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Sobre a excentricidade humorística de Fradique

Ofélia Paiva Monteiro

Se a fruição intelectual e estética é sem dúvida a razão primeira da sedução que


exerce sobre tantos leitores hodiernos o "corpus" textual que se organiza
em torno da personagem de Fradique, também as dificuldades hermenêuticas
que, a vários níveis de indagação, ele suscita subjazem à atenção que a crítica
lhe tem recentemente consagrado. Recordo, exemplificando, o largo e
paciente estudo de Joel Serrão O primeiro Fradique Mendes, de 1985,
trabalhos de Carlos Reis, em particular o artigo "Fradique Mendes: origem e
modernidade de um projecto heteronímico", de 19841, a tese de Mestrado, ainda
inédita, de Maria João Simões, Corres- pondências: Eça e Fradique. Análise de
estratégias epistolográficas, apresentada em 1987 à Faculdade de Letras
coimbrã2. Donde provêm as dificuldades aludidas? Primo, de ser o conjunto
textual fradiquiano transmitido por uma "vulgata" cuja fixação apresenta
incertezas; secundo, de ele estar, considerado de um ponto de vista
semântico-pragmático, profundamente marcado pela ambiguidade, uma
ambiguidade que fundamentalmente decorre do jogo humorístico em que
assenta. Acres- ce, como factor de interesse para os devotos de Eça, que Fradique
acompanha o devir do Escritor: "nasce", sob o signo da Fantasia, nos anos de
1869-70, quando começa a conformar-se o "universo" queirosiano; oculta-
se, compreensivelmente, durante o seu avatar naturalista; mas reaparece,
enriquecido, quando, por meados da década de 80, um Eça na meia-idade de
novo se deixa levar, saudoso da irreverência juvenil, à "torre de cristal da
Imaginação"3: um longo "convívio" de quinze anos - até à morte do

1 In Cadernos de Literatura, nº 18, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de


Coimbra, 1984, pp. 45-60.
2 . O artigo Eça e Fradique: as cartas e os seus temas (in Queirosiana, n.º 2, Julho de 1992, Baião,

Associação dos Amigos e de e Eça de Queirós, pp. 13-30) constitui um extracto reelaborado
desta dissertação.
3 Expressão da Carta (assinada por Eça e Ramalho) ao Editor de "O Mistério da Estrada de Sintra", in

Obras de Eça de Queiroz, Porto, Lello & Irmão Editores, vol. III, s. d., p. 1271. Nas citações da obra
do Escritor, utilizarei habitualmente esta edição (4 vols. em papel “Bíblia”).
193
Escritor, sobrevinda em 1900—se tecerá entre ele e a sua personagem, o que
explica que pertença à categoria dos "semi-póstumos" o volume conhecido por
A Correspondência de Fradique Mendes, publicado poucos meses depois
do seu falecimento. Até à década de 40 do nosso século, mais algumas
cartas de Fradique irão sendo, ou relembradas (porque jaziam em jornais e
revistas), ou reveladas (porque totalmente inéditas).
Passo a recordar rapidamente que tipo de "incertezas" podem inquietar o
crítico, mal atenta na própria materialidade textual do "corpus" fradiquiano. Não
são elas muitas — e ficam-se sobretudo por questões de autoria—quanto ao
acervo de textos que se prende ao primeiro Fradique , conjunto em que
ingressam, como todos sabem: os quatro poemas publicados em Agosto de 69
no periódico A Revolução de Setembro, precedidos por uma introdução
anónima ; os outros quatro dados a lume pouco depois n'O Primeiro de
Janeiro com nova introdução , assinada pelas iniciais do nome e apelido de
Antero; mais alguns poemas—uns éditos, outros inéditos e inacabados —que a
consulta aturada do espólio de Batalha Reis permitiu a Joel Serrão
concluir terem tido a autoria ficcional de Fradique ; enfim , os passos de O
Mistério da Estrada de Sintra , de 1870 , em que é referido o cantor da
Rigolboche . A bibliografia activa e passiva de Antero , Eça e Batalha Reis,
permitiu que, após o mistificador impacto da revelação pela imprensa desse
"originalíssimo " poeta , radicado em Paris , se identificassem os autores
reais daqueles textos , ainda restando todavia algumas dúvidas : a autoria da
apresentação de Fradique , n'A Revolução de Setembro , atribuível a Eça ou a
Batalha Reis, pertencerá, pensa Joel Serrão, mais provavelmente a este último4;
quanto aos passos de O Mistério da Estrada de Sintra , saído da parceria de Eça
e Ramalho no “bluff” promovido com a ajuda do Diário de ' Notícias, é quase
com certeza de Eça a sequência intitulada “A confissão dela”, onde intervém
Fradique, cabendo a Ramalho – se for da sua lavra, como habitualmente se
tem julgado, a sequência "Concluem as revelações de A.M.C.", que fecha o
romance – uma última referência rápida ao bizarro "filósofo do boulevard" 5.

