visualizado a partir da velar /kp/ do iorubá (CLEMENTS e HUME, 1995, p.
253), representado em (3):

Figura 3: Representação de segmento complexo de acordo com Clements & Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)

Um segmento é considerado de contorno quando possui a sequência de valores


de um mesmo traço. Há uma motivação clássica para que esse tipo de segmento seja
considerado, que é a existência de efeitos fonológicos de borda, ou seja, um segmento
pode ter o comportamento, em relação aos segmentos vizinhos em uma borda, conforme
o valor (+) de um traço, e, em relação aos segmentos vizinhos da outra borda, pode
comportar-se conforme o valor (-) do mesmo traço. As consoantes africadas e as
plosivas pré e pós-nasalizadas são os candidatos naturais para apresentar essa estrutura.
A geometria de uma pré-nasalisada pode ser visualizada a seguir, em (4):

54
Figura 4: Geometria de uma consoante pré-nasalisada de acordo com Clements e Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)

Na Fonologia Autossegmental, há princípios que impõem limites à aplicação de


regras. Dentre eles, destaca-se o Princípio do Contorno Obrigatório (Obligatory
Contour Principle – OCP), segundo o qual elementos adjacentes idênticos são
proibidos. Por esse preceito, não só segmentos adjacentes idênticos, mas também traços
adjacentes idênticos em um dado tier, bem como regras que possam criar violações a
esse princípio são evitados. Outro princípio fundamental na teoria, que se constitui em
uma condição de boa formação, é o Princípio do Não-Cruzamento de Linhas
(Prohibition on Crossing Association Lines), pelo qual, em todo processo fonológico, as
linhas de associação que ligam os traços, que estão representados em camadas
independentes, não se podem cruzar. Há ainda, um princípio denominado Restrição de
ligação (Linking Constraint), segundo o qual as linhas de associação em descrições
estruturais são interpretadas exaustivamente. A referida restrição impõe limite de
aplicação de uma regra à forma que nela é representada; desse modo, se contiver uma só
linha de associação, é bloqueada em contextos de ligação dupla e vice-versa. Tal
princípio, assim, prediz que toda regra se aplica somente a configurações que contêm o
número de linhas de associação que a sua descrição estrutural especifica
(MATZENAUER, 2005, p.67).
Comumente, a cada segmento corresponde uma posição X na linha temporal ou
esqueletal. As consoantes geminadas e as vogais longas, no entanto, ocupam duas
posições nessa linha, ou seja, apresentam dois tempos. Esses segmentos, apesar das
duas posições X, têm a mesma estrutura interna. Assim, por força do OCP, que proíbe
sequências de segmentos idênticos adjacentes ligadas a duas unidades de raiz, os
segmentos geminados são representados com um nó de raiz de ligação dupla, ou seja,
ligado a duas unidades de tempo, conforme a figura em (5):

55
Figura 5: Uma raiz com ligação dupla para a camada temporal: segmentos geminados
de acordo com Clements e Hume (1995)
Fonte: Matzenauer (2005)

A duração de dois tempos em oposição a um tempo apenas, que era fonológica


em latim, tanto para vogais como para algumas consoantes, foi perdida em sua evolução
para o português29. De acordo com Coutinho (1973, p.120), as consoantes geminadas
latinas, no interior das palavras, reduzem-se a consoantes simples em português. Zágari
(1988, p.105) explica que, na evolução do latim para o português, houve um processo
de desfonologização da quantidade, ou seja, com exceção do italiano e do sardo, as
demais línguas românicas não mantiveram o valor do traço [longo], segundo o modelo
de Chomsky & Halle (1968). Perdeu-se no período românico, portanto, uma oposição
distintiva, sendo que essa perda foi devida ao seu baixo rendimento funcional.

Em sentido oposto, para analisar a possibilidade de existência de consoantes


geminadas no português, especificamente no caso da vibrante em contexto intervocálico
(r-forte), Monaretto (1992,1997) apoia-se em Harris (1983) e sua pesquisa sobre a
vibrante no espanhol. Segundo a autora, há um único fonema r no sistema do português
e a vibrante múltipla intervocálica funciona como uma geminada heterossilábica. Na
palavra carro, por exemplo, haveria dois r fracos que, em razão do OCP (Princípio do
Contorno Obrigatório), seriam reduzidos a um segmento, com uma ligação dupla,
indicando que a vibrante ocupa duas posições temporais, característica específica das
geminadas. Ainda sobre possíveis geminadas no português, Wetzels (1997) analisa as
palatais // e // como geminadas, argumentando que esses sons ocorrem somente entre

vogais e nunca são precedidos por uma consoante ou por um ditongo. Além disso,
lembra que, em empréstimos, esses segmentos em início de palavra recebem uma vogal
epentética ([i]nhoque, [i]lhama) e que qualquer vogal é nasalizada diante de //.

Porém, a não manutenção da distinção pela quantidade é fato amplamente


difundido na literatura. Segundo Coutinho (1973), o fenômeno que implicou na
simplificação das geminadas “já se havia operado no próprio latim vulgar. São

29
Embora haja propostas de que o PB possui consoantes geminadas, conforme já explicitado na Nota 21.

56
frequentes, em inscrições, exemplos como mile, anus”. Essa simplificação reescreveu as
consoantes dobradas em simples, representada no esquema a seguir, como se verifica no
exemplo: ga /t/ o < ca /tt/ u.

C1 C2 C3 onde C1 = C2 = C3

Pela representação, é possível entender-se que a consoante resultante (C3) é


igual, em sua estrutura, às consoantes que lhe deram origem (C1 C2), fenômeno que, na
Fonologia Autossegmental, vai poder ser claramente explicado a partir da representação
em (6). Nela, vê-se que C1 C2 são segmentos idênticos, constituídos pelo mesmo
conjunto de traços: uma só estrutura interna ligada a duas unidades de tempo.

Figura 6: Geometria de traços de segmentos que constituem uma consoante geminada, sem a
operação do OCP

A representação em (6) define a estrutura interna das consoantes geminadas.


Por sua estrutura melódica ser igual, viola o Princípio do Contorno Obrigatório (pois
proíbe elementos adjacentes idênticos), que, então, passa a operar; o resultado é
formalizado por uma ligação dupla, portanto não-linear. Dessa forma, surge a estrutura
representada em (5), em que se tem dois tempos fonológicos ligados a uma raiz,
situação determinada pelo OCP. Na estrutura silábica, a primeira parte do segmento
geminado ocupa a posição de coda da sílaba precedente e a segunda parte, o onset da
sílaba seguinte30. Assim, evidencia-se a explicitação da estrutura interna dos segmentos
oferecida pelo modelo, que permite um melhor conhecimento do funcionamento do
processo de mudança que se opera dentro dos sistemas.
30
A sílaba apresenta, em sua estrutura, segundo Clements & Keyser (1983), três constituintes: onset,
núcleo e coda.

57
2.4.2 Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009)

Ainda com foco no traço como unidade da fonologia, Clements (2005, 2009)
propôs que princípios universais fundamentados em traços são responsáveis pela
constituição dos inventários das línguas naturais – interpreta-se, portanto, que a noção
de fonologização está presente no modelo do autor. Clements propôs um Modelo de
Princípios Fonológicos Baseados em Traços, que integra cinco princípios
(CLEMENTS, 2009; LAZZAROTTO-VOLCÃO, 2010; MATZENAUER, 2009; 2011):

Limitação de Traços: este princípio faz referência ao poder que os traços possuem para
aumentar o número de categorias potencialmente contrastivas em um sistema. Traços
estabelecem um limite máximo quanto ao número de sons de uma língua, bem como
quanto ao número de contrastes que nela podem aparecer.

De acordo com Clements (2009, p. 24), o número máximo de sons de uma


língua é expresso pela fórmula pela fórmula 2n, em que n se refere ao número de traços.
Desse modo, por exemplo, uma língua com 2 traços pode ter no máximo 4 sons
contrastivos. Para calcular o número de contrastes que podem aparecer numa língua, é
usada a fórmula C = (S* (S-1)) / 2, em que C indica o número de contrastes e S o
número de sons. Uma vez que o número máximo de sons é 2n, o número máximo de
contrastes de uma língua com n traços será 2n*(2n-1))/2. Assim, uma língua que possua
2 traços contrastivos terá 6 contrastes.

Economia de Traços: de acordo com esse princípio, os traços, uma vez presentes em
um sistema, tendem a ser combinados maximamente, embora nenhuma língua do
mundo utilizar todas as combinações possíveis. Nesse sentido, em uma língua
determinado traço mostra-se eficiente se os dois valores deste traço integram o sistema.

Segundo Clements (2001), as representações fonológicas não precisam conter


todas as informações possíveis, a não ser aquelas necessárias para o entendimento dos
padrões das línguas. Nessa perspectiva, os traços e demais informações advindas da
gramática universal que não são empregados em uma dada língua permanecem latentes,
estando disponíveis para tornarem-se distintivos ou ativos como resultado de influências
no desenvolvimento da língua, seja por contato com outras línguas, mudanças históricas
internas ou qualquer outro fator dinâmico dessa natureza.

58
De fato, os sistemas fonológicos estão organizados a partir de somente alguns
traços, que dão origem a grande número de contrastes. Desse modo, há a tendência para
usar novamente traços que já estejam ativos nessa língua. Segundo Clements (2009,
p.28) o traço [voz] é usado com máxima eficiência em inglês, na classe das oclusivas, já
que permite duplicar o número de sons. Pelo contrário, o traço [lateral] é usado com
mínima eficácia, pois opõe apenas /l/ e /r/. Dessa forma, por exemplo, o índice de
economia do português poderia ser melhorado se fossem acrescentados os fonemas /t/,

/ʤ/ e /ŋ/, pelo fato de que os traços caracterizadores desses sons já estão ativos no
sistema.

O Princípio da Economia de Traços pode ser determinado por meio do cálculo


do seu índice de economia, utilizando-se a fórmula E = S / T, em que E indica o índice
de economia, S indica os sons e T os traços distintivos. Quanto maior o resultado, mais
econômica é a língua. A maximização do índice de economia pode ser conseguida
através do aumento do número de sons no sistema, mas não de traços, ou através da
diminuição do número de traços, mas não de sons. Conforma Amorim (2015), por
exemplo, o índice de economia do português poderia ser melhorado acrescentando os
sons /ʧ/, /ʤ/ e /ŋ/, já que os traços que caracterizam estes sons já estão presentes no
sistema.

De acordo com o autor, pode-se obter a maximização do índice de economia por


meio do aumento do número de sons no sistema, mas não de traços, ou através da
diminuição do número de traços, mas não de sons. Segundo Clements (2009, p. 28-29),
é possível encontrar exemplos de ambas as estratégias nos sistemas fonológicos. Em
primeiro lugar, o aumento do número de sons, mantendo o número de traços reflete-se
em mudanças históricas que fonologizam novos segmentos por meio da recombinação
de traços existentes (MARTINET, 1955). Em segundo lugar, diminuindo o número de
traços e mantendo o número de sons constantes, reflete-se na eliminação histórica
frequente de fonemas ''isolados'', os quais não se enquadram em padrões regulares de
correlação com outros sons; sendo esses sons eliminados, o traço que anteriormente os
caracterizava torna-se redundante.

Ao propor o Princípio de Economia de Traços, Clements (2009) evidencia


entendimento que pode ser considerado análogo ao de Martinet (1973) em relação à
maneira como os inventários das línguas se constituem em termos de correlações de
traços.

59
São evidentes as vantagens teóricas da articulação dos fonemas em
traços distintivos. Numa língua de 12 fonemas consonânticos, se cada
um deles possuir articulação específica, os utentes terão de manter
distintas doze articulações; mas se puderem combinar-se sem
dificuldade 6 articulações com uma ou com a outra de duas acções
diferentes dum mesmo órgão, bastará aos doze fonemas que se
mantenham distintas 8 articulações, das quais cada uma das seis
primeiras se combinará sempre com uma das outras duas. Assim
procede o português, que, combinando os traços [bilabial],
[labiodental], [apical], [sibilante], [chiante] e [dorsal] ora com o traço
[sonoro] ora com o [surdo], obtém os doze fonemas /pbtdkgfvsz/: a
existência da correlação de sonoridade permite uma economia
marcada pela proporção de 8 para 12 (MARTINET, 1973, p. 209).

O traço [+voz] na classe das obstruintes no português ilustra claramente a


utilização do traço com máxima eficiência, pelo fato de dobrar o número de plosivas e
fricativas que estão em relação de oposição. Por outro lado, o traço [nasal] é totalmente
ineficiente para as fricativas, em razão da dificuldade de obter-se a pressão de ar
necessária para produzir o som fricativo e ainda permitir a passagem de ar pela cavidade
nasal. Segundo Clements (2009), todas as línguas possuem algum nível de economia e
todas tendem a evoluir na direção deste princípio.

Evitação de Traços Marcados: esse princípio afirma que certos valores de traços
tendem a ser evitados pelas línguas. A base para a classificação de um traço como
marcado ou não marcado é a frequência, ou seja, “o valor de um traço é marcado se
estiver ausente em algumas línguas; de outro modo, será não-marcado” (Clements,
2009, p. 35). Assim, de acordo com o referido autor, os seguintes valores de traços
correspondem aos mais marcados: [+soante]; [+contínuo]; [+nasal]; [+estridente];
[+posterior]; [+lateral]; [glote aberta].

O Princípio de Evitação de Traços Marcados interage diretamente com o


Princípio de Economia de Traços: as línguas tendem a evitar traços marcados, no
entanto, uma vez que um valor marcado esteja presente no inventário fonológico, este
tende a ser combinado com máxima eficiência, pois o Princípio de Economia cria uma
pressão para que o traço seja utilizado.

A interação entre o Princípio da Evitação de Traços Marcado e o Princípio da


Economia permite prever que o número de sons marcados numa classe nunca será
superior ao número de sons não marcados. Quando esse número é igual, como é o caso
das consoantes fricativas [±voz] no português, o Princípio da Economia sobrepõe-se ao
Princípio da Evitação de Traços Marcados, maximizando a presença do traço marcado

60
[+voz] no sistema. Essa interação entre os princípios, ainda que de forma antagônica, é
possível pelo fato de estes serem entendidos como forças e não como leis invioláveis,
admitindo, assim, exceções.

Reforço de Traços: esse princípio refere-se ao fato de valores marcados de traços


poderem ser introduzidos em um sistema para reforçar contrastes perceptualmente
fracos.

De acordo com Clements (2009, p. 50), o Princípio de Reforço de Traços atua


quando é introduzido o valor marcado de um traço para reforçar um contraste já
existente entre duas classes de sons, ainda que isso resulte em uma violação ao Princípio
de Evitação de Traço Marcado. Dessa forma, o reforço do contraste é alcançado com a
introdução de um traço redundante que aumenta as diferenças acústicas entre os sons. A
adição do traço [+ estridente] às plosivas com traço [coronal] pode servir como um bom
exemplo para ilustrar este princípio, pois o traço [+estridente] aumenta a distância
auditiva entre /t/, que é estridente, e /t/, que não é estridente. Clements (2009, p. 51)

exemplifica uma possibilidade de atuação do Princípio de Reforço no sistema do


português, a partir do traço [+nasal]:

(…) [+nasal] reforça [-contínuo] em consoantes soantes; assim, a


plosiva nasal /n/, com sua ressonância nasal pronunciada, é mais
distinta das contínuas orais como // ou // do que das não contínuas
orais como /l/.
Robustez: esse princípio diz respeito ao fato de certos contrastes, relativos a traços mais
robustos, apresentarem a tendência de serem mais frequentes, se comparados a
contrastes relativos a traços menos robustos. Em uma hierarquia universal de traços, os
contrastes de traços de valor mais alto tendem a ser empregados antes daqueles de valor
mais baixo (valor corresponde à posição na hierarquia de robustez).

Com base no Princípio da Robustez, Clements (2009) procura explicar o modo


como as línguas elegem quais traços estarão ativos em seus inventários, considerando o
conjunto tão variado existente. A seleção dos traços na constituição dos sistemas
fonológicos, segundo esse princípio, toma como referência os contrastes estabelecidos
entre os traços. Clements (2009) fez essas previsões a partir do levantamento
apresentado no Quadro 1, no qual o autor demonstra quais os contrastes mais e menos

61
frequentes nas línguas descritas no UPSID (University of California Los Angeles –
UCLA - Phonological Segment Inventory Database)31

Quadro 1 – Frequência de contrastes – UPSID (CLEMENTS, 2009, p.44-45)

Exemplo Porcentagem Traço(s)


(UPSID)
a. obstruinte dorsal x coronal 5 99.6 [dorsal], [coronal]
K/T
soante x obstruinte N/T 98.9 [±soante]

obstruinte labial x coronal P/T 98.7 [labial], [coronal]

obstruinte labial x dorsal P/K 98.7 [labial], [dorsal]

soante labial x coronal M/N 98.0 [labial], [coronal]

b. soante contínua x não-contínua J/N 93.8 [±contínuo]

obstruinte contínua x não- S/T 91.6 [±contínuo]


contínua
soante posterior x anterior J/L 89.6 [±posterior]

c. obstruinte sonoras x surdas D/T 83.4 [±voz]

soante não-contínua oral x nasal L/N 80.7 [±nasal]


d. obstruinte posterior x anterior T/T 77.6 [±posterior]

consoante glotal x não-glotal H/T 74.5 [glotal]

Fonte: Clements (2009)

Dessa forma, traços que se constituem em uma frequência maior de contrastes


são posicionados na parte superior da escala, enquanto que aqueles traços menos
frequentes em termos de contrastes são posicionados na parte inferior da escala. Em
relação à aquisição, o autor afirma que os contrastes mais altos na hierarquia, ao
longo do processo, são adquiridos mais cedo do que os contrastes mais baixos. O
autor salienta ainda que os traços robustos, geralmente, potencializam características
como saliência e economia a um custo articulatório baixo e que, quanto maior a
robustez de um traço, maior sua capacidade em se combinar livremente com outros
traços. No Quadro 2 são apresentados exemplos de contrastes mais e menos
robustos, segundo Clements (2005, 2009, p. 43).
Quadro 2: Constrastes robustos

Mais robusto Menos robusto

31
Banco de dados disponível em http://www.linguistics.ucla.edu/faciliti/sales/software.htm

62
soantes versus obstruintes apical versus não-apical
labial versus coronal versus dorsal central versus lateral
nasal versus oral aspirado versus não-aspirado
plosivas versus fricativas (contínuas) glotalizado versus não-glotalizados
sonoras versus surdas implosivo versus explosivo
Fonte: Clements (2009)

Assim, a partir da análise dos dados e do comportamento dos traços na


constituição do inventário das línguas, Clements (2009, p. 46-47) propõe a Escala de
Robustez para os traços apresentada no Quadro 3:

Quadro 3: Escala de Robustez (Clements, 2009, p. 46-47)

a) [soante]
[labial]
[coronal]
[dorsal]

b) [contínuo]
[anterior]

c) [voz]
[nasal]

d) [glotal]

e) outros

O autor salienta que os traços apresentados dentro de cada nível não estão
ordenados e que para o grupo “e” podem ser apontados como possibilidades os traços
[lateral], [±estridente], [±distribuído] e [glote aberta]. A partir dessa escala, o autor
propõe o já referido Princípio de Robustez, entendendo que qualquer classe de som na
qual dois traços são potencialmente distintivos, contrastes mínimos envolvendo o traço
ranqueado mais abaixo estarão presentes somente se contrastes mínimos envolvendo
o traço mais altamente ranqueado também estiverem presentes (LAZZAROTTO-
VOLCÃO, 2010, p. 6).

Estudos sobre a aquisição fonológica têm se baseado no Modelo de Princípios


Fonológicos proposto por Clements no sentido de explicitar tendências universais de
constituição dos inventários fonológicos. Além da explicitação desses princípios, tais

63
estudos têm buscado explicar a gradativa construção dos inventários fonológicos
pelas crianças, seja em processo de desenvolvimento linguístico considerado típico ou
atípico, bem como estabelecer paralelos entre três fatos relevantes para o estudo do
funcionamento dos sistemas fonológicos: a aquisição de contrastes pelas crianças, a
variação linguística na fala de adultos e tipologias de línguas (MATZENAUER,
2008; 2009; LAZZAROTTO-VOLCÃO, 2009; AMORIM, 2015). Muitas destas
pesquisas centram seu foco em um desses princípios, particularmente relacionado à
robustez dos traços, incluindo ainda sua interação com outros dois, que conforme
apontado por Clements (2009) estão intimamente relacionados: o Princípio de
Economia de Traços e o Princípio de Evitação de Traços.

Os referidos estudos, a partir de Clements, guiam-se pela premissa de que há


uma hierarquia universal de traços respeitada pelas línguas na constituição de seus
inventários fonológicos: os traços em posição mais alta na hierarquia são licenciados
antes de os traços em posição mais baixa serem utilizados nos sistemas de segmentos.
Assim, o Princípio de Robustez explica o fato de as línguas não terem apenas plosivas,
ou apenas fricativas ou apenas nasais, por exemplo, além de dar conta ainda do fato de
as línguas não terem apenas consoantes não marcadas (Clements, 2009). Ainda, a
Robustez tem base na observação de que alguns contrastes são mais favorecidos e
outros menos favorecidos nos sistemas de sons (CLEMENTS, 2009; LAZZAROTTO-
VOLCÃO, 2010). É preciso atentar para a distinção que deve ser feita entre Robustez e
Marcação: a robustez é uma propriedade de contrastes com base em traços, enquanto
que a marcação é uma propriedade de valores de traços.

Segundo Matzenauer (2009; 2011), os princípios de Economia de Traços e de


Robustez efetivamente parecem dar forte substrato a generalizações ou tendências
universais identificadas na constituição de inventários fonológicos de línguas naturais,
além de poderem também oferecer bases estruturais para a determinação de tipologias
de línguas. A autora entende ainda que parece haver uma forte relação entre os
princípios e o processo de aquisição.

(...) a criança encaminha-se de um sistema muito pouco econômico


para um sistema que vai mostrando aumento do emprego contrastivo
dos traços, atendendo, gradativamente, em cada etapa com maior
eficácia, ao Princípio de Economia de Traços.
(...) a criança vai ativando traços e incrementando seu inventário
fonológico, atendendo plenamente à Escala de Robustez, uma vez que

64
se mostra evidente a tendência ao estabelecimento dos contrastes do
nível mais alto, e, consecutivamente, vão sendo incorporados os
outros níveis da Escala (MATZENAUER, 2009; 2011).

Ainda, no licenciamento de alofonias, estes mesmos princípios mostram-se


determinantes. Segundo a referida autora, a partir de análises feitas nos sistemas
variáveis do português, do espanhol do Prata e do inglês, é possível identificar a busca
da manutenção do índice de Economia de Traços e, nos casos em que é verificada a
alteração desse índice, os traços ativados nas formas alofônicas integram os níveis mais
baixos da Escala de Robustez.

O Princípio de Economia de Traços e o Princípio de Robustez, em


interação entre eles e com os outros propostos por Clements, parecem
responder não apenas pela constituição de inventários fonológicos,
mas também pelo funcionamento de formas alofônicas – a variação
intralinguística mostra-se limitada pelo sistema e por tendências
universais (MATZENAUER, 2009; 2011).

Em se tratando do processo de aquisição, Matzenauer (2015) aponta para o fato


de que “a expansão do inventário exige o espalhamento de traços, com a consequente
formação de classes de segmentos”. Dessa forma, a autora propõe a possibilidade de se
atentar também para a robustez do(s) traço(s) compartilhado(s) pelos segmentos que
gradativamente vão sendo adquiridos. Considerando que os traços compartilhados é que
estão subjacentes à constituição de uma classe de segmentos e que, ao se expandirem,
aumentam a classe, a autora entende então que “a ordem de aquisição de segmentos
poderia ser explicada por um conjunto de ‘forças’: a robustez dos traços no
estabelecimento de contrastes e a robustez de coocorrências de traços compartilhados
como base da expansão do inventário de segmentos (e da formação de classes
naturais)”. Matzenauer (op. cit) conclui em seu estudo que, em se comparando
tipologias de línguas e o processo de aquisição fonológica típico, é possível identificar
uma tendência “ao papel decisivo, na construção da gramática (na constituição de
inventários fonológicos e na expansão de classes de segmentos), de traços robustos na
aquisição de contrastes e também de coocorrências robustas de traços”. Dessa forma,
conclui ainda que coocorrências robustas de traços tendem a impulsionar precocemente
o processo de expansão do inventário fonológico durante o desenvolvimento fonológico
da criança.

Assim, cabe ressaltar que neste estudo é dada especial atenção às considerações
apresentadas por trabalhos relacionados à aquisição, à variação e às tipologias de

65
línguas pelo fato de saber-se que os fenômenos evidenciados nesses níveis se
relacionam diretamente com a diacronia das línguas e constituem o próprio processo de
mudança. A partir do Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em Traços
(Clements, 2009) e a partir dos estudos principalmente sobre aquisição do inventário
fonológico do português, é possível ampliar algumas questões que se pretende sejam
respondidas por meio das análises dos dados de diacronia do português:
- Em que medida é possível estabelecer uma articulação entre princípios universais e a
evolução histórica do inventário fonológico do português?
- Haveria relação entre as forças que atuaram sobre os segmentos do sistema
consonantal latino, condicionando o fenômeno da fonologização, e os Princípios do
Modelo proposto por Clements?
- A robustez dos traços possui na diacronia o mesmo poder de orientação dos processos
de expansão e solidificação dos sistemas, evidenciado em estudos de aquisição?
- Qual o papel da coocorrência de traços nos casos de fonologização identificados na
evolução do sistema consonantal do latim ao português?
Na busca de respostas para estas indagações, que se constituem em
especificações das questões trazidas na introdução desta Tese, encaminha-se nas
próximas seções a descrição dos dados de diacronia do português, bem como a análise
desses dados.

66
3 DELIMITAÇÃO DO CORPUS E DESCRIÇÃO DOS DADOS

Até o presente momento, objetivou-se explicitar, além da estruturação desta


pesquisa, também os pressupostos teóricos que orientam e sustentam as análises
desenvolvidas. Após a delimitação da temática central desta pesquisa – o processo de
fonologização na diacronia do português –, bem como a elaboração dos objetivos e
questões que guiam este estudo, passou-se à construção do referencial que tem como
principal função viabilizar uma reflexão teórica, objetivando o processo de
amadurecimento deste trabalho.

Com a primeira parte do referencial, buscou-se elaborar uma breve retomada do


desenvolvimento dos estudos linguísticos centrados na história das línguas, passando
em seguida a uma reunião de alguns dos principais trabalhos recentes sobre diacronia
que utilizam dados de ortografia para a elaboração de análises sobre a evolução
histórica do português, por considerar-se este um importante tipo de material inclusive
para o desenvolvimento de pesquisas sobre a mudança na fonologia das línguas. Logo
após, resumiu-se o contexto evolutivo das línguas românicas, especificamente do
português, como forma de caracterizar o cenário de desenvolvimento do latim até a
referida língua, apresentando-se por fim algumas considerações importantes
especificamente sobre o processo de fonologização. A segunda parte do referencial foi
elaborada a fim de que fossem apresentados os pressupostos da Fonologia
Autossegmental, que servem como base para a análise pretendida nesta Tese.

Com foco no desenvolvimento diacrônico das consoantes da língua, é possível


delimitar claramente o material a ser analisado nesta pesquisa, visando à discussão da
fonologização de segmentos e de traços. Dessa forma, reserva-se uma seção
especificamente para proceder-se à descrição dos quadros do sistema consonantal latino,
do português arcaico e do português brasileiro, além da identificação das etapas
evolutivas considerando os processos ocorridos e os traços envolvidos na evolução dos
segmentos consonantais do português.

Uma gama de diferentes trabalhos proporcionou o aporte necessário para esta


pesquisa no que se refere à base de dados para análise. Dentre eles, destacam-se os
textos de Rosa Virgínia Mattos e Silva, Como se estruturou a língua portuguesa e O
Português Arcaico: fonologia; Paul Teyssier, História da Língua Portuguesa; Edwin B.
Williams, Do latim ao português; Ernesto Faria, Fonética Histórica do Latim; Mario

67
Roberto Lobuglio Zágari, Fonologia diacrônica do português, Rodolfo Ilari,
Linguística românica; Bruno Gregni Bassetto, Elementos de Filologia Românica vol. 1
e 2; Ismael de Lima Coutinho, Gramática Histórica; Serafim da Silva Neto, História da
Língua Portuguesa; Joaquim Mattoso Câmara Jr, História e Estrutura da Língua
Portuguesa, dentre outros, citados ao longo do texto.

Além disso, a Dissertação desenvolvida pela autora, intitulada Do latim ao


Português: um continuum à luz de teoria fonológica também contribuiu
significativamente para o atual estudo, já que nela, além de uma descrição dos dados
referentes à evolução do sistema consonantal do latim ao português, também é
apresentada uma análise destacando os processos fonológicos presentes, além dos traços
e seu comportamento mediante os contextos de mudança.

Logo, evidencia-se que a coleta de dados para este estudo baseia-se


principalmente na revisão bibliográfica realizada a partir de trabalhos que têm como
foco a diacronia, além das gramáticas históricas, também ricas em informação relevante
para este tipo de análise. Assim, com base na delimitação de análise fornecida pelo foco
do estudo, procedeu-se a uma reunião de informações suficientes para a construção dos
quadros que representam o estado do sistema consonantal do português,
especificamente em três fases distintas, baseadas em diferentes trabalhos sobre a história
do português.

