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RESENHAS 169

A marca de cor histórica das relações entre brancos e negros du-


rante a escravidão. Em termos interpretativos, por-
que Nogueira, desafiando as lições de Herbert
Oracy NOGUEIRA. Preconceito de marca. As rela- Blumer (1939 e 1958) e de seu mestre Donald
ções raciais em Itapetininga. Apresentação e edi- Pierson (1971[1942]), teorizava uma forma nova de
ção de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. preconceito racial, presente em sociedades como o
São Paulo, Edusp, 1998. 248 páginas. Brasil.
Esta pérola sociológica, elo insubstituível do
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães desenvolvimento dos estudos de relações raciais e
de sociologia brasileiros, recebeu, finalmente, sua
Oracy Nogueira tornou-se internacionalmen- primeira e há muito merecida edição em livro no
te conhecido por um pequeno trabalho apresenta- ano passado, 1998, pelas mãos de Maria Laura
do no XXXI Congresso Internacional de America- Viveiros de Castro Cavalcanti, que organizou e
nistas, realizado em São Paulo, em agosto de 1954: anotou os originais, introduzindo-nos o estudo e
“Preconceito racial de marca e preconceito racial restituindo-lhe o nome original: Preconceito de
de origem — sugestão de um quadro de referência marca: as relações raciais em Itapetininga.
para a interpretação do material sobre relações O título reproduz o conceito famoso que
raciais no Brasil”. O trabalho (Nogueira, 1985 todos havíamos aprendido com Oracy, quando
[1954]) transformou-se, rapidamente, numa refe- distingue os dois tipos básicos de preconceito
rência obrigatória para os estudos de relações racial: “Considera-se como preconceito racial uma
raciais, mas serviu também de síntese erudita da disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmen-
dicotomia entre o Brasil e os Estados Unidos, em te condicionada, em relação aos membros de uma
termos das relações entre brancos e negros. Era o população, aos quais se têm como estigmatizados,
ingrato destino de uma reflexão, que fora apropri- seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte
ada por uma política identitária nacionalista que da ascêndencia étnica que se lhes atribui ou reco-
buscava, a todo custo, firmar o caráter “democráti- nhece. Quando o preconceito de raça se exerce em
co” e “brando” das relações raciais no Brasil, em relação à aparência, isto é, quando toma por
contraste com o resto do mundo, notadamente os pretexto para as suas manifestações os traços
Estados Unidos. A síntese de Oracy Nogueira era, físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o
sem dúvida, muito mais complexa e muito mais sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a
inovadora do que o entorno político de então suposição de que o indivíduo descende de certo
deixava perceber. grupo étnico para que sofra as conseqüências do
Em primeiro lugar, porque era fruto de um preconceito, diz-se que é de origem.” (Nogueira,
longo trabalho de investigação sociológica que o 1985 [1954], pp. 78-79).
autor conduzira em Itapetininga (SP), cujo relatório Pois bem, o que o estudo de comunidade em
de pesquisa seria publicado, parcialmente, pouco Itapetininga nos revela é o modo histórico e con-
depois, no volume organizado por Roger Bastide e creto como se formou e se exerce no Brasil o
Florestan Fernandes (1955), que integrou o ciclo preconceito racial contra os negros. Na Parte I —
de estudos da Unesco. “O tempo da escravidão” —, dividida em quatro
Em segundo lugar, porque tal investigação capítulos e um sumário, Oracy fixará quatro traços
fora bastante inovadora, tanto em termos metodo- fundadores do preconceito racial brasileiro: (a) o
lógicos, quanto em termos interpretativos. Em cromatismo da estrutura social; (b) os laços de
termos metodológicos, o estudo de comunidade, parentesco e a proximidade social entre as classes
instrumento com que a Sociologia nasceu entre alta (proprietária) e média (profissional); (c) o
nós, largamente influenciada pelos desdobramen- conseqüente caráter reformista dos oponentes po-
tos da escola de Chicago (Eufrásio, 1999; Vila líticos do regime escravista (e dos outros regimes
Nova, 1998), fora enriquecido pela investigação que o seguiram, by the way), oriundos de um

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mesmo estamento, e (d) o caráter conflituoso da em sua ideologia política ou literária, sempre viram
relação entre senhores e subalternos. Do primeiro no imigrante branco um elemento de melhoramen-
aspecto, dirá Oracy: “A coincidência entre as cama- to da raça. Segundo, porque “enquanto a ascensão
das sociais e as nuanças da cor da pele é tal que de descendentes de imigrantes tanto se pode dar
quase não há margem para equívoco. [...] abaixo com o cruzamento como sem o cruzamento com
dos proprietários brancos, estão os demais homens descendentes de antigos colonizadores portugue-
livres brancos, vindo imediatamente em seguida os ses, [...] a ascensão de elementos de cor ou pressu-
pardos claros, descendentes quer de índios, quer põe ou se faz acompanhar do cruzamento com
de mulatos mais escuros com brancos, depois os elementos brancos, seja qual for a origem deles.”
pardos mais escuros, até atingir os pretos livres, (p. 238). “Em conseqüência, cada conquista do
geralmente crioulos, e, por fim, a massa dos cati- negro ou do mulato que logra vencer econômica,
vos, que também se diferenciam, para efeito do profissional ou intelectualmente tende a ser absor-
tratamento que recebem, em mulatos, pretos criou- vida, em uma ou duas gerações, pelo grupo bran-
los, e pretos africanos ou ‘de nação’.” (p. 124). co, através do branqueamento progressivo e da
Do segundo e terceiro aspectos, Oracy anota: progressiva incorporação dos descendentes a esse
“Os líderes tanto locais quanto regionais dos movi- grupo [...]” (p. 238).