4
Op. cit., p. 339.
5
O Mist. da Est. de Sintra, in Obras..., III, p. 1412. 194
194
São de outra índole — e mais inquietantes — as questões textuais que
o segundo Fradique suscita, quando Eça, apropriando-se da personagem,
a retoma noutro projecto ficcional mistificador, sob o provável sortilégio
da rememoração das extravagâncias da mocidade trazida pela
republicação, em 1885, de O Mistério da Estrada de Sintra. Recorde-
se, a propósito, a comovida carta ao Editor do livro, datada de 14 de
Dezembro de 1884, em que Eça e Ramalho recordam a "alegria" e a
"audácia" com que tinham resolvido, catorze anos antes, numa noite
de Verão, perante a tristeza de uma Lisboa que cabeceava de sono –
fisiológico e intelectual –, "acordar tudo aquilo a berros, num romance
tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Noticias"6; e lembre-
se que, logo em Junho de 85 Eça propõe epistolarmente a Oliveira Martins
a inserção no jornal A Província, que ele dirigia, de "uma série de cartas
sobre toda a sorte de assuntos", escritas "por um certo grande homem
(...) que se chamava Fradique Mendes", fazendo-as preceder "por um
estudo sobre a vida e opiniões desse lamentado gentleman "7. Como
é sabido, só em 1888 começou, porém, o Escritor a dar realização ao
projecto, publicando não ali, mas n’ O Repórter, também dirigido por
Oliveira Martins, e quase simultaneamente na Gazeta de Notícias do
Rio de Janeiro, sem assinatura, as Notas e Recordações – seis sequências
– que apresentam a personagem, seguidas, (só) na Gazeta fluminense,
das três primeiras cartas do conjunto de dezasseis que veio a ingressar,
em 1900, no volume A Correspondência de Fradique Mendes; de1889 a
1892, na Revista de Portugal, que Eça criara e dirigia, volta a surgir,
alargada para oito capítulos e já sob o título de Memórias e Notas , a
apresentação da personagem, seguida de um epistolário que engloba
então, sob o rótulo de “1a série”, as primeiras oito cartas do futuro livro e,
sob o de "2.ª série", só as cartas a Mme. de Jouarre e a Clara que, na edição
póstuma em volume, terão respectivamente os números X e IX.
Recordo, porém, que a inserção dessa única carta a Clara no volume IV e
último da Revista, separado do III por um hiato longo, fora devida à
responsabilidade do novo Subdirector da publicação, Luís de Magalhães,
que não à vontade de Eça: em carta enviada ao amigo a 11 de Janeiro de
1892, cumprimentando- -o pelo exemplar que acabava dê receber em Paris,
Eça lamentava, como seu

6
Ibid., p. 1271.
7
.Eça de Queirós, Correspondência (Leitura, coordenação, prefácio e notas de Guilherme de
Castilho), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, vol. I, 1983, pp. 262-263.
195
"único ponto fraco", a "Carta de Fradique a Clara" que, dizia, assim
isolada, "nada significava, e só teria significação e intenção posta ao lado
das outras de Fradique à mesma Dama"8. Devo acrescentar que, na mesma
Gazeta de Notícias fluminense, vem Eça a publicar de facto, pelos fins
desse ano de 92, Quatro cartas de amor a Clara.