Com a determinação destas fases, além dos dados fornecidos pelos estudos
consultados, é possível a explicitação das etapas evolutivas que constituem a diacronia
do sistema consonantal do português. A partir disso, e com o suporte fornecido pelo
estudo de Neuschrank (2011), construiu-se o quadro evolutivo do sistema consonantal
em estudo, que retrata quais traços estiveram envolvidos nos processos identificados,
além dos contextos de atuação dos mesmos, para, então, na seção que trata da análise,
submeter, ao tratamento dos pressupostos da Teoria Autossegmental (CLEMENTS e
HUME, 1995), os dados referentes ao processo de fonologização. Ao mesmo tempo,
vão sendo estabelecidas relações entre os resultados e os Princípios Fonológicos
Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009).

3.1 Descrição dos dados

Nesta seção, são apresentados de forma descritiva os dados coletados para o

68
estudo desenvolvido nesta Tese. Muitos são os processos reconhecidos nos estudos
linguísticos no que concerne à evolução fonológica do latim (palatalização, sonorização,
síncope) e muitos deles são retomados nesta pesquisa. Porém, o olhar lançado para os
mesmos diferencia-se em relação ao suporte do modelo teórico que possibilitará
explorar tais processos e torná-los mais explícitos.

3.1.1 Sistema consonantal latino: latim clássico x latim vulgar

O sistema consonantal latino é apresentado no quadro a seguir, com base nas


palavras de Zagari (1988, p.104) e no exposto por Ilari (2008, p.77):

Quadro 4: Sistema consonantal do latim clássico


Labio- Alveolar Labio- Uvular
Bilabiais Palatal Velar
dentais velar
Plosivas su    w
Plosivas so    w
Fricativas su   
Fricativas so
Nasais  
Laterais 
Vibrantes 
Semivogais  

O sistema consonantal do latim clássico era composto de 17 consoantes, dentre


elas as semivogais /j/ e /w/ e a aspirada /h/, as oclusivas /p/ e /b/, /t/ e /d/, /k/ e /g/, as
labiovelares /kw/ e /w/ nasais /m/ e /n/, a lateral /l/, a vibrante /r/, além das fricativas /f/

e /s/. Algumas lacunas existentes no sistema consonantal do latim clássico, com o passar
do tempo, foram sendo preenchidas de modo a formar uma série de pares contrastivos,
possivelmente já presentes no latim vulgar. Muitas dessas alterações foram introduzidas
por influência do próprio contexto fonológico no qual as consoantes estavam inseridas.
Importante salientar que o sistema consonantal do latim se caracteriza também pela
presença das consoantes geminadas, em consonância com suas homorgânicas simples.
Porém, pelo fato de ser a oposição de quantidade latina pertinente apenas em
contexto intervocálico, as consoantes geminadas, concebidas por Zágari (1988) como
fonemas de baixo rendimento funcional, acabam por desaparecer do sistema no

69
processo de mudança, dando lugar, normalmente, às suas correspondentes simples32.
Segue a seguir o quadro dos possíveis fonemas que compunham o sistema consonantal
do latim vulgar, com base nas informações apresentadas por Câmara Jr (1985, p.50) e
Silva Neto (1979, p.201)

Quadro 5: Sistema consonantal do latim vulgar


Labio- Alveolar Palato-
Bilabiais Palatal Velar
dentais alveolar
Plosivas su   
Plosivas so   
Fricativas su  
Fricativas so
Nasais  
Laterais 
Vibrantes 
Semivogais  

Segundo Ilari (2008, p.77-82), no latim clássico, os sons representados pelas


letras c e g correspondiam a uma pronúncia velar que, já em latim vulgar, passou a
palatal diante das vogais anteriores. A fricativização da labial sonora /b/ ocorreu
especificamente em posição intervocálica, ao passo que em posição inicial ela não se
efetivou. O i-semivogal acaba adquirindo uma pronúncia mais palatalizada no latim
vulgar e evolui de maneira diferente nas línguas românicas: o sardo conserva a
semivogal, no romeno e no italiano passa a africada e no português e no francês passa à
fricativa. A transformação do u-semivogal em fricativa labiodental, desconhecida no
sistema do latim clássico, segundo o autor, ocorreu já no latim vulgar.

Porém, é importante salientar que os casos destacados pelo autor se referem à


pronúncia, ou seja, a questões fonéticas, o que não implica que no sistema fonológico
do latim vulgar já se tenham operado essas mudanças. Um ponto bastante controverso
entre os autores que investigam o assunto é a presença ou não da fricativa labiodental
vozeada /v/ já no sistema do latim vulgar: enquanto Ilari (2008) apresenta o referido
fonema como já integrante do sistema consonantal latino, autores como Câmara Jr
(1985), Zágari (1988) e Silva Neto (1979) não o reconhecem como fonema no latim.

32
Rever Nota 21 sobre possíveis geminadas no português.

70
Quanto às consoantes geminadas, no latim clássico, grafavam-se como
geminadas as consoantes que eram pronunciadas “prolongando a fase de intensão. O
limite de sílaba passava então entre a intensão e a distensão da consoante longa, do que
resultava a impressão de duas consoantes” (ILARI, 2008, p.82). Segundo o autor, o
latim vulgar manteve a distinção de quantidade nas consoantes, o que pode ser
comprovado pelo fato de que as inovações que afetaram as consoantes simples não se
aplicam às geminadas. “Por outro lado, em todos os ambientes onde é relevante a
distinção entre sílabas travadas e sílabas livres, a sílaba que precede consoante
geminada comporta-se como sílaba travada”.
Ao longo do tempo, essa diferenciação foi perdendo-se nas línguas derivadas do
latim, mantendo-se como característica apenas do sardo e do italiano, língua esta que
inclusive registra a formação de geminadas em contextos antes não identificados,
motivada principalmente pelo processo de assimilação. O Quadro 6 apresenta exemplos
de manutenção de consoantes geminadas, bem como a sua implementação, no italiano
que, como o português, é língua derivada do latim.

Quadro 6: Manutenção e formação de consoantes geminadas latim-italiano


Manutenção Formação
Latim Italiano Latim Italiano
flamma Fiamma rupto rotto
bucca Bocca fragmentu frammento

Quanto aos grupos consonantais, alguns deles destacam-se pelo seu


comportamento diferenciado, considerando o latim clássico e o latim vulgar. Sequências
como /kl/, /pl/, /tl/ e /fl/, por vezes, passaram a ter uma pronúncia fortemente
palatalizada, culminado em diferentes segmentos, dependendo do contexto (onset
absoluto ou medial). Também sofreram processo análogo os grupos formados por
consoante mais glide palatal, fonologizando-se em segmentos africados ou fricativos,
dependendo da língua românica.

No que se refere às labiovelares /kw/ e /gw/, no período latino, passam a velares


ou palatais antes de /o/, /u/ e /j/, mantendo-se o apêndice labiovelar antes de /e/, /i/ e /a/.
No período românico, a característica labial tende a cair também nos contextos
remanescentes, preservando-se em algumas regiões. Zágari (1988) ratifica em seu texto
a presença das labiovelares como integrantes do inventário fonêmico da língua latina,

71
ainda que cedo tenham perdido a labialidade envolvidas em um processo de
desfonologização.

3.1.2 Sistema consonantal do português


Em relação ao sistema do português, é importante considerar um momento
anterior ao atual: o período arcaico da língua portuguesa. Os trabalhos de Rosa Virgínia
Mattos e Silva, Clarinda Maia, Edwin Williams, Leite de Vasconcelos contribuem
significativamente para uma descrição desta etapa da evolução do português moderno.

3.1.2.1 O português arcaico: visão geral e variações do sistema consonantal


Os registros mais antigos do português, dos quais se tem conhecimento,
surgiram no final do século XII (Testamento de Afonso II e a Notícia do Torto),
marcando, assim, o início histórico do português arcaico. Desde então, foram quatro
séculos de intensas modificações e, embora a delimitação desse período seja mais
difícil, no final do século XVI a essência da língua, por causa do desaparecimento de
praticamente todas as características distintivas do português arcaico, já se equiparava à
mesma de hoje em dia (WILLIAMS, 2001, p 27). Assim, é possível tomar este ponto
como a partida para um novo momento histórico da língua, sem necessariamente tomá-
lo como referencial de término do período arcaico, pelo menos até que sejam
apresentados fatos linguísticos que permitam fazê-lo.
É possível conhecer a composição do sistema consonantal do português arcaico
através de uma comparação entre os sistemas do latim e do português atual, método
através do qual é possível ainda uma análise de variações atuantes no momento
histórico analisado, considerando, como referência, a grafia da documentação
remanescente, além de pistas depreendidas através das considerações dos gramáticos do
século XVI (MATTOS E SILVA, 2006).
Porém, o conhecimento de um sistema anterior ao efetivamente utilizado não se
esgota exclusivamente na comparação: o uso de uma teoria fonológica que dê conta dos
processos evolutivos mostra-se bastante eficiente quando da organização de sistemas
desse tipo, pois trabalha com hipóteses de mudança baseadas em aspectos
representacionais e funcionais que possam estar subjacentes aos dados concretos da
língua e é exatamente este o papel que se pretende dar à Teoria Autossegmental nesta
pesquisa.

É importante considerar que o período histórico sobre o qual se pretende tratar

72
nesta Seção, o português arcaico (ou medieval, ou ainda antigo) tem início em fins do
século XII, porém não há consenso em relação à sua delimitação com o português
clássico (ou moderno). Não interessa a este trabalho demarcar uma periodização desta
fase evolutiva do português, porém julga-se pertinente uma possível divisão, à qual
correspondem dois possíveis inventários consonantais distintos.

A subperiodização desse período entre os séculos XII e XVI também é um ponto


de discussão entre os estudiosos dos fatos históricos da língua portuguesa, daí a
diversidade de nomenclaturas para fazer-se referência a essa fase. Enquanto Leite de
Vasconcelos (1959) denomina todo esse período como português arcaico, Silva Neto
(1979) entende que seja possível uma subdivisão do mesmo em trovadoresco e
português comum. Neste trabalho, será feita referência a este período denominando-o
como português arcaico, subdividido em primeira e segunda fase, sem se proceder a
uma definição de limites temporais, já que não é este o objetivo da pesquisa.

Presume-se que esta divisão do português arcaico, feita nos moldes aqui
pretendidos, seja pertinente para o tipo de análise proposta nesta Tese, sendo que ela
encontra respaldo nos dados oferecidos pelas gramáticas históricas, bem como nos
manuais de filologia consultados, a partir dos quais se entende que seja pertinente
apresentar um sistema consonantal que se refere a cada um dos períodos. O
conhecimento dos processos responsáveis pela reestruturação do então sistema latino
para a configuração do português arcaico faz-se também importante para que haja uma
perfeita compreensão das composições a serem abordadas neste estudo, por isso serão
brevemente tratadas nesta Seção a fim de caracterizar a passagem do latim ao português
arcaico33.

Através da representação gráfica do português, encontrada no início do século


XIII, é possível constatar a já ocorrência de certos fenômenos como simplificação das
geminadas, sonorização das surdas intervocálicas (caput > cabo) e queda das sonoras
intervocálicas (vedere > veer > ver), que não ocorreu necessariamente de maneira
categórica, como é o caso da velar sonora /g/, como se pode verificar em palavras como

33
Não há como negar que essa passagem não tenha ocorrido de forma tão direta como possa parecer, já
que séculos de evolução linguística separam cada uma dessas manifestações. O que se pretende aqui é
confrontar essas duas realidades linguísticas a fim de que se possa traçar, ainda que de forma bastante
sutil, o percurso evolutivo que constitui a formação do inventário consonantal do português.

73
negar < negare e legume < legumem. Considera-se a simplificação das geminadas
como a força desencadeadora das demais lenizações, ocorridas em momentos
posteriores.

Em relação à consonantização, sabe-se que os fonemas // e /v/ provêm do /j/ e

/w/ seguidos de vogal, no contexto de início da sílaba. Ainda, as palatais /, , , / e as

africadas /ts, dz, t, d/ possuem sua origem em plosivas seguidas de vogal ou

semivogal palatal /e, i/ em boa parte dos casos, ou em sequências formadas por /k/, /f/,
/p/, seguidos de /l/. O fenômeno da anteriorização das velares e a posteriorização das
dentais seguidas de /i/ e /e/, que resultou nas africadas /ts, dz, t, d/, posteriormente /s,

z, /, no início e no meio da palavra, segundo Teyssier (2007, p.9-15), ocorreu no latim

imperial, momento no qual, segundo o autor, é muito provável que se tenham


desenvolvido também as demais palatalizações, provindas das sibilantes latinas
seguidas de vogal ou semivogal palatal e de nasais e líquidas também seguidas de
elemento vocálico palatal.

Já as palatalizações advindas de consoantes seguidas de /l/ são mais recentes.


Entre os séculos V e VIII situa-se o surgimento de sequências /kl/ a partir do
apagamento de uma vogal não acentuada:
apicula > apic´la > abe//a
ovicula > ovic´la > ove//a
scopulu > scop´lu > esco//o

As palatalizações das sequências latinas /kl/ podem ser situadas em um momento


posterior ao século VIII, resultando na africada /t/, depois fricativa //, como em

flamma>chama e clamare>chamar. Porém, tais sequências nem sempre sofreram este


processo: (a) houve a mudança da líquida lateral para vibrante e (b) em palavras
consideradas empréstimos cultos (MATTOS e SILVA, 2006, p.82), há a permanência
da sequência latina:

(a) flaccu > fraco , clavu > cravo

(b) plenus > pleno , clarus > claro

Em resumo, considera-se importante atentar para o fato de que nem todos os


casos de palatalização ocorreram simultaneamente no tempo e sua difusão pelo léxico

74
também não ocorreu da mesma forma para todos os contextos. Porém, como o interesse
desta pesquisa não é estabelecer uma localização temporal precisa a respeito da
consolidação dos fenômenos ocorridos na evolução do latim ao português, essa
assimetria temporal em que os processos fonológicos evidenciados estão inseridos não
implica qualquer problema para as análises pretendidas.

Com base nas discussões propostas por Maia (1986, p.502) e Teyssier (2007,
p.26), apresenta-se o Quadro 7, que reflete o provável sistema consonantal do português
arcaico, primeira fase, seguido de algumas considerações a respeito de sua formação.
Quadro 7: Sistema consonantal do português arcaico (primeira fase)
Labio- Alveolar Palato-
Bilabiais Palatal Velar
dentais alveolar
Plosivas su   
Plosivas so   

Africadas su  
Africadas so  

Fricativas su   
Fricativas so   
Nasais   
Laterais  
Vibrantes 
simples
múltipla r
Comparando-se os inventários do latim vulgar e do português arcaico, em sua 1ª
fase, é possível identificar consideráveis diferenças entre esses dois sistemas. A
simplificação das geminadas, processo característico da diacronia do português e ainda
presente nos dias de hoje34, implicou dois outros grandes movimentos no sistema, mas
que pouco impacto tiveram em termos de estruturação do inventário: a

34
A degeminação está presente na fonologia das vogais da língua. Bisol (1992) afirma que a degeminação
no português ocorre como resultado de sândi vocálico, que corresponde a um processo de
ressilabificação, o qual ocorre no domínio de um mesmo enunciado, entre duas palavras, desencadeado
pela juntura de vogais idênticas. Tal sequência provoca um choque dos núcleos silábicos envolvidos e,
assim, os segmentos adjacentes iguais no mesmo nível são inibidos pelo Princípio do Contorno
Obrigatório.

75
desfonologização do traço de quantidade35 afetou as consoantes geminadas surdas e
sonoras; a partir dessa simplificação, os fonemas sonoros “caem”, ao passo que os
surdos sonorizam-se e ocupam o lugar das consoantes “perdidas”, atestando a atuação
do traço [+voz] na configuração do sistema. Segundo Zágari (1988), “o debilitamento
da articulação das geminadas, até o ponto de igualarem-se à simples, determinou,
periodicamente, a sonorização das surdas simples e, por consequência, o apagamento
das sonoras em igual posição. Um caso de cadeia de propulsão”.
Essa desfonologização da quantidade, caracterizada como um fato fonêmico e
acústico-articulatório, causado pela pouca distintividade e pequena percepção auditiva,
teve como consequência ainda, na classe das obstruintes, que os fonemas portadores dos
traços [-contínuo] e [-voz] passassem a ser caracterizados pelo traço [+voz] (por
exemplo, p > b; t > d; k > ); e que aqueles portadores dos traços [+contínuo, +anterior,
-voz, labial] e [+contínuo, -anterior, -voz, coronal] formassem um novo par opositivo
com suas homorgânicas marcadas pelo [+voz] (f v; s z).
Além da simplificação dos fonemas geminados, há também a fonologização das
africadas (ts dz t d), marcadas pelo contraste opositivo do traço [± anterior], até então

inexistente na classe das consoantes que compartilham o traço [coronal]. Convém


lembrar que estas consoantes são caracterizadas como segmentos de contorno36,
segundo a Fonologia Autossegmental, pois apresentam uma sequência de valores
diferentes de um mesmo traço, no caso o [±contínuo]. Sabe-se que há uma tendência das
línguas a “simplificarem” esse tipo de segmento, desligando-se a sua borda esquerda,
perdendo assim o traço [-contínuo]. A questão que se poderia colocar é: o que motiva a
perda de um ou outro valor de traço, neste tipo de processo? Possivelmente, assim como
Clements (2009) propõe uma escala de Robustez de Traços, indicando quais são os
contrastes preferidos nas línguas, é possível pensar se o Princípio da Marcação,
estabelecendo uma hierarquia também entre esses valores, justificaria a preferência pela
manutenção de um ou outro valor.
Em relação às fricativas, fonologiza-se uma bilabial [+voz] //, que, na classe

das obstruintes, contrastaria com o segmento bilabial [+-voz], de acordo com o que

35
O traço de quantidade, por sua natureza prosódica, não figura dentre aqueles usados por Clements
(2009), mas seu uso é recorrente nos trabalhos de Linguística Histórica que tratam das mudanças
ocorridas no sistema fonológico.
36
Sobre os tipos de segmentos, de acordo com Clements e Hume (1995), ver Seção 2.4

76
atesta Castro (1991, p. 108), ao tratar do caminho evolutivo traçado pela semivogal /w/:
“o /w/ passou a uma bilabial fricatizada [], que não teve dificuldade em servir de

correspondente sonora de /f/, tornando-se assim um fonema. Isto estava consumado no


século I d.C”.
O mesmo traço [+voz] é responsável pela implementação do par opositivo /s, z/,
que no latim era lacunar; por fim, surge o par de palato-alveolares /, / que contrastam

com as também coronais [+anteriores] por meio do traço [+contínuo]. Compondo ainda
a classe das coronais, fonologizaram-se duas palatais: a nasal // e a lateral //, ambas

contrastando com /n/ e /l/ por meio do traço [±anterior].


Assim, o sistema consonantal do português arcaico passa a ter a composição
apresentada nos Quadros 8 e 9, contrapondo-se ao sistema latino, considerando as
classes de segmentos formadas de acordo com os traços de ponto [labial], [coronal] e
[dorsal] e de modo:

Quadro 8: Constituição das classes de segmentos de acordo com o ponto de articulação (Latim x
Português arcaico – 1ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico
Classe/ponto Latim Latim Português
(1ª fase) Arcaico
(1ª fase)
Labial pbfmw pbfm 5 5
t d ts dz s z n l  r t d  
Coronal tdsnlrj 7 16


Dorsal k 37 k 2 2

37
Considerando o sistema do latim clássico, haveria ainda os fonemas labializados kw e w e a aspirada h,
que acabaram se desfonologizando já na passagem para o latim vulgar.

77
Quadro 9: Constituição das classes de segmentos de acordo com o modo de articulação (Latim x
Português arcaico – 1ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico
Classe/modo Latim Latim Português
(1ª fase) Arcaico
(1ª fase)
p b  f t d ts dz s z t d 
Obstruintes pbftdsk 8 16
k

Nasais mn mn 2 3

Laterais l l 1 2

Vibrantes r  r 1 2

Tomando como base a distinção que pode ser feita entre o galego-português e o
português atual, vê-se a presença das africadas alveolares e palatais, ausentes no sistema
contemporâneo, além da presença de uma bilabial fricativa sonora e a ausência da
labiodental fricativa sonora. Estas são as situações que distinguem a primeira fase do
português arcaico do português utilizado atualmente (MATTOS e SILVA, 2006).
Houve sempre muita discordância em relação à existência ou não da oposição /b/
: /v/ no português arcaico. Mattos e Silva chama a atenção para a controvérsia existente
entre os autores a respeito de existir ou não a possibilidade dessa oposição, tanto que
registra em seu quadro de consoantes, referente à primeira fase do português arcaico, a
ausência da fricativa labiodental sonora /v/ e a presença de uma bilabial sonora //, a

qual é acompanhada de uma interrogação, justamente pela natureza controversa da


existência ou não de uma fricativa bilabial sonora no português arcaico. Com base no
estudo de Maia (1986), a autora conclui que a análise de documentação da época e a
observação das zonas geográficas em que se registravam tais dados permitem chegar-se
à conclusão de que haveria, no português arcaico, duas áreas dialetais, sendo que o
dialeto padrão prestigiado manteve a oposição em questão e fez recuar a mudança
proposta pelo dialeto de menos prestígio.
Há autores, como Teyssier (2007) por exemplo, que apresentam a fricativa
labiodental já como integrante do sistema consonantal do português arcaico em sua fase
inicial; outros, como Ilari (2008), acreditam que este fonema já integrava o sistema
consonantal do latim vulgar. O fato é que se torna uma tarefa bastante difícil precisar o
início e/ou o fim de predomínio de um sistema, principalmente quando a época em que
os estudos sobre o comportamento das línguas eram escassos ou inexistentes, ou quando
78
até mesmo o próprio registro escrito não se fazia presente.
Assim, é importante reconhecer a existência de uma possível imprecisão em
relação à definição do que se constituía distintivo de significado, ou seja, como fonema,
e o que se manifestava apenas como uma variação fonética, o que justifica a falta de
consenso entre os estudiosos da área que, mesmo através de numerosos levantamentos
que tentam refletir a realidade linguística de uma determinada época, por vezes acabam
forçados a lançar mão de “possibilidades linguísticas” que nem sempre podem ser
atestadas a ponto de não sofrerem contestação. Neste trabalho corroboram-se com os
dados apresentados por Maia e Castro em relação à existência, na primeira fase do
português arcaico, de uma fricativa bilabial, sem desconsiderar, porém, a existência de
outras possibilidades de análise para a referida questão.
Outro questionamento que pode ser levantado em relação às variantes do
português arcaico dá conta da existência ou não das africadas sibilantes /ts/ e /dz/ e
palatais /t/ e /d/. Dados históricos comprovam que à fricativa // opunha-se a africada

/t/ e esta oposição só é neutralizada após o século XVI, apesar de, em algumas

variantes regionais arcaizantes, ela ainda manter-se inalterada. Já a localização no


tempo da africada palatal sonora torna-se mais complicada, pois os registros escritos
não apresentam uma uniformidade em sua representação.
Os poucos indícios apontam para o seu desaparecimento já no início do século
XIII, sendo totalmente apagada do dialeto padrão no século XVI. Pequena também é a
documentação disponível para que se possa afirmar em que momento ocorreu a perda
das africadas sibilantes, embora seja possível demonstrar com segurança a existência de
quatro fonemas sibilantes no período estudado, em função da existência de uma
razoável sistematicidade em sua representação (MATTOS E SILVA, 2006, p.89).
Embora seja difícil haver uma exata determinação do momento histórico em que
os processos citados tenham ocorrido, é possível propor um quadro38 de consoantes
representativo do período final do português arcaico:

38
Quadro adaptado de Mattos e Silva (2006, p. 91).

79
Quadro 10: Sistema consonantal do português arcaico (segunda fase) 39
Labio- Alveolar Palato-
Bilabiais Palatal Velar
dentais alveolar
Plosivas su   
Plosivas so   
Africadas su 
Africadas so

Fricativas su   
Fricativas so v  
Nasais   
Laterais  
Vibrantes 
Simples
múltipla r

Comparando-se os dois sistemas do português arcaico, é possível identificar a


desfonologização de quase toda a classe das africadas, com exceção de /t/; além disso,

há a fonologização da fricativa labiodental sonora /v/, que passa a contrastar com sua
homorgânica [-voz] surda. Assim como na fase anterior (do latim ao português arcaico
1ª fase), mantém-se o alto índice de contraste do traço [coronal] que, em coocorrência
com o [+ contínuo], o [-anterior] e o [+voz], é responsável pela expansão do sistema
consonantal do português.
Da mesma forma como apresentado anteriormente, contrapondo-se os sistemas
consonantais das duas fases do português arcaico, tem-se a composição apresentada nos
Quadros 11 e 12, considerando-se novamente as classes de segmentos formadas de
acordo com os traços de ponto [labial], [coronal] e [dorsal] e de acordo com o modo de
articulação:

39
Mattos e Silva (2006) e Maia (1986) apresentam, em seu quadro de consoantes da segunda fase do
português arcaico, as fricativas pre-dorsodentais /s z / e ápico-alveolares /s z/. Questiona-se, porém, o
estatuto fonológico deste grupo: parece não natural o sistema abrir mão das fricativas alveolares /s z/, já
integrantes do sistema do galego-português, para depois reintegrá-las novamente. É possível que o que as
autoras apresentam sejam apenas manifestações fonéticas que integram a passagem das africadas /ts dz/
para as correspondentes fricativas /s z/.

80
Quadro 11: Constituição das classes de segmentos de acordo com o ponto de articulação (Português
arcaico – 1ª fase x 2ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico Português arcaico Português Português
Classe/ponto
(1ª fase) (2ª fase) arcaico arcaico
(1ª fase) (2ª fase)

Labial pbfm pbfvm 5 5


t d ts dz s z n l 
Coronal t d s z n l  r t     16 13
r t d    

Dorsal k k 2 2

Quadro 12: Constituição das classes de segmentos de acordo com o modo de articulação (Português
arcaico – 1ª fase x 2ª fase)
Número de fonemas
Português arcaico Português arcaico Português Português
Classe/modo
(1ª fase) (2ª fase) arcaico arcaico
(1ª fase) (2ª fase)
p b  f t d ts

Obstruintes dz s z t d   p b f v t d s z t   k  16 13
k

Nasais mn mn 3 3

Laterais l l 2 2

Vibrantes  r  r 2 2

De acordo com Mattos e Silva (2006, p. 92), em relação às consoantes do latim


ao português,

(...) vimos aquelas que atravessam séculos e não estão concluídas no


diassistema do português. É o caso da mudança de quatro para duas
sibilantes e da africada palatal surda para a constritiva correspondente.
Outras consoantes permanecem durante séculos estáveis, começam
então a mudar e se difundem com rapidez, como no caso da vibrante
anterior múltipla para as realizações posteriorizadas e não vibrantes.

O resultado “momentaneamente” final deste percurso de expansão e mudança


dos segmentos consonantais é apresentado a seguir.

81
3.1.2.2 O sistema consonantal do Português Moderno
Em relação ao sistema latino, o sistema consonantal do português apresenta a
inserção de fonemas no inventário fonológico (v, z, , , , ) como as fricativas

sonoras, apresentando poucas alterações se comparado ao sistema do português arcaico


em sua fase final:

Quadro 13: Sistema consonantal do PB


Labio- Alveolar Palato-
Bilabiais Palatal Velar
dentais alveolar
Plosivas su   
Plosivas so   

Fricativas su   
Fricativas so  
v
Nasais   
Laterais  
Tepe 
Vibrante r

Em relação ao quadro do sistema consonantal do PB, comparado ao do


Português arcaico (2ª fase), nota-se um maior equilíbrio dentro da classe das obstruintes,
composta por seis plosivas e seis fricativas, já que a africada /t/ perdeu seu status

distintivo, realizando-se hoje apenas como uma variante da plosiva alveolar surda. Essa
desfonologização provavelmente tenha ocorrido motivada pela busca da simetria no
interior do sistema, considerando que as [-soantes] são marcadas pela oposição [±voz].
Além disso, é possível considerar que o baixo rendimento funcional das africadas tenha
também endossado a desfonologização de toda a classe, além do fato de que, em
contraste com suas homorgânicas fricativas, possuem um baixo grau de distintividade,
se forem levados em consideração os efeitos acústicos de sua articulação.
Monaretto, Quednau e Hora (2005) apresentam o sistema consonantal do PB de
acordo com a proposta de Câmara Jr, elencando a posição que esses elementos poderão
ocupar na palavra, mostrando que o número e o tipo de oposições encontrados no
sistema consonantal do PB dependem dos contextos apresentados a seguir:

82
Quadro 14: Sistema consonantal do PB (Monaretto, Quednau e Hora, 2005)

Pré-vocálico
Intervocálico CV Segunda consoante Pós-vocálico
CCV
/p/ /b/ /f/ /v/ /m/ /p/ /b/ /f/ /v/ /m/
/t/ /d/ /s/ /z/ /n/ /l/ // /t/ /d/ /s/ /z/ /n/ /l/ /l/ // /S/ /N/ /l/ /r/
/k/ /g/ // // // // /r/ /k/ /g/ // // /r/

Assim como todas as línguas naturais, o português falado no Brasil possui


algumas variações em seu sistema consonantal. De acordo com a proposta de
Monaretto, Quednau e Hora (2005, p. 214), as consoantes variáveis do PB são:
- “l” pós-vocálico, que pode ser pronunciado como alveolar [l], velar [] ou vocalizado

[w];
- “s” pós-vocálico, pronunciado como sibilante [s] ou chiante [] de acordo como

dialeto, surdo [s] ou sonoro [z], conforme o contexto seguinte;


- “r”, pronunciado como vibrante [r], fricativa velar [x], uvular [R] e aspirada [h], como
vibrante simples [] ou ainda como som retroflexo [];

- “t” e “d” antes de “i” podem ser pronunciados como africados [t], [d], alveolares [t],

[d] ou dentais [t], [d];

- nasal pós-vocálica, cuja pronúncia depende do contexto seguinte.