mentos abolicionistas e republicano saem, em sua O negro, a cada geração, teria, portanto, de
maioria, do mesmo círculo de parentesco a que começar, de novo, lutando contra o preconceito e
pertencem os elementos mais poderosos e conser- sem a solidariedade de um grupo identitário. Sim,
vadores da comunidade [...] O movimento abolici- porque Oracy confirma o que já se sabia antes
onista é, tipicamente, um movimento de reforma, dele, e será reafirmado depois: não há, no Brasil,
que atua entre as classes dominante e média, sem grupo racial qua grupo. A diferença, para Oracy,
procurar mobilizar ou coordenar, em prol da cau- é que, existindo o grupo para os outros, ainda que
sa, os esforços de seus próprios beneficiários não para si, torna-se objeto de discriminação, mas
diretos, que são os escravos.” (pp. 127 e 129). não cria laços de solidariedade que possam forta-
Quanto ao quarto aspecto, dirá Oracy que “a lecê-lo em sua luta contra o preconceito. O objeto
história da escravidão é, antes, a das manifestações teorizado por Oracy é justamente essa complexa
de inconformismo, insatisfação e rebeldia do es- constelação de preconceitos baseados em marcas,
cravo, que do seu ajustamento às condições vigen- afastados de origens geográficas ou culturais, res-
tes” (p. 126). guardados por ideologias assimilacionistas, que
Na Parte II — “O preconceito racial de marca” impedem o cultivo de diferenças identitárias pelos
—, organizada em cinco capítulos e um sumário, discriminados.
Oracy explora quatro temas: (a) a permanência da Seria tal preconceito mais brando? Mais cor-
relação entre estrutura social e cor da pele; (b) a dial? Na verdade, Oracy começa, junto com sua
mobilidade social dos estrangeiros não-negros, em geração, a mudar o sentido destas perguntas, para
contraste com a estagnação dos descendentes da torná-las, alguns anos mais tarde, sem sentido.
“gente de cor”; (c) a ideologia das relações raciais, Afinal, o importante, para quem sofre o preconcei-
e (d) o associativismo e organização comunitária to, é nomeá-lo, teorizá-lo e transformá-lo em algo
da “gente de cor”. inaceitável para a cidadania. Nos tempos de Oracy,
O ponto central da reflexão de Nogueira é a entretanto, a inevitável comparação com os Esta-
permanência, o desenvolvimento e a especificida- dos Unidos tornava duvidosa a existência mesma
de do preconceito racial no Brasil, que ele chama do preconceito entre nós.
de “preconceito de cor”, ou “preconceito de mar- Herbert Blumer (1958), em artigo merecida-
ca”. Preconceito que facilitou a integração e a mente famoso, elenca quatro sentimentos que esta-
ascensão social dos imigrantes europeus e retar- riam sempre presentes no grupo dominante quando
dou e impediu a ascensão dos negros. Primeiro, este abriga o preconceito racial: (a) um sentimento
porque os brasileiros natos, seja no cotidiano, seja de superioridade; (b) um sentimento de que a raça
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subordinada é intrisecamente diferente e alieníge- NOGUEIRA, Oracy. (1985 [1954]), “Preconceito racial
na; (c) um sentimento de monopólio sobre certas de marca e preconceito racial de origem —
vantagens e privilégios; (d) um medo ou suspeita de sugestão de um quadro de referência para a
interpretação do material sobre relações raci-
que a raça subordinada deseja partilhar as prerroga- ais no Brasil”, in O. Nogueira (org.), Tanto
tivas da raça dominante. Ora, o argumento de preto quanto branco: estudos de relações raci-
brasileiros e brazilianistas que negavam o precon- ais, São Paulo, T.A. Queiroz.
ceito racial no Brasil era justamente o fato de que os PIERSON, Donald. (1971), Brancos e pretos na Bahia
brancos brasileiros não abrigariam o sentimento de (estudo de contacto racial). São Paulo, Cia.
medo, nem se sentiriam ameaçados pelos negros, Editora Nacional. Publicado originalmente em
posto que suas defesas seriam “de classe” e nossas 1942, sob o título Negroes in Brazil: a study of
relações inter-raciais bastante íntimas ou cordiais. race contact in Bahia, pela University of Chi-
cago Press.
Oracy Nogueira preferiu não tomar o precon-
ceito racial norte-americano como modelo. Ao VILA NOVA, Sebastião. (1998), Donald Pierson e a
contrário, transformou as características do nosso escola de Chicago na Sociologia brasileira:
entre humanistas e messiânicos. Lisboa, Veja.
“preconceito de cor” num tipo especial de precon-
ceito racial. No nosso caso, reconheceu, o senti-
mento de medo das elites é muito menos pronun-
ciado. O grupo branco, no Brasil, não se sente ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES
ameaçado pelo negro enquanto grupo; mesmo é professor do Departamento
porque as formas de transformismo são, entre nós, de Sociologia da USP.
ampliadas pela instituição do branqueamento, um
passing generalizado. Isto não impede, todavia —
notava Oracy —, que, com o avanço da urbaniza-
ção e da maior formalização da vida social, um
negro seja cada vez mais um negro, ou seja, um
indivíduo que vivencia com intensidade os estere-
ótipos que lhe são atribuídos.