Atentemos agora no volume vindo postumamente a lume, Sabemos que Eça


pensara, desde 1888, na publicação em livro das sequências de apresentação
de Fradique e do seu epistolário; à data do falecimento do Escritor, porém, só
estava ainda composto tipograficamente, apesar da insistência dos Editores, o
"corpus" fradiquiano saído na Revista de Portugal à excepção das duas
cartas ai dadas como pertencendo à 2ª série do epistolário.
Que representa então o livro póstumo, cuja revisão última – tal como a de A
Ilustre Casa de Ramires – sabemos ter sido confiada pela Livraria Lello a
Júlio Brandão? A junção aos textos que estavam compostos, aquando da
morte de Eça, de três das quatro cartas a Clara já publicadas na Gazeta do
Rio, e de três novas epístolas resultantes da conversão em cartas de
Fradique, mediante alterações textuais, de crónicas do Escritor, já divulgadas
também pela imprensa periódica: refiro-me à carta XII a Mme. de Jouarre,
sobre a Quinta de Refaldes, à carta XIV, à mesma destinatária, sobre o Padre
Salgueiro e à carta XV, a Bento de S., sobre os malefícios sociais do jor-
nal9. Recordo ainda que nenhuma divisão em séries, neste volume póstumo,
compartimenta o epistolárío.
À imbricada história textual que acabo de rapidamente evocar, só
reconstituída graças à preciosíssima Bibliografia Queirociana estabe-

8
Essa carta, existente, com outras três, no espólio de Luís de Magalhães (hoje na
Biblioteca Nacional de Lisboa), foi publicada por Carlos Reis em "Quatro cartas inéditas
de Eça de Queirós sobre a Revista de Portugal", in Cadernos de Literatura, n2 16, Coimbra,
1983, pp. 18-19
9
As duas primeiras são refacção de crónicas aparecidas, em 1892, na Gazeta de Notícias, com
os títulos "Quinta de Frades" e "Padre Salgueiro"; a última, de uma "Carta a Bento",
intitulada "crónica” e assinada pelas iniciais de Eça, aparecida em 1897 na Revista
Moderna. Ninguém tem posto em causa que as alterações textuais ocasionadas pela
conversão em cartas de Fradique de crónicas de Eça, assinadas com o seu nome, sejam
devidas a ele mesmo.
196
lecida por Ernesto Guerra dá Cal10 suscita naturalmente uma série de
perguntas, já formuladas, algumas, pelo mesmo estudioso. Nuclear é a
questão seguinte, ainda, creio eu, sem resposta cabal: corresponde a seriação
das cartas, tal como o volume impresso as apresenta, a algum plano
estabelecido pelo próprio Eça? Na cauda desta questão vêm outras: quis ele
a anexação ao epistolárío fradiquiano das cartas provindas da alteração de
crónicas? Pensaria Eça na publicação de uma segunda série de epístolas
fradiquianas, onde viessem a ingressar a quarta carta a Clara, que não figura
no volume póstumo e as cartas de Fradique que, exumadas dos papéis
deixados pelo Escritor, surgiram em 1912 nas Ultimas Páginas e, em 1929,
na Correspondência Inédita de Fradique Mendes..(seis/cartas), reunida por
José Maria Eça de Queirós? Ou representam estes textos trabalhos rejeitados
por Eça? A correspondência do Escritor com os Editores, exasperados com
a demora da publicação em volume do epistolário fradiquiano, informa-
-nos, todavia, que, em fins de 1895, ele aceitara reduzir para. 24 o numero
total das cartas, que, segundo um plano inicial, deveria ascender a três
dezenas11. Ora é efectivamente de vinte e quatro a soma das epístolas
conhecidas de Fradique, se somarmos às dezasseis integradas no volume de
1900 a-quarta carta a Clara, que ficara esquecida na Gazeta de Notícias
Fluminense e as sete cartas inéditas vindas posteriormente a lume.
Se juntarmos a estas incertezas que pesam sobre o "corpus" fradiquiano a
inexistência ainda de um estudo das alterações textuais que Eça introduziu
ao republicar alguns textos, ou ao converter em epístolas de Fradique
trabalhos anteriores com diversa índole12, temos de reconhecer que faltam
elementos de interesse para .um conhecimento mais cabal do devir e da
sintaxe do "projecto" eciano que teve por "herói" o segundo Fradique. O que
para mim se afigura mais inquietante é desconhecermos como Eça disporia