É possível novamente, estabelecendo uma comparação entre os sistemas do


português arcaico e do português brasileiro, compor os quadros que explicita a
composição do sistema consonantal do PB, apresentando a distribuição dos segmentos
de acordo com as classes formadas pela presença dos traços [coronal], [labial] e [dorsal]
e também de acordo com o modo de articulação:

83
Quadro 15: Constituição das classes de segmentos de acordo com o ponto de articulação (Português
arcaico – 2ª fase x Português Moderno)

Número de fonemas
Português arcaico Português moderno
Classe/ponto Port. Port.
(2ª fase)
arcaico moderno
Labial pbfvm pbfvm 5 5
t d s z n l  r t 
Coronal tdsznlr 13 12


Dorsal k k 2 2

Quadro 16: Constituição das classes de segmentos de acordo com o modo de articulação (Português
arcaico – 2ª fase x Português moderno)
Número de fonemas
Português
Português Português
Classe/modo arcaico Português moderno
arcaico moderno
(2ª fase)
(2ª fase)
pb fvtd sz
Obstruintes pb fvtd szk 13 12
t   k 

Nasais mn mn 3 3

Laterais l l 2 2

Vibrantes  r r 2 2

Feita a descrição inicial dos dados, já é possível apontar alguns “movimentos”


realizados dentro do sistema de consoantes do latim ao português, que servirão também
para orientar as análises pretendidas neste trabalho:
- a classe das labiais manteve-se com cinco fonemas ao longo da evolução do sistema;
- a classe das dorsais, depois de reduzir-se de cinco para dois fonemas, ainda no latim,
manteve-se estável até a constituição do sistema do português brasileiro;
- a classe das coronais ampliou-se de sete para doze fonemas, o que confirma o possível
alto grau de robustez do traço [coronal] em se considerando a evolução do sistema
consonantal do latim ao português (veja-se Quadro 3);
- na classe das obstruintes, as lacunas existentes foram preenchidas por força do traço
[+voz], em busca da simetria do sistema, verificada também no equilíbrio adquirido
pela implementação de seis fonemas plosivos e seis fonemas fricativos.

84
Na próxima seção, são descritos os segmentos consonantais do português em
relação direta com os processos fonológicos ocorridos, motivadores das mudanças
identificadas na evolução do sistema consonantal do latim ao português.

3.2 Do latim ao português: segmentos consonantais e processos

Nesta seção, são apresentados os segmentos constituintes do latim e do PB,


traçando-se um continuum evolutivo entre os sistemas, a fim de que sejam delineadas as
mudanças ocorridas. A descrição aqui apresentada toma como base os dados fornecidos
por Neuschrank (2011), cujo foco de análise se concentrou na identificação das
possíveis etapas evolutivas relacionadas aos segmentos consonantais, do latim ao
português, tratando especificamente do funcionamento dos processos na constituição do
inventário consonantal do português. Trazer a referida descrição para este trabalho
permitirá a organização dos quadros evolutivos que serão apresentados e servirão como
base para a análise pretendida nesta pesquisa. Antes, porém, será apresentado um breve
resumo comparativo entre os sistemas do latim e do português, com foco nos segmentos
constituintes destes sistemas.

Em se comparando o sistema de consoantes do português com o do latim


(vejam-se os dados dos Quadros 4, 5 e 13), dois pontos são aqui destacados: (a) os
espaços lacunares do sistema latino que foram preenchidos na fonologia do português;
(b) os processos fonológicos que predominantemente caracterizaram a evolução do
sistema consonantal latino para o do português.

Com relação às lacunas do sistema latino, verifica-se a ausência das fricativas


alveolar /z/, labiodental /v/, palatal surda // e sonora //, além da nasal palatal // e da

lateral palatal //, segmentos que foram surgindo ao longo do processo evolutivo da
língua portuguesa, conforme pode ser verificado na seção sobre o sistema consonantal
do português arcaico (Seção 3.1.2.1).

Em relação aos processos que caracterizaram a evolução do sistema consonantal


latino para o do português, três apresentaram-se predominantes: a degeminação, a
fricativização e a palatalização; outros fenômenos que ocorreram nesse continuum
evolutivo foram a sonorização das surdas e, em alguns casos, o desaparecimento das
sonoras, tanto no caso das oclusivas como das fricativas.

85
Com relação ao primeiro processo cuja ação foi prevalente – a degeminação –,
tem-se que as consoantes geminadas do latim, as quais ocorriam sempre em posição
intervocálica, sofreram o processo de simplificação, dando origem às suas
correspondentes simples no português. Este movimento é considerado por Martinet
(1955) decisivo para o romanço das Gálias e da Ibéria, por todos os efeitos no sistema,
que vão além da desfonologização do traço [quantidade]. O processo de degeminação
fez surgirem consoantes simples em muito maior número, para cada tipo, ao mesmo
tempo em que suprimiu as oposições /pp/:/p/, /kk/:/k/, e assim por diante. Segundo
Câmara Jr (1985, p. 52), a reação a esse movimento pode ter sido a manutenção das
oposições por meio de lenização da antiga consoante simples, que acaba sonorizando-
se. Por consequência, boa parte das consoantes sonoras acaba caindo, ainda que com
algumas exceções (digitum>dedo; mas plaga>chaga). Esse continuum evolutivo
também é atestado por Castro (1991, p. 108).

Quanto ao processo de fricativização, mostrou-se produtivo, considerando-se a


ausência das fricativas no sistema latim; geralmente, a fricativização ocorreu em
determinados contextos fonológicos, principalmente naqueles em que se faziam
presentes as vogais /i,e/ após as plosivas. Pode-se observar essa constituição em
vocábulos como fa[k]io > faço; judi[k]iu > juízo ; gra[t]ia > graça ; belli[t]ia > beleza ;
pla[t]ea > praça.

Em se tratando do processo de palatalização, entende-se a relevância do


fenômeno ao verificar-se a inexistência de fricativas e soantes palatais no sistema latino
e a sua presença na fonologia do português. Verifica-se atuar, no sistema consonantal
latino, o fenômeno da palatalização de anteriores dentais e labiais e posteriores velares,
processo que resulta em constituições como russeu > roxo ; ecclesia > igreja ; angelu >
anjo ; hodie > hoje ; inflare > inchar ; flagrare > cheirar. Ainda, há a palatalização de
nasal e lateral anterior, percebida em palavras como scopulu > iscoplu > escolho; oculu
> oclu > olho; coagulare > coaglar > coalhar; filius >filho, pugnus > punho, ciconia >
cegonha.

Comparando o sistema do latim clássico com o do português brasileiro de hoje,


algumas são as lacunas existentes naquele que, com o passar do tempo, foram sendo
preenchidas por este, de modo a formar uma série de pares contrastivos, alguns deles
possivelmente se fazendo presentes já no latim vulgar. A seguir, apresentam-se

86
considerações sobre o processo evolutivo de classes de segmentos consonantais,
considerando-se a distinção de vozeamento - plosivas (surdas e sonoras); fricativas
(surdas e sonoras); nasais e líquidas, e a posição40 em que se encontram na palavra
(onset absoluto e onset medial). O ponto de partida é o sistema consonantal do latim
exposto nos Quadros 4 e 5.

3.2.1 Plosivas surdas

Em posição inicial de palavra o sistema consonantal latino compunha-se, além


das outras consoantes, das plosivas surdas simples /p/, /t/ e /k/, como podemos observar
em palavras como patria, pecúnia, paucus, tristitia, taurus, tegula, corona, campus,
carrus. No processo evolutivo que engloba o português arcaico e o brasileiro, há a
manutenção desses elementos no referido contexto, salvo raras exceções, devido ao que
parece ser um processo de sonorização, presente, por exemplo, em: polire > buir , cattu
> gato, assim como verifica-se também uma fricativização de /k/, como em /k/ingere >
/s/ingir, e uma palatalização de //, como em //eneru > //ênero (NASCENTES,

2009).
Considerando-se a posição medial de palavra, observa-se a ocorrência dos
mesmos segmentos simples acima referidos, apresentando-se em palavras como copia,
epicus, emporium, catenas, natam, veritatem, pacatus, ancora. É importante lembrar
que, no latim, para cada segmento consonantal simples havia uma consoante geminada
que ocorria apenas na posição intervocálica: appetitus, appendix, sagittam, vitta,
buccam, siccum. Tal configuração já não se fez mais presente no período evolutivo em
que se encontra o português arcaico, no qual a distinção pela quantidade já não era mais
significativa (veja-se Quadros 7 e 10).
A posição medial da palavra é significativamente suscetível a propiciar
mudanças nos segmentos fonológicos que a constituem. Assim, esse contexto apresenta
no português os mesmos segmentos simples existentes no sistema latino, porém, quando
no latim eram segmentos simples e se encontravam no contexto intervocálico, deram
lugar aos seus homólogos sonoros, em alguns casos, como por exemplo:/p/>/b/: ripa >
riba (ribanceira); lúpus > lobo; sapere > saber; /t/>/d/: vita > vida; rota > roda; mutus >
mudo; /k/>/g/: pacare > pagar; acutus > agudo; focu > fogo

40
Coutinho (1979, p.111) chama a atenção para a necessidade desse tipo de apresentação no estudo das
consoantes.

87
Na classe das plosivas surdas, o processo de sonorização foi frequente na
evolução do inventário consonantal do latim para o do PB, com menor recorrência em
onset absoluto e maior em posição medial de palavra. Além disso, houve também o
processo de degeminação, especificamente relacionado às consoantes geminadas do
latim que passaram a consoantes simples.

3.2.2 Plosivas sonoras

O sistema consonantal latino já apresentava como constituintes do onset silábico


as plosivas sonoras /b/, /d/ e // no contexto inicial de palavra: bucca, bene, bonus,

debere, dare, dolorem, utta, entem, allum. Essa classe de segmentos, assim como as

demais, manteve-se praticamente inalterada nos sistemas arcaico e brasileiro.

No entanto, nem todas as plosivas sonoras do português derivam de plosivas do


latim: há casos em que a plosiva /b/ do português resulta de uma semivogal labial do
latim, ou seja, da semivogal /w/ ortograficamente representado pela letra “v”. São
exemplos dessa ocorrência: bexiga>vesica e vota>boda. Em alguns casos, na posição de
onset absoluto, a sequência formada pela plosiva /g/ seguida de /e/ ou /i/ acabou por
configurar-se, no português, como um novo fonema, pertencente à classe das fricativas
entem > ente; enius > ênio; inivam > eniva.

As plosivas sonoras, como segmentos simples intervocálicos, ocupam também a


posição de onset interno. Vê-se essa confirmação em palavras como gubernare,
caballus, palpebrae, tardus, traditio, trepido, biae, rior. Também ocupam o referido

contexto as consoantes intervocálicas longas pertencentes a essa classe de segmentos:


additione, addere, adductus, aravare, exaerare, suestum, abbatem, abbatissa.

Assim como as plosivas surdas geminadas, a partir do português arcaico as plosivas


sonoras geminadas deram lugar às suas correspondentes simples, como pode ser
observado em abade (abbatis), adição (additionem) e sábado (sabbatus).
Em relação aos segmentos simples, as plosivas sonoras desapareceram na
posição de onset interno (ibam > ia; reale > real), ou alteraram-se ou, ainda, no caso

específico do , mantiveram-se:

/b/ > /v/ : faba > fava; caballu > cavalo; debet > deve
// seguido de /e/ ou /i/ > //: reinam>rai a; maister>mestre; leem>lei

88
// seguido de /a/, /o/ ou /u/ : leumem>leume; neare>near

No português arcaico, algumas palavras apresentavam já o segmento /v/ em


contexto no qual, considerando a palavra latina, figurava a plosiva /b/. No português
contemporâneo, porém, esses mesmos vocábulos, por regressão, voltaram a apresentar o
segmento plosivo sonoro referido. O /b/ intervocálico do latim permaneceu em palavras
eruditas ou semieruditas (WILLIAMS, 2001, p.77).

bibere > bever > beber


sebum > sevo > sebo
tabulam > tavoa > tábua

Cabe aqui fazer uma observação mais específica em relação ao /d/, que no latim
aparecia de forma recorrente na posição de onset interno, conforme exemplos
anteriormente apresentados. Contudo, na evolução da língua, podem-se referir alguns
exemplos que confirmam o apagamento deste elemento, mais especificamente no
português arcaico, sendo que posteriormente o português brasileiro se encarregou de
inseri-lo novamente nesse contexto, porém não de uma forma categórica, já que se veem
novos segmentos surgindo na posição referida.

lampadis > lampa > lâmpada


nidum > nio > ninho

Logo, a análise inicial permite atribuir à classe das plosivas sonoras três
processos fonológicos recorrentes: a lenização, em posição medial, responsável pelo
surgimento da fricativa /v/, inexistente no latim41, advinda do segmento /b/ em contexto
intervocálico; a palatalização, que propiciou o surgimento de um novo segmento
consonantal, a palatal //, processo esse ocorrido quando o /g/ se encontra em onset

absoluto ou medial, seguido de /e/ ou /i/; por fim, registra-se também o processo de
degeminação das plosivas sonoras geminadas. Além disso, a degeminação das surdas

41
Segundo Maurer Jr. (1959), “mesmo não sendo totalmente uniforme, em latim o /u/ consonântico
sofreu processo análogo ao /i/ - a lábio-dental sonora /v/ já estaria no sistema do latim vulgar. Ainda
segundo Ilari (1992), “no período do latim vulgar desenvolveu-se a fricativa labial /v/, que o latim
clássico desconhecia”. Logo, fica evidente que possa haver indícios de que já no latim vulgar essa
consoante se fazia presente, merecendo esta questão, porém, estudos mais específicos para um melhor
esclarecimento.

89
teve como consequência a sonorização dos segmentos simples, que impulsionaram a
queda das sonoras já existentes.

3.2.3 Fricativas surdas

O sistema consonantal latino apresentava apenas as fricativas /f/ e /s/ no


contexto inicial de palavra (filius, fraternus, fortuna, sinus, subitus, salutem) e o
surgimento do segmento // ocorre apenas a partir do português arcaico, no qual há

ainda a presença de africadas alveolar /ts/ e palatal /t/, ausentes no sistema

contemporâneo (veja-se Quadro 13). Estas são as situações que distinguem a primeira
fase do português arcaico do português utilizado atualmente (MATTOS e SILVA,
2006), ainda que não considerem necessariamente o contexto de atuação dos referidos
segmentos. A surda /ts/ tem origem no /t/ e /k/ palatalizados (kivitatem > tsidade >
sidade) e em alguns casos do /d/ (audio > autso > ouso). A surda /t/ é o resultado

peculiar e particular do português da evolução dos grupos consonânticos iniciais kl pl fl


(klamare > //amar; plenu > //cheio; flama > //ama) (CASTRO, 1991, p.111),

representando a fase mais palatalizada na cadeia de alterações ocorridas nesses grupos,


os quais se conservaram totalmente no catalão (flama) e no francês (flamme) e
parcialmente palatalizados no italiano (fiama) e no castelhano (llama) (NASCENTES,
2009, p. 51)

No português brasileiro, ocorrem os segmentos surdos /f/ e /s/ na posição de


onset absoluto, marcando a manutenção dos elementos já existentes no latim (filho,
fraterno, fortuna, sinuosidade, súbito, saúde), além da palatal //, que surge, por

exemplo, a partir de grupos consonantais como kl, pl e fl:

/kl/>//: klave > //ave; klamare > //amar

/pl/>//: pluvia > //uva; plenu > //eio; plagam > //aga

/fl/>//: lamma > //ama; lagarre > //eirar

Em posição medial, os segmentos que compunham o sistema latino eram os


mesmos que marcavam presença em onset absoluto. Confirmam essas informações
palavras como inantia, deensio, proundus, caseus, causam, sponsus. O fonema //,

em onset interno, possui as seguintes origens, sendo apenas o primeiro contexto o mais
produtivo, visto que os demais representam um número reduzido de exemplos:
90
/kl/, /pl/ e /fl/ precedidos de consoante > //: mas/k/ulu > mas/kl/u > ma//o;

in/l/are>in//ar;

/ks/>//: co/ks/am>co//a; fra/ks/inus>frei//o;

/ski/>//: fa/ski/am>fai//a

Em relação às geminadas do latim, é possível identificar os segmentos /ff/ e /ss/,


presentes na constituição de palavras como a//ectus, di//erentia, su//ragium,

o/ss/eum, pa/ss/um, gre/ss/us , que deram origem às homorgânicas simples. A sequência


/ssi/ é também motivadora do surgimento do fonema // no sistema consonantal do

português (passionem>paixão), assim como /ks/ e /sk/ (bu/ks/u>bu//o;

mi/sk/ere>me//er), porém, como já referido, em um número pouco significativo.

Assim, os processos identificados na evolução do sistema, considerando as


fricativas surdas, resumem-se à palatalização, pela qual surge a palatal //, motivada

pelas sequências kl pl fl em onset absoluto ou medial da palavra, e /ks sk ssi/ em onset


medial; e a degeminação das fricativas geminadas, sempre recorrente nos segmentos
“duplos” do sistema latino, os quais não se configuram mais no português.

3.2.4 Fricativas sonoras

O sistema consonantal latino não apresentava nenhum elemento fricativo sonoro,


em qualquer contexto. Segundo Mattos e Silva (2006), em posição inicial, os elementos
/v/ e // provêm de um processo de consonantização da semivogal /w/ posterior (winu>

vinho, wano>vão, widere>ver), bem como da semivogal /j/ (jam>á, jacere>azer),

assim como também atesta Castro (1991, p. 106). Ainda, o // em contexto inicial de

palavra origina-se também do processo de palatalização sofrido pelo // velar inicial

seguido das vogais palatais /e,i/ (ente>ente, eneru>ênero). Já a fricativa /z/ ocorre

em latim, na referida posição, apenas nas palavras adquiridas por empréstimo de outras
línguas, como o grego (zephyrum>zéfiro).

O sistema consonantal do português arcaico, em determinado momento, tinha


como componentes as africadas, possivelmente a característica que mais o difere do
português usado atualmente. Segundo Teyssier (2007), havia um par de africadas (uma
surda e uma sonora) /ts/ e /dz/, bem diferentes e /s/ e /z/, o que fica evidenciado também

91
na grafia: para representar na escrita a africada /ts/, usava-se o “c”; para o fonema /s/, a
letra “s”; para a africada /dz/, a letra “z”; e para o fonema /z/, a letra “s”.

Segundo o autor, não havia nenhuma alternância entre as africadas e as


fricativas, fenômeno que se verificou no português contemporâneo42. No caso das
palatais, a africada /t/, escrita ch, também se distinguia da simples //, escrita x, ao

passo que hoje o ch de chamar se pronuncia como o x de deixar. A essas duas surdas
correspondia uma única sonora representada /(d)/, como em já. Este fonema foi

inicialmente a africada /d/ que perdeu, muito cedo, o elemento oclusivo inicial,

passando a // (TEYSSIER, 2007, p. 32-33).

Na posição medial da palavra, as fricativas sonoras /v/, // e /z/ apresentam-se no

português contemporâneo por meio de processos de simplificação das geminadas e


sonorização das surdas (MATTOS e SILVA, 2006). Cabe ressaltar, porém, que no caso
da fricativa labiodental /v/, além da origem em um processo de sonorização de sua
correspondente surda /f/ a partir de um contexto intervocálico, como em
pro/f/ectum>pro/v/eito, e a consonantização de /w/ intervocálico (nowe>nove,
laware>lavar), há também casos em que a plosiva sonora /b/ intervocálica abriu
caminho para o surgimento da fricativa sonora /v/ (CASTRO, 1991, p. 107):
(debet>deve, nubem>nuvem, habere>haver).

O surgimento da fricativa palatal // no português tem sua origem em processos

de palatalização das plosivas sonoras /d/ e // seguidas da semivogal /j/, assim como //

seguido de vogal /e,i/, fricativa surda seguida de semivogal sj e também por um


processo de consonantização da semivogal /i/. Por fim, a fricativa alveolar /z/ apresenta-
se como uma das possibilidades de realização a partir das plosivas surdas /t/ e /k/
seguidas de semivogal /j/, ou ainda como resultado específico da plosiva /k/ anterior às
vogais palatais /e,i/ (dikis>dizes, plakere>prazer, uikes>vezes).

Por ter a classe das fricativas sonoras surgido por inteira na evolução do sistema
latino para o português, os processos identificados, a partir dos constituintes referidos,
ocorrem motivados por diferentes contextos (onset absoluto e medial de palavra) e

42
Teyssier (2007, p. 46-47).

92
segmentos. Faz-se importante ressaltar, no entanto, que a presença das vogais palatais
/i,e/ e da semivogal /j/ é determinante para os processos de palatalização e
consonantização, ainda que não apenas na classe das fricativas.

3.2.5 Nasais

As consoantes nasais /m/ e /n/ do latim permanecem inalteradas no PB, em


contexto inicial de palavra (/m/ale > /m/al, /m/ensis > mês, /n/idu > /n/inho, /n/egatus >
/n/egado) . O sistema latino não apresentava a nasal palatal //, salvo algum caso em

que a palavra provinha de um empréstimo de origem não latina.

No contexto medial da palavra, o latim apresentava ainda as geminadas /mm/ e


/nn/, que deram origem no PB às suas correspondentes simples (co/mm/unem >
co/m/um, fla/mm/am > cha/m/a, a/nn/um > a/n/o, pa/nn/um > pa/n/o). Quanto à nasal
palatal //, presente no sistema consonantal do português e inexistente no sistema latino,

nota-se sua origem principal no contexto medial que apresenta uma nasal alveolar
seguida de uma semivogal nj (ceconja > cegoa, teneo > tenjo > teo, linea > linja >

lia). Também a sequência n é motivadora do surgimento da nasal palatal, como é

possível perceber em palavras como linosus > leoso, punus > puo, assim como

quando o /n/ é antecedido pela vogal palatal /i/ (vicinus > vizio, vinu > vio)

(WILLIAMS, 2001).

As nasais do sistema consonantal latino sofrem, então, o processo de


degeminação, no caso das geminadas, e também de palatalização, especificamente nas
sequências nj, in e n, processo este que faz surgir a nasal palatal //, inexistente no

latim.

3.2.6 Laterais

Em onset absoluto, o sistema consonantal latino apresentava apenas a lateral


alveolar /l/, observada em palavras como lupus, lacus, legatum, liber, longus, mantendo-
se inalterada no grupo de consoantes do PB (lobo, lago, legado, livro, longo). Assim
como ocorreu com a nasal palatal, a lateral palatal // só aparece em onset interno,

sendo observada em início de palavra apenas quando a mesma provém de um


empréstimo linguístico.

93
Já na posição medial, além da lateral alveolar, compunha também o sistema
latino a geminada correspondente /ll/, presente em palavras como puella, gallinam,
caballum, e que no PB acabou por ser substituída por sua correspondente simples
(caballum > cavalo, gallinam > galinha). Surge então, no contexto referido, um novo
constituinte desse sistema: a lateral palatal //, que por sua vez tem origem em

sequências como kl, pl, l, bl e tl, desde que as mesmas sejam antecedidas por uma

vogal:

scopulu > iscoplu > esco//o

oculu > oklu > o//o

apicula > apikla > abe//a

tribulo > triblu > tri//o

tegula > tela > te//a

vetula > vetla > ve//a

Ainda, quando a palavra latina apresenta a consoante lateral alveolar seguida de


semivogal, no PB tem-se a lateral palatal como produto dessa sequência, conforme
podemos analisar em palavras como filiu > filju > fio, palea > palja > paa

(WILLIAMS, 2001).

Da mesma forma como o ocorrido com a classe das nasais, as laterais sofreram
ora o processo de simplificação da geminada /ll/, resultando em sua homorgânica
simples /l/, ora o processo de palatalização das sequências kl, pl, l, bl, tl e lj

intervocálicas, resultando na lateral palatal //.

3.2.7 Vibrantes

Em relação à vibrante /r/, Zágari (1988) considera ser a única oposição de


quantidade que permaneceu na evolução do latim para o português. Segundo o autor,
/rr/ se diferencia de /r/ não somente pela quantidade, mas também pela sua pronúncia
mais forte. Abaurre e Sandalo (2003), ao tratarem do estatuto da vibrante no português,
fazem um apontamento a respeito da existência, no latim, de apenas um fonema
vibrante que, em contexto intervocálico, poderia geminar-se. A oposição entre r-forte e
r-fraco seria, portanto, aparente, já que sua motivação real estaria concentrada na

94
ocorrência ou não de dois segmentos idênticos adjacentes. Há uma clara divergência em
relação ao número de fonemas vibrantes no português: enquanto há propostas de que a
forma subjacente para a única vibrante do PB seja o r-fraco – o valor contrastivo no
contexto intervocálico é resultado de uma geminação, e no contexto de início de palavra
e após consoantes a variante do r-forte é resultado de uma Regra de Reforçamento
(MONARETTO, 1996, p.155) –, há também a proposta de Câmara Jr (1953) que aponta
a existência do r-forte na subjacência e ainda há as propostas subsequentes do autor,
defendendo a presença de dois fonemas róticos no sistema do português.

3.2.8 Origens do sistema consonantal português

A partir da descrição dos dados apresentada ao longo da Seção 3.2, é possível


visualizar-se a constituição do sistema consonantal do português a partir do sistema latino,
considerando-se ainda um constituinte da sílaba: o onset silábico absoluto ou medial,
conforme o Quadro 17.

Quadro 17: Constituição do sistema consonantal do português a partir do sistema latino (adaptado
de Neuschrank, 2011)
EXEMPLOS

ORIGEM: FORMA EM FORMA EM PB PROCESSO TRAÇOS


CONS. DO PB
LATIM LATIM FONOLÓGICO ENVOLVIDOS
LATIM >
PORTUGUÊS
/p/atria; /t/ristitia; /p/átria ; /t/risteza; -
p t k (onset /k/orona /k/oroa -
ptk < absoluto) a/pp/endix ; a/p/êndice; sagi/t/ário; degeminação [quantidade]
pp tt kk (medial) sagi/tt/arius ; bo/k/a
bu/kk/am
p t k (medial) sa/p/ere ; vi/t/a ; sa/b/er; vi/d/a; sonorização [+voz]
b d  (onset a/k/utus a//udo -
bd < absoluto) /b/onus ; /d/ebere ; /b/om; /d/ever; //ota
b d  (medial) //utta -
pálpe/b/ra; tra/d/ição;
palpe/b/rae ; tra/d/itio ri//or
; ri//or

f s (onset /f/ilho; /s/aúde -


/f/ilius ; /s/alus
fs < absoluto) pro/f/undo; cen/s/ura -
pro/f/undus ; cen/s/ura
f s (medial) a/f/eto; ó/s/eo degeminação [quantidade]
a/ff/ectus ; o/ss/eum
ff ss (medial)

95
kl pl fl (onset /kl/amare ; /pl/uvia ; //amar; //uva;
absoluto) /fl/amma //ama

 < kl pl fl ks sk mas/k/ulu>mas/kl/u ;
ma//o; in//ar;
(medial) in/fl/are ; co/ks/am ; palatalização [coronal, -anterior]
co//a; fai//a
fa/sk/iam
ssi (medial)
pai//ão
pa/ssi/onem
f (medial) pro/f/ectus pro/v/eito sonorização [+voz]
v < w (onset absoluto) /w/idere /v/er consonantização [-voc, -soante]
b (medial) V_V ha/b/ere ha/v/er fricativização [+contínuo]
j (onset absoluto e //azer
medial) /j/acere //ente consonantização [-voc, -soante]
  (onset absoluto //ente
 < e medial) ho//e
bei//o
_ /e/, /i/ ho/dj/e
d ; _j (medial) ba/sj/um palatalização [coronal, -anterior]

sj (medial)
s (medial) ou/s/are ou/z/ar sonorização [+voz]
z < t k _j (medial) ra/tj/onem ra/z/ão
k_e,i di/k/ere di/z/er fricativização [+contínuo]
m n (onset /m/ensis ; /n/egatus /m/ês; /n/egado -
mn < absoluto) co/mm/unem ; co/m/unidade;
mm nn (medial) fla/mm/am cha/m/a degeminação [quantidade]
nj (medial) ceco/nj/a cego//a
 < in (medial) v/in/u vi//o
n (medial) pu/n/us palatalização [coronal, -anterior]
pu//o

ll (medial) caba/ll/um cava/l/o degeminação [quantidade]


l < l (onset absoluto) /l/iber /l/ivre -
pa/le/a; fi/lj/u
pa//a; fi//o
l_e,j (medial) oculu > o/kl/u
o//o
scopulu > isco/pl/u
 < tegula > te/l/a esco//o palatalização [coronal, -anterior]
kl pl l bl tl tribulo > tri/bl/u te//a
(medial) vetula > ve/tl/a tri//o

ve//ota

O Quadro 17 permite visualizar a origem das consoantes que passaram a


configurar o sistema consonantal do PB, inclusive daquelas inexistentes no latim. O
estudo das consoantes na posição de onset absoluto e medial permite a análise da
ocorrência dos processos fonológicos responsáveis pelo surgimento dos novos
segmentos consonantais, bem como das classes de segmentos a que os processos são
aplicados. Para o estudo da mudança do sistema consonantal do latim ao sistema
consonantal do português, se mostram fundamentais as noções de “classes de
segmentos”, “processos fonológicos” e “traços”.
96
O contexto silábico é determinante para a ocorrência de certos processos
fonológicos, identificados na diacronia das línguas. Considerando dois contextos
principais, onset absoluto e medial, constata-se que os principais processos ocorreram
no contexto medial de palavra, mais suscetível a mudanças. Em onset absoluto, os
constituintes sofreram mudanças em situações bastante específicas, como no caso de
sequências que sofreram processo de palatalização (kl pl l bl tl), semivogais as quais se

consonantizaram /w, j/ e ainda a plosiva sonora // seguida de /e/ ou /i/, também

palatalizada.
A partir da exposição sistemática do Quadro 17 é possível determinar quais
foram os processos mais recorrentes na evolução do sistema consonantal latino e a que
classes de segmentos foram aplicados. Ainda é possível observar com mais clareza
quais consoantes não sofreram nenhum processo fonológico em toda a diacronia da
língua, como, por exemplo, aquelas presentes em onset absoluto, excluindo-se desse
grupo as já mencionadas, que são alvos de processos de palatalização e
consonantização.
A palatalização, por exemplo, ocorre em onset absoluto apenas em um dos
grupos: quando as sequências kl, pl e fl dão origem à palatal // em início de palavra.