O pequeno livro de Oracy é também um
típico exemplar da nossa primeira Sociologia, ou
Socioantropologia, como prefere Maria Laura. Em
cuidada e belíssima edição da Editora da USP, não
poderá faltar nas estantes dos estudantes e prati-
cantes da boa disciplina.

Referências bibliográficas
BASTIDE, R. e FERNANDES, F. (1955), Relações raci-
ais entre negros e brancos em São Paulo. São
Paulo, Anhembi.
BLUMER, Herbert. (1939), “The nature of racial preju-
dice”. Social Process in Hawaii, 11-20.
__________. (1958), “Race prejudice as a sense of
group position”. Pacific Sociological Review, I
(Spring): 3-8.
EUFRÁSIO, Mário. (1999), Estrutura urbana e ecolo-
gia humana: a escola sociológica de Chicago
(1915-1940). São Paulo, Editora 34.
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Rumo ao problema laram as teorias que de algum modo sustentaram


o estabelecimento. Desde seu prenúncio, a pers-
do crime e da loucura pectiva do trânsito no tempo é o que decerto
no Brasil mais atração suscitará aos que se deixarem guiar
pelo autor na identificação de fenômenos cultu-
Sérgio CARRARA. Crime e loucura: o aparecimento rais em sua “singularidade irredutível de evento
do manicômio judiciário na passagem do século. histórico”.
Rio de Janeiro/São Paulo, Ed. da UERJ/Edusp, Através da “aldeia arquivo” especialmente
1998. 227 páginas. organizada para seu estudo, Sérgio Carrara nos
remete de modo tão visceral ao reconhecimento de
José Leopoldo Ferreira Antunes aspectos do passado que quase se poderia dizer
conseguir delineá-los na retina. A história é aciona-
Não se deixe o leitor enganar pelo tom da enquanto recurso para a reconstituição dos
informal que emana, logo às primeiras páginas, do encaminhamentos que fizeram do “hospício pri-
novo/velho livro de Sérgio Carrara, que duas são” o destino social dos “loucos criminosos”. Seu
editoras universitárias se consorciaram para trazer enfoque dirigiu-se ao surgimento de uma estrutura
ao público. Mal disfarçado pelo jeito coloquial com institucional especialmente voltada ao tratamento
que o autor descreve como o objeto de investiga- ou à contenção de condutas que transgrediam
ção se foi construindo em sua reflexão, Crime e normas, valores e regras. Comportamentos, enfim,
loucura nos oferece, logo ao primeiro capítulo, que a sociedade pretendia controlar, gerir, neutra-
uma densa aplicação da metodologia clássica do lizar.
“diário de campo”, tão usada pelos antigos etnoló- A sensação de estar acontecendo de novo,
gos, aqui dirigida à pesquisa de aspectos da reali- fonte de toda a vertigem que o presente apenas
dade urbana. Mesmo que não se queira emprestar- dificilmente pode recolher do passado, só se con-
lhe a fisionomia de Harrison Ford, é difícil resistir cretiza mediante um criterioso esforço analítico do
ao convite a seguir “um aprendiz de antropólogo autor. Ao perseverar na leitura, quase se poderá
em apuros”, que nos remete à imagem de Indiana ouvir as vozes de quem nos apartou não só o
Jones desbravando o terreno inóspito que o Mani- tempo como o próprio procedimento da reclusão
cômio Judiciário do Rio de Janeiro ocupa no institucional. Esta me parece ser a principal quali-
cenário jurídico e médico nacional. dade da metodologia empregada, ao mesmo tem-
A descrição fiel e a linguagem objetiva não po que o segredo que permite intensificar o envol-
impedem que o sabor de aventura contagie o vimento com a “pálida sombra” de uma viagem tão
leitor. O interesse na leitura é ainda mais aguça- absolutamente virtual. Antigos criminosos desfila-
do pela percepção de que a viagem não envolve- rão sob nossos olhos e mais uma vez repercutirão
rá apenas o espaço de uma geografia inóspita. os dramas em que estiveram envolvidos. A caracte-
“Um restaurante de Campinas”, onde foram trava- rização de suas motivações será novamente objeto
das as primeiras conversas que dariam origem ao de disputa. Serão passados em revista os conceitos
estudo. “Um sombrio e longo beco margeando o e as categorias que emanaram do discurso científi-
presídio da rua Frei Caneca”, que assustou al- co, as diferentes correntes que imbricaram naquilo
guém que nunca adentrara uma penitenciária. Os que o autor refere como o “dédalo criminológico”.