10
Como se sabe, essa Bibliografia constitui um vasto apêndice à obra Lengua y Estilo de
Eça de Queiroz, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1975. Veja-se em particular
o tomo lº (Bibliografia Activa), nº 349-354, pp. 97-104.
11
Cf. Guerra da Cal, op. cit, p. 102.
12
Lembro, todavia, que Machado da Rosa integrou, em Prosas Esquecidas de Eça, o cap. I
e parte do II da biografia de Fradique, tal como aparecera na Revista de Portugal,
comparando essas páginas com as da edição de 1900, e que Maria João Simões estudou, na
tese já mencionada, alguns processos da conversão de uma crónica em carta fradiquiana (pp.
106-110).
197
o conjunto das cartas fradiquianas. É que tudo leva a crer que o projecto do
Escritor implicava uma estruturada sintaxe "intencional”. Não lamenta e
lea publicação isolada daprimeira carta a Clara? E a 18 de Novembro de 1893,
responde ao Editor Mathieu Lugan, que lhe pedia com insistência a
conclusãoda obra:
Quant à Fradique, vous avez raison, il faut le donner. Toutes les
lettres presque, à 1'exception de trois ou quatre, sont prêtes. Seulement
elles doivent paraitre dans le volume d'après un ordre qui ne peut pas
être altéré, sous peine de gâter 1'harmonie du travail. Et les lettres qui
me manquent sont justement celles du milieu du volume. Voilà la
raison du retard. 13
E certo que o apresentador de Fradique e editor ficcional do seu epistolário
– entidade que passarei a designar por Narrador – afirma, quase no termo
da evocação do amigo, que a correspondência que dá a lume, não submetida
a ordem cronológica, nem completa, é constituída por algumas cartas
"soltas", escolhidas por ele de entre as que mostravam "traços de carácter
e relances da existência activa", ou o "feitio" do pensamento do "homem
superiormente interessante" que Fradique fora. Mas com textos a que
presidem o humor ou a sua irmã ironia, já sabemos que é prudente acreditar
no inverso do que aparentemente dizem.
Chegamos assim ao segundo factor das dificuldades que a leitura do
"corpus" fradiquiano suscita, a ambiguidade a que aludi no início, radicando-
-a no jogo humorístico que a todo ele preside.
Comecemos por umas breves reflexões poemiais sobre o humor - o humour,
como frequentemente se dizia, sob forma inglesa, na Europa culta desde o
dealbar de Oitocentos e, por cá, desde meados do século, já que tal
disposição interiof era julgada característica "das inteligências do norte" —
citei Lopes de Mendonça em texto de 5514 – e matricialmente documentada