Nos demais casos, o referido processo ocorre sempre no interior do vocábulo, assim
como a sonorização e a degeminação. Referindo apenas alguns dos processos ocorridos
na evolução do sistema consonantal latino abordados nesta pesquisa, é possível ratificar
a importância de considerar-se o contexto silábico em que os processos são
identificados, já que o constituinte da sílaba pode mostrar-se determinante para a
efetivação de mudanças nos segmentos fonológicos.
Por fim, ficam evidenciados também os traços envolvidos em cada um dos
processos identificados na evolução do sistema consonantal do latim ao português. É
importante salientar que, além de traços isolados, operam nesse movimento de
constituição do inventário também certas coocorrências de traços, evidenciando a
importância de se considerarem não apenas as possíveis correlações entre segmentos de
um sistema, mas também as correlações entre os traços que constituem esses segmentos.

97
3.3 Etapas evolutivas do sistema consonantal do PB

Considerando que a mudança no sistema consonantal do latim constituiu-se


como um processo lento e gradual, no sentido de que não ocorreu em um curto espaço
de tempo e que essa transformação se compôs de diferentes momentos em termos
linguísticos, é possível identificar as etapas evolutivas que integram a diacronia do
quadro de consoantes do português, dando destaque aos novos elementos presentes no
sistema atual.

Para esta tarefa, tomam-se como suporte os dados trazidos por Williams (2001),
que apresenta as origens do sistema consonantal do português a partir de um estudo
histórico que relaciona aspectos da fonética e da fonologia com dados de escrita,
traçando uma linha evolutiva entre o latim e o português. Além disso, foram consultadas
também as considerações tecidas por Castro (1991), Silva Neto (2009), que, da mesma
forma, apontam possibilidades de caminhos evolutivos para a constituição do inventário
consonantal do português. A justificativa para esta consulta reside no fato de que estes
estudos apresentam um alto grau de importância para análises de cunho histórico-
linguístico, comprovado pela recorrente citação dos mesmos em diversos trabalhos que
tratam deste tema e de seus congêneres. Também, são utilizados os dados de
Neuschrank (2011), que analisa, com o suporte da Teoria Autossegmental, os processos
ocorridos na fonologia diacrônica do português a partir do comportamento dos traços
caracterizadores dos segmentos envolvidos. A importância desses estudos para a
presente pesquisa consiste na organização das etapas evolutivas do sistema fonológico
do português, material fundamental para a análise proposta nesta Tese.

Dentre os diversos processos ocorridos na evolução do sistema consonantal do


português, são apresentados a seguir apenas aqueles que constituem um fenômeno mais
abrangente e que é o foco desta pesquisa: a fonologização. Assim, somente os processos
que motivaram o surgimento de novas consoantes no sistema fonológico são expostos a
seguir.

3.3.1 Sonorização

A sonorização consiste em um fenômeno que afeta as consoantes surdas. Na


evolução do latim, especificamente as oclusivas /p t k/ e as fricativas /f s/ são alvo de
sonorização. Ocorre que nesse processo há a atribuição do traço [+son], que representa a

98
característica acústica proveniente da vibração das cordas vocais, fenômeno que
transforma consoantes surdas em sonoras. A sonorização, na evolução do latim ao
português, mostra-se como um tipo de assimilação, uma vez que ocorre continuamente
com consoantes em posição intervocálica, as quais acabam recebendo o traço de
sonoridade característico das vogais que estão em seu entorno. É um fenômeno
importante na evolução histórica do português e ainda observável no português
contemporâneo, que apresenta a sonorização da fricativa surda quando esta se encontra
em final de palavra, antecedida e seguida por vogais.

Quadro 18: Exemplos de sonorização latim>português e português contemporâneo


Latim>PB Português Contemporâneo
lu/p/um>lo/b/o Quando o morfema de plural se encontra
vi/t/a>vi/d/a em situação intervocálica <olhos [z]
pa/k/are>pa/g/ar abertos>.

Sendo a sonorização um processo de assimilação, grandes são as contribuições


de Borges (1996) na análise diacrônica desse fenômeno. O autor salienta que a simetria
já existente nas oclusivas do latim torna-se pertinente, também, para as constritivas do
português, já que, segundo ainda Câmara Jr (1979, p.48), o processo “forma mais dois
pares opositivos de surda e sonora a partir do surgimento de uma constritiva labial
sonora /v/, que ficou em simetria com /f/, e uma constritiva sibilante sonora /z/, que
ficou em simetria com /s/”. Ainda de acordo com Borges, não apenas o contexto
intervocálico mostra-se como responsável para o processo de sonorização. Consoantes
sonoras, que também contêm o traço [+soante], como /r/, /m/ e /n/, pertencentes ao
ambiente fonológico de palavras que apresentam esse fenômeno, são facilitadoras da
sonorização de /s/, por exemplo (spon/s/u > espo/z/o).
A sonorização é um processo responsável pela inserção de novos segmentos no
sistema consonantal, como é o caso da fricativa /z/; este fenômeno pode ser entendido,
como aponta Castilho (2011), como um caso de transfonologização, em que um traço já
atuante no sistema, porém ainda não combinado maximamente, passa a contrastar em
um espaço lacunar, fazendo emergir um segmento até então inexistente. Nos casos de
sonorização, o responsável pela emergência deste processo é o traço [+voz].

3.3.2 Fricativização

A fricativização é considerada um processo de lenização, ou seja, de

99
enfraquecimento, já que uma consoante plosiva se transforma em fricativa, processo no
qual há uma alteração no traço [± contínuo]: um segmento [-contínuo] passa a ser
[+contínuo]. Considerando-se a escala de sonoridade43, vê-se que a lenização implica
que o segmento sofra alteração na escala, com aumento de sonoridade. A diferença
entre o processo de fricativização e sonorização, ambas exemplos de lenização, está
principalmente na atuação do traços envolvidos: enquanto que a sonorização está
relacionada ao aproveitamento do traço [+voz], a fricativização compreende a
maximização do traço [+contínuo].

O fonema /z/ provém de sequências formadas por plosiva alveolar seguida das
vogais /i, e/ ou semivogal /j/, especificamente em contexto intervocálico. Por vezes, esse
tipo de sequência com a plosiva velar /k/ também deu origem à fricativa alveolar sonora
/z/. As referidas sequências seguem o mesmo desenvolvimento, segundo Williams
(2001, p. 90), devido a uma confusão decorrida do uso comum em latim vulgar de /k/
mais iode pelo /t/ mais iode.
Assim, toma-se como exemplificação do desenvolvimento dessas sequências o
esquema a seguir:

Quadro 19: Desenvolvimento da sequência tj, em contexto intervocálico (exemplo: rationem >
razão)

/t j/ > /ts/ > /dz/ > /z/

Assim, uma sequência de dois segmentos distintos passa a um segmento único


(africada) caracterizado pelo traço [-sonoro], que a seguir se sonoriza e por fim deixa de
ser um segmento de contorno44 e passa a simples.

O fonema /v/ tem uma de suas origens também em um processo de

43
A Escala de sonoridade de Bonet e Mascaró (1996) apresenta o grau de sonoridade das classes de
segmentos: plosivas – 0; fricativas e “r” forte – 1; nasais – 2; líquidas laterais – 3; glides e “r” fraco – 4;
vogais – 5.
44
Na Geometria de Traços, segundo Clements e Hume (1995), um segmento é considerado de contorno
quando possui, em sua estrutura interna, a sequência de valores de um mesmo traço. Há uma motivação
clássica para que esse tipo de segmento seja considerado, que é a existência de efeitos fonológicos de
borda, ou seja, um segmento pode ter o comportamento, em relação aos segmentos vizinhos em uma
borda, conforme o valor (+) de um traço, e, em relação aos segmentos vizinhos da outra borda, pode
comportar-se conforme o valor (-) do mesmo traço. As consoantes africadas e as plosivas pré e pós-
nasalizadas são os candidatos naturais para apresentar essa estrutura (NEUSCHRANK, 2011).

100
abrandamento, em que a bilabial /b/, no latim, se encontra em contexto intervocálico e, a
partir do processo referido, com a atuação do traço [+cont] da vogal, tem-se o novo
segmento: a fricativa sonora /v/. Porém, conforme salienta Borges (1996), não apenas o
contexto intervocálico alimenta a sonorização. Um exemplo trazido pelo autor são as
palavras arbore > árvore e sorbere > sorver: em seu estudo, Borges constata a presença
do traço [+cont] no ambiente fonológico de palavras desse tipo, no caso dos exemplos
citados seria a consoante /r/, que, associada ao ambiente intervocálico, facilita ainda
mais a assimilação do referido traço responsável pela mudança em questão. Ainda, é
possível considerar também que o traço [+soante] seja favorecedor do processo aqui
referido.

3.3.3 Palatalização

O fenômeno da palatalização, no português dos dias de hoje, tem a característica


de ser alofônica, tendo como alvo ou a fricativa em coda silábica ou as plosivas coronais
que antecedem a vogal /i/ em posição de onset. Assim, a palatalização que afeta as
plosivas coronais ocorre em um contexto bastante específico: quando as plosivas /t/ e /d/
são seguidas da vogal alta /i/ (vogal palatal), sendo este o gatilho para a mudança
estrutural. Na evolução da língua, o processo de palatalização também se fez presente, e
pode ser considerado o mais produtivo, uma vez que a fonologia do português passou a
integrar toda uma classe de novas consoantes (palatais), os quais não pertenciam à
fonologia do latim.

Os segmentos palatais //, //, //, //, na evolução da língua portuguesa,

surgiram por meio do processo de palatalização e, ao que muitos estudos indicam, pela
mesma motivação, ou seja, a presença de um segmento vocálico palatal. Porém, há
também casos em que o gatilho para o referido processo não se restringe à presença de
um segmento vocálico palatal: a estrutura silábica, ou seja, a sequência de sonoridade na
formação de um constituinte silábico (no caso, o onset) é o que parece determinar a
mudança.
O segmento //, presente no português e inexistente no latim, tem como uma de

suas origens as sequências latinas kl, pl e fl. A palatalização sofrida por esses elementos
encontra inicialmente na estruturação da sílaba a sua motivação de ocorrência. Segundo
proposta de Williams ([1961] 2001, p 75), o desenvolvimento da fricativa palatal surda,
do Latim ao Português, teria ocorrido de acordo com o seguinte esquema:
101
Quadro 20: Esquema de evolução das sequências kl, pl e fl segundo Williams (2001)

/k,p,f/ + /l/ > /k,p,f/ + /j/ > /t/ > //

Logo,
klave > kjave > tave > ave

De acordo com o estudo de Neuschrank (2011), que analisou a evolução das


etapas propostas por Williams considerando a atuação dos traços dos segmentos, nas
sequências consonantais cujo segundo elemento é a líquida lateral /l/, a primeira etapa
do processo concentra-se no enfraquecimento da consoante líquida, que passa a glide45.
Considerando a escala de sonoridade na formação da estrutura silábica, esse fenômeno é
explicável: a segunda consoante do onset complexo tem sua sonoridade aumentada, a
fim de alcançar maior distância no grau de sonoridade entre C1 e C2 – comparem-se os
quadros 21 e 22.

Quadro 21: Sonoridade da sequência /kl/, segundo a Escala de Sonoridade de Bonet & Mascaró
(1996)
5 5

3
1
0
k l a v e

No quadro 21, é possível visualizar-se o distanciamento de sonoridade


provocado, entre os dois elementos do onset, pelo fenômeno de enfraquecimento da
líquida. Segundo estudos diacrônicos, no latim, quando uma líquida se apresenta em
posição seguinte a um outro segmento consonantal, o /l/ nestes casos é considerado
“turvo”, suscetível à vocalização – há, pois, no latim, a tendência à busca de maior
distância de sonoridade entre segmentos que constituem onset complexo. Ainda,
Kolovrat (1923) apresenta a hipótese de /l/, diante de consoante ou em final de palavra,
ser “duro”46 em latim, o que poderia explicar a sua vocalização nessa posição,

45
O enfraquecimento de uma líquida para um glide pode ser considerado processo natural também em se
considerando a estrutura interna dos segmentos: Matzenauer-Hernandorena (1996) propõe que todos as
consoantes líquidas têm potencialmente, em sua estrutura interna, o nó vocálico. Ao superficializar-se o
glide, o nó vocálico se atualiza, desligando-se, nesse caso, o traço de ponto ligado diretamente ao nó PC.

46
Conforme Callou, Leite e Moraes (2002), /l/ “duro” é equivalente a /l/ velar.

102
reforçando o que ocorre quando a líquida se encontra como parte de uma sequência
consonantal.
Quadro 22: Sonoridade da sequência /kj/, segundo a Escala de Sonoridade de Bonet & Mascaró
(1996)
5 5
4

1
0
k j a v e

A etapa posterior concentra-se na passagem da sequência /kj/ para //, motivada

por um processo de assimilação do traço [coronal] do glide. Após, há a implementação


de uma consoante palatalizada, a qual passa a africada e posteriormente manifesta-se
como a fricativa palatal. Ainda sobre a fricativa //, a mesma também tem origem na

sequência /ssi/, que sofre um processo de simplificação da geminada /ss/, tendo a


atuação do traço [coronal] funcionando como gatilho do processo de palatalização.

Passando à análise das origens da fricativa alvéolo-palatal //, de acordo com

Williams (2001, p. 72-101), esse segmento surgiu basicamente a partir de três


contextos, apresentados a seguir:

Quadro 23: Contextos de origem de / /

1º) // inicial ou medial antes de /e/ ou /i/: entem> //ente; iniuam > //en//iva;

viilantia>vi//ilância; fuio> fu//o

2º) /i/ inicial ou intervocálico: /i/urare>//urar; cu/i/um>cu//o

3º) /d/ seguido de /i/, precedido de vogal: ho/di/e>ho//e; a/di/utare>a//udar;

vi/de/o>/vi/di/o>ve//o

Para o primeiro contexto de origem de //, Williams (2001) propõe as seguintes

etapas evolutivas:

103
Quadro 24: Evolução da sequência gj, segundo Williams (2001)

 > j > j > d > 

Neuschrank (2011), porém, propõe que haja etapas intermediárias àquelas


propostas por Williams, considerando que tenha havido ainda consoantes palatalizadas,
o que refletiria maior naturalidade no processo de fonologização.

Quadro 25: Proposta de evolução da consoante velar seguida de vogal coronal, de Neuschrank
(2011)

 + V coronal > j > j > dj > d > 

Assim, com o suporte da Teoria Autossegmental, a autora explicita como a


atuação dos traços dos segmentos envolvidos reflete o funcionamento do processo de
palatalização. Na seção de análise dos dados, estas “etapas” serão retomadas e, na
medida do possível, reconsideradas.

O segundo contexto de origem do segmento // proposto por Williams

([1961]2001) e apresentado no Quadro 23 será tratado na seção seguinte já que, além de


um processo de palatalização, é caracterizado, sobretudo, como um processo de
consonantização.

No terceiro caso apresentado no Quadro 23, o contexto menos produtivo, visto


que os resultados do processo podem ser visualizados em um número bem menor de
palavras do que nos dois primeiros, o processo de palatalização assemelha-se ao
apresentado por Williams como uma das etapas na transformação ocorrida com a
plosiva velar sonora, tendo como um dos estágios da evolução a presença de uma
consoante africada, no caso /d/, o que pode ser visto no esquema abaixo.
Quadro 26: Evolução da sequência d_i,j

d+i,j > dj > d > 

Outro elemento surgido no sistema consonantal do português a partir do


processo de palatalização foi a lateral palatal //. Conforme o Quadro 27, sabe-se que

104
esse segmento tem origem na presença de uma lateral alveolar (simples ou geminada)
seguida de vogais altas ou médias anteriores ou, ainda, quando a uma plosiva bilabial,
velar ou alveolar surda sucede o segmento lateral alveolar, sempre em posição medial
de palavra. O quadro a seguir ilustra tais contextos:

Quadro 27: Contextos de origem do //

1º) /l/,/ll/_/e/,/i/ > // : filium > fio; allium > ao

ou

2º) kl, pl, l, bl, tl> // : auri/k/u/l/a>auri/kl/a>ore//a; scopulu > isco/pl/u > esco//o;

tegula > te/l/a > te//a; tribulo > tri/bl/u > tri//o; vetula > ve/tl/a > ve//ota

Teyssier propõe que, por exemplo, na sequência kl, formada a partir da síncope
da vogal /u/, a plosiva teria passado a iode, formando uma nova sequência: jl. Apesar da
escassez de registros escritos que comprovem que a proposta sugerida por Teyssier
retrata fielmente o caminho seguido pela evolução de sequências do tipo /kl/, segundo o
autor essa evolução é comum a todos os falares hispânicos, porém com consequências
bem diferentes dependendo das regiões: em galego-português /jl/ passa a // (conforme

apresentado na última análise); já em castelhano, segundo o autor, a sequência passa à


africada /d/, em uma etapa do processo de evolução desse sistema.

Quadro 28: Evolução de kl e tl, no galego-português e no castelhano (TEYSSIER, 2007)


Latim clássico Latim vulgar Galego-português Castelhano
Oculum oc’lu olho ojo
Auricula auric’la orelha oreja
Vetulum vet’lu velho viejo

Como último segmento provindo de um processo de palatalização, tem-se a


nasal palatal //, também inexistente no sistema consonantal latino. Os contextos

favorecedores para a implementação desse novo segmento podem ser visualizados no


quadro a seguir.

105
Quadro 29: Origens da nasal palatal / /

1º - nasal coronal alveolar seguida de semivogal palatal nj


2º - vogal palatal seguida de nasal coronal alveolar in
3º - plosiva velar sonora seguida de nasal coronal alveolar n

De acordo com Ilari (2008), grupos consonantais nos quais a segunda consoante
é uma dental, especificamente no período latino, tendem a desfazer-se pela queda da
primeira consoante, que pode assimilar-se à segunda, vocalizar-se ou simplesmente cair;
dentre os grupos referidos por Ilari, encontra-se a sequência /n/, o último foco de

análise sobre as origens da nasal palatal //. O autor, porém, não especifica exatamente

qual caminho foi percorrido pela sequência /n/ até o surgimento do novo segmento

palatal em análise. De mesma forma trata Coutinho (1979, p. 125), acrescentando,


porém, exemplos do português arcaico para corroborar a ideia de que a plosiva dorsal
pode vocalizar-se ou cair.

Já Williams (2001, p.94), quando trata especificamente da sequência /n/,

apresenta os seguintes estágios do processo de evolução:

Quadro 30: Estágios da evolução de /n/

n > jn > jñ > 

Assim, tem-se confirmada a informação referida por Ilari e Coutinho, de que, em


grupos como /n/, uma das possibilidades da cadeia evolutiva é a vocalização do

primeiro segmento, neste caso o //.

3.3.4 Consonantização

Na variante culta do latim, havia ditongos crescentes formados pelas semivogais


/j/ ou /w/ seguidas de alguma vogal, como, por exemplo, nas palavras jam e winu.
Porém, já na variante popular latina, as semivogais mencionadas consonantizaram-se.

Segundo Castro (1991, p. 105-106), a consonantização da semivogal /j/ do latim


é uma das origens da fricativa alveolar //, assim como a intensificação da semivogal

/w/ é entendida como uma das raízes da fricativa labial /v/, consoantes estas inexistentes
no sistema latino. O processo de consonantização remete a uma alteração do traço de

106
raiz do fonema vocálico [+vocoide] → [-vocoide], à luz da geometria de traços proposta
por Clements & Hume (1995) (veja-se representação em (6)).

Quadro 31: Evolução da semivogal /j/

j → /dj/ → /d/ → //

Conforme aponta Williams (2001), a realização da semivogal inicial /j/ acabou,


em certo momento, sendo a mesma de // seguido de /e/ ou /i/, cujos processos

envolvidos em sua evolução, na medida do possível, acabam sendo os mesmos na


evolução do /j/ inicial.

Em relação à semivogal /w/, Ilari (2008) apresenta o seguinte quadro de


resultados da evolução desse segmento nas línguas românicas:

Quadro 32: Resultados da evolução fonética de /w/ nas línguas românicas - Ilari (2008, p. 81)
Latim vulg. [cláss] sardo romeno italiano francês espanhol português
Vinu [winu] vinu vin vino vin vino vinho
[v] [u] [b] [v] [v] [v] [] [v]

Como pode ser visto no Quadro 7 (ver Seção 3.1.2), o galego-português


(primeira fase do português arcaico) apresentava em seu sistema uma possível fricativa
bilabial //, porém a ausência da fricativa labiodental sonora /v/ também é percebida. Já

na segunda fase do português arcaico, há uma inversão nessa apresentação: o sistema


passa a ter como constituinte a fricativa labiodental sonora e perde a fricativa bilabial. A
partir dessas configurações e dos dados do Quadro 32, é possível conceber que a
evolução da semivogal /w/ não ocorreu diretamente para /v/, mas primeiramente para
uma fricativa bilabial sonora // e posteriormente para a fricativa labiodental sonora, o

que também é referido por Ilari. Logo, temos a seguinte configuração para a evolução
da semivogal /w/:

Quadro 33: Evolução da semivogal /w/

w>>v

De acordo com os quadros do sistema consonantal das duas fases do português


arcaico, apresentados por Mattos e Silva (2006), a plosiva bilabial /b/ e a fricativa
bilabial // eram fonemas distintos, tanto que se reconhece uma oposição /b/:// na

107
primeira fase do galego-português, a qual desaparece na segunda fase, mantendo-se
posteriormente apenas a oposição /b/:/v/. A mudança da fricativa bilabial sonora para
fricativa labiodental sonora ocorre a partir da alteração do valor do traço [estridente], já
que // é [-estridente] e /v/ porta o traço [+estridente].

Ao longo da descrição dos dados desta pesquisa, foram sendo apresentados


alguns apontamentos de análise que parecem já dar pistas para a resposta a algumas das
indagações feitas no início deste texto, em relação ao funcionamento do processo de
fonologização na diacronia do português. É preciso entender que a atuação dos traços na
expansão dos inventários fonológicos não se dá de forma aleatória: existem forças que
atuam sobre o sistema e orientam a emergência ou apagamento de fonemas. De maneira
geral quatro parecem ser as forças atuantes nos processos evidenciados nesta Seção:
(a) o sistema oferecia espaços para fonologização: não havia contraste, por exemplo, na
classe das fricativas, pelo traço [± voz], o que motivou a busca da simetria do sistema;
como o traço [± voz] já integra a fonologia da língua, estabelecendo contraste entre as
plosivas, o movimento passa a ser no sentido de maximizar a aplicação deste traço; da
mesma forma, nota-se o sistema apresentava uma grande lacuna se for considerado o
pequeno número de fricativas que contrastavam com as plosivas na classe das
obstruintes, bem como aquelas que compartilham o traço [-anterior]. Pela atuação dos
traços [coronal], [-anterior] e [+contínuo], emergem os novos fonemas, antes
inexistentes no sistema;
(b) a fonologização é favorecida pelo contexto: segmentos podem emergir em
consequência das unidades que lhe são vizinhas; ocorre, por exemplo, a assimilação dos
traços [+ voz], [+contínuo] e [+coronal] presente nas vogais adjacentes e em algumas
consoantes, em se tratando dos processos de sonorização, fricativização e palatalização;
(c) a fonologização tende a afluir pela criação de contraste decorrente de traço que não
seja dos dois níveis mais baixos da Escala de Robustez (veja-se Quadro 3);
(d) a fonologização tende a ocorrer em classe de segmentos que compartilham traços
que, em coocorrência, podem ser vistos como robustos, ou seja, a robustez, nesse caso,
está na coocorrência de traços (MATZENAUER, 2015).
No processo de sonorização, por exemplo, parecem atuar as forças representadas
em (a), (b) e (c) – o sistema do latim não esgotava as possibilidades de contraste do
traço [±son], na classe das obstruintes; o entorno [+ voz] favoreceu, por assimilação, a
emergência de obstruintes sonoras; o traço [± voz] não está nos níveis mais baixos da

108
Escala de Robustez. Já na fricativização e na palatalização, traços como [coronal] e
[+contínuo], que ocupam os dois primeiros níveis da escala de Robustez de Clements
(2009), oferecem o suporte para a fonologização, o que evidencia que a força
apresentada em (d) pode também atuar na expansão dos sistemas fonológicos.

109
4 ANÁLISE DOS DADOS
Neste capítulo, é dado início à análise dos dados referentes à evolução do
sistema consonantal do latim ao português, com foco especificamente nos contextos que
promoveram a inserção de novos segmentos no inventário, ou seja, casos em que o
fenômeno da fonologização é identificado. Para tanto, são consideradas as possíveis
etapas apresentadas na Seção 3.3, sem que elas, naturalmente, sejam tomadas como
possibilidade única de explicitação do processo alvo de análise.

4.1 A fonologização consonantal: do latim ao português

Com base nas descrições apresentadas ao longo do Capítulo 3, é possível chegar-


se à constituição de um quadro (Quadro 34) que apresenta os processos responsáveis
pela fonologização na diacronia do português, bem como as etapas evolutivas que a
caracterizam e os tipos de traços envolvidos.

Quadro 34: Fonologização na diacronia do PB – processos, etapas e traços

RESULTADO DA TRAÇOS
PROCESSOS ETAPAS
FONOLOGIZAÇÃO ENVOLVIDOS

/f/ > /v/ v [+voz]


SONORIZAÇÃO
/s/ > /z/ z
Vogal + /t j/ > /ts/ > /dz/ > /z/ z
/b/ > // > /v/ v
Vogal + /k/ + /e,i/ > /t i/ > /ts/ > [+contínuo]
FRICATIVIZAÇÃO
z
/dz/ > /z/
Vogal + /ks/47+Vogal > /s/ > /z/ z
j
/k,p,f/ + /l/ > /k,p,f/ + /j/ > /k / >
/tj/ > /t/ > //
/ssj/> /sj/ > // 
Vogal + /ks/ + Vogal > /s/ > /s+j/ 
> // [+contínuo]
[-anterior]
PALATALIZAÇÃO // + V coronal > /j/ > /j/ > /dj/ >
/d/ > // 
/d/+/i,j/ > /dj/ > /d/ > //
/s/+/j/ > //  
Vogal+/kl/;/pl/;/l/;/tl/;/bl/+Vogal 

> /ll/ > /jl/ > // [+contínuo]

47
Somente no prefixo -ex.

110
/l/;/ll/ + /j/ > // [-anterior]
/n/ > /jn/ > //  
/i/+/n/> //  -
/n/+/j/>//
/j/ → /dj/ → /d/ → //  [-
CONSONANTIZAÇÃO
/w/ > // > /v/  [-

Observando o Quadro 34, constata-se que toda uma classe de novos segmentos
(as consoantes palatais) emerge como resultado de diferentes processos que constituem
a fonologização na diacronia do português. Além disso, duas outras lacunas existentes
no sistema latino (Quadros 4 e 5) são preenchidas com as fricativas sonoras /v/ e /z/,
atribuindo um maior equilíbrio ao sistema.