“feios portões do Manicômio Judiciário”, que o Serão invocados os drs. Teixeira Brandão, Juliano
autor nos induz a atravessar em sua companhia. Moreira, Nina Rodrigues, Márcio Nery, Heitor Car-
Tampouco se restringirá à visita aos personagens rilho e outros luminares do pensamento médico
que se procurou restringir institucionalmente, os brasileiro de fins do século XIX, início do XX, para
“doidinhos” e “pepezões” (“personalidades psico- que se possa indagar sobre as conseqüências da
páticas”); aos terapeutas e guardas que disputa- difusão, em seu meio, dos debates e conceitos a
vam sua tutela; aos médicos e juristas que formu- respeito da responsabilidade penal daqueles que

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paradoxalmente teriam a um só tempo incidido no procedimento, somos informados, ao final do estu-


crime e na loucura. do, de sua sensação de ter avançado mais nas
Como estratégia de acesso ao passado, Sérgio perguntas que nas respostas. Mas será que alguém
Carrara reuniu uma gama bastante diversificada de o acusará por isto? Antes de tentar resolver os
documentos desde um período em que o manicô- problemas intrínsecos à caracterização institucio-
mio ainda não existia. Dois planos foram privilegi- nal do Manicômio Judiciário, era justamente sua
ados para a investigação: de um lado, a literatura formulação como problema o que motivara a
médica e jurídica sobre o crime e a loucura; de redação. Ao invés de propugnar por alternativas
outro, a prática judicial exarada de processos históricas aos procedimentos sociais despendidos
penais selecionados nos arquivos dos tribunais pelo estabelecimento, Crime e loucura procurou
cariocas nos quais se colocava em questão a preservar o ponto de interrogação apresentado
sanidade mental e a imputabilidade penal dos desde suas primeiras páginas. Assim, ao longo de
acusados. Dos acervos documentais organizados, todo o texto, o problema foi sendo desdobrado,
destacou-se a recuperação do Processo Custódio reformulado e reapresentado com novos elemen-
Serrão, exposto detalhadamente não apenas em tos e novas indagações. Poder-se-ia então dizer
seu desenvolvimento factual, mas nas implicações que o mérito do livro reside justamente em nos
específicas para os temas da interseção entre crime dirigir rumo ao problema da interseção entre crime
e loucura no Brasil. Desse modo, através do capí- e loucura no Brasil e não apenas à proposição de
tulo dedicado “a um certo Custódio”, Sérgio Carra- resoluções. Até mesmo porque grande parte do
ra preenche uma antiga lacuna da historiografia problema era constituída pelas formas institucio-
nacional, que pouca consideração dedicou às prin- nais mediante as quais determinados segmentos
cipais questões médico-legais brasileiras. sociais tentaram encaminhar-lhe soluções. Nesse
A monografia sobre Custódio Serrão e o sentido, a leitura deste trabalho constitui-se em
instigante diário de campo da pesquisa são com- eloqüente convite a novos estudos de caracteriza-
plementados pela exposição multifacetada do de- ção histórica das perícias, procedimentos instituci-
bate teórico e ideológico contido nos livros e onais, concepções e tramas processuais envolven-
artigos de sua “aldeia arquivo”. O leitor terá sua do o tema.
atenção solicitada ao desemaranhar da complexa e Apesar destas ponderações, algumas certezas
erudita trama conceitual envolvida nos temas do podem ser derivadas através do caminho percorri-
crime e da loucura. Michel Foucault, Robert Castel, do em sua busca pelos condicionantes históricos
Cesare Lombroso, Afrânio Peixoto, Roberto Ma- da instituição do Manicômio Judiciário. Sérgio
chado — estes são apenas alguns dos convidados Carrara conseguiu identificar, desde os primórdios
à discussão que, de certo modo, o posfácio retoma. do estabelecimento, a superposição complexa de
Por meio de aproximações múltiplas, o autor tran- um modelo “jurídico punitivo” sobre outro modelo
sita do Direito à Medicina, da Antropologia à de intervenção social, o “psiquiátrico terapêutico”.
Psiquiatria, conjugando com competência diferen- “Superposição”, enfatiza o autor, e não “justaposi-
tes e até certo ponto irredutíveis corpos teóricos, ção“, posto que havia nítidas implicações políticas
na busca de uma melhor caracterização de seu na maneira pela qual os juristas impuseram limites
objeto-problema. mais ou menos precisos ao poder de intervenção
Ao longo de todo o texto, desfrutaremos da dos psiquiatras. Além da apreensão do modo
companhia do autor, uma vez que, no processo de subalterno e subordinado como os médicos se
articular analiticamente os elementos significativos incorporaram ao novo estabelecimento, outra cer-
do levantamento, ele não se oculta atrás da reifica- teza emana dos debates teóricos recuperados pelo
ção da palavra escrita. E faz uso reiterado da estudo: durante todo o período abrangido pelo
primeira pessoa para reaparecer aqui e ali, emitin- levantamento, pôde-se evidenciar os médicos divi-
do suas próprias opiniões, avaliando as opções didos em diferentes correntes teóricas, em especial
metodológicas que preferiu adotar. Graças a este aquelas que contraporiam os adeptos da antropo-
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logia criminal aos seguidores das concepções jurí- questionável; é antes o lapso de tempo decorrido
dicas liberais. Não houve, portanto, unidade de até sua publicação que merece alguma reclama-
pensamento que dirigisse a intervenção dos profis- ção. O mercado editorial brasileiro ainda não faz
sionais da arte de curar nos debates jurídicos e justiça à crescente qualidade e diversidade de
institucionais sobre como proceder a tutela dos nossa produção intelectual. Esta deficiência, no
“degenerados”, dos “criminosos natos”, dos “anô- entanto, em parte se desfaz com a presente edi-
malos morais” — a multiplicidade de termos em- ção de Crime e loucura. E isto deve servir de
pregada indica e reforça a percepção da falta de estímulo aos pesquisadores que se estão dedican-
acordo em sua caracterização. do às etapas institucionais de sua formação pro-
A projeção médica nos processos sociais fissional. Ainda que tardiamente, a dedicação e a
que deram origem ao Manicômio Judiciário foi qualidade têm o seu mérito reconhecido.
então reduzida por sua divisão em diferentes es-
pecialidades, com campos conceituais distintos e
pouca interação efetiva. Também foi obstada JOSÉ LEOPOLDO FERREIRA ANTUNES é
pelo contraste entre os paradigmas teóricos que professor do Departamento de Odontologia
orientavam sua intervenção e por marcantes con- Social da Faculdade de Odontologia da
frontos de ordem política e administrativa. Nesse Universidade de São Paulo (USP).