13
Correspondência (Suplemento), in Obras... (ed. cit.), vol. IV (Introdução e fixação dos
textos por Aníbal Pinto de Castro), 1986, p. 1621.
14
In "Novos ensaios de crítica", artigo publicado em A revolução de Setembro, 23-111855; sob
o título de "Perfis literários em 1855", também inserido em Memórias de Litteratura
Contemporânea, Lisboa, 1855, p. 330 (apud Maria Manuela Gouveia Delille, A recepção de
H. Heine no Romantismo Português (de 1844 a 1871), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 1984, p. 97).
198
pelo romance britânico de Setecentos (Fielding, Sterne, Smollett).
Pressupondo em quem o pratica, não o riso franco, mas o sorriso mais
meandroso e mais astuto, que não abre totalmente os seus alvos, o humor
pretende fazer sorrir também, com idêntico grau de complexidade,
cultivando o imprevisto que perturbe a serenidade do universo familiar.
Compraz-se para tanto na subversão das crenças e dos gostos estabelecidos,
da lógica comum, das fórmulas consagradas, praticando articulações
inusuais, distorsões, extremismos, paradoxos. Provoca, em suma, um modo
inédito de olhar para as andanças e azares do mundo, segundo perspectivas
bizarras que colidem com o que é globalmente sentido como normal, sério,
sensato. O humor carece assim de capacidade inventiva, reclama a liberdade
de conceptualização e de expressão e alimenta-se de um jogo com o público.
É claro que, ao longo do devir histórico, o humorismo conhece modalidades
temático-formais variadas. No Romantismo, que tanta atenção lhe prestou
—recordo a paradigmática análise que à poesia humorística consagrou Jean- -
Paul, desde 1804, na sua Introdução à Estética—, ele foi sentido como uma
marca de modernidade, por dar expressão com formas caprichosas,
distorcidas por vezes até ao grotesco, a dilaceramentos inerentes à época,
provindos dos conflitos "eu/universo, ideal/realidade, infinito/finito, poesia/
/vida"15. O humor romântico - de que Heine, Carlyle, Musset, Pöe vêm a
tornar-se modelos internacionalmente sedutores — é de facto de cariz
"spleenático".
Postas estas considerações, acerquemo-nos agora do primeiro Fradique, a
criação colectiva eivada áz humor romântico, saída em 1869-70 da pena de
Àntero, Batalha Reis, Eça e- sõ muito secundariamente —de Ramalho, em
nome da parte que teve na concepção de O Mistério da Estrada de Sintra.
Para entendermos a configuração e o funcionamento da personagem erigida
pelos poemas que lhe são atribuídos e pelas notas biográfico-críticas que a
apresentam nos jornais utilizados para os "bluffs", temos de não esquecer
a violência com que fora denunciada na "Questão coimbrã", com particular

15
Maria Manuela Gouveia Delille, op. cit., p. 100.
199
militância de Antero, a "literatura oficial”, a reacção negativa de muitos às
inovações temáticas de uma colectânea como Odes Modernas, a hilaridade
que frequentemente acolhera os folhetins de Eça havia pouco surgidos na
Gazeta de Portugal — postumamente insertos nas Prosas Bárbaras — e,
enfim, a camaradagem alegre, irreverente e intelectualmente curiosa que
ligava o jovem grupo de amigos em que se integravam os criadores da
personagem. Releiam-se com deleite as páginas em que Eça recorda a
Carlos Mayer os tempos da "lendária e fantástica Coimbra", ou a evocação
que, na introdução às Prosas Bárbaras e no In Memoriam de Antero,
Batalha Reis faz da convivência que o unira, na mocidade, ao Poeta, a Eça e
a outros mais. Essa roda de galhofeiros amigos suporta mal a pachorra do
viver português, o seu torpor intelectual, a sua estafada literatura, e consome,
numa buliçosa boémia de espírito que Antero procurará em breve orientar
para a solidez programática que dá azo às "Conferências do Casino", as
novidades do pensamento e da arte que chegavam da Europa, por via
predominantemente francesa: lembro românticos alemães e ingleses que
quase não tinham ainda penetrado entre nós – Heine, Hoffmann, Carlyle –
ou nomes dessa França erigida em capital da cultura , Michelet , Proudhon ,
Victor Hugo, Baudelaire,: Leconte de Lisle. A que distância ficavam o
Poema da Mocidade de Pinheiro Chagas, ou a Paquita de Bulhão Pato (cujos
primeiros seis cantos tinham saído em 66)!
É em diálogo com esse torpor português e com essa prezada novidade
estrangeira que Fradique Mendes ganha corpo. Os poemas que ele assina
dão-lhe a configuração contundente de um poeta satânico , desenvolvendo
temas - também presentes em textos anterianos da década de 60 e nas
páginas de Eça da Gazeta de Portugal e de O Distrito de Évora — que eram de
molde a colidir com o sentimentalismo lânguido, o moralismo conven- cional
e a religiosidade adocicada ou ascética que o nosso público prezava. Lembro
a exaltação materialista da natureza — mesmo se luta e lodo a afirmação,
ora sarcástica, ora dolorida, da desertificação do Céu sem deu- ses, a
admiração pelo homem-Jesus sofredor, a violência blasfema saída do tédio e
do sentimento do vazio, o erotismo ardente, o cepticismo em relação ao amor
e à mulher, a eleição, enfim, de "motivos emocionais" – estou a utilizar uma
expressão do apresentador eciano do segundo Fradique16 – na