A fonologização possui um papel fundamental na constituição da história das


línguas, uma vez que é responsável pelo preenchimento de lacunas existentes no sistema
fonológico: lacunas de segmentos e, consequentemente, lacunas de contraste entre
traços (falta de oposição entre segmentos [± voz], por exemplo); o preenchimento
dessas lacunas pode implicar a introdução, no sistema, de um segmento ou até mesmo a
criação de toda uma classe de segmentos inexistentes. Conforme destacam diversos
estudos relacionados à evolução do inventário fonológico das línguas (FARIA, 1970;
COUTINHO, 1979; SILVA NETO, 1979; ZÁGARI, 1988; CASTRO, 1991; HOLT,
1997; WILLIAMS, 2001), as mudanças ocorridas nos sistemas, ao se observarem o
comportamento ou a fonologização de segmentos, obedecem a determinados
parâmetros, relacionados, por exemplo, ao contexto silábico e aos tipos de segmentos
adjacentes. Logo, a partir dos dados descritos na Seção 3 deste texto, é possível pautar
as informações primordiais para uma coerente caracterização do processo de
fonologização na diacronia do português. Os Quadros 35 a 41, além das origens dos
novos fonemas do PB e das etapas evolutivas dos mesmos, sintetizam os fatores que
estão intrinsecamente relacionados no processo de fonologização que culminou na
implementação de seis novos segmentos no sistema consonantal do português, bem
como a atuação dos traços nesse movimento de expansão identificado na diacronia da
língua.

4.1.1 Sobre a fonologização da fricativa /v/


A fricativa labiodental sonora tem sua origem em três processos de
fonologização distintos: a consonantização da semivogal /w/, a fricativização da bilabial

111
/b/ e a sonorização da fricativa labiodental surda /f/. Quanto ao contexto silábico, a
fonologização de /v/ ocorreu tanto em onset absoluto como em onset medial, conforme
apresentado no Quadro 35.

Quadro 35: O processo de fonologização do segmento /v/


Contexto Processo Exemplo Implicações Etapas
silábico
Onset absoluto Consonantização /w/ino > /v/inho Processo de fortalecimento (maior /w/ > // > /v/
da semivogal /w/ tensão articulatória) >> alteração nos
traços da raiz do segmento >>
alteração na ligação do traço de ponto
do segmento [lab]
Onset medial Fricativização da ar/b/ore>ár/v/ore Espraiamento do traço [+ cont] da
bilabial /b/ ca/b/allu> ca/v/alo vogal adjacente ou da consoante >> b>v
fricativização
Onset medial Sonorização da profectum>proveito Espraiamento do traço [+son] >> f>v
fricativa surda /f/ consoante sonora

Onset medial Consonantização a/w/ena>a/v/eia Processo de fortalecimento (maior /w/ > // > /v/
da semivogal /w/ tensão articulatória) >> alteração nos
traços da raiz do segmento >>
alteração na ligação do traço de ponto
do segmento [lab]

Considerando o processo de consonantização da semivogal /w/, verifica-se a sua


ocorrência tanto em onset absoluto como em onset medial (COUTINHO,1979).
Conforme dados apresentados por Mattos e Silva (2006, p. 86) sobre o português
arcaico, em sua primeira fase, há uma oposição clara entre bilabial oclusiva e bilabial
constritiva, ou seja, /b/ : //, que, em fase posterior, acaba desaparecendo, favorecendo a

manutenção apenas da oposição /b/ : /v/. Essa oposição, em termos de traços, é marcada
pela atuação da oposição [+voz], cujo papel passa a ser maximizado na classe das
obstruintes, e pelo traço [±contínuo] na classe das labiais, estabelecendo contraste entre
plosivas e fricativas cujos articuladores ativos são os lábios.
Segundo estudos de Maia (1986) a respeito da grafia portuguesa arcaica, a
oposição /b/ : // mostra-se pertinente principalmente porque havia clara distinção entre

cabo < caput e cavo<cauo, aliado ao fato de existir uma variação gráfica <v,u> ~ <b>
- arbore por árvore; nobenta por noventa48. Assim, é possível chegar-se à proposição
do continuum evolutivo que, a partir da semivogal /w/, resultou na fricativa labiodental:
entende-se que o processo de consonantização da semivogal tenha, em um primeiro

48Na fase galego-portuguesa, ou seja, na primeira fase do português arcaico, no noroeste peninsular, haveria uma
oposição entre bilabial oclusiva e bilabial constritiva (/b/ : //), que convivia com os dialetos portugueses do sul em
que se faria a oposição bilabial oclusiva e constritiva labiodental (/b/ ; /v/). Na segunda fase, a oposição /b/ : // teria
desaparecido nos dialetos setentrionais, neutralizando, portanto, os resultados históricos do /b/ e do /v/ que se mantêm
nos dialetos centro meridionais (MATTOS e SILVA, 2006, p. 86).

112
momento, fonologizado um segmento fricativo bilabial e, só depois, culminado na
fricativa labiodental.
Quanto ao funcionamento do processo em questão (consonantização), entende-se
que o mesmo tenha sido impulsionado por um processo de fortalecimento, ou seja, a
instalação de maior tensão articulatória, que implica, à luz da Geometria de Traços, uma
alteração na raiz do segmento49, a qual, no lugar dos traços [+soant, + aprox, +voc],
passa a apresentar os traços [-soant, -aprox, -voc]. A alteração do valor do traço
[vocoide], presente na raiz do segmento, implica o desligamento do nó PV; como
consequência, o traço de ponto [labial], que era dependente de PV, tem sua ligação
promovida ao nó PC. É importante salientar que os traços de modo [+cont] e [+son],
presentes na semivogal, permanecem inalterados mesmo após o processo de
fonologização como /v/, assim como o traço de ponto [labial] que, na verdade, muda
apenas a sua localização na estrutura do segmento fonologizado, alteração esta
motivada, conforme já foi explicitado, pela mudança ocorrida na raiz do segmento, que
passa de [+ voc] para [-voc].

Figura 7: Evolução da semivogal /w/ para fricativa /v/

Na fonologização de /v/ ocorrida por meio do processo de fricativização da


plosiva bilabial sonora /b/, há uma mudança no traço de modo de articulação [-cont],
que passa a [+cont]. Essa alteração ocorre pela influência de segmentos adjacentes, os

49 A Teoria Autossegmental, por meio da Geometria de traços, é capaz de explicitar claramente todos os referidos
movimentos dos traços na constituição das etapas evolutivas que resultaram nos processos de fonologização aqui
tratados. Sobre a teoria, consultar Clements (1995) e, para mais detalhes sobre as etapas evolutivas do sistema
consonantal do PB via Teoria Autossegmental, ver Neuschrank (2011).

113
quais possuem este traço em sua estrutura e, no caso em estudo, é a presença de vogais
ou ainda de consoantes com a propriedade [+cont] o gatilho para o referido processo.
Além disso, pode-se considerar a presença de segmentos com o traço [+soante] como
favorecedora da fricativização.

Figura 8: Fricativização de /b/

Também no caso da fonologização de /v/ pela sonorização da fricativa surda, a


influência dos traços que constituem os segmentos adjacentes é determinante para a
implementação da mudança. O referido processo ocorre, por exemplo, em contexto
intervocálico, em que a assimilação do traço [+ voz] proveniente da vogal adjacente
resulta em uma fricativa labiodental sonora, inexistente no sistema do latim.

Assim, é possível identificar a atuação dos traços [+contínuo] e [+voz] na


fonologização da fricativa labiodental /v/, permitindo, além do preenchimento de uma
lacuna existente no sistema, também a constituição de mais um par opositivo dentro da
classe das obstruintes, encaminhando assim para maior simetria. Observando-se, à luz
modelo de Clements (2009), os traços que se mostraram decisivos na fonologização de
/v/, vê-se que sua atuação parece estar de acordo com o princípio de Economia de
Traços, uma vez que traços já existentes passam a definir um maior número de
contrastes dentro do sistema. Em relação à Escala de Robustez, identifica-se a atuação
de traços pertencentes ao segundo e terceiro nível da hierarquia (vide Escala de
Robustez – Quadro 3), o que implica que traços bastante robustos passaram a ter
ampliada, no sistema, a ação de estabelecer contraste.

4.1.2 Sobre a fonologização da fricativa /z/

No que se refere à fonologização da fricativa alveolar sonora, sua atuação


restringe-se exclusivamente ao contexto de onset medial, o que é atestado pela baixa
frequência de palavras iniciadas por /z/ no português; /z/ em onset absoluto se faz
presente em casos específicos de vocábulos provenientes principalmente do grego e de
línguas africanas e línguas indígenas. É possível pressupor essa quase inexistência pelo

114
fato de que os elementos em posição precedente àqueles fonologizados são importantes
no referido processo, logo o onset absoluto, por não contar com segmentos precedentes,
não atenderia às exigências para a implementação dessa mudança. O quadro a seguir
apresenta os processos que constituíram a fonologização de /z/, bem como as etapas
evolutivas e as implicações resultantes da atuação dos traços no referido fenômeno.

Quadro 36: O processo de fonologização do segmento /z/


Contexto Processo Exemplo Implicações Etapas
silábico
Onset - - - -
absoluto
Sonorização ro/s/a>ro/z/a Espraiamento do traço [+son] >> /s/ > /z/
de /s/ spon/s/u > espo/z/o consoante sonora
intervocálico
ou posterior a
consoante
[+soante]
Fricativização Alteração no traço[±cont] >> nó /tj/>/ts/>/dz/>/z/50
de: CO da vogal passa a configurar a
/k/ seguido de vi/k/inu>vi/z/inho estrutura da consoante
Onset /e/ ou /i/, consonantal >> eliminação das
medial precedidos de características vocálicas
vogal espraiadas>>implementação de
africada >> sonorização >> perda
/t/ mais iode, ra/tj/one>ra/z/ão da primeira articulação
precedido de consonantal >> fricativa alveolar
vogal /z/

/ks/ e/ks/amen>e/z/ame Queda da plosiva velar surda >> /ks/>/s/>/z/


intervocálico sonorização da fricativa alveolar
no prefixo ex- surda

Em onset medial, a sonorização é um dos processos responsáveis pelo


surgimento da fricativa /z/. Assim como ocorreu com /f/ (vide Seção 4.1.1), a presença
de segmentos adjacentes [+son] contribuem para a mudança sofrida pela fricativa
alveolar /s/, que passa de [-son] para [+son], em contexto intervocálico. Além disso, de
acordo com Borges (1996), não apenas o contexto intervocálico mostra-se como
responsável para o processo de sonorização. Consoantes sonoras, que também contêm o
traço [+soante], como /r/, /m/ e /n/, pertencentes ao ambiente fonológico de palavras que
apresentam esse fenômeno, são facilitadoras da sonorização de /s/, por exemplo
(ro/s/am > ro/z/a ; spon/s/u > espo/z/o). Convém ressaltar que o processo de sonorização
é um fenômeno bastante importante na evolução histórica do português e ainda

50
Segundo Williams ([1961]2001, p. 90), as duas sequências, tanto a formada por plosiva velar /k/ como
a formada por plosiva dental /t/ seguem o mesmo desenvolvimento, devido a uma confusão decorrida do
uso comum em latim vulgar de /k/ mais iode pelo /t/ mais iode.

115
observável no português contemporâneo51, ainda que atualmente não implique nenhum
caso de fonologização.

Figura 9: Sonorização de /s/

A fricativização também é responsável pelo surgimento de /z/ no sistema


consonantal do português. Este segmento fonologizou-se basicamente em dois
contextos específicos: plosiva velar surda seguida de /e/ ou /i/ ou plosiva alveolar surda
seguida de semivogal palatal, ambas precedidas de vogal. Embora constituídas por
elementos diferentes, segundo Zágari (1988, p. 111) e Williams (2001, p. 90), as
referidas sequências seguiram um mesmo caminho, conforme apresentado no Quadro
17, pois, segundo esses autores, a primeira sequência (k + e,i) passou a ser produzida
como a segunda (t+j), o que também é referido por Castro (1991, p. 109).
A sequência /tj/ revela-se como motivadora para o surgimento de uma consoante
africada alveolar surda /ts/. Sob os pressupostos da Geometria de Traços, esse processo
ocorre a partir do espraiamento do nó CO do segmento vocálico e todos os seus
constituintes para o nó da raiz da consoante.

Figura 10: Sequência /tj/ e espraiamento

51
Quando o morfema de plural <s> se encontra em situação intervocálica <portas [z] abertas>, verifica-se
também o processo de sonorização.

116
Como o espraiamento se dá a partir do nó pertencente ao segmento vocálico para
a raiz da consoante, os traços [-soant, -aprox, -voc] acabam por acarretar, por relação
implicacional, o desligamento do nó Vocálico, já que esse nó só ocorre quando na raiz o
traço [voc] tem o sinal positivo. Em virtude de o traço [cont] manter dois valores
diferentes, como resultado tem-se a formação de uma consoante africada alveolar surda
/ts/, um segmento complexo que apresenta o chamado efeito de borda, com a sequência
dos dois valores de um mesmo traço, nesse caso o [cont].

Figura 11: Consoante africada alveolar surda /ts/

Considerando que a análise da evolução da sequência /tj/ toma o contexto


intervocálico (pre/tj/are>pre/z/ar) como constituinte desse processo evolutivo, a partir
da implementação da africada alveolar surda /ts/, em etapa posterior, essa consoante tem
seu traço [-son] alterado para [+son] por influência dos segmentos vocálicos adjacentes,
ou seja, por espraiamento, ocorrendo assim uma assimilação desse traço das vogais.

Figura 12: Geometria de traços da africada alveolar sonora /dz/

117
Na etapa seguinte, a africada alveolar sonora /dz/ tem a sua borda esquerda
completamente desligada, provocando uma reorganização na estrutura do segmento
resultante, que passa de segmento de contorno a segmento simples: a fricativa alveolar
sonora /z/.

Figura 13: Desligamento de borda da africada alveolar sonora /dz/ e geometria de traços da
fricativa alveolar sonora /z/

Outro contexto bastante produtivo para a fonologização de /z/ é a sequência /ks/


quando intervocálica e presente no prefixo latino ex-. Ocorre que, em um primeiro
momento, possivelmente a plosiva velar surda tenha caído, fruto da obediência à Lei do
menor esforço, uma lei fonética que tem como premissa “tornar mais fácil aos órgãos
fonadores a articulação das palavras” (COUTINHO, 1979). Considerando exemplos de
vocábulos do português contemporâneo, observa-se exatamente a atuação dessa lei no
sentido de simplificar a sequência a fim de facilitar a articulação:
e/ks/pressio>e/s/pressão; e/ks/clamatio>e/s/clamar; e/ks/ternus>e/s/terno. Assim, após a
queda da plosiva e manutenção da fricativa da sequência /ks/, o que ocorreu foi a
sonorização da fricativa alveolar surda, resultando por fim na sua homorgânica sonora,
o que também vai ao encontro dos dados do português na atualidade:
e/ks/ilium>e/z/ílio; e/ks/alatio>e/z/alação.

Assim, tem-se que, na fonologização de /z/, dois processos fonológicos estão


envolvidos: a sonorização e a fricativização. No primeiro, o traço [+voz] atua na
implementação de um novo par opositivo dentro da classe das fricativas coronais /s z/;
na busca pelo preenchimento da lacuna existente, atua também o traço [+contínuo], já
que no latim havia apenas a fricativa alveolar surda. Sob os pressupostos do modelo de
Clements (2009), em relação ao Princípio de Economia de traços, esse movimento

118
identificado dentro do sistema consonantal implica a maximização das possíveis
combinações de traços já ativos, uma vez que o traço [+contínuo], no latim, era muito
pouco econômico, visto que estabelecia contraste entre apenas seis fonemas, do total de
oito obstruintes existentes, considerando-se o sistema do latim clássico. Em relação ao
Princípio de Robustez, tem-se que os traços atuantes na fonologização de /z/ compõem
o segundo e o terceiro níveis da hierarquia (veja-se Quadro 3), exatamente como havia
ocorrido em relação à fonologização de /v/, citado na seção precedente; esse fato
implica que traços bastante robustos passaram a ter maior papel no estabelecimento de
contrastes no sistema.

4.1.3 Sobre a fonologização da fricativa palatal //

Pela fonologização de //, é integrado ao sistema uma consoante palatal; opera,

portanto, um processo de palatalização. A palatalização é processo de fonologização


bastante produtivo na diacronia do português, responsável pela introdução de quatro
novos segmentos no sistema consonantal português, todos inexistentes no latim: //, //,

//, //. O Quadro 37 apresenta especificamente os contextos de origem, bem como as

etapas evolutivas e as implicações da atuação dos traços que resultaram na


fonologização de //.
Quadro 37: O processo de fonologização do segmento //

Contexto Processo Exemplo Implicações Etapas


silábico
Onset Palatalização: Enfraquecimento da consoante líquida52 >> /k,p,f + l/>/k,p,f +
absoluto sequências distanciamento de sonoridade no onset j/>/kj/>/tj/>/t/>//
/kl/,/pl/, /fl/ /kl/ave>//ave complexo >>
/pl/uvia>//uva incorporação de características vocálicas à
/fl/ama>//ama consoante >> influência do traço [coronal]
da característica vocálica na estrutura
consonantal do segmento >> promoção de
articulação secundária à primária >>
borda esquerda do segmento suscetível a
“desligamento” >> implementação da
fricativa 
Palatalização: pa/ssj/onem>pai//ão Simplificação de geminada >> influência ss+j>s+j>
Onset ss + j do traço [-anterior] do segmento vocálico
medial na estrutura da consoante >> reorganização
da estrutura segmental: implementação de 

Em onset absoluto, somente as sequências /kl/, /pl/ e /fl/ fonologizaram-se em

52
Segundo estudos diacrônicos, no latim, quando uma lateral se apresenta em posição subsequente a outra
consoante, ela é considerada “turva”, assim, suscetível à vocalização – há, no latim, a tendência à busca
de distanciamento de sonoridade entre elementos que constituem onset complexo.

119
//. Cabe observar que estas mesmas sequências se modificaram também para /kr/, /pr/ e

/fr/, respectivamente, e Coutinho (1979, p. 119) explica que “as primeiras


transformações se teriam operado na zona norte da Península Ibérica, ao passo que as
outras se verificaram ao sul”. Williams (2001, p. 74) sustenta a tese de que os caminhos
percorridos pelas referidas sequências foi semelhante e Hora (2007) apresenta o
seguinte continuum evolutivo, baseado em Williams: /k,p,f/ + /l/ > /k,p,f/ + /j/ > /t/ >

//. Logo, nas sequências consonantais cujo segundo elemento é a líquida lateral /l/, a

primeira etapa do processo concentra-se no enfraquecimento da consoante líquida, que


passa a glide.
Na passagem da sequência /kj/ para /t/, o gatilho para o processo de assimilação

está no traço [coronal] do glide /j/, que motiva que a sequência fique coronalizada, ou
seja, palatalizada na posição de onset silábico. É importante considerar que, nesse
continuum evolutivo, possivelmente tenha havido uma consoante palatalizada /kj/, que
então passa para /tj/, por influência do traço [coronal] do segmento vocálico, para só
depois surgir a africada palato-alveolar /t/. Para isso, considera-se então que, após a

implementação da consoante palatalizada /kj/, novamente por influência do traço


[coronal] do PV da articulação secundária palatal (/kj/ é uma consoante dorsal
palatalizada), o ponto de articulação primária do segmento passa de [dorsal] para
[coronal], originando assim a consoante coronal palatalizada /tj/.
A produção da consoante coronal africada, a partir da forma palatalizada, dá-se
em razão da promoção da articulação secundária à primária, bifurcando-se a consoante
em duas raízes (CLEMENTS 1989, 1995, BISOL & HORA, 1993).

Figura 14 Promoção da articulação secundária

120
Figura 15: Geometria de traços da africada /t/

Por fim, tem-se a passagem do segmento de contorno /t/ para a fricativa //.

Nesse caso, a africada tem a sua borda esquerda desligada. Por influência do processo
ocorrido em /kl/, o mesmo parece ter-se efetivado também nas sequências /pl/ e /fl/.

Figura 16: Desligamento da borda esquerda do /t/

Ainda sobre a fricativa //, outra origem desse segmento é a sequência /ssj/ em

onset medial. Após a simplificação da geminada /ss/, o espraiamento do traço [coronal]


da vogal coronal funciona como gatilho do processo de palatalização.

121
Figura 17: Espraiamento do traço [coronal]

Com o espraiamento do traço [coronal], a estrutura reorganiza-se: o


espraiamento dos traços [coronal] e [-anterior], provenientes do nó Vocálico, ao se
vincularem ao PC, provocam o desligamento da linha de associação que liga os traços
[coronal] e [+anterior] ao PC da consoante e passam a ocupar essa posição. Assim,
chega-se à constituição de um novo segmento: a fricativa palato-alveolar //, a qual,

nesta pesquisa, é considerada uma consoante simples, da mesma forma como o faz Mira
Mateus (2000) em resenha sobre Bisol (2005). Segundo a autora, a representação da
consoante fricativa palatal com um traço secundário não corresponde à consoante
palatal do português, que, segundo ela, é uma consoante simples.

Figura 18: Geometria de traços da fricativa palato-alveolar

Na fonologização de //, há a atuação de diferentes traços, uma vez que este


segmento pertence a uma classe (as fricativas palatais) que não fazia parte do sistema

122
latino. Destaca-se, no entanto, que, com essa fonologização, o sistema não passou a
contar com a oposição de um novo traço, mas, como ocorreu nos casos de
fonologização de /v/ e /z/, traços já ativos passam a estabelecer novos contrastes.
Observando-se os princípios de organização de inventários fonológicos propostos por
Clements (2009), os traços que atuam na fonologização de // são pertencentes a níveis

altos da Escala de Robustez (veja-se Quadro 3): o traço [coronal] integra o nível (a) da
Escala e os traços [contínuo] e [anterior] fazem parte do nível (b) da Escala; esses traços
atuam conjuntamente de forma decisiva na busca pela expansão do sistema.

4.1.4 Sobre a fonologização da fricativa palatal surda //

Na fonologização da fricativa palatal //, dois foram os processos fonológicos

atuantes: a consonantização e a palatalização, os quais acabam se cruzando em sua


evolução. O Quadro 38 apresenta os contextos de atuação, bem como as etapas
envolvidas e as implicações da atuação dos traços nos referidos processos.
Quadro 38: Processo de fonologização da fricativa palatal sonora //
Contexto Processo Exemplo Implicações Etapas
silábico
Onset
absoluto  +e,i /e/ntem>//ente Característica vocálica passa a fazer
parte da estrutura da consoante >>
/e/neru>//ênero desligamento de articulação primária
(efeito suspensivo) >> articulação de +e,i>j>j>dj>d>
segmento puramente vocálico >> traço
default [coronal] preenche o “espaço
vazio” da articulação potencial >>
promoção do traço [coronal] da
articulação secundária para articulação
primária >> segmento de contorno
(africada) >> desligamento de borda
esquerda do segmento complexo >>
segmento simples .

Realização de pronúncia palatalizada,


como em /+e,i/ >> traço default
[coronal] preenche o “espaço vazio” da
Consonantização articulação potencial >> promoção do
/j/ inicial traço [coronal] da articulação j>dj>d>
secundária para articulação primária >>
/j/am>//á segmento de contorno (africada) >>
desligamento de borda esquerda do
segmento complexo >> segmento
simples 
d+j, precedidos de ho/dj/e>ho//e Assimilação do traço [coronal] da vogal d+j> dj>d>
vogal >> promoção do traço [coronal] da
articulação secundária para articulação
Onset primária >> segmento de contorno
medial (africada) >> desligamento da borda
esquerda do segmento complexo >>
segmento simples 

123
+e,i (precedidos Característica vocálica passa a fazer
gin/i/vam< parte da estrutura da consoante >>
de consoante)
gen//iva desligamento de articulação primária +e,i,j>j>j>dj>d>
(efeito suspensivo) >> articulação de
+e,i (precedidos segmento puramente vocálico >> traço
de vogal) vi/i/lare>vi//iar default [coronal] preenche o “espaço
+j vazio” da articulação potencial >>
promoção do traço [coronal] da
fu/j/o>fu//o
articulação secundária para articulação
primária >> segmento de contorno
(africada) >> desligamento de borda
esquerda do segmento complexo >>
segmento simples 
s+j ecle/sj/a>igre//a Sonoridade e o traço [-anterior] da s+j>
vogal >> reestruturação da fricativa >>
implementação de 
Consonantização Realização de pronúncia palatal, como j>dj>d>
j intervocálico cu/j/ium>cu//o em /+e,i/ >> traço default [coronal]
preenche o “espaço vazio” da
articulação potencial >> promoção do
traço [coronal] da articulação
secundária para articulação primária >>
segmento de contorno (africada) >>
desligamento de borda esquerda do
segmento complexo >> segmento
simples 

A sequência /e;i/, tanto em onset absoluto como em onset medial, constitui-se

como uma das origens da fricativa palatal sonora do português.

Figura 19: Sequência [+ vogal coronal]

Na etapa inicial do processo de fonologização, para a formação da consoante


palatalizada, dá-se o espraiamento do nó vocálico da vogal palatal para o PC, sem
desligamento de traços da consoante, o que resulta em uma plosiva velar palatalizada.

124
Figura 20: Espraiamento do nó Vocálico para o PC

O resultado é a consoante complexa /j/, contendo uma articulação primária

consonantal e uma secundária vocálica, que provém do espraiamento do traço [coronal]


do PV da vogal para o PC da consoante.

Figura 21: Geometria de traços da consoante palatalizada /j/

O próximo passo seria o desligamento da articulação primária da consoante


palatalizada /j/ – esse desligamento parece ter efeito suspensivo, uma vez que a

estrutura desligada pode ser religada, em etapa subsequente da evolução do sistema.


Possivelmente seja fenômeno da mesma natureza do que é observado nos segmentos
soantes palatais do português // e //: as variantes que tais segmentos da língua

apresentam podem ser motivadas pela desassociação de um dos traços das consoantes
complexas quando da sua realização pelo falante (realização como [l] ou como [j] para
//, por exemplo). Matzenauer (1999), ao tratar das variantes da lateral palatal //,
aponta para o desligamento do nó vocálico, o que levaria à realização da constrição

125
consonantal, originando, assim, a líquida lateral [l].
No caso da consoante palatalizada /j/, segundo Neuschrank (2011), o traço

[dorsal] da articulação primária fica desligado com efeito suspensivo, suscitando, assim,
a produção apenas da articulação secundária, que caracteriza um segmento vocálico. O
fato apresentado pela autora como provavelmente inovador é a possibilidade de se
considerar todo apagamento como uma suspensão, o que explicaria a possibilidade de,
na evolução envolvendo a consoante palatalizada em questão, haver, em um momento,
o desligamento de sua borda esquerda, destacando as características vocálicas presentes
no segmento e, em momento subsequente, novamente voltar a se efetivar o mesmo tipo
de segmento (complexo), mudando, porém, de [dorsal] para [coronal], resultando assim
em uma africada sonora. Em se comparando com a de Williams (2001), essa proposta
apresenta uma etapa a mais na evolução da sequência /j/, mas estruturalmente mostra
um caminho mais natural da língua.

Figura 22: Suspensão do traço [dorsal] e realização da articulação secundária

Segundo Pinheiro (2009), para muitos casos de apagamento de segmentos, a


Fonologia Autossegmental assume que existem segmentos denominados default, que
preenchem esses elementos vazios quando toda a sua estrutura é apagada. No português,
o segmento vocálico default é a vogal /i/, que, segundo Cristófaro-Silva (2003), se
manifesta foneticamente nessa posição como um glide palatal [j]. Em se considerando
“traços de ponto”, o default é o [coronal].

A supressão ocorrida na consoante palatalizada /j/ atinge apenas seu traço

[dorsal], ou seja, sua articulação primária, que é a consonantal. Após essa suspensão e
realização apenas vocálica, a língua trata de preencher o espaço “vazio” do segmento,
que guarda uma “articulação potencial”, antes ocupado pelos traços consonantais. Esse

126
preenchimento ocorre por recuperação da estrutura interna de //, contaminada porém

pelo traço [coronal] do glide, e o resultado acaba fazendo surgir o segmento /d j/. Dessa
forma, surge novamente uma consoante palatalizada, porém agora com os traços
[coronal] [-anterior], por influência da articulação secundária.

Figura 23: Consoante palatalizada /dj/

O passo seguinte da evolução em análise é a passagem da consoante palatalizada


/dj/ para uma consoante africada /d/. Para a consoante complexa /dj/ passar à consoante

africada /d/, segundo Clements (1991) e Bisol & Hora (1993), há a promoção do traço

secundário [coronal] à articulação primária e posteriormente uma cisão no segmento.

Figura 24: Promoção da articulação secundária

O segmento resultante possui sequências de diferentes valores do mesmo traço,


o que permite reconhecer o chamado “efeito fonológico de borda” (CLEMENTS e
HUME, 1995, p. 254), ou seja, ele comporta-se em relação a uma das bordas de acordo
com o valor (+) e em relação à outra borda, conforme o valor (-) de um traço; no caso
analisado, isso ocorre com o traço [cont]. Logo, tem-se um segmento de contorno,
confirmando que as africadas são candidatos naturais para esse tipo de segmento.

127
Figura 25: Geometria de traços da consoante africada /d/

Porém, pela complexidade de produção desse segmento, houve uma


simplificação em sua estrutura ocasionada pela perda do elemento plosivo, no caso o
/d/, que tem toda a sua estrutura apagada.

