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A Experiéncia Humana e o Ato de Narrar: Ricoeur e o lugar da interpretagao Ivone Cordeiro Barbosa Universidade Federal do Cearé “Nés surgimos, de certo modo, a meio de uma conversa que ja comegou e na qual tentamos orientar-nos para fornecer-Ihe © nosso contributo.”! Paul Ricoeur RESUMO ABSTRACT Este artigo busca situar alguns pontos da discussao em torno do con- ceito de mundo vivid e interpreta- 0 histérica, com base nas contri- buigées dadas pela hermenéutica. PALAVRA-CHAVE: Histéria, perspectivismo/relativismo, mundo This article searches some points in the discussion about concepts of lived world and historical interpretation. It is based in hermeneutical arguments, KEY-WORDS: History, perspectivism /telativism, lived world, language. vivido, linguagem. Parece-me por demais fecundo partir desta fala de Ricoeur para pensar no trabalho do historiador, na medida em que ela me sugere varias questées pertinentes a problematica que a historiografia vem enfrentando, como: os significados de se pensar na relagao entre mundo vivido e a sua interpretacdo, trazendo a discussao a relagao entre a experiéncia humana e o ato de narrar, isto é, fluxo da histéria e fluxo da narra¢o; 0 diélogo possivel entre o presente e o passado, remeten- do a discusséo do relativismo e perspectivismo como atitudes concernentes ao historiador, a sua relagéo com o mundo, como se insere na realidade e a interpreta; e, finalmente, os significados dessa reflexdo e da sua contribuico para a produgao do conhecimento histé- rice [ “Rev. Bras. de Hirt | Sio Paulo | v.17,n°33 Tp. 293-305 | 1997_] 293 | —“... Nés Surgimos.., e Tentamos Orientar-nos...” Uma das questdes que permeiam toda a discusséo sobre a pro- blematica da produgao do conhecimento histérico na contemporaneidade refere-se a relagao entre a experiéncia humana e o ato de narrar. A pretensao positivista de objetividade, ao confundir a vida com os sentidos que os sujeitos que a viveram atribuem a ela, acachapou num mesmo plano dimensées diferentes da experiéncia humana, atribuindo-he uma transparéncia na qual viver e interpretar a vida sao tomados como um processo uno e indistinto. Esta forma de pensar estabeleceu como paradigma para o conhecimento histérico uma aderéncia aos documentos, entendidos como registro fiel da reali- dade e, por isso mesmo, erigidos 4 condic&o de verdade, aquilo que “realmente aconteceu”. Dessa forma, 0 ato de narrar é identificado com o proprio acontecer. Com isso, descaracterizou-se a complexida- dee pluralidade da vida, reduzindo-a a um tinico sentido, e desqualificou- se a narrativa pelo carater ideolégico que esta terminou por assumir, conforme reduziu-se o real percepcdo que setores hegeménicos da sociedade tinham das experiéncias sociais. O debate que se realiza hoje, apoiado na Fenomenologia e na Hermentéutica, recoloca a questo em outros termos, estabelecendo uma distingao entre o ato de viver e o de narrar, embora nenhum dos termos guarde qualquer autonomia, uma vez que o ato de narrar, como ato lingiiistico, portanto de atribuicao de significados, é parte constitutiva da experiéncia humana. Por essa via, abre-se lugar para o que Ricoeur chama de experiéncia fenomenoldgica e experiéncia hermenéutica: a primeira referida a dimensao de concretude e empiria, ligada a percep- ‘cdo, e a segunda referida & questo da busca de apreender os sentidos dos fenémenos na sua historicidade, sendo portanto um nivel mais alto de elaboracao e de intelegibilidade do acontecer. Com essa formulacao, Ricoeur resgata a concep¢ao husserliana da experiéncia perceptiva como parte integrante da experiéncia huma- na, situando-a no processo de producao do conhecimento como o lu- gar onde se forma nossa primeira relagao siginificante com a coisa sobre a qual elaboramos e aplicamos nossa reflexdo. Estabelece-se, assim, uma anterioridade do vivido ao que é dito e, em consequéncia, uma subordina¢ao do plano lingliistico (como lugar da interpretacao) & experiéncia concreta dos sujeitos. 294 O mundo vivido, como pré-reflexivo, é constituido por uma rede de pressuposicées presentes intuitivamente que se manifestam como explicitacdo do sentido dado a este mundo. Apesar do seu nticleo intui- tivo, a experiéncia permanece como interpretacao, uma vez que con- tém a sua prépria historicidade, assentada no que Ricoeur chama de estruturas de experiéncias, para designar a existéncia de um ser-a- dizer que tem precedéncia ao dizer.” Essa mesma nogo é desenvolvida por Habermas, ao discutir os movimentos do ato comunicativo, no qual os participantes do ato interativo articulam elementos do mundo objetivo, subjetivo e social, isto é, a. a¢do comunicativa acontece no horizonte de um mundo vivi- do, que fornece aos agentes as sensibilidades, as convicgdes e os es- quemas cognitivos necessarios para a sua realizacéo.> A questéo do mundo vivido também é parte significativa das preocupagées de Thompson‘ que, na sua reflexao sobre o pensamen- to marxiano, vai apontar como um dos siléncios de Marx a auséncia de uma elaboragao sobre a experiéncia, como dimensao do social neces- saria 4 compreensao da classe e de suas lutas. Para esse autor, o mun- do vivido, como sistema complexo e estruturado, é onde a consciéncia social encontra a sua realizacao e expressao, constituindo uma “gené- tica” do processo histérico, uma vez que ai se manifesta o ser social. Pensando nestas manifestagdes da experiéncia vivida, como idéias, pensamentos, procedimentos, atitudes, sentimentos, normas e valo- res, estas manifestagdes constituem-se como consciéncia afetiva e moral (no sentido de conhecimento, como interpretag4o) ao nivel da cultura, mesmo quando parecem inarticulados. Embora afirme, apoiando-se em Merleau-Ponty, que a consciéncia é tao vivida quanto conhecida, reafirma a precedéncia tanto das estruturas de parentesco e de costumes, como as institucionais e religiosas, com as quais os individuos entram em contato com a realidade, experimentando-as como sentimentos, valores, normas, etc., sendo estes que constituem a subs- tancia do vivido. Sem abandonar a tradicéo marxista da importancia da vida material, Thompson reintroduz esta nogao de forma nova na medida em que, mesmo reconhecendo-a como dimensao objetiva, nega a sua condicéo de determinagéo, como pretendem algumas concepgées marxistas, uma vez que os seus significados dependem de como “qual- 295

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