16
A Correspondência de Fradique Mendes, in Obras..., vol. II, p. 983.
200
trivialidade confrangedora.da grande cidade, sejam eles, como no poema
hoje atribuído a Batalha Reis, a velhinha corroída por saudades da mocidade
e por ironias invejosas ante a beleza moça, ou, como nos poemas anterianos
As flores do asfalto e Noites de Primavera no Boulevard o "aroma irritante
e acre do Vício" exalado pelas ruas sem luz e pelos vórtices da atroz
Civilização17.
Creio de facto que é sobretudo uma intenção provocatória a que leva
Antero, mesmo se dando voz a facetas do contrastado e angustiante diálogo
que decorria na sua consciência, a publicar n’Ü Primeiro de Janeiro, sob a
capa de Fradique, versos desta lavrá, que jamais quererá reeditar:

O vício é formosura — o vício é poesia —,


Parece a criação ter por lei a folia, (...)
E sentidos, e alma, e tudo, em confusão,
Bradam: — "O Universo, é filho da paixão!
Amai, vivei, clamai! rugi, se nos rugidos
Há uma força mais que levante sentidos!
Se o Vício não bastar, no Crime pode haver
Magia e atracçâo e fonte de prazer!
Em nós habita Deus! — o mais matéria morta!
Que o mundo caia em volta e se alua, que importa?18

Fradique/Eça não mostra esta violência acre, que todavia surpreendemos


também na boca de uma personagem diabólica — Stanislau —, integrada no
conto O réu Tadeu , publicado pelo Escritor, em 1867, sem o seu nome,
n’ O Distrito de Évora, deixando-o inconcluso na secção de Leituras Moder-
nas, O Fradique-poeta eciano ou se fica, na Serenata de Satã às estrelas,
de A Revolução de Setembro (aparentável com textos das Prosas Bárbaras
como O Senhor Diabo e O Milhafre), pelo delineio de um Satã místico que,
também atingido pelo exílio dos deuses, sofre de "desolado" tédio e suspira,
esfomeado, pela "luz", ou atém-se, no poema deixado em esboço no espólio