Figura 26: Desligamento da borda esquerda de /d/

A partir desse processo, efetiva-se a realização apenas do elemento fricativo, ou


seja, da borda com o traço [+contínuo], passando, assim, de segmento de contorno para
segmento simples.

Figura 27: Resultado do apagamento da estrutura do segmento plosivo

Quanto à consonantização da semivogal /j/, que ocorre tanto em onset absoluto


como em onset medial, considera-se o que refere Ilari (2008, p.80) quando trata do

128
desenvolvimento de uma consoante palatal a partir do /j/. Segundo o autor:
Período latino: o i-semivogal adquire uma pronúncia acentuadamente
palatal, confundindo-se na pronúncia com o g(e,i).
Período românico: resultam as mesmas três situações descritas para
g(e,e): a palatalização involui no sardo, que conserva a semivogal; na
România oriental desenvolve-se numa africada /d/; na România
ocidental chega-se a uma fricativa.

Para uma melhor visualização do que propõe Ilari, o autor apresenta um quadro
semelhante ao que segue.

Quadro 39: Resultado da evolução da semivogal /j/ - adaptado de Ilari (2008, p. 81)
Latim sardo romeno italiano francês espanhol português
vulgar
iugu juu jug giogo joug yugo jugo
/j/ /d/ /d/ // /j/ //

Na proposta de Ilari tem-se a corroboração da posição de Williams (2001, p.72)


e Castro 1991, p. 105-106), que afirmam que o /j/ inicial do latim clássico passa a // no

português. No latim vulgar, o som da semivogal e o proveniente do // inicial seguido

de /e/ ou /i/ do latim clássico tornaram-se idênticos. Considerando-se que a realização


da semivogal inicial /j/ acabou, em certo momento, sendo a mesma de // seguido de /e/

ou /i/, os processos envolvidos em sua evolução acabam sendo os mesmos. Assim,


retoma-se que, por influência do referido contexto, a semivogal palatal /j/ passa a
formar antes da africada a consoante palatalizada /dj/. Em seguida, há a passagem da
consoante palatalizada /dj/ para uma consoante africada /d/ através de uma promoção

do traço secundário [coronal] à articulação primária e posteriormente uma cisão no


segmento. Por fim, a africada sofre um desligamento de toda sua borda esquerda,
passando assim de segmento de contorno /d/ para segmento simples //. Essas etapas

podem ser visualizadas por meio das Figuras 23 a 27.


Ainda, em onset medial, a sequência /dj/ também se fonologiza em //. Nesse

processo, a primeira regra aplicada é a de assimilação que, de acordo com a Fonologia


Autossegmental, é representada como um processo de espraiamento do traço [coronal]
da vogal seguinte para o PC da plosiva. O traço coronal da vogal, que é dependente dos
nós Ponto de Vogal e Vocálico, espraia para a consoante. Desse espraiamento resulta a
forma palatalizada /dj/ antes do surgimento da forma africada /d/. Como já foi
mencionado nesta pesquisa, para a formação da consoante palatalizada, por inserção

129
default, há uma reorganização estrutural do segmento necessária para caracterização da
constrição vocálica desse segmento. Resulta, assim, a consoante complexa /dj/, que
contém uma articulação primária consonantal e uma secundária vocálica, proveniente
do espraiamento do traço [coronal] do PV da vogal para o PC da consoante. Logo, os
nós Ponto de Vogal e Vocálico acabam sendo inseridos no segmento consonantal /d/,
para que o traço [coronal] proveniente da vogal se mantenha com sua natureza de Ponto
de Vogal. Além disso, sendo toda vogal [coronal] também [-anterior], o espraiamento
desse traço vocálico faz com que a articulação primária consonantal passe a ser [-
anterior].
Para a consoante complexa /dj/ passar à consoante africada /d/, novamente

considera-se o que propõem Clements (1991) e Bisol & Hora (1993): promoção do
traço secundário [coronal] à articulação primária e posterior cisão no segmento. Após o
espraiamento do traço [coronal] da vogal /i/ ou da semivogal /j/ seguintes à consoante
plosiva coronal, a africada /d/, que possui sequências de diferentes traços, com valores

distintos em cada borda, sofre o “efeito fonológico de borda” (CLEMENTS e HUME,


1995). Como etapa final do processo evolutivo em estudo, a africada /d/ passa a

fricativa // a partir da perda total do elemento plosivo de sua estrutura (vejam-se

Figuras 23 a 27).
Por fim, na sequência /sj/ em onset medial, que também se fonologiza em //, a

fricativa alveolar possivelmente tenha sofrido influência tanto do traço [-anterior] como
do traço [+ voz] do segmento vocálico palatal, influenciando uma reestruturação da
fricativa, que passa de alveolar para palatal.
Assim, é possível identificar que para a fonologização do fonema //

basicamente três foram os traços que atuaram de forma decisiva na expansão do


sistema, contribuindo para a formação da classe das palatais: [coronal], [-anterior] e
[+contínuo]; além desses, também os traços [-vocoide] e [-soante] (alteração do [+voc]
e do [+soante]) atuaram especificamente no contexto em que a fricativa palatal tem sua
implementação por meio de um processo de consonantização.
Observando-se os princípios preconizados por Clements (2009), vê-se que, no
processo de fonologização de //, o Princípio de Economia de Traços se faz presente no

sentido de maximizar as combinações possíveis dos traços que já estavam ativos no


sistema, como é o caso do traço [+contínuo] que, coocorrendo com o [-anterior] e o

130
[coronal], é responsável pelo surgimento de uma nova classe dentro das [-soantes]. Em
relação à Escala de Robustez, é possível constatar que a coocorrência dos traços
[coronal,-soante] dá base para a expansão do sistema: estes são traços que ocupam o
mais alto nível da hierarquia proposta por Clements (2009) – veja-se Quadro 3.

4.1.5 Sobre a fonologização da nasal palatal //

A nasal palatal tem sua origem restrita ao contexto de onset medial, visto que as
palavras que, no português, começam por este segmento são empréstimos de outras
línguas. Além disso, nos empréstimos, para desfazer esse onset absoluto não atestado na
língua portuguesa, normalmente os falantes tendem a inserir uma vogal epentética antes
da palatal nasal, assim como também ocorre com a lateral palatal. Apesar de serem três
as sequências que dão origem a este segmento, todas elas acabam convergindo para um
mesmo caminho, devido à atuação dos mesmos traços, por isso as suas etapas
assemelham-se, conforme pode ser visualizado no Quadro 40.

Quadro 40: Fonologização da nasal palatal //

Contexto Processo Exemplo Implicações Etapas


silábico
Onset --------- ------------------ -------------------- ------------
absoluto
Palatalização
n+j se/nj/orem>se//or Característica vocálica interfere na n+j>
precedidos de reestruturação do segmento >> adição de nó
vogal vocálico >> implementação de consoante
complexa
vi/n/um>vi//o
i+n
Onset
n pu/n/um>pu//o Característica vocálica interfere na
medial
intervocálico reestruturação do segmento >> adição de nó i+n>
vocálico >> implementação de consoante
complexa

Vocalização da consoante dorsal >> n>jn>


assimilação dos traços vocálicos >>
consequente reestruturação do segmento >>
implementação de consoante complexa

Assim, as sequências /nj/ e /in/, ao originarem //, seguem exatamente o mesmo

percurso, já que há apenas uma inversão na ordem dos segmentos envolvidos, cujas
características fonológicas são praticamente idênticas. Adotando a proposta de
complexidade da estrutura interna da consoante palatal nasal (WETZELS, 1992), o
processo de palatalização em análise dá-se a partir do espraiamento do nó Vocálico do
segmento palatal para o PC da consoante nasal precedente, dando origem, assim, a um

131
segmento com dupla articulação: um consonantal e outra vocálica.

Figura 28: Geometria de traços da sequência /nj/

Figura 29: Espraiamento do nó Vocálico

Figura 30: Geometria de traços da consoante nasal palatal

132
Em relação a /n/ como uma das bases da fonologização de //, o primeiro

processo pelo qual a sequência passa é a vocalização da plosiva velar //, conforme

referem Coutinho (1979), Williams (2001), Ilari (2008). A partir daí, o caminho seguido
é o mesmo verificado nas sequências anteriores: espraiamento do nó Vocálico do
segmento palatal para o PC da consoante nasal, originando um segmento com dupla
articulação: um consonantal e outra vocálica (consoante complexa).
Assim, é possível identificar que uma mudança no traço de ponto de articulação
(alveolar > palatal), juntamente com a atuação dos traços [-anterior] e [-contínuo]
compõem o processo de fonologização de // quando sua origem é uma sequência de

nasal com traço [+anterior] e vogal palatal, que inerentemente porta o traço [+contínuo].
De acordo com os pressupostos de Clements (2009), mais uma vez se confirma o
funcionamento do sistema de acordo com o Princípio de Economia de Traços no
processo evolutivo da língua, no sentido de que há uma maximização das combinações
dos traços já ativos. Além disso, nesse processo de fonologização de um novo
segmento, há a manutenção dos traços [+soante] e [coronal], que pertencem ao mais alto
nível da Escala de Robustez; assim, esse processo diacrônico evidencia, assim como os
outros já aqui apresentados, a tendência à preservação dos traços mais robustos nos
casos de fonologização de segmentos.
Quando a fonologização de // tem sua origem em uma sequência de plosiva

velar surda [-soante, dorsal] e nasal alveolar [+soante, coronal], a primeira consoante
sofre a influência do traço [+vocoide], passando então a uma semivogal palatal; os
traços da nasal são mantidos [+soante, coronal], porém há uma mudança no ponto de
articulação por influência do segmento vocálico (alveolar > palatal) e o traço [-anterior]
atua decisivamente na implementação do novo segmento. Todo esse “movimento”
ratifica a busca pela maior combinação possível dos traços existentes no sistema, o que
está de acordo com o princípio de Economia de Traços de Clements (2009).

4.1.6 Sobre a fonologização da lateral palatal //

A lateral palatal originou-se especificamente de um processo de palatalização


ocorrido apenas em onset medial. As etapas evolutivas bem como as implicações
relacionadas à atuação dos traços nesse fenômeno estão apresentadas no Quadro 41.

133
Quadro 41: Fonologização da lateral palatal //

Contexto Processo Exemplo Implicações Etapas


silábico
Onset --------- ------------------ -------------------- ------------
absoluto
Palatalização

kl,pl,bl, l,tl apicula>abea Assimilação total dos traços da líquida lateral


intervocálicos scopulum>escoo >> kl,pl,bl,
tegulam>tea OCP provoca dissimilação >> traço [-voc] l,tl>ll>jl>
passa a [+voc] >> inserção de nó vocálico
tribulu>trio
potencial (presença dos traços
rotulam>roa [+soante;+aprox.] na raiz) >>
Onset implementação de j >> característica vocálica
medial interfere na reestruturação do segmento >>
adição de nó vocálico >> implementação de
consoante complexa
l,ll+j fi/lj/um>fi//o
precedidos de a/llj/um>a//o l+j>
vogal Característica vocálica interfere na ll+j>l+j>
reestruturação do segmento >> adição de nó
vocálico >> implementação de consoante
complexa

As sequências de consoantes das quais surgiu o // são /kl/, /l/, /pl/, /bl/, /tl/. É

interessante destacar que, considerando-se a escala de sonoridade de Bonet & Mascaró


(1996) e sabendo-se que essas sequências figuram em onset silábico em contexto medial
de palavra, depois de um processo de desaparecimento da vogal que originariamente se
encontrava entre as consoantes que posteriormente passam a ficar adjacentes, tais
sequências apresentam um mesmo valor crescente de sonoridade (de 0 a 3), sem
exceção, já que o primeiro elemento é sempre uma plosiva e o segundo é a lateral
alveolar53. Essa constatação serve como reforço para a consideração de que as
sequências consonantais podem copiar o processo sofrido por outras do mesmo tipo.
Segundo Teyssier (2007), a partir da síncope da vogal /u/ há, por exemplo,o
surgimento do grupo consonantal /kl/, como se vê em palavras como o/k/ulum > o/kl/lu,
api/k/ula > api/kl/a e auri/k/ula > auri/kl/a. O mesmo ocorre quando a vogal se
encontra entre outras plosivas, como /t/, //, /p/ e /b/ e a lateral alveolar /l/. De acordo

com Teyssier (2007,p.13), apesar da ausência de documentos linguísticos entre os anos


409 e 711, é possível identificar a linha geral de evolução da língua, que permite
visualizar a transformação do latim imperial em proto-romance e o surgimento de certas
fronteiras linguísticas. Uma delas é a que acabou separando os falares ibéricos

53
A Escala de sonoridade de Bonet e Mascaró (1996) apresenta o grau de sonoridade das classes de
segmentos: plosivas – 0; fricativas e “r” forte – 1; nasais – 2; líquidas laterais – 3; glides e “r” fraco – 4;
vogais – 5.

134
ocidentais, de onde surgiu o galego-português, de falares do centro da Península, de
onde provém o castelhano, por exemplo. O autor supõe que provavelmente nessa época
tenha ocorrido a evolução do grupo consonantal /kl/ e, segundo ele, após a síncope da
vogal /u/, a plosiva /k/ passa a iode, formando uma nova sequência /jl/.
Possivelmente, em uma primeira etapa, a sequência presente no referido
contexto tenha sido /ll/. O /k/ passaria a /l/, primeiramente, por um processo de
assimilação: em formalização pela Geometria de Traços, a lateral alveolar espraia todo
o seu nó de raiz para a plosiva, formando assim um segmento idêntico. Borges (1996)
apresenta vários casos em que, na diacronia do português, é possível considerar-se a
ocorrência de assimilações totais de traços entre segmentos adjacentes, como n > l e r >
l. No primeiro contexto, assim como o caso aqui analisado, a formação de uma
sequência consonantal tendo como um dos segmentos a lateral /l/ ocorre a partir da
queda de uma vogal interveniente (n > l: molinariu > *molnariu > *mollairo > moleiro;
lunula > *lulla > lula; coronula > *corolla > corola; esmolina > *esmolla > esmola; r >
l: per+lo > pello > pelo).

Figura 31: Processo de assimilação-espraiamento do nó de raiz do /l/

Quando a lateral alveolar /l/ espraia todo o seu nó de raiz para a plosiva, ocorre o
desligamento de toda a característica estrutural que está imediatamente abaixo e que
caracteriza o segmento /k/, mantendo-se apenas a unidade de tempo fonológico, a qual,
por sua vez, se liga ao nó de raiz do segmento imediatamente adjacente /l/, formando-
se então uma sequência de duas consoantes idênticas, o que seria a primeira etapa do
processo que culminará em uma palatalização. Porém, sabe-se que uma sequência desse
tipo viola um princípio fundamental da Teoria Autossegmental: o Princípio do Contorno
Obrigatório (OCP); por isso, como segunda etapa do processo em questão, ter-se-ia uma
dissimilação. Assim, o traço de raiz [-vocoide] do primeiro /l/ passaria a [+vocoide],
motivado pela necessidade de não haver violação ao OCP. Segundo Clements & Hume
135
(1995) e Matzenauer (2005, p.66), muitas são as línguas que fazem uso do processo de
dissimilação para não incorrer em uma violação ao Princípio do Contorno Obrigatório.
A mudança de valor do traço [vocoide] do segmento implica a inserção de um nó
Vocálico potencial em razão dos traços [+ soante] e [+aprox], presentes na raiz, fazendo
surgir a semivogal [j], que mantém o traço [coronal] em sua estrutura, porém agora
imediatamente abaixo do nó ponto de vogal, e o traço [anterior], especificado agora
como [-anterior] também em razão da mudança do traço [vocoide] na raiz do segmento
(toda vogal é [-anterior]).

Figura 32: Dissimilação/mudança do traço [vocoide] e atualização do nó Vocálico:

Após essa segunda etapa, na qual o primeiro segmento da sequência /ll/ passa a
/j/, tem-se uma nova sequência: /jl/. A última etapa do processo de evolução da
sequência /kl/, agora alterado para a sequência /jl/, configura o surgimento de um novo
segmento: a lateral palatal //, motivado pela presença da semivogal palatal /j/, que

espraia seu nó vocálico para a consoante lateral /l/.

Figura 33: Espraiamento do nó vocálico de /j/ para /l/

136
Após o espraiamento do nó Vocálico da semivogal palatal, é desencadeada uma
reorganização das estruturas envolvidas, culminando em um novo segmento, o //, que

possui em sua estrutura interna uma dupla articulação (WETZELS, 1992): uma
consonantal e uma vocálica; ocorre o desligamento da estrutura do segmento /j/ acima
do nó Vocálico; esse nó Vocálico passa a ficar vinculado à estrutura da consoante
lateral, dando origem à lateral palatal //, aqui configurada como consoante complexa

(Figura 34).

Figura 34: Geometria de traços da lateral palatal //

Na sequência lj, que também dá origem à lateral palatal, há o espraiamento do


nó Vocálico do contexto seguinte para o PC da consoante, tornando-a um segmento
com duas articulações, como vê-se na Figura 35.

Figura 35: Espraiamento do nó Vocálico para o PC da consoante

Assim, tem-se como resultado a constituição de um segmento complexo, ou seja,


um segmento com uma articulação primária consonantal e uma articulação secundária

137
vocálica. A estrutura da lateral palatal considerada como segmento complexo permite
entender-se por que, na aquisição da fonologia do português, muitas vezes no lugar do
segmento consonantal é produzido um glide [j]: é apenas o nó Vocálico dessa estrutura
consonantal que se manifesta (MATZENAUER, 1999).

Figura 36: Lateral palatal

Na fonologização da lateral palatal, quando o contexto de origem é uma plosiva


seguida de lateral alveolar, defende-se haver uma assimilação total de traços da lateral
para a plosiva, provocando com isso a mudança do traço [-soante] para [+soante]. Além
disso, há a atuação do traço [+vocoide] para que se desfaça a sequência de segmentos
adjacentes idênticos, por força do OCP, vocalizando a primeira consoante, formando
uma nova sequência: jl. No espraiamento do nó vocálico para o PC da consoante, o
traço [-anterior] passa a atuar, emergindo então mais um segmento integrante da nova
classe das palatais: o //. Todo esse “movimento” ratifica a busca pela maior

combinação possível dos traços existente no sistema, o que está de acordo com o
princípio de Economia de Traços de Clements (2009).
As mudanças sofridas pelo sistema consonantal do português, ao longo de sua
evolução, sinalizam basicamente dois movimentos dentro do sistema: (a) busca de
simetria no interior das classes de segmentos e (b) busca de expansão do sistema pela
emergência de uma nova classe de segmentos.
O primeiro é o que se verifica na fonologização de /v/ e /z/: há a busca de
simetria no interior da classe das consoantes [-soante], cujo equilíbrio foi alcançado por
meio do preenchimento de lacunas existentes, já que o inventário contava com /f/ e /s/.

138
Os traços implicados nesses casos de fonologização já eram pertinentes no sistema,
como o [+voz], no processo de sonorização, ou ainda o traço [+contínuo], no processo
de fricativização.
Pelo movimento de expansão do sistema, visível a partir da emergência de uma
nova classe, o sistema do português recebeu a fonologização das palatais. Para a
fonologização das palatais [-soante], o traço [coronal] impera como o gatilho desse
processo, acompanhado ainda pelos traços [+contínuo] e [-anterior]; para a
fonologização das palatais [+soante], o traço [- anterior] mostra-se atuante, enquanto os
traços [coronal] e [± contínuo] se mantêm inalterados.
Além disso, cabe mencionar também as mudanças ocorridas em se considerando
o ponto de articulação das consoantes: apenas no processo de sonorização, não há
alteração do ponto, tomando-se o contexto de origem da fonologização e o seu
resultado; já a fricativização e a palatalização implicam modificações no ponto de
articulação dos segmentos.
Observada a constituição do sistema consonantal do português sob o prisma do
modelo de Clements (2009), relativo à formação de sistemas fonológicos, vê-se que o
movimento diacrônico seguiu em boa parte as tendências das línguas quando da
composição de seus inventários, descritas por meio dos Princípios Fonológicos
Baseados em Traços. Na diacronia do português, tais Princípios sinalizam tendências
consistentemente confirmadas, se observada a atuação dos traços nos processos
envolvidos nos casos de fonologização descritos e analisados nesta pesquisa.
Por exemplo, os contrastes estabelecidos na busca da expansão do sistema dão-
se por meio do estabelecimento de contrastes novos por meio da atuação dos traços
presentes nos mais altos níveis da hierarquia de robustez de traços (mas não do 1º
nível), como [±anterior] e [±contínuo], inserindo-se no grupo de contrastes altamente
favorecidos nos inventários das línguas, o que é previsto pela Escala de Robustez. Além
disso, a utilização de traços já ativos na língua de modo a maximizar as combinações
possíveis também é um movimento que se faz presente na história da constituição do
sistema consonantal do Português, no sentido de que traços como [+voz] e [+contínuo],
por exemplo, passam a ser mais amplamente combinados, em novas coocorrências de
traços, o que indica maior economia da língua, de acordo com o Princípio de Economia
de Traços.
Clements (2009) aponta que as línguas tendem a evoluir na direção dessa
economia, no sentido de passarem a ter contrastes estabelecidos por traços já existentes

139
em sua gramática e, também, no sentido de eliminarem traços responsáveis por um
único contraste: é o que prevê o Princípio de Economia de Traços.
Por fim, cabe apontar que a continuidade da análise poderá evidenciar a atuação
de outros princípios do modelo de Clements (2009) na evolução do sistema consonantal
do português. Pode-se aventar, por exemplo, que o Princípio de Reforço Fonológico,
que refere a necessidade que as línguas às vezes têm de licenciar a ativação de traços
considerados mais marcados, a fim de reforçar contrastes perceptuais mais fracos,
justifica a ativação do traço [+contínuo] que, embora considerado mais marcado, atua
de modo significativo em muitos dos casos de fonologização ocorridos na evolução do
sistema consonantal do português.

4.2 Princípios Fonológicos Baseados em Traços e a constituição do inventário


consonantal na diacronia do Português

4.2.1 Correlações entre traços na constituição do inventário consonantal do


Português

Ratifica-se a pertinência do foco em traços distintivos em um estudo sobre a


evolução histórica de sistemas consonantais e sobre o processo de fonologização, uma
vez que os traços reconhecidamente desempenham um papel central na estruturação de
inventários de sons contrastivos das línguas. Tal fato já é apontado nas referências
iniciais sobre as propriedades mínimas que entram na composição dos segmentos das
línguas, com consagrados linguistas como Trubetzkoy e Jakobson, e continuou sendo
salientado por linguistas contemporâneos, dentre os quais se destaca Clements,
especialmente por suas proposições na Fonologia Autossegmental. Clements & Hume
(1995, p.245), na introdução de capítulo sobre a organização interna dos sons das
línguas, referem que a aceitação da teoria de traços resulta do fato de ela oferecer
explicações diretas para muitos fenômenos potencialmente não relacionados. Além
disso, e dentre numerosos aspectos salientados pelos autores, a teoria dos traços
“oferece explicações para muitas generalizações nos domínios da aquisição da
linguagem, dos desvios linguísticos e da mudança histórica, entre muitos outros”.

A preocupação recente com a organização dos traços nas representações


fonológicas leva ao entendimento de que, assim como os traços têm de ser tratados
como entidades autônomas, ou seja, como autossegmentos, têm também de ser
analisados como unidades que, de forma coocorrente, constituem a estrutura interna dos

140
segmentos. Nos casos de fonologização na diacronia do português tratados neste estudo,
evidencia-se que os novos fonemas inseridos no inventário fonológico ao longo do
processo evolutivo do sistema consonantal do português são produtos, em sua maioria,
de novas combinações de traços já pertinentes na língua54.

Os casos de fonologização na diacronia do português, então, passam a ser


entendidos como novas combinações de traços que, em etapas anteriores, não
estabeleciam contrastes. Assim, novas coocorrências de traços integram-se àquelas já
ativas no sistema, contribuindo para o processo de expansão do sistema, definido pelo
jogo de equilíbrio/desequilíbrio característico da mudança. Salienta-se que a noção de
equilíbrio/desequilíbrio em um sistema tem a ela subjacente não apenas a ideia de
traços, mas especialmente a ideia de classes naturais de segmentos: é a avaliação de
uma classe de segmentos que permite a identificação ou não de lacunas, de equilíbrio ou
não na sua estrutura. E observa-se, mais uma vez, que, mesmo ao se considerar central a
ideia de classe de segmentos, a noção de traço também mantém esse status, pois,
conforme dizem Clements & Hume (1995, p.245), classes de sons unicamente podem
ser definidas em termos de um conjunto compartilhado de traços.

Os casos de fonologização na diacronia do português apontados no presente


estudo referem a integração, ao inventário consonantal, dos fonemas /v/, /z/, //, //, //

e //. Cada um desses acréscimos ao sistema fonológico encontra relação direta com a

existência de lacunas em classes de consoantes e de lacunas em possíveis novas


coocorrências de traços que já funcionavam como unidades distintivas na fonologia da
língua. O movimento desencadeado por esse processo vai em direção da busca pelo
melhor aproveitamento particularmente do traço [coronal], de modo especial em
coocorrência com o traço [-anterior], sendo que este, no latim, era um traço pouco
econômico, visto que não estabelecia contraste em nenhuma das classes 55. E a
coocorrência de traços [coronal, -anterior], com a fonologização de consoantes palatais
no português, foi ativada com função contrastiva nas duas mais amplas classes de

54
Dos traços que integram os segmentos fonologizados no português, apenas o traço [anterior] não era
pertinente no sistema consonantal do latim.

55
O traço [anterior] não era responsável pelo estabelecimento de contraste no sistema do latim, uma vez
que não havia, no inventário consonantal latino, coronais [-anteriores]. Assim, o traço [+anterior] acabava
sendo redundante, já que toda consoante com traço [labial] comporta também o traço [+anterior], ao
passo que toda consoante com traço [dorsal] comporta o traço [-anterior].

141
consoantes: nas obstruintes e nas consoantes soantes.

Em relação às consoantes obstruintes, as quais compartilham o traço [-soante],


identifica-se, com o processo de fonologização que caracterizou a diacronia do
português, o estabelecimento de maior equilíbrio dentro da classe, a partir das novas
coocorrências na classe das fricativas: [-soante, labial, +voz] e [-soante, coronal, +voz],
além de [-soante, coronal, -anterior]. Com quatro novas fricativas – /v/, /z/, //, // –, a

classe das obstruintes passou a contar com o mesmo número de segmentos plosivos e
fricativos, todos distribuídos em pares com contraste estabelecido pelo traço [voz].
Considerando-se o português arcaico como etapa intermediária da evolução do sistema
consonantal do português moderno, é possível entender que o jogo de equilíbrio e
desequilíbrio no sistema, apontado por Martinet (1973), pode ser identificado se forem
considerados os processos de fonologização e desfonologização ocorridos e que
constituem as mudanças estabelecidas no inventário consonantal desde o latim até o
português56.

Trubetzkoy (1976) salienta uma tarefa importante da fonologia estruturalista,


que é a descrição exaustiva das complexas redes de relações que se estabelecem dentro
do sistema de uma língua, entre todos os fonemas. Entende-se neste estudo, além da
ideia de maior ou menor proximidade entre os fonemas de acordo com os traços
distintivos que os compõem (JAKOBSON, 1963), que as correlações existentes entre os
traços, as quais são responsáveis por agrupá-los de acordo com suas afinidades
estruturais, são responsáveis pela expansão do sistema, ocasionada pelo processo de
fonologização, pressionado pelos Princípios propostos por Clements (2009).

Considera-se importante para o desenvolvimento das análises aqui pretendidas,


retomar os apontamentos feitos por Matzenauer (2008) em relação às pressões que
conduzem à formação do inventário consonantal do PB, ainda que se refiram ao
processo de aquisição. Segundo a autora, as forças que orientam a emergência das

56
Embora não seja o foco deste trabalho a análise dos casos de desfonologização na diacronia do
português, é importante para este estudo que tal conceito seja resgatado ao tratar-se daquilo que Martinet
classifica como jogo de equilíbrio e desequilíbrio através do qual todo e qualquer sistema se constitui.
Assim, um caso evidente de desfonologização na diacronia do português é o das geminadas: no momento
em que o traço de [quantidade] perde o seu papel de estabelecimento de contraste, os fonemas que
dependiam deste traço para figurarem em uma relação de oposição acabam reduzindo-se a consoantes
simples.

142
consoantes na aquisição do sistema consonantal do PB são de três tipos:

(a) ‘pressão’ do tipo de segmento quanto ao modo de articulação –


fonologicamente representada pela coocorrência dos traços [±soante,
±contínuo, ±nasal, ±lateral];
(b) ‘pressão’ do tipo de segmento quanto ao ponto de articulação –
fonologicamente representada pela coocorrência dos traços referidos
em (a) com os traços [labial], [coronal] e [dorsal];
(c) ‘pressão’ do tipo de segmento quanto à sonoridade –
fonologicamente representada pela coocorrência dos traços referidos
em (a) e em (b) com o traço [±voz] (MATZENAUER, 2008, p. 59).