sentido, a leitura de Crime e loucura ajuda a
tornar relativo o conceito de “medicalização” da
sociedade, neologismo com que se tentou, a par-
tir dos anos 70, dar conta de uma série bastante
diversificada de problemas sociais aos quais se
dirigiu a intervenção médica. Se não estiveram de
acordo entre si sobre como compreender e agir
perante os casos envolvendo crime e loucura, se
sua segmentação em especialidades restringiu a
permeabilidade das concepções, se a instituição
do Manicômio Judiciário foi antes dirigida pelos
juristas, como então falar em medicalização de
modo aplicado a esses temas? É interessante per-
ceber, quanto a esse aspecto, que o termo “medi-
calização”, apesar de bastante difundido na litera-
tura reunida por Sérgio Carrara, parece ter sido
judiciosamente evitado por ele ao longo de todo
o texto.
Logo no início, disse que o livro era a um
só tempo novo e velho. O estudo original havia
sido desenvolvido como dissertação de mestrado
e foi defendido no início de 1988 no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional do Rio de Janeiro. E só agora foi
retomado, praticamente em seu formato original,
contudo acrescido de um posfácio, no qual o
autor sintetiza a produção literária internacional
que, nos últimos anos, revisitou os mesmos te-
mas. A importância de trazer ao público este
trabalho, em sua versão integral, parece-me in-
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Política democrática e são afins, como a do sistema político. Assim, os


atuais reformadores, ao deixarem de trazer o pro-
reforma do Estado grama reformista para a arena pública, debatendo
ampla e democraticamente com os principais ato-
Marco Aurélio NOGUEIRA. As possibilidades da res da sociedade civil, esvaziaram de conteúdo
política. Idéias para a reforma democrática do político as diversas e variadas demandas existentes
Estado. São Paulo, Paz e Terra, 1998. 305 páginas. em âmbito societário. Ilustra a visão tecnicista que
informa estes procedimentos o modo como vem
Walquiria Domingues Leão Rego sendo encaminhada a reforma administrativa, “es-
sencialmente em termos jurídicos, técnicos e orga-
A crise do Estado contemporâneo constitui nizacionais” e numa dimensão “reducionista e
hoje um dos temas mais freqüentados da agenda quantitativa” (pp. 16 e 106). A forma autoritária de
política mundial em todos os lados do espectro conduzir a mudança, desencadeada pelos tecno-
político. O problema, como sempre, reside na cratas do establishment, tem provocado, com eficá-
profunda diferença entre as concepções de refor- cia avassaladora, a redução da política, do Estado e
ma propostas. A esquerda democrática, na sua dos corpos administrativos a redutos do mercado.
enorme matização, tem diante de si um imenso Esta operação ideológica reitera “a idéia da política
desafio. O primeiro deles consiste na qualidade [como] prisioneira do mundo dos profissionais,
intelectual da diagnose que poderá fazer da ques- impossibilitando assim sua valorização como ativi-
tão do Estado, identificando seus pontos de estran- dade de todos, prática dedicada a responder aos
gulamento no cumprimento das funções básicas desafios e aos valores socialmente instituídos — a
que este deve realizar na sua relação com uma atacar as questões que são fundamentais — por
cidadania exigente. Em segundo lugar, a esquerda serem comuns, tendo em vista o delineamento de
precisa refinar seus instrumentos analíticos para visões consistentes a respeito do sentido do estar-
captar os principais contornos do problema. A ela mos juntos” (p. 174).
compete a tarefa de devolver aos vocábulos refor- Um dos pontos altos da análise de Marco
mas estruturais o significado que historicamente Aurélio Nogueira consiste no resgate que realiza de
lhes pertence, associado à democratização subs- uma certa linhagem de intérpretes do Brasil, como
tantiva da vida coletiva. Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e
É num contexto assim demarcado que deve outros, que sempre acentuaram a recorrência, em
ser avaliado o livro de Marco Aurélio Nogueira. Ao nossos processos de mudança social, da força da
longo de seis capítulos, o autor discute as mazelas conciliação política realizada pelo alto, que sempre
do Estado brasileiro, da natureza do seu processo reforçou os núcleos duros do conservadorismo
de statebuilding aos dias de hoje, ancorado em um brasileiro, construindo um poderoso dique que
sólido arcabouço categorial, em que estão presen- bloqueou e continua a impedir a refundação da
tes os grandes clássicos das teorias do Estado e da República em termos democráticos. Enfatiza que a
sociedade civil. Conforme o autor, o tema do conseqüência mais dramática deste círculo vicioso
Estado brasileiro e de sua reforma, tal como posto de nossa história política é a de que a grande
nos dias que correm, reedita com impressionante modernização econômica — excludente, concen-
monotonia os pressupostos da modernização con- tradora de renda —, como a ocorrida durante a
servadora. No fundamental, em que pese a retórica intensa industrialização dos anos 30 e 50, signifi-
de reformar o Estado para dotá-lo de agilidade cou, mais uma vez, o não aprofundamento do
operacional com vistas a melhor instrumentalizá-lo progresso civil da grande maioria do povo brasilei-
para cumprir suas funções de regulação da vida ro. Um dos legados negativos dessa via de passa-
social, as atuais propostas, com seu viés tecnocra- gem à sociedade industrial consistiu na oportuni-
tizante, abstém-se sistematicamente de apresentar dade perdida de constituição de uma esfera públi-
o problema articulado a outras reformas que lhe ca, no sentido que lhe empresta Habermas (1984):

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“uma esfera pública, da qual certos grupos são eo mandante de serviços do Estado a atitude do
ipso excluídos, não é apenas, digamos, incompleta: cliente e não a do cidadão, que no exercício de
muito mais, ela nem sequer é uma esfera pública.” direitos que lhe são de fato e de direito assegura-
O livro move-se fundamentalmente na análi- dos, deve ser ciente dos deveres que tem para com
se histórico-política do dilema constitutivo de uma o Estado. A cidadania como uma relação de deter-
modernização burguesa que se realiza como revo- minações recíprocas ainda não se teria implantado
lução passiva, na qual emerge como protagonista fundamente em solo brasileiro.