17
Joel Serrão integra em O primeiro Fradique Mendes (Livros Horizonte, 1985) o
'"corpus" documental conhecido relativo a esta personagem. As citações que farei remeterão
para este volume.
18
In Joel Serrão, op. cit., pp. 272-273.
201
de Batalha Reis, ao (canto erótico/ de uma Ester judia, cuja graça é mais
poderosa do que a das "pálidas cristãs,/ De faces magras cavadas", porque ao
idealismo da fé reúne um corpo inebriante onde o Desejo arde. Menos /acerbo
do que o de Antero, este Fradique não deixava, porém, de ser extravagante
para o nosso meio, cooperando na subversão humorística dos seus hábitos
culturais e estéticos. Aduzo como elemento abonatório que Eça e Ramalho, ao
reeditarem O Mistério da Estrada de Sintra, observam na sua carta ao Editor
que esse livro, surgido de disposições e estratégias humorísticas afins
das da aventura fradiquiana, fora escrito "fora de todos os moldes até o seu
tempo consagrados", numa provocadora e cauterizadora manifestação de
independência.
As excentricidades — sobretudo temáticas — do poeta forjado inseriam-se,
porém, noutro jogo ainda de humor: o que visava os próprios inventores da
personagem, pela paródia que com ela era feita da nervosa modernidade, de
marca estrangeira, que os seduzia. Uma relação irónica articula efectivamente
as notas de apresentação de Fradique, n'A Revolução de Setembro e n’ O
Primeiro de Janeiro, com os poemas que as seguem; através dela, recobrem-se
de carga denegadora os elogios dirigidos ao Poeta revelado: "é um
verdadeiro poeta", lê-se nyA Revolução de Setembro, que fala do seu
"subjectívismo artístico"; "é um dos poetas mais bem dotados da nova
geração", repete-se n' O Primeiro de Janeiro, acentuando a
"originalidade" do seu estilo, dotado de "facilidade de ritmo" e "colorido da
frase". Corolário ainda desse jogo irónico é configurarem-se os poemas de
Fradique não como fruto de inspiração autêntica , mas como glosas de
"clichés", diversos dos que por cá vigoravam, mas também "clichés" – os do
satanismo de além-Pirenéus. É ocasião de recordar que as notas de
apresentação acentuam, entre macaqueamentos brincalhões, que Fradique
vive em Paris, que conhece pessoalmente Baudelaire, Leconte de Lisle "e
todos os poetas da nova geração francesa", que representa os "satanistas do
Norte", comicamente citados sob nomes abstrusos - Van Hole, Kitziz,
Schatchlig, e sobretudo Ulurus (na pena de Antero, Ulurugh), o "fantástico
autor das Auroras do Mal", evidente paródia de Les Fleurs du Mal. Se
extravagantes para o meio português, pouca originalidade possuíam de facto
os poemas de Fradique ; desenvolvendo temas que largamente circulavam
no contexto europeu , ofereciam mesmo "pastiches " de Baudelaire,
evocado, aliás, num longo poema da pena de Antero: estão

202
nesse caso as composições A velhinha , da lavra de Batalha Reis; da lavra
de Antero, As flores do Asfalto, Noites de Primavera no Boulevard e os
dois sonetos intitulados O Possesso (comentário, como se esclarece, das
Litanies de Satanf da lavra de Eça, o poema inconcluso guardado no
espólio de Batalha Reis, onde versos como
No teu seio macio como um coxim de penas
Há um ritmo untuoso dessas águas serenas
Onde mora a sereia 19

revelam o rasto deixado pelas sinestesias que em Baudelaire tantas vezes


traduzem o sonho da harmoniosa plenitude desencadeado por silhuetas
femininas de um exotismo coleante, tropical ou sofisticadamente "snob".
A sintaxe que articula as apresentações públicas de Fradique n'A Revolução
de Setembro e n'O Primeiro de Janeiro mostra, aliás, pela forma como é
discutida a personagem, o seu funcionamento humorístico na direcção
dupla posta em foco: se/no jornal lisboeta, se inculca como alvo do "bluff”
o contexto português da estafada literatura "oficial", ao dizer-se que o
"subjectívismo artístico" praticado "até à licença" pelo poeta da Guitarra de
Satã , dos Boleros de Pã e dos Ideais Selvagens , se erige contra "as peias
do formulismo e da tradição clássica ", e que o satanismo que ele cultiva
— expressão do "caótico" tempo moderno "de emancipação e transição" —
quase não teve eco nas "sociedades peninsulares", arreigadas a uma "fé
romana" atrofiada pelo "duplo despotismo civil e religioso, dirigido,
alimentado e explorado pelo monarquismo20, no jornal portuense