Tais considerações são retomadas neste estudo porque parecem também orientar
os caminhos percorridos na evolução do sistema consonantal do português. Os tipos de
“pressão” que conduzem os processos de fonologização parecem ser de mesma natureza
na diacronia e na aquisição. Além disso, é possível estabelecer ainda uma relação com
o ordenamento da emergência das consoantes que integram gradativamente os
inventários das línguas, também na aquisição, apresentado por Matzenauer (op. cit.) em
referência às observações feitas por Jakobson (1968 [1941]):

(a) plosivas e nasais tendem a emergir antes de fricativas e líquidas;


(b) consoantes com ponto de articulação [+anterior] tendem a emergir
antes de consoantes com ponto de articulação [-anterior];
(c) obstruintes desvozeadas tendem a emergir antes de obstruintes
vozeadas (MATZENAUER, 2008, p. 59-60).

Tomando o sistema do Latim como referência (conforme Quadro 5), confirmam-


se na diacronia quase todas as tendências relacionadas à aquisição das consoantes nas
línguas. O sistema latino apresentava a classe das plosivas com a mesma constituição
apresentada pelo sistema do português; em relação às nasais, o latim apenas continha
nasais com a propriedade [+anterior] – a nasal [-anterior] passou a integrar o sistema no
decorrer do processo evolutivo, mais especificamente passou a fazer parte do sistema
consonantal do português arcaico, o que está de acordo com a ideia apresentada em (b),
referente ao processo de aquisição da linguagem: consoantes com traço [+anterior]
tendem a emergir antes de consoantes com traço [-anterior].

O traço [-anterior], no sistema consonantal latino, não possuía papel relevante,


nem mesmo nas coocorrências: ele só constituía, por exemplo, as plosivas dorsais,
contexto no qual acabava sendo redundante, já que todas consoantes com traço [dorsal]
possuem invariavelmente o traço [-anterior]; o traço [anterior] passou a estabelecer
contraste e exercer um papel constitutivo nas coocorrências a partir da constituição do

143
sistema consonantal do português arcaico. Aliás, o traço [-anterior] foi o principal
atuante no processo de fonologização da classe das palatais.

Na diacronia do português, as obstruintes com traço [-voz] mantiveram-se


inalteradas ao longo do processo evolutivo, ao passo que o traço [+ voz] estava
presente, no sistema do latim, apenas em coocorrência com o traço [-contínuo],
considerando a classe das consoantes [-soante]. O traço [+voz] passou a estabelecer
correlação com o traço [+contínuo] a partir da constituição do inventário consonantal do
português arcaico, o que está de acordo com a ideia apresentada em (c), relativa à
aquisição fonológica, de que consoantes [-voz] tendem a emergir depois de consoantes
com traço [+voz]. Desse modo, evidencia-se que tendências universais apontadas no
processo de aquisição das consoantes das línguas podem também ser identificadas na
diacronia do português.

As pressões que orientam a aquisição das consoantes do português, apresentadas


por Matzenauer (2008), relacionam-se diretamente com o princípio de Robustez
proposto por Clements (2009), ao tratar da constituição de inventários fonológicos. É
importante que uma análise sobre o processo de fonologização na diacronia do
português leve em consideração não apenas a robustez dos traços tomados de forma
isolada, referindo sua capacidade de estabelecimento de contraste: estes precisam
também ser vistos por meio das correlações que estabelecem entre si, como parte de
uma organização que estrutura internamente cada segmento da língua. Para tanto, por
meio da geometria de traços e dos diagramas arbóreos de cada um dos segmentos
envolvidos nos processos que culminaram na implementação de novos segmentos no
sistema consonantal do português, desde a sua origem no latim, é possível visualizar os
tipos de coalizão ocorridos nos contextos em que operou a fonologização na diacronia
do português.

4.2.2 A fonologização de segmentos do português a partir de sequências do latim

A fonologização dos segmentos /z/, //, //, // e // no sistema consonantal do

português ocorreu a partir de sequências de fonemas do latim. Apenas o fonema /v/, ao


que os dados apontam, não se fonologizou a partir da coalizão de traços combinados em
razão da origem de uma sequência de segmentos. Assim, nesta seção, recebem especial
atenção nas análises as sequências latinas que se constituem como o contexto de origem

144
dos novos fonemas integrantes do sistema consonantal do português. O que se pretende
é explicitar, a partir das análises que evidenciarão o tipo de coalizão estabelecida entre
os traços, como os Princípios fonológicos propostos por Clements podem ter papel
fundamental nos casos de fonologização identificados na diacronia do português.
Para tanto, serão retomadas as geometrias de traços já apresentadas na Seção 4.1,
a fim de que possam ser explicitados, além dos tipos de coalizão ocorridos, também as
novas correlações estabelecidas entre os traços, que permitiram a integração de novos
fonemas no inventário fonológico do português. É importante salientar que vão ser aqui
destacadas apenas as etapas evolutivas pertinentes para evidenciar o movimento de
traços no processo que deu origem a consoantes do português que não integravam o
inventário de segmentos do latim.

A linha de análise a ser seguida pressupõe que os traços da estrutura interna dos
segmentos envolvidos no processo evolutivo sejam examinados à luz dos Princípios
Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009): Economia de Traços, Evitação
de Traços Marcados, Robustez e Fortalecimento Fonológico57. Assim, a fonologização
de cada um dos segmentos que se originou de sequências latinas será analisada, nesta
seção, com base no tipo de coalizão ocorrido entre os traços envolvidos e nas
consequentes correlações estabelecidas; além disso, serão buscadas evidências sobre a
pertinência dos Princípios Fonológicos Baseados em Traços nesse movimento que,
envolvendo traços, permitiu a fonologização na diacronia do português.

4.2.2.1 Coalizão de traços na fonologização de /z/

Conforme já referido neste trabalho58, um dos contextos que propiciou a


fonologização da fricativa alveolar /z/ foi a sequência formada por uma consoante com
traço [-soante, dorsal, -contínuo, -voz], que por sua vez passa a ser realizada com o
traço [coronal], seguida de consoante [+soante, coronal, +contínuo, -anterior]. As
possíveis etapas evolutivas seriam: kj > tj> ts > dz > z (veja-se Seção 3.3.2). Dispondo-
se lado a lado os diagramas da sequência latina de onde se originou o fonema /z/, é
possível visualizar na Figura 37 qual a contribuição, em termos de traços aproveitados,
de cada segmento na constituição do novo fonema.

57
Para uma caracterização dos Princípios, veja-se Seção 2.2.1.
58
Veja-se Seção 3.3

145
Figura 37: Coalizão de traços da sequência /kj/ na fonologização de /z/

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

Conforme já explicitado na Seção 4.1, a primeira etapa da fonologização de /z/ a


partir da sequência /kj/ consiste na assimilação do traço [coronal] do primeiro segmento
para o segundo, o que faz com que a sequência /kj/ passe a /tj/, também identificada
como uma das origens da fricativa /z/. Assim, tomando como referência a sequência /tj/,
é possível identificar, por meio dos diagramas arbóreos, que os traços de raiz [-soante, -
aprox, -voc], bem como os traços de ponto [coronal, +anterior] da primeira consoante
da sequência, mantiveram-se na estrutura do novo fonema, ao passo que os traços
[+voz] e [+contínuo] provieram do segundo fonema da sequência.

A manutenção do valor do traço [soante] no referido processo de fonologização


pode ser entendida como evidência de que na diacronia, assim como ocorre na
aquisição, o Princípio de Robustez atua orientando o estabelecimento de contrastes entre
as classes de segmentos, uma vez que o traço [soante] pertence ao nível mais alto da
Escala de Robustez (veja-se Quadro 3) – a robustez pode responder pela estabilidade do
traço. Da mesma forma, o traço [coronal] integra um movimento favorável ao
estabelecimento de novos contrastes no sistema e, assim como o traço [soante], pertence
ao mais alto nível da hierarquia proposta por Clements (2009), segundo a qual
contrastes estabelecidos por estes traços são favorecidos nas línguas. Assim, pode-se
entender também que a coocorrência [-soante, coronal] seja favorecida na diacronia do
português como base para a expansão do sistema, em virtude de serem estes traços que
pertencem ao mais alto nível da Escala de Robustez proposta por Clements.

146
Porém, o Princípio de Robustez parece não ser o único com papel fundamental
na determinação do tipo de movimento ocorrido no processo de coalizão entre os traços
dos segmentos das sequências latinas que se fonologizaram em segmentos que não
integravam o inventário de consoantes do latim. Quanto à preferência pela manutenção
do traço [coronal] em relação ao [dorsal]59, é possível entender ainda que o Princípio de
Evitação de Traços Marcados também possa estar sendo evidenciado como responsável
pelos caminhos seguidos pelo sistema em se considerando os casos de fonologização
ocorridos.

A literatura da área da fonologia aponta, como também o faz Clements (2009),


que o traço [dorsal], em relação ao [coronal], é considerado mais marcado; aí reside a
motivação de mostrar menor frequência nas línguas do mundo. Neste caso, o sistema do
português opta por atender ao princípio que milita a favor dos traços não marcados na
constituição do inventário consonantal do português, para o estabelecimento de
contrastes entre classes de segmentos, visto que a fonologização de /z/, portanto o traço
[coronal], amplia a classe das fricativas60, ao mesmo tempo em que encaminha para um
maior equilíbrio dentro da classe das soantes.

Clements chama a atenção para o fato da constante interação entre alguns


princípios, dentre os quais se destacam o Princípio de Evitação de Traços Marcados e o
Princípio de Economia de Traços: ao mesmo tempo em que este milita a favor do
melhor aproveitamento de traços já ativos no sistema, independentemente de seu status
quanto à marcação, aquele orienta para que sejam evitados os contrastes estabelecidos
pelos traços mais marcados61. Da mesma forma, o favorecimento do traço [+ anterior]
decorre do fato de ser este o valor menos marcado do traço.

Do segundo fonema da sequência, são “aproveitados” os traços [+voz] e


[+contínuo] que, em se comparando o inventário do latim com o do português moderno,
eram traços pouco econômicos, visto que não estabeleciam muitas oposições dentro do

59
Conforme já referido neste trabalho, Williams (2001, p. 90) aponta para o fato de que a sequência [tj] já
no latim vulgar, passou a ser utilizada no lugar de [kj], sem distinção.
60
A expansão do sistema dá-se dentro de uma classe já existente, que é a classe das fricativas.
61
Clements (2009) propõe uma lista que apresenta quais são os traços considerados mais marcados na
constituição dos inventários consonantais das línguas: [+soante], [+contínuo], [+nasal], [+estridente],
[+posterior], [+lateral], [glote aberta], [glote constrita].

147
sistema62. Assim, o Princípio de Economia de Traços de Clements também pode ser
evidenciado como determinante para o tipo de coalizão ocorrida na fonologização de
/z/, a partir da sequência /tj/63. Este também é um princípio que interage continuamente
com os demais, especialmente com o princípio de Robustez e o princípio de Evitação de
Traços Marcados, conforme já foi acima mencionado: ao mesmo tempo em que o
sistema busca uma combinação máxima dos traços ativos, os contrastes estabelecidos
pelos traços mais robustos são os favorecidos, e isso ocorre principalmente a partir de
valores não marcados.

4.2.2.2 Coalizão de traços na fonologização de //

Em relação à fonologização da fricativa palatal //, sabe-se que ocorreu a partir

das sequências kl, pl, fl, em onset absoluto ou, quando medial, após consoante. É
possível visualizar o tipo de coalizão de traços ocorrida se forem expostos, lado a lado,
os diagramas arbóreos da sequência consonantal e o segmento fonologizado, conforme
Figura 38.

Figura 38: Coalizão de traços da sequência /kl/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

62
O traço [+voz] era responsável pela oposição existente exclusivamente na classe das plosivas. Já o traço
[+contínuo], dentro da classe das [-soante], estabelecia a oposição somente entre fricativas, todas [-voz], e
plosivas.
63
Outro contexto de fonologização de /z/ são as sequências /ks/ e /sk/, ainda que representem um menor
número de ocorrências. Nestes casos, entende-se que tenha havido a suspensão da estrutura da plosiva e,
estando a referida sequência em contexto intervocálico, o traço [+voz] das vogais adjacentes acaba
motivando também o vozeamento da fricativa surda. Neste caso específico de fonologização de /z/, é
possível definir o Princípio de Economia de Traços como atuante no processo, visto que, pelo
aproveitamento de um traço já ativo no sistema, porém ainda pouco econômico, uma lacuna na classe das
fricativas é preenchida, permitindo a oposição [±voz] dentro desta classe e propiciando, novamente, um
maior equilíbrio na classe das [-soante], a partir do contraste proporcionado pelo traço [±contínuo].

148
Por meio da disposição apresentada na Figura 38, que representa em parte64 o
processo evolutivo da fonologização de // a partir da sequência /kl/, é possível

identificar os traços presentes na referida sequência consonantal, a qual em etapa


posterior tem um de seus segmentos vocalizado, e que constituem o novo fonema
integrado ao sistema.

A partir dos diagramas arbóreos apresentados, é possível identificar que, no


processo de fonologização de //, os traços da raiz do segmento permanecem os mesmos

presentes na primeira consoante da sequência, ou seja, o traço que determina a classe a


que o segmento pertence [-soante] se mantém inalterado, assim como o traço que
determina a sonoridade [-voz]. Em relação aos traços de ponto de consoante, estes são
aproveitados do segundo segmento da sequência, inicialmente consonantal, mas que, em
etapa posterior, se vocaliza. Assim, a coocorrência [coronal, +contínuo, -anterior],
provinda do segundo segmento da sequência, passa a integrar o fonema consonantal,
motivando o surgimento de um fonema que, ao ser considerado o ponto de articulação,
constitui uma nova classe dentro das consoantes portadoras do traço [-soante]: as
fricativas palatais.

Mais uma vez, é possível entender que o Princípio de Robustez seja o


responsável pelo comportamento do sistema, marcando o favorecimento de contrastes a
partir dos traços [-soante] e [coronal], ou seja, traços robustos (veja-se Quadro 3)
mantêm-se inalterados. Por serem estes traços que se encontram no mais alto nível da
Escala de Robustez, integram sempre a coocorrência base para boa parte dos casos de
fonologização a partir de sequências do latim. A coocorrência [-soante, coronal], em
correlação com os traços [+ contínuo] e [anterior], é responsável pelo estabelecimento
de contraste dentro da classe das fricativas. O traço [-anterior], na classe das fricativas, é
responsável apenas pelo contraste entre fricativas palato-alveolares e fricativas
alveolares. O fato de ser este traço responsável por um contraste tão específico deve-se
possivelmente à sua posição na Escala de Robustez, já que o traço [-anterior] integra o

64
As possíveis etapas evolutivas envolvidas nos processos de fonologização tratados nesta pesquisa,
representadas por meio dos diagramas arbóreos, são apresentadas e analisadas na Seção 4.1. Neste
momento, interessa discutir a respeito dos tipos de coalizão ocorridos no processo evolutivo de
constituição do sistema consonantal do português, no sentido de explicitar quais traços de cada um dos
segmentos que dão origem aos novos fonemas estão presentes na estrutura arbórea dos segmentos
fonologizados.

149
nível (b) da hierarquia. Isso significa que o traço [-anterior] estabelece contrastes bem
mais específicos do que aqueles proporcionados pelos traços mais robustos, como é o
caso do [soante], que promove o contraste entre toda a classe de obstruintes e todas as
soantes.

Ainda neste caso de fonologização de //, o Princípio de Economia de Traços

parece novamente atuar no sentido de promover o melhor aproveitamento de traços já


ativos no sistema, como é o caso dos traços [+contínuo] que, no sistema consonantal do
latim, se combinava minimamente com os demais ou acabam sendo redundantes; nesse
jogo de busca de economia organizacional, o traço [anterior] passou a ser ativado no
sistema de oposições da língua: na fonologia do português, o traço [±anterior] mostra
pertinência. É importante destacar também o papel da coocorrência desses traços na
constituição do sistema consonantal do português, visto que a correlação dos traços
[+contínuo, anterior] determina o contraste dentro da classe das coronais. A partir da
ativação dos dois valores do traço [anterior] para o estabelecimento de contrastes,
aponta-se para a possibilidade de seu aproveitamento de forma mais eficiente no sistema
do português em relação ao sistema do latim. O mesmo ocorre com o traço [+contínuo],
que atua na expansão do sistema consonantal, mais especificamente na fonologização de
novos segmentos na classe das fricativas.

Quanto ao Princípio de Evitação de Traços Marcados, é possível apontar para a


sua atuação no favorecimento do traço [-soante] em relação ao [+soante], considerado o
mais marcado por sua ausência em algumas línguas (CLEMENTS, 2009). Além disso,
também parece ser seu papel a manutenção do traço [-voz] na estrutura do segmento
fonologizado, apontado por Clements (2009) como o valor menos marcado nas línguas.
Assim, embora o Princípio de Economia de Traços possa apontar para o melhor
aproveitamento dos traços [+voz] e [+soante], o Princípio de Evitação de Traços
Marcados anula esse movimento. Esse princípio, porém, não tem a mesma força em se
considerando os traços [contínuo] e [anterior], visto que o Princípio de Economia acaba
por se sobrepor ao de Evitação de Traços Marcados, favorecendo a ativação dos traços
[+contínuo] e [-anterior], mais marcados no sistema.

Dando continuidade aos contextos de origem da fonologização de // no

português, outra sequência que permite a integração desse fonema no sistema do

150
português é /sj/, cujos diagramas arbóreos são apresentados na Figura 39, a fim de que
seja possível visualizar o tipo de coalizão de traços ocorrida neste processo.

Figura 39: Coalizão de traços da sequência /sj/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

Na fonologização de // a partir da sequência /sj/, é possível identificar que os

traços de raiz do segmento fonologizado provêm da estrutura do primeiro fonema da


sequência, preservando o fonema novo na classe das consoantes [-soante]. Em
coocorrência com os traços [coronal, -anterior] oriundos do segundo fonema da
sequência, os traços [-soante, -voz] do primeiro segmento, juntamente com o traço [+
contínuo] presente em ambos, propiciam a fonologização não só de um novo segmento,
mas contribuem para a constituição da nova subclasse de fricativas no sistema
consonantal do português: as palatais.

É possível evidenciar a atuação do Princípio de Robustez marcando o tipo de


contraste favorecido no sistema, a partir da manutenção dos traços [soante] e [coronal],
presentes no nível (a) da Escala de Robustez como definidores de uma grande classe
contrastante no sistema consonantal do português: as obstruintes coronais. Além disso,
o Princípio de Marcação de Traços favorece a manutenção do traço [-soante] em relação
ao [+soante], que é mais marcado no sistema, assim como milita a favor do traço [-voz]
em relação ao [+voz], que também tem o status de mais marcado. Porém, este mesmo
princípio não produz efeitos na constituição do sistema em relação aos traços [contínuo]
e [anterior], já que, nestes casos, o Princípio de Economia de Traços prevê um melhor

151
aproveitamento dos traços [+contínuo] e [-anterior], que já estavam ativos no sistema,
porém combinavam-se minimamente no estabelecimento de oposições.

Das observações apresentadas sobre a fonologização da fricativa palatal


desvozeada // na evolução do latim ao português, é possível verificar a ação prevalente

de três princípios gerais, que, segundo Clements (2009), respondem pela estruturação
dos inventários das línguas do mundo: o Princípio de Economia de Traços, o Princípio
de Robustez e o Princípio de Marcação de Traços. Assim, ao lado da tendência
estrutural de preenchimento de lacunas existentes em classes de segmentos, princípios
de caráter universal mostram-se também atuantes no processo de fonologização de
segmentos na diacronia do português.

4.2.2.3 Coalizão de traços na fonologização de //

A fonologização de // decorre basicamente de três diferentes sequências de

segmentos, a saber /gi/, /dj/ e /sj/. Os diagramas arbóreos das duas primeiras são
apresentados nas Figuras 40 e 41.

Figura 40: Coalizão de traços da sequência /i/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

152
Figura 41: Coalizão de traços da sequência /dj/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

A partir das Figuras 40 e 41, é possível identificar que o processo de


fonologização, apesar de envolver sequências diferentes, segue o mesmo caminho, uma
vez que em ambos os contextos os traços de raiz do segmento // provêm da primeira

consoante da sequência. Ao mesmo tempo, os traços [+contínuo, coronal, -anterior] são


oriundos do segundo segmento, enquanto que a sonoridade não se altera, visto que os
dois tipos de sequências têm o traço [+voz] na estrutura dos dois segmentos.

Assim, novamente, evidencia-se o Princípio de Robustez como o responsável


pelo mantenimento do novo segmento na mesma classe a que pertence o segmento
consonantal de sua sequência de origem – essa é uma consequência da robustez do traço
[soante]. Além disso, este mesmo princípio confirma o traço [coronal] como altamente
favorecido para o estabelecimento de contrastes no sistema consonantal do português.
Novamente, é possível apontar a coocorrência [-soante, coronal] como responsável pelo
estabelecimento de contraste dentro da classe das obstruintes, favorecido pelo fato de
ambos os traços estarem presentes no mais alto nível da Escala de Robustez de
Clementes (veja-se Quadro 3).

O Princípio de Evitação de Traços Marcados novamente parece favorecer a


manutenção do traço [-soante] em relação ao [+soante], este último considerado como
mais marcado e, por isso, muitas vezes evitado na constituição dos inventários das
línguas. Além disso, o traço [coronal] do segundo segmento da sequência é favorecido

153
em relação ao traço [dorsal] presente na estrutura do segundo segmento, visto que este
último, por estar ausente no inventário de diversas línguas, é considerado um traço
marcado.

Também é possível apontar a atuação do Princípio de Economia de Traços no


processo de expansão do sistema consonantal pela fonologização de //, visto que é dele

o papel de encaminhar o melhor aproveitamento de traços latentes65 no sistema, porém


minimamente combinados, como o [+contínuo] e [-anterior]. Este mesmo princípio
justifica a não aplicação do Princípio de evitação de Traços Marcados em todos os
contextos possíveis, uma vez que ambos os valores dos referidos traços são
considerados mais marcados, porém acabam sendo mais bem combinados a fim de um
melhor aproveitamento destes traços, ainda que carreguem consigo a característica de
marcação.

Em relação à sequência /sj/, que também dá origem ao fonema // no português,

podemos identificar, por meio da Figura 42, que o encaminhamento do processo de


fonologização da fricativa palatal ocorre praticamente de forma idêntica às sequências
/gi/ e /dj/, com exceção do traço de sonoridade, que neste caso não é idêntico nos dois
segmentos, sendo favorecido o traço [+voz] proveniente do segmento vocálico da
sequência:

Figura 42: Coalizão de traços da sequência /sj/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

65
Considera-se latente a possibilidade do uso contrastivo do traço [±anterior] no sistema do latim, uma
vez que incluía consoantes coronais anteriores; havia, portanto, a latência do uso desse traço para o
estabelecimento de novas oposições no inventário segmental.

154
Assim como ocorre nos demais casos de fonologização atestados até aqui, os
traços de raiz do novo segmento têm como base aqueles presentes na estrutura do
primeiro fonema da sequência: [-soante], [-aprox] e [-voc]. Já a coocorrência [coronal, -
anterior] tem sua origem no segundo fonema da sequência, assim como o traço que dá a
característica de vozeamento [+voz] ao novo segmento.

Quanto ao papel dos Princípios Fonológicos na determinação dos movimentos


identificados entre os traços dos segmentos envolvidos nesse processo de
fonologização, novamente é possível pressupor a atuação do Princípio de Robustez no
favorecimento dos contrastes estabelecidos a partir de traços considerados mais
robustos. No caso analisado, tais traços constituem a coocorrência [-soante, coronal],
altamente favorecida na constituição dos inventários das línguas, o que se evidencia
também na diacronia do português, uma vez que boa parte dos casos de fonologização
identificados envolve essa coocorrência, o que justifica o maior número de fonemas
fonologizados a partir da correlação estabelecida entre tais traços66. Além disso, a
própria manutenção e alargamento desse contraste é o que permite que contrastes
estabelecidos a partir de traços menos robustos (como o traço [+voz], por exemplo),
possam também integrar o sistema.

Mas o Princípio de Robustez não atua sozinho na determinação dos caminhos


que conduzem à fonologização de // a partir da sequência /sj/: o Princípio de Evitação

de Traços Marcados, em interação com o de Robustez, favorece que o traço [-soante]


integre a estrutura do novo segmento e supere a atuação do traço de valor oposto
[+soante], visto que, segundo a Escala de Marcação proposta por Clements, o [+soante]
é o valor considerado como marcado na constituição dos inventários das línguas. O
autor salienta a constante interação entre os Princípios Fonológicos propostos em seu
Modelo, sobretudo os Princípios de Robustez, de Evitação de Traços Marcados, além do
Princípio de Economia. Essa interação ocorre no sentido de que, por vezes, alguns
limites acabam sendo impostos à atuação de um determinado princípio, em razão da
interferência dos encaminhamentos ditados por outro.

66
Considerando o sistema consonantal do Português Arcaico, é possível identificar sete novos fonemas
que apresentam a coocorrência [-soante, coronal]: /ts/, /dz/, /z/, /t/, /d/, // e //.

155
Assim, identifica-se também, no caso de fonologização analisado, a ação do
Princípio de Economia de Traços, mais uma vez encaminhando um melhor
aproveitamento de traços já ativos no sistema, porém minimamente combinados. É esse
princípio que favorece a presença dos traços [-anterior] e [+voz] na estrutura do
segmento fonologizado, ainda que os mesmos sejam portadores de valores de traços
mais marcados e não estejam no topo da Escala de Robustez. Dessa forma, novamente é
possível evidenciar a coocorrência [coronal, -anterior] sendo mais ativa no sistema, no
sentido de que passa a responder pelo estabelecimento de contrastes antes não
identificados no sistema.

A análise da fonologização da fricativa palatal vozeada // na evolução do latim

ao português mostra curso paralelo com a fonologização de //, também com a ação

predominante de três princípios gerais, que integram a proposta de Clements (2009), no


estudo sobre estruturação dos inventários das línguas do mundo: o Princípio de
Economia de Traços, o Princípio de Robustez e o Princípio de Marcação de Traços.
Mais uma vez se evidencia que, ao lado da tendência estrutural de preenchimento de
lacunas existentes em classes de segmentos, princípios de caráter universal também se
mostram decisivos no processo de fonologização de segmentos na diacronia do
português.

4.2.2.4 Coalizão de traços na fonologização de //

Em relação à nasal palatal //, de acordo com a descrição dos dados apresentada

na Seção 3.3.3, sabe-se que três foram as sequências latinas que motivaram a sua
fonologização no português, a saber: /nj/, /in/ e /gn/. Embora sejam identificados três
contextos distintos, em todos eles o movimento entre os traços, ao que tudo indica,
parece ser o mesmo, visto que envolve um processo de assimilação de parte da estrutura
vocálica pela consoante, formando assim um segmento complexo67. Esse movimento
pode ser visualizado nas Figuras 43 e 44.

67
Inclusive na sequência /gn/ é este o movimento identificado, já que, de acordo com os dados, o
segmento [-soante, dorsal] da sequência passa a constituir-se pelos traços [+soante, coronal], ou seja,
acaba passando a glide e carrega em sua estrutura características vocálicas.

156
Figura 43: Coalizão de traços da sequência /nj/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

Figura 44: Coalizão de traços da sequência /gn/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

Os três contextos, então, acabam reduzindo-se a uma sequência que envolve os


mesmos traços. O segmento fonologizado recebe seus traços de raiz [+soante, - aprox, -
voc] da consoante nasal, assim como o próprio traço [nasal] e o [-contínuo]. Do
segmento com traço [+voc], provém a coocorrência [coronal, -anterior], responsável
pelo estabelecimento de um novo contraste dentro do grupo das nasais coronais: /n/ e
//.

157
O Princípio de Robustez favorece a manutenção dos traços [+soante] e [coronal],
por sua alta capacidade de estabelecimento de contraste dentro do sistema de consoantes
do português, já que são traços mais robustos, que ocupam o primeiro nível da Escala de
Robustez (veja-se Quadro 3). Esses resultados confirmam o poder de previsibilidade do
princípio em relação à constituição do inventário fonológico do português, em sua
diacronia: as mudanças ocorridas no sistema seguem a mesma tendência verificada na
constituição natural dos inventários das línguas, bem como no processo de aquisição, ou
seja, são privilegiados no processo de fonologização os traços responsáveis pelo
estabelecimento dos mais robustos contrastes dentro do sistema.

O Princípio de Evitação de traços Marcados, mais uma vez, atua na preferência


dada à manutenção do traço coronal68 em relação ao traço [dorsal], considerando a
sequência latina /n/, assim como favorece a manutenção do traço [-contínuo] em
relação ao [+contínuo], este último considerado o valor marcado. Apesar de alguns
movimentos serem orientados por esse princípio, a sua ação acaba sendo minimizada
em relação a outros traços, por força da atuação do princípio que prevê a máxima
combinação possível dos traços que estão ativos no sistema, ainda que os mesmos sejam
traços marcados.

O Princípio de Economia de Traços age favorecendo o aproveitamento de traços,


como é o caso do [+nasal], ainda que seja definido como um traço marcado, por sua
ausência em algumas línguas do mundo, além de ser também um traço menos robusto,
em razão da menor preferência dada a ele pelas línguas para o estabelecimento de
contrastes nos inventários consonantais. O referido princípio também é responsável pelo
aproveitamento do traço [-anterior], que no latim, embora estivesse latente, não
estabelecia contrastes dentro do sistema, o que passa a acontecer no português, a partir
de sua correlação com o traço [coronal], com que forma a coocorrência base para a
maior parte dos processos de fonologização identificados na diacronia do português.

