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Liberdade Provisória com Fiança: Aspectos Notáveis

Tão graves são os malefícios que o regime prisional inflige ao


delinquente(1), sobretudo se primário e de vida pregressa inculpável,
que há juristas, e esses de alto coturno, que não se desdenham de
propor-lhe a total abolição.
Evandro Lins e Silva, criminalista de vasto saber e raro engenho,
estigmatiza-o com ferro em brasa: “A experiência mostrou que a prisão, ao
contrário do que se sonhou e desejou, não regenera: avilta, despersonaliza,
degrada, vicia, perverte, corrompe, brutaliza”(2).
Mas, até que não nos amanheça a ambicionada aurora, “em que o
lobo e o cordeiro se apascentarão juntos”, como predisse o profeta do
Altíssimo(3), será força apartar um do outro. Nem por isso, entretanto,
haver-se-á de confinar o infrator em “currais de alvenaria” ou “depósitos de
homens”, denominações por que, entre nós, se conhecem, na
atualidade, sem encarecimento nem hipérbole, os abomináveis
presídios. A ser mister porém segregá-lo, em obséquio da garantia da
ordem social, olhe o Estado não se transformem os estabelecimentos
penais “em escolas primárias, secundárias e superiores do crime”(4). Por evitá-
lo, assentou o legislador supremo que “ninguém será levado à prisão ou
nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”
(art. 5º, nº LXVI, da Constituição da República).
Com o advento da Lei nº 6.416, de 24.5.77, que deu nova redação
ao art. 310 do Código de Processo Penal, a defesa do réu em liberdade
adquiriu foro normativo; só excepcionalmente aguardará preso o
julgamento de seu processo; nas mais das vezes, o juiz lhe concederá,
de ofício ou a requerimento de seu patrono, liberdade provisória.
“Com ou sem fiança”, reza a lei: “com fiança ou sem ela”, bradam os
puristas da língua(5). A que nos interessa aqui, todavia, é unicamente a
liberdade provisória com fiança, e dela não mais que dois aspectos. É o
primeiro a presteza, com que deverá ir despachado todo aquele que a
requerer; diz o segundo aspecto com a possibilidade de ser o preso
liberado antes mesmo do pagamento da fiança arbitrada, com a
advertência, porém, de que o faça dentro em certo prazo.
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Por amor da rapidez que deve existir nos negócios da Justiça


Criminal em relação aos que decaíram de seu estado de liberdade, é de
direito positivo que o juiz decida, “em quarenta e oito horas” (parágrafo
único do art. 322 do Cód. Proc. Penal), da fiança requerida. Não cabe,
assim, aquele mau sestro — de que (Deus seja louvado!) já se
libertaram, pela maior parte, os juízes — de mandar ouvir primeiro
acerca da pretensão do réu o órgão do Ministério Público.
Dois graves inconvenientes procedem sempre dessa
inobservância da lei: injustificável delonga na entrega da prestação
jurisdicional, pois que os autos do processo, conforme o epigrama de
Rui, passam a penar “como as almas do purgatório, ou arrastam sonos
esquecidos como as preguiças do mato”(6), e quebra insigne do princípio da
independência, elementar do exercício da jurisdição. Ao juiz, como
aplicador da lei e executor de sua vontade, é que incumbe,
privativamente, deliberar sobre fiança nos casos de infração punida
com reclusão, não ao Ministério Público. Daqui por que se mostra,
neste particular, prescindível, descabida e inoportuna a audiência do
promotor de justiça, sem embargo do cunho relevante de sua nobre
Instituição(7). “Sua interferência, como fiscal da lei, ocorre após a concessão”(8).
De todos os dias são os casos de presos que, embora lhes
reconhecessem os juízes o direito à liberdade provisória, não entraram
contudo a gozá-la desde logo, por não terem recolhido a fiança à arca
do tesouro do Estado. É que, limitando o tempo os atos da
administração pública e os serviços dos agentes arrecadadores, como
tudo o mais, só logra o acusado fazê-lo no dia seguinte, se não depois.
Ora, isso equivale a frustrar-lhe o benefício liberatório, empecilho que
bem se pudera obviar, com permitir-lhe que a pagasse depois de solto.
Tal permissibilidade não importará subversão da boa e estrita
ordem que deve reger as coisas da Justiça; ao invés, será o normal
exercício de uma faculdade inerente ao amplo poder discricionário do
juiz; arguirá, ao demais, naquele que a deferir, bom-senso, retidão de
consciência e nobreza de sentimento.
Praxe é esta que mais de um magistrado já tem adotado: a de
determinar a expedição incontinenti de alvará de soltura a quem se
concedeu liberdade provisória mediante fiança, primeiro que a
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recolha. Desse número foi o Dr. Otacílio Ferraz Felisardo, quando