decisivo o Estado, fragilmente dotado de dimensão Assim, conclui o autor que nas diversas do-
pública e republicana. Neste sentido, mostra o bras desse processo ergueu-se um Estado hipertro-
modo pelo qual o Estado se consagrou na história fiado, operado por um presidencialismo imperial,
brasileira como associação de domínio e espaço decisionista, que não conta, para sua volúpia, com
privilegiado de apropriação privada, pelos setores controles institucionais eficientes. Ao contrário,
dominantes, dos recursos públicos gerados pela estende sua pesada mão por todos os poderes da
sociedade. Esta capacidade das elites econômicas República.
de privatizar o Estado deita suas raízes mais pro- Articulada a esta argumentação decorre a
fundas na natureza fundamentalmente clientelista análise do que o autor denominou as armadlhas
e prebendária do nosso sistema político-partidário, da transição. Marco Aurélio Nogueira tece sua
cujo transformismo reforça ainda mais a relação narrativa com os fios da teia analítica muito bem
privada que os cidadãos estabelecem com sua amarrados, de modo que os eventos do presente
representação política. A institucionalização disto só possam ser deslindados se puxados os fios dos
tudo configurou no Brasil uma das técnicas mais processos fundantes do passado brasileiro. Infor-
eficientes de controle social, de estilhaçamento das mado por esta perspectiva totalizadora, artigo raro
solidariedades cívicas, resultando em aprofunda- nas análises correntes da politologia contemporâ-
mento ou aumento do fosso entre sociedade civil e nea, que expulsa a história e a visão de longue
Estado. durée dos processos político-sociais, ele revisita a
O efeito mais nefasto desse cruzamento de agenda das forças democráticas que participaram
processos consiste na emergência de uma cultura das oposições à ditadura e que pretendiam resta-
política desprovida de sentido público, o oposto belecer a plenitude do regime democrático no
de uma civic culture. Estas carências forneceram Brasil. A concepção de plenitude democrática su-
alguns dos elementos que ajudaram a dificultar, põe necessariamente a edificação de um Estado de
entre nós, a constituição de uma burocracia públi- direito, portador de grande força normativa em
ca, moderna, profissional, dotada da racionalidade relação à formação de cidadãos democráticos.
e legalidade necessárias ao cumprimento de suas Portanto, esta nova fase da vida brasileira tinha de
tarefas em relação à sociedade. Esses defeitos ser inaugurada com uma Assembléia Constituinte
congênitos propiciaram a adoção generalizada, no que deveria espelhar e processar politicamente as
âmbito do Estado, do empreguismo gerador de demandas dos novos e velhos atores sociais. Entre
sobreposições de funções e competências, e o o conjunto de questões presentes à Assembléia
pior: a pouca responsabilidade dos servidores figuravam, sob várias denominações, mas com
estatais na prestação de serviços públicos aos seus destaque, os temas da reforma da política e da
concidadãos. Estes graves déficits de racionalidade reforma do Estado. Neste ponto, o autor rememora
estatal também se explicam pelo descaso das elites as graves circunstâncias que emolduravam o qua-
em promover a existência de estruturas escolares dro da transição: a extensão e profundidade da
públicas formativas de recursos humanos e volta- crise econômica (recessão, inflação permanente,
das para a educação de servidores republicanos, tendência à desindustrialização etc.) e, como con-
no sentido forte da palavra. Essas lacunas e insufi- traponto negativo, a inexistência de um “movimen-
ciências, cristalizadas em padrões culturais difusos to de massas impetuoso, organizado e autônomo
pela sociedade, contribuíram para reforçar no de- em relação ao Estado”. A combinação desses ele-
RESENHAS 177

mentos fará com que a nossa construção democrá- fazer a história de costas para o futuro” (p. 160).
tica seja “vivenciada por uma sociedade dilapidada Desse modo, a institucionalidade política emersa
pela crise, composta por tempos históricos diver- deste momento terminou por não criar mecanis-
sos, mal articulada politicamente e despreparada mos de fortalecimento do Congresso e, por conse-
para imprimir uma rápida ruptura com o autorita- guinte, da representação política. Com isto a na-
rismo” (pp. 157-158). ção, como corpo político, acabou não refinando os
Por isso, o saldo dessa difícil configuração instrumentos de legitimação do poder e da ação do
que presidiu a transição democrática constituiu Estado. As coisas correram noutra direção: a Cons-
uma das mais duras razões que dificultaram a tituição “terminaria por reforçar a hipertrofia e a
organização de uma agenda unitária para a rede- hiperatividade decisória do Poder Executivo” (p.
mocratização. Um programa transicional mínimo 160).
seria obrigado a equacionar um conjunto de pro- O instituto constitucional das medidas provi-
blemas históricos, estruturais e conjunturais, pro- sórias dotou o presidencialismo brasileiro de um
fundos e complexos, como a nossa grande desi- poder legislativo incomum nas democracias con-
gualdade social, nossa concentração de renda, a temporâneas, determinando o fim das expectativas
situação desastrosa da saúde e educação públicas. de que a Assembléia Constituinte legasse ao país
Isto tudo demandaria a definição de um conjunto uma nação politicamente forte e com um parla-
articulado de políticas públicas, com a realização mento importante. Disto tudo resultou que não se
de investimentos estatais importantes nos setores reformou a política e muito menos o Estado.
mais carentes. Enfim, a agenda política estava Certamente esses resultados se inscrevem nas ar-
carregada de velhas demandas e acrescida, eviden- madilhas de uma transição que mais uma vez não
temente, daquelas oriundas dos novos movimen- foi capaz de estabelecer um patamar de democra-
tos sociais, como o operário, o de mulheres, o das tização substantiva da sociedade e do Estado, que
lutas por habitação etc. Infelizmente, a ausência de lançasse de uma vez por todas o país no caminho
mediação política que abrigasse estas demandas, seguro de uma democracia política vocacionada
transformando-as em motor de vigorosos sujeitos para a realização de políticas públicas distributivas.
coletivos, com força suficiente para alterar os tradi- Nogueira mostra que as promessas da fase
cionais rumos do conservadorismo brasileiro, não das lutas civis contra a ditadura se converteram em
permitiu que fossem dados os passos decisivos no duras realidades sociais para a grande maioria. O
sentido da substantiva modernidade democrática. sistema político e partidário negociado com as
Este agregado de fatores, combinado “à dinâmica forças da ordem deixou cair todas as suas máscaras
conciliadora da transição, sua falta de empuxo para nas eleições de 1989, patenteando, assim, a fragili-
promover rupturas com o legado histórico-estrutu- dade e a inconsistência doutrinária e programática
ral e com diversos subprodutos dos anos autoritá- dos condutores da transição. A insistência dos que
rios, será solenemente estampado na Carta de a dirigiram institucionalmente em conciliar com as
1988, que não se tornou a Constituição ideal de forças comprometidas com a ditadura, mas sem
nenhum grupo nacional” (p. 159). ousar a negociação firme de um programa real-
Em que pesem as inovações democrático- mente reformista que viesse a alterar substantiva-
participativas realizadas durante a feitura da Cons- mente a correlação de forças, com vistas a viabili-
tituição de 1988, e as conquistas nela consagradas zar, assim, uma reforma da política e do Estado em
nos terrenos das liberdades civis e dos direitos sentido democrático, selou mais uma vez o pacto
sociais, o processo constituinte não foi capaz de interelites que recolocou no centro da cena nosso
refundar a República em termos democrático-soci- velho e renitente transformismo político. Os ato-
ais avançados. A Constituição, segundo Nogueira, res que protagonizaram o conhecido script da
“expressará, acima de tudo, a tendência societal (e conciliação, sempre postergadora da inclusão das
particularmente das elites políticas) de entrar no demandas políticas populares por mais justiça
futuro com os olhos do passado ou, mais ainda, de social, colheram logo adiante, falando metaforica-
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mente, sua trágica vendetta. Venceu as primeiras assim, mais uma alma social ao capital: a de
eleições democráticas um outsider que, manipu- caçador ensandecido das formas mais abstratas da
lando a linguagem da antipolítica, numa interpela- riqueza. Neste ponto, há um certo prejuízo da
ção direta com as massas, e dispensando toda e análise, que adota sem muito cuidado a noção de
qualquer institucionalidade mediadora, conseguiu globalização, sem discutir o vazio explicativo desta
travestir sua total irresponsabilidade na imagem de categoria. Talvez a noção possa, com muita cautela
um saneador cívico. Como se sabe, essa proeza foi no seu uso, prestar-se como recurso descritivo das
realizada por uma das mais fantásticas operações linhas gerais do processo atual de universalização
financeiro-midiáticas. De um lado, explorando a de certas formas do capital.
ingenuidade e a fadiga dos pobres, vítimas por Diante do novo quadro, Marco Aurélio No-
tantos anos do descaso e da incúria administrativa gueira, certamente apostando nas possibilidades
do Estado no que tange à melhoria da qualidade de da atividade política, aponta as virtudes requeridas
suas vidas. De outro, impelindo os ricos a saírem dos gestores públicos, vistos como um dos princi-
como manada enfurecida para mais uma vez apoi- pais elementos de modernização democrática da
ar — mesmo que se contasse com o amedronta- estrutura estatal. Nos marcos de uma sociedade
mento de alguns deles com o aventureirismo de civil fragmentada, quando não cortada em pedaços
Collor — uma candidatura que lhes garantia a desarticulados, por vezes organizados num corpo-
continuidade da conhecida negociação privada rativismo estreito e egoísta, a democracia e a
com os fundos públicos do Estado brasileiro. participação mais viva de todos na construção de
Desse modo, em linhas gerais, a reforma da um caminho que aponte para a melhoria qualitati-
política se apequenou, passando a significar, pura va da vida pública e privada dos cidadãos impõem
e simplesmente, eficácia eleitoral, conseguida cada algumas exigências: “O gestor público de que se
vez mais na relação direta com o savoir faire das necessita hoje [deve ser] um técnico altamente
estratégias de marketing político. Os mecanismos diferenciado, seja vis-à-vis os gestores do passado
de legitimação dos dirigentes fundiram-se também (que operavam em um ambiente de maior ‘simpli-
na aceitação mercadológica das imagens e dos cidade’ e maiores ‘certezas’), seja vis-à-vis a seus
discursos produzidos por quem dispõe de mais congêneres privados. Como todos os demais ge-
dinheiro para oferecer no mercado político as rentes, está obrigado a processar muitos dados e
mercadorias melhor embrulhadas. O realista informações, a reciclar conhecimentos com rapi-
Schumpeter já havia descrito este fenômeno, que dez, a ser polivalente e pouco especializado. Mas,
denominou de vontades políticas manufaturadas. diferentemente dos gestores privados, precisa ser
A reconstrução do Estado — a implementa- técnico e político. [...] Entre suas novas atribuições,
ção efetiva de um padrão de racionalidade que aliás, encontra-se precisamente, em lugar de desta-
permita a democratização de suas estruturas, de que, a de atuar como difusor de estímulos favorá-
modo que as mesmas se tornem permeáveis à veis à democratização, à transparência governa-
realização de políticas estatais redistributivas volta- mental, à cidadania, à redefinição das relações
das para promover o aprofundamento da cidada- entre governantes e governados, Estado e socieda-
nia — metamorfoseou-se em mutilações de suas de civil.” (pp. 189-190).
funções essenciais. No dizer do autor: “A recons- Desse conjunto de elementos apresentados
trução do Estado tem sido sobretudo desconstru- resulta que uma reforma democrática do Estado só
ção [...]” (p. 174). pode ser contemporânea da devolução à política
Em virtude da velocidade das grandes trans- dos seus conteúdos virtuosos, aqueles da formação
formações dos tempos que correm e do aprofun- de um espaço de debates públicos para a escolha
damento da internacionalização do capital, com dos meios adequados que objetivem evitar todo o
destaque para a sua dimensão financeira e, como sofrimento socialmente evitável. Este é o imperati-
diria o velho Marx, para a realização universal da vo ético de uma intervenção política responsável.
ruptura entre riqueza e produção, introduz-se, Somente isto poderá ser o norte de uma reforma
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qualitativa da administração pública, ou seja, que ensão analítica do passado ou, parafraseando Gar-
não se limite em esvaziar o sentido mais profundo cia Marquez, deste passado que nunca acaba de se
da palavra reforma, porque a compreende apenas acabar.
como ação racionalizadora de direção única, a Na última parte do trabalho, como para fe-
contábil. Enquanto seus proponentes não enten- char as questões abertas ao longo do texto, o autor
derem a necessidade da adoção, de sua parte, de coloca em relevo que o atual padrão de dominação
um projeto político carregado de fortes componen- social, consubstanciado no neoliberalismo, funda
tes de ética pública, que supõe a politização da sua legitimação no persistente e sistemático esvazi-
questão administrativa, assim como a publicização amento da política, dissolvendo sua “legalidade
de seus critérios e procedimentos reformistas, a específica” no moinho diabólico do mercado, para
propalada reforma converter-se-á em mais um usar as palavras com que Karl Polany se referia ao
fetiche de fácil consumo ideológico e em mais um mercado capitalista. Entretanto, o pessimismo da
instrumento de barganha política, mas de pouquís- razão que preside a análise revela, a todo tempo,
sima valia ao aprofundamento de uma convivência o otimismo da vontade. Ao longo das trezentas
democrático-republicana. páginas, onde predomina o tom amargo e cinzen-
Na última parte do livro, que abrange tantos to da crítica que tenta apreender uma matéria dura
aspectos da problemática brasileira, Marco Aurélio e hostil, pode-se perceber claramente a busca de
sugere os contornos do que seriam os principais abertura de várias clareiras para deixar entrar a luz
componentes da agenda política da esquerda de- da política como possibilidade de superação do
mocrática, realçando que, apesar da desqualifica- atual estado de coisas. Todo o trabalho é atraves-
ção da política empreendida com tenacidade pelos sado pela aposta no resgate da arendtiana dignida-
“novíssimos liberais” que governam o país hoje, o de da política, entendida como espaço público de
momento é fecundo para a esquerda repensar suas debate das questões coletivas.
categorias de análise, reavaliar o potencial crítico Por fim, As possibilidades da política é um
delas, assim como refundar a política como ação belo exemplar de como se pode realizar uma
humana vocacionada a reunir os homens para fecunda combinação entre um rigoroso estudo
debaterem, julgarem e decidirem o sentido de sobre as práticas, hábitos e costumes políticos não
permanecerem juntos. democráticos sedimentados na sociedade e a ela-
Além disso, o autor acredita que “[...] o mo- boração simultânea de um discurso normativo
mento é ótimo, também, para que se volte a sobre o fazer político democrático como um dos
proclamar a radical intimidade entre esquerda, maiores desafios de uma esquerda que pode assim
reforma e democracia. Ou seja, para que se arejar o marxismo, limpando-o das crostas sectárias
dispute a direção das reformas com o neoliberalis- e dogmáticas.
mo ainda hoje vencedor. Para que se apresente
uma idéia renovada de reforma, que reitere o
reformismo social mas inclua, em lugar de desta- WALQUIRIA DOMINGUES LEÃO REGO é
que, a modernização das instituições básicas da professora do Departamento de Sociologia
política. Só assim será possível difundir uma idéia da Universidade Estadual de Campinas.
nova de vida coletiva, fundada em liberdades
individuais, justiça social, participação democrática
e representação política, pontes que aproximam
Estado e sociedade civil” (p. 243).
O fecho do livro mantém o tom vivo e
instigante que o autor imprimiu a toda a narrativa.
O percurso realizado procurou decifrar os fenôme-
nos do presente na sua constitutiva processualida-
de histórica, que necessariamente envolve a apre-

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