Essas considerações sobre a fonologização da nasal palatal // na evolução do

latim ao português evidenciam, assim como na fonologização das fricativas palatais // e

68
Segundo Clements (2009), o [coronal] é o traço default, não marcado, uma vez que está presente no
inventário de todas as línguas, diferentes dos traços [labial], que está presente em algumas, e o [dorsal],
presente em outras, considerados, desta forma, como traços marcados.

158
//, também com a ação efetiva de três princípios gerais presentes no modelo de

Clements (2009): o Princípio de Economia de Traços, o Princípio de Robustez e o


Princípio de Marcação de Traços. Assim, a fonologização de // vem não apenas

preencher lacuna na classe das nasais, mas o faz de modo a atender princípios de caráter
universal.

4.2.2.5 Coalizão de traços na fonologização de //

Na fonologização de //, o contexto base para que o novo fonema possa emergir

no sistema do português é a sequência /lj/69, que se constitui também como uma das
etapas evolutivas das sequências /kl/, /l/, /pl/, /bl/, /tl/70. O processo evolutivo de

emergência da lateral palatal, evidenciando-se os movimentos ocorridos em direção à


coalizão dos traços envolvidos, pode ser visualizado na Figura 45.

Figura 45: Coalizão de traços da sequência /kl/ na fonologização de //

Legenda
Traços da 1ª consoante
Traços da 2ª consoante

69
Embora as sequências de obstruinte mais lateral se constituam também como a origem do referido
fonema, evidencia-se nas Seções 3.3.3 e 4.1.6 que há uma assimilação total da estrutura da lateral, com
posterior vocalização, o que justifica ser apresentada a sequência /lj/ como a base para a fonologização de
//.

70
Segundo Williams (2001) e Teyssier (2008), o caminho evolutivo percorrido por essas sequências é o
mesmo: assimilação total da consoante lateral e subsequente vocalização.

159
Por meio do diagrama arbóreo do fonema //, bem como da representação do

seu percurso evolutivo evidenciado através das geometrias de traços apresentadas na


Figura 45, é possível identificar qual a origem dos traços que compõem a sua estrutura
interna. Os traços de raiz do segmento [+soante, +aprox, -voc], bem como os traços
[lateral] e [coronal] provêm, no caso da sequência /lj/, do primeiro segmento da
sequência. Já a coocorrência [coronal, -anterior] têm sua origem no segmento que
possui em sua estrutura características vocálicas.

No processo de fonologização de //, mais uma vez é possível identificar a

ação do Princípio de Robustez no encaminhamento dos movimentos que constituem a


coalizão ocorrida entre os traços dos segmentos presentes nas sequências latinas que dão
origem ao novo fonema palatal. Tal princípio favorece a manutenção dos traços [soante]
e [coronal], já que ocupam o mais alto nível da escala de Robustez, o que evidencia a
preferência que as línguas têm em estabelecer contrastes com base nesses traços e nas
possíveis cominações destes com os demais. Novamente, é possível afirmar que esta
seja a coocorrência de base para quase que a totalidade dos casos de fonologização
identificados na diacronia do português71.

Em relação ao Princípio de Evitação de Traços Marcados, evidencia-se


novamente a sua atuação no sentido de favorecer a presença do traço coronal em relação
ao traço [dorsal] e ao [labial], presentes na constituição de algumas das sequências
latinas que se fonologizaram em //, considerando as sequências latinas /kl/, /l/, /pl/,

/bl/. Porém, novamente a sua ação acaba sendo minimizada em relação a outros traços,
por força da atuação do princípio que orienta para um máximo aproveitamento dos
traços ativos no sistema, inclusive aqueles considerados mais marcados.

O Princípio de Economia de Traços, que favorece o aproveitamento de traços


pouco utilizados na efetivação de contrastes, age a favor do aumento de combinações
possíveis para a emergência de um maior número de fonemas a partir de um reduzido
número de traços, o que define o índice de economia da língua, conforme apontado por
Clements (2009). Tal princípio orienta, então, o melhor aproveitamento do traço
[lateral], por exemplo, que no latim atuava de forma pouco econômica, visto o baixo

71
Apenas a fonologização de /v/ não encontra respaldo na coocorrência [soante, coronal], já que o
referido fonema é constituído pelo traço [labial].

160
rendimento em termos de contraste que proporcionava. Da mesma forma, o Princípio de
Economia de Traços orienta para o melhor aproveitamento do traço [+contínuo], ainda
que este seja considerado um traço marcado. Conforme Clements aponta, se um dado
valor de traço marcado está no ativo no sistema, caracterizando um número reduzido de
fonemas, a tendência é que o mesmo passe a constituir novas oposições, contribuindo
assim para a expansão do sistema, como o que ocorreu na diacronia do sistema
consonantal do português, especificamente com o traço [+contínuo], que no latim
caracterizava apenas duas fricativas (f, s)72, uma lateral (l) e dois glides (w, j). Por fim,
o referido princípio também milita a favor da combinação do traço [-anterior], que no
latim não estabelecia contrastes dentro do sistema, mas que no português, em
coocorrência com os traços [- soante, coronal], é responsável pela oposição existente
dentro da classe das fricativas, ao passo que em coocorrência com os traços [+soante,
coronal] estabelece contraste dentro da classe das laterais e das nasais, aumentando
assim o índice de economia do sistema consonantal do português.

A fonologização da lateral palatal //, segundo as observações aqui

apresentadas, seguiu caminho similar ao da emergência da nasal palatal // na evolução

do latim ao português evidenciam. Assim como foi apontado na fonologização das


fricativas palatais // e // e da nasal palatal //, também para a fonologização da lateral

palatal militaram três princípios gerais presentes no modelo de Clements (2009): o


Princípio de Economia de Traços, o Princípio de Robustez e o Princípio de Marcação de
Traços. Conforme foi registrado ao ser tratado o fenômeno da fonologização das
palatais //, // e //, também a fonologia de // não somente apenas preencheu lacuna

na classe das laterais, como também respondeu a princípios gerais que norteiam a
organização de inventários segmentais das diferentes línguas humanas.

72
Se considerado o possível sistema do Latim clássico apresentado no Quadro 5, haveria ainda mais uma
fricativa: a dorsal //.

161
5 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Ao propor os cinco Princípios Fonológicos Baseados em Traços, pode dizer-se


que Clements (2009) trouxe ao campo da análise fonológica uma releitura da
abordagem que Jakobson (1939) e Martinet (1955) previam como sendo fundamental ao
serem tratadas as questões relacionadas à constituição dos inventários das línguas,
inclusive no tocante à mudança. A ideia de que um sistema de sons se constitui a partir
da correlação existente entre os traços presentes e ativos em sua estrutura, já presente
em Jakobson e Martinet, está na base do funcionamento dos princípios propostos por
Clements, ao mesmo tempo em que garante aos autossegmentos o devido
reconhecimento do seu papel na constituição dos fonemas e na sua integração em um
sistema.

Segundo Martinet (1955), em muitos casos, uma mudança na realização de um


fonema ocorre em função da modificação de um só de seus traços. Partindo do ponto em
que o traço distintivo se posta como unidade de mudança, pode-se esperar que qualquer
articulação distintiva mude com independência das demais articulações com as quais se
combina para formar fonemas individuais. Dessa forma, o rendimento funcional de um
traço tem um papel de destaque em sua teoria por ser um dos fatores que contribuem
para a conservação ou supressão de um fonema.

A análise dos dados do presente estudo permite afirmar que, na diacronia do


português, a fonologização ocorre por uma constante atuação e interação dos princípios
universais propostos por Clements (2009), de modo mais efetivo em se tratando do
Princípio de Economia de Traços, do Princípio de Robustez e do Princípio de Marcação
de Traços.

Destaca-se que um quarto princípio, o Princípio do Reforço de Traços, segundo


Clements (2005), age mais nas classes naturais de sons do que nos segmentos
individualmente. Ele consiste no incremento de um traço marcado para reforçar um
contraste acusticamente fraco entre dois sons ou uma classe de sons. Conforme já
delineado na Seção 2.4.2, a adição do traço [+ estridente] às plosivas coronais, como /t/,
é um bom exemplo para ilustrar a ação este princípio, pois o traço [+estridente] aumenta
a distância auditiva das formas fonéticas que representam /t/, que têm estridência,

daquelas de /t/, que não são estridentes.

162
Na diacronia do português, então, pode interpretar-se que este é mais um
princípio que norteia o continuum evolutivo do sistema, visto que toda uma classe de
africadas foi inserida no sistema (no português arcaico), ainda que posteriormente
tenham evoluído para suas correspondentes fricativas. Para além da atuação isolada
desse princípio, é preciso considerar a possibilidade de sua interação, por exemplo, com
o Princípio de Evitação de Traços Marcados, visto que esses princípios geram
movimentos contrários no sistema, pois o Reforço pode dar-se a partir da inserção de
um traço marcado no sistema, para o que o Princípio de Evitação tenderá sempre impor
certas barreiras, o que pode explicar a supressão das africadas no sistema do português.

O quinto princípio, o Princípio de Limitação de Traços, pode ser considerado um


princípio de atuação geral, no sentido de que orienta o sistema em relação ao limite de
fonemas e de contrastes possíveis a partir do conjunto de traços ativos. Esse princípio,
de certa forma, poder ser considerado como um filtro, que limita o próprio processo de
fonologização na constituição do inventário consonantal do português, no sentido de
que não é possível que qualquer segmento seja fonologizado: a fonologização só ocorre
com base nos traços que já estão ativos no sistema. Nesse sentido, esse princípio mostra
ação integrada como o Princípio de Economia de Traços.

As lacunas de segmentos na estrutura do sistema não são a condição básica a


determinar a fonologização de novos segmentos, mas as correlações existentes entre os
traços que compõem o sistema. Os traços e suas coocorrências é que são definidores de
quais segmentos são inseridos e mantidos, e o conceito de economia, proposto por
Martinet, relaciona-se diretamente com os apontamentos feitos por Clements na
proposição dos cinco princípios. Segundo Martinet (1973, p. 207-210) dois são os
aspectos fundamentais a serem considerados em relação à mudança:

a) a integração dos fonemas no sistema fonológico: um fonema integrado em um


feixe de oposição (que se refere às possíveis correlações entre traços) é
relativamente mais estável que o fonema não integrado, mesmo que aquele não
tenha um rendimento funcional tão abrangente. O autor exemplifica com os dois
fonemas ingleses // e //, que há séculos se mantêm em oposição, mesmo com

um rendimento funcional quase nulo, porém encontram-se perfeitamente


integrados na “poderosa correlação de sonoridade”. Acrescenta, ainda, que uma
“casa vazia” numa correlação tenderá a ser preenchida, porém nunca se chegará

163
a um momento de plena simetria e estabilidade, embora os feixes de relações
mais firmes sejam sempre aqueles que menos se prestam a possíveis mudanças –
essa observação de Martinet pode ser relacionada diretamente com a noção de
robustez dos traços proposta por Clements.

b) A tendência à economia ou melhoramento de rendimento funcional: segundo


Martinet, é de grande importância o rendimento funcional das relações,
aproveitando-se ao máximo as rendosas e eliminando-se as de baixo rendimento.
Nem todos os fonemas de uma língua apresentam um mesmo rendimento, visto
que alguns figuram na distinção de uma centena de palavras, apresentando então
um alto rendimento, enquanto que outros são empregados em bem menor
número ou em contextos bem mais específicos, o que detona um baixo
rendimento. Segundo o autor, é possível supor que um rendimento alto iniba a
mudança, enquanto que um rendimento baixo a favoreça – essa observação de
Martinet pode ser relacionada diretamente com o Princípio de Economia de
Traços, proposto por Clements.

As fricativas [+voz] são um bom exemplo da interação entre os princípios


relacionados à Marcação e Economia, pois apresentam em sua estrutura valores de dois
traços marcados: [+ voz] e [+ contínuo]. Clements (2009) entende que esse possa ser o
motivo de as fricativas [+voz] não integrarem praticamente metade dos inventários das
línguas do mundo. Em contrapartida, atesta que, estando uma fricativa presente no
sistema, há o dobro de probabilidade de haver outra fricativa, ou seja, a possibilidade de
duas fricativas integrarem um inventário é muito maior do que haver apenas uma. Isso
talvez justifique a concentração do processo de fonologização na diacronia do português
na classe das fricativas. Ainda que no português arcaico tenham se fonologizado
também as africadas /ts, dz, t, d/, estas evoluíram para o segmento fricativo

correspondente ao seu ponto de articulação /s, z, , /.

É possível afirmar que a evolução do sistema do português tenha buscado


ampliar o índice de economia, aumentando o número de sons e, ao mesmo tempo,
aumentando a produtividade dos contrastes estabelecidos pelos traços que compõem a
estrutura dos segmentos que já integravam originalmente o inventário. Uma rápida
comparação entre os sistemas do latim vulgar e do português contemporâneo é capaz de
atestar esse aumento: enquanto o sistema latino integrava catorze fonemas, o sistema do

164
português apresenta dezenove. Quanto ao número de traços, evidencia-se a perda do
contraste por meio do traço [quantidade] e do traço [estridente], por exemplo, no
entanto, observa-se também a maior produtividade do contraste de outros traços já
atuantes no inventário.

Entenda-se que o processo evolutivo de todo sistema se dá pelo constante jogo


de equilíbrio e desequilíbrio, proporcionado, conforme já foi aqui observado, pela
atuação de princípios universais, conforme a proposição de Clements. As análises
encaminhadas nesta pesquisa, que evidenciam a busca por uma simetria dentro do
sistema, mais especificamente na classe das consoantes [-soante], corroboram os
apontamentos feitos por Tarallo (1994, p. 108). Segundo o autor, a simetria existente na
classe das oclusivas em latim também é trazida para as fricativas. Assim, em
correspondência com as consoantes já existentes /f/ e /s/, o sistema estabeleceu a
contrapartida sonora desses fonemas fricativos, fonologizando /v/ e /z/.

Em simetria com as oclusivas que apresentavam ponto de articulação labial,


dental ou pós-palatal, o português deu espaço para a fonologização de duas novas
consoantes, // e //. De acordo com Tarallo, tal inserção abriu espaço para que também

fossem simetrizadas, via ponto de articulação, as nasais e as laterais, fonologizando-se


// e //. As análises evidenciam que essa simetria na classe das fricativas é

encaminhada por meio das novas correlações estabelecidas pelos traços [anterior], [voz]
e [contínuo], que são os responsáveis por grande parte da fonologização na diacronia do
português.

Tomando como base as classes de segmentos e os traços que as constituem, os


resultados das análises evidenciam as novas oposições que emergiram a partir do
processo de fonologização: na classe das fricativas, o contraste pelo traço [±voz] faz
com que haja uma fricativa [+ voz] (/v, z, /) para cada fricativa [-voz] (/f, s, /);

especificamente nas fricativas com traço [coronal], a coocorrência com o traço


[±anterior] estabelece um novo contraste entre fricativa [coronal, -anterior], /, / e

fricativa [coronal, +anterior], /s, z/; na classe das nasais, o novo contraste é estabelecido
por meio da coocorrência [coronal, ±anterior], opondo assim nasal [coronal, -anterior],
// e nasal [coronal, +anterior], /n/, o que também se efetiva na classe das laterais, em

que o contraste estabelecido se dá entre lateral [coronal, -anterior], // e lateral [coronal,

165
+anterior], /l/; por fim, na classe das palatais cabe ao traço [±soante], assim como ao
traço [±contínuo], o papel de contrastar /, / e /, /.

Ao serem analisados os tipos de coalizão ocorridos entre os traços que compõem


as sequências latinas que deram origem aos novos fonemas do português, evidencia-se
que a coocorrência [-soante, -voc] é favorecida em relação a [+soante, +voc], ao mesmo
tempo em que a coocorrência [+soante, -voc] é favorecida em relação a [+soante, +voc].
No que se refere às relações estabelecidas entre os traços e seus efeitos na constituição
do sistema, todas as fonologizações a partir de sequências têm a coocorrência [soante,
coronal], que atuam em coocorrência com os traços [contínuo] e com o traço subsidiário
de ponto [anterior].
A manutenção do traço [-soante] na fonologização de um novo segmento no
sistema está relacionada com um tipo de coalisão que implica uma fusão dos traços
presentes nos dois segmentos da sequência. Para constituir os espaços da estrutura do
novo fonema, os traços que se opõem diretamente “disputam” o mesmo espaço, e pode-
se afirmar que o que determina o favorecimento de um em relação ao outro pode ser
relacionado com o papel dos Princípios Fonológicos propostos por Clements.

Nesse sentido, o Princípio de Evitação de Traços Marcados rege o


favorecimento, por exemplo, da manutenção do traço [-soante] em relação ao [+soante],
já que este, segundo Clements, é o traço mais marcado em se considerando a
constituição do inventário consonantal das línguas do mundo. Além disso, favorece
também a manutenção do traço [coronal] em relação ao [dorsal], o que justifica a
fonologização de um maior número de fonemas coronais, já que o [coronal] está
presente em todas as línguas do mundo, recebendo o status, portanto, de traço não
marcado.

É possível, ainda, identificar certa convergência nos “movimentos dos traços” no


processo de coalizão a partir das sequências latinas que se fonologizaram em novos
segmentos no português. Na classe das [-soantes], a tendência é que os traços de raiz
[soante, aproximante, vocoide] se mantenham aqueles presentes no primeiro fonema da
sequência73, considerando-se as mudanças sofridas pelos segmentos no processo

73
A única exceção a essa tendência parece ser as sequências /sk/ e /ks/, pelo fato de que, ao que indicam
as gramáticas históricas, o segmento plosivo caiu, fazendo com que não se constitua mais uma sequência
de fonemas, atuando, então, o processo de sonorização da fricativa /s/.

166
evolutivo que culmina com a fonologização, enquanto que os traços de ponto [coronal,
anterior] são oriundos do segundo fonema, que, nos casos da fonologização de
segmentos palatais, é uma vogal ou semivogal palatal. O traço [+contínuo] do segundo
fonema sempre supera o [-contínuo] do primeiro, nos casos em que tal oposição se faz
presente na sequência. Já o traço [+voz] provém ou do segundo fonema, ou dos
segmentos vocálicos adjacentes à sequência.

Na classe das menos soantes, há uma diferença em relação à posição do


segmento de onde provêm os traços de raiz e de ponto, não sendo possível estabelecer a
mesma tendência evidenciada nas consoantes soantes, mas é possível considerar que os
traços de raiz se mantêm aqueles oriundos do fonema da sequência que já pertencia à
referida classe, no caso os segmentos /n/ e /l/, o que não deixa de evidenciar uma
relação com o que ocorre na classe das [-soante], que se configura da mesma forma. As
sequências que se fonologizaram em [+soante] “recebem” os traços de ponto [coronal, -
anterior] às vezes do primeiro, às vezes do segundo fonema, mas sempre da semivogal
palatal. Talvez esses fatos evidenciem que, mais do que a ordem dos segmentos nas
sequências, o tipo de traço que constitui cada fonema é o verdadeiro fator determinante
no processo de fonologização, ou seja, na combinação de traços que dá origem ao
segmento fonologizado.

As análises e os resultados apresentados nesta pesquisa evidenciam que há dois


movimentos de expansão do sistema, identificados na diacronia do português,
representativos do processo de fonologização: um movimento em busca de maior
simetria no interior da classe das obstruintes, que se reflete na fonologização dos
fonemas /v/ e /z/; e um movimento que implica a inclusão de uma nova classe no
sistema, promovendo a emergência das palatais //, //, //, //. A inclusão de uma nova
classe não é motivada pela busca de atribuição de maior simetria, ao se considerar o
sistema de origem, mas traz a simetria em sua essência, já que é uma classe natural que
emerge e, não, segmentos escolhidos aleatoriamente. A motivação para a emergência de
toda uma classe de segmentos, no processo evolutivo de um inventário fonológico, pode
residir no maior aproveitamento dos traços que se mostravam pertinentes no sistema de
origem. Destaca-se que, pela análise proposta no presente estudo, subjacente aos dois
movimentos de expansão do sistema pelo processo de fonologização, está a noção de
traço como unidade fonológica, conduzida por seu vínculo a princípios universais.

167
Tais apontamentos ratificam a ideia, aqui já defendida, de que as mudanças
ocorridas no inventário consonantal do português são implementadas não apenas pela
configuração estrutural do sistema, como defendiam os estruturalistas diacrônicos. A
motivação para a mudança não está, portanto, somente na existência de lacunas no
sistema e na busca pelo mantenimento ou restabelecimento de seu equilíbrio interno74,
mas no tipo de relação existente entre os traços que constituem os segmentos do
sistema. E as correlações possíveis entre os traços, por sua vez, são estabelecidas de
acordo com princípios fonológicos universais, que agem de forma integrada, uma vez
que não representam leis invioláveis, mas tendências universais na formação dos
inventários das línguas do mundo, evidenciadas também na constituição histórica do
sistema consonantal do português.

74
Segundo Lucchesi (2004, p. 146), o equilíbrio interno seria proporcional à simetria de sua configuração
interna.

168
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Feitas as análises e discutidos os resultados, reforça-se, aqui, o fio condutor que


encaminha este estudo, ou seja, a ideia de que trabalhos que dão enfoque às mudanças
linguísticas contribuem para demonstrar que essas transformações, muitas vezes
entendidas como mero erro durante o “embate entre variantes”, na verdade não são
aleatórias. Ao contrário, o dinamismo é da essência das línguas e sempre pode e deve
ser explanado teoricamente. Aquilo que ainda não foi explicado poderá sê-lo, desde que
as teorias sejam suficientes para tanto.
Partindo-se dessa premissa, considera-se a pertinência do aparato teórico
utilizado nas análises apresentadas nesta Tese, uma vez que se entende que os objetivos
desta pesquisa foram alcançados, bem como as questões norteadoras respondidas
satisfatoriamente, a partir do suporte fornecido pela Teoria Autossegmental
(CLEMENTS e HUME, 1995) e pelo Modelo de Princípios Fonológicos Baseados em
Traços (CLEMENTS, 2009).
Considerando, para a investigação do processo de fonologização na diacronia, o
contexto de atuação deste fenômeno, as possíveis motivações, os traços envolvidos em
sua implementação e a sua repercussão na constituição do inventário fonológico do
português, os seguintes apontamentos podem ser apresentados, os quais se relacionam
diretamente com o primeiro objetivo específico apresentado na introdução desta Tese:
caracterizar o sistema consonantal do latim e, desse ponto de partida, traçar o
processo evolutivo para o português com foco nos traços e processos envolvidos na
mudança, motivadores do processo de fonologização .
Para a composição do sistema consonantal do português, a fonologização operou
basicamente por meio de quatro processos:
 Sonorização: que resultou no preenchimento de duas lacunas existentes na classe
das fricativas por meio da fonologização de /v/ e /z/.
 Consonantização: que se constitui como uma etapa dos processos de
fricativização de /v/ e palatalização de //.

 Fricativização: que também resultou no preenchimento de duas lacunas


existentes na classe das fricativas por meio da fonologização de /v/ e /z/.
 Palatalização: que se constitui como o processo mais produtivo ocorrido na
diacronia do português, visto que é responsável pela fonologização de uma nova
classe: a classe das palatais, com // ; // ; // ; //.

169
Considerando o contexto silábico, a fonologização atuou na diacronia do
português da seguinte forma: em onset absoluto fonologizaram-se os segmentos //;

//;/v/, enquanto que em onset medial se fonologizaram //; //; //; //; /v/; /z/. É

possível, ainda, relacionar o contexto silábico ao tipo de processo fonológico: a


sonorização e a fricativização ocorrem no contexto de onset medial, enquanto que a
palatalização e a consonantização ocorrem tanto em onset absoluto como em onset
medial.
Em relação ao papel dos traços na implementação do processo de fonologização,
são possíveis também alguns apontamentos, os quais dialogam diretamente com o
segundo objetivo específico deste trabalho: analisar a evolução do sistema consonantal
do português, formalizando por meio de traços, em uma visão autossegmental
(CLEMENTS e HUME, 1995; CLEMENTS, 2009), o fenômeno da fonologização, que
determinou mudanças linguísticas no referido sistema. Além disso, tais considerações
resumem ainda a resposta para a primeira questão norteadora desta pesquisa: como se
constitui a trajetória evolutiva do latim à língua românica em estudo, em termos de
traços e processos envolvidos no fenômeno da fonologização?
 A consonantização é caracterizada como um processo de fortalecimento, que
pressupõe maior tensão articulatória, que por sua vez implica mudanças na raiz
do segmento por meio da atuação do traço [-vocoide];
 A fricativização ocorre pela atuação do traço [+cont] da vogal adjacente ou da
consoante /r/, que acaba espraiando-se para a estrutura do segmento alvo; além
disso, a alteração do traço [±cont] implica uma reestruturação do segmento;
 A sonorização dá-se pela atuação do traço [+voz] proveniente do contexto
intervocálico, que se espraia para a estrutura da consoante surda;
 A palatalização pode ser entendida como processo que resulta da incorporação
de traços vocálicos ao segmento consonantal simples, que por sua vez passa a
segmento complexo; e também um processo em que se evidencia a atuação dos
traços [coronal], [+contínuo] e [-anterior].
A análise dos dados ainda permitiu evidenciar que o contexto silábico, os
segmentos adjacentes e, principalmente, a atuação dos traços são fatores
intrinsecamente relacionados no processo de fonologização, já que, dependendo de cada
um deles e de sua combinação, uma mesma sequência de segmentos pode resultar em
um fonema diferente, o que se relaciona diretamente, ainda que de forma resumida, com

170
o terceiro objetivo desta pesquisa: discutir o processo de fonologização de traços e de
segmentos consonantais na diacronia do português, à luz do Modelo de Princípios
Fonológicos Baseados em Traços (CLEMENTS, 2009), verificando articulações entre
princípios universais e a evolução histórica do inventário fonológico do português. As
observações apresentadas sumarizam também as respostas obtidas na pesquisa para as
demais questões norteadoras desta Tese: que princípios e que traços, segundo a
proposta de Clements (2009), estariam atuando sobre as unidades do sistema
consonantal latino, condicionando o fenômeno da fonologização de segmentos na
história do português? A robustez dos traços, amplamente evidenciada como o
princípio que orienta os processos de expansão e solidificação dos sistemas em
aquisição, pode ter um papel igualmente fundamental em se tratando das mudanças
sofridas pelo sistema consonantal do latim? Pela coocorrência de traços, é possível
explicar os caminhos delineados na evolução das consoantes do latim ao português, em
se tratando da expansão do sistema?

Do ponto de vista da Escala de Robustez e do Princípio de Economia de Traços,


evidencia-se que um tipo de fonologização ocorrido é aquele em que há a atuação de
traços já pertinentes no sistema para a configuração de um novo contraste, que se dá em
uma nova coocorrência de traços. Nesse caso, a fonologização ocorre em virtude de um
melhor aproveitamento de traços já ativos no sistema, como é o caso do [+vozeado].
Também a fonologização pode ocorrer pela atribuição de valor contrastivo a traço
redundante no sistema: foi o que ocorreu com o traço [anterior], que, sendo redundante
no latim, passou a ser contrastivo no português. Pelas análises propostas, é possível
definir que os traços [+vozeado], [-anterior] e [+contínuo] são os responsáveis pelo
estabelecimento de novos contrastes na evolução do latim ao português, sendo que tais
traços pertencem a níveis altos da Escala de Robustez de Clements (2009), o que lhes
atribui a propriedade de robustos, e que as novas coocorrências em que tais traços
passaram a operar implicou o seu emprego mais econômico, atendendo ao Princípio de
Economia de Traços.

Além disso, a análise e a discussão dos resultados com o suporte do Modelo de


Princípios Fonológicos Baseados em Traços permite identificar quais são as
coocorrências de traços que servem como base para a ativação de determinados traços.
Por exemplo, para o traço [+vozeado] ser ativado como motivador de novos contrastes,
a base é a coocorrência [-soante, -contínuo]; para a ativação de [+contínuo], a
171
coocorrência de [-soante, -contínuo]; para [-anterior] e [-vocoide], a coocorrência
[coronal, ± contínuo]. É o que evidencia a importância de um olhar para a Escala de
Robustez não apenas de acordo com a atuação dos traços isolados, mas também com
base na atuação conjunta desses traços. É possível depreender, das análises aqui
realizadas, que os traços do nível mais alto da hierarquia dão base para a expansão do
sistema, enquanto que os demais servem para o estabelecimento de contrastes.

As análises apresentadas nesta Tese também evidenciam que as correlações


existentes entre os traços, as quais permitem agrupá-los de acordo com suas afinidades
estruturais, são responsáveis pela expansão do sistema, ocasionada pelo processo de
fonologização, pressionado por princípios fonológicos universais, que agem de forma
mais ou menos integrada na constituição do inventário consonantal do português. Isso é
o que permite ratificar a ideia de que não é apenas a estrutura do sistema que motiva a
mudança, mas as correlações existentes entre os traços que compõem esse sistema. O
que realmente define quais segmentos são inseridos e mantidos, em um contínuo jogo
de equilíbrio e desequilíbrio, não são somente as lacunas existentes: é também a força
exercida por princípios fonológicos que consideram a atuação dos traços na constituição
dos inventários fonológicos das línguas, permitindo que segmentos se encontrem mais
ou menos integrados dentro desse sistema.

172
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