magistrado-titular da 13a. Vara Criminal da Capital, digno a essa conta
de justos gabos.
A muitos respeitos, efetivamente, merece encômios o teor de
proceder de Sua Excelência, porque:
a) exalta a liberdade como um bem supremo, antepondo-a a
preocupações de feitio econômico;
b) restitui imediatamente à liberdade aquele para quem um dia no
cárcere monta o mesmo que uma eternidade;
c) concorre notavelmente para o alívio da superlotação de nossos
presídios, que se debatem em crises agudíssimas;
d) não ilude os interesses da Justiça, que poderá a todo o tempo
reconduzir ao cárcere o liberado que não houver satisfeito a
fiança;
e) acrescenta valioso crédito ao magistrado, porquanto, sem
menoscabo do zelo de seu cargo, pratica a equidade, que é
juntamente corpo e alento da Justiça;
f) prestigia a classe dos advogados, deferindo-lhes o compromisso
de, sob a fé inabalável de seu grau, subrogarem-se por breve
trato de tempo em obrigação que toca particularmente ao
constituinte: a de pagar a fiança.
Estes motivos bastam, se é que não sobejam, para recomendar
aquele Juiz à consideração e pública estima dos criminalistas. Também
seus distintos colegas hão de nele achar muito que imitar.
“Não sejamos avaros em louvores, quando os merecimentos clamam por
eles”!(9)

Notas

(1) À prisão chamou-lhe Beccaria, “mansão do desespero e da fome”


(Dos Delitos e das Penas, § VI); Eça de Queirós, “latrinas, onde
também se guardam presos” (Polêmicas, 1945, p. 113), e o profundo
Vieira, “meia sepultura” (Sermões, 1959, t. XV, p. 276).
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(2) In Revista de Direito Penal, vol. 15, p. 48.


(3) Is 65,25.
(4) Revista dos Tribunais, vol. 159, p. 562.
(5) Cf. Mário Barreto, Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa, 1924, p.
108.
(6) Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42.
(7) De íntegra procedência, a nosso aviso, a observação de José
Frederico Marques: “Ilustres membros do Ministério Público paulista
propugnam pela caracterização da instituição como um quarto poder.
Embora de generosa inspiração, essa ideia não tem sentido. As funções do
Ministério Público nada possuem de peculiar que não permita enquadrá-
las na atividade administrativa do Estado, atividade essa que se centraliza
no Poder Executivo. Se outros órgãos, que atuam na esfera administrativa,
também alimentassem essa pretensão de se transformarem em novo poder
estatal, não haveria mãos a medir. O notariado reivindicaria para si o
quinto poder, como órgão da atividade certificante do Estado. A Polícia
quereria o lugar de sexto poder, e assim por diante” (Instituições de Direito
Processual Civil, 1966, vol. I, p. 201).
(8) Damásio E. de Jesus, Código de Processo Penal Anotado, 1991, p.
211.
(9) Cândido Lusitano, Vida do Infante D. Henrique, 1758, p. 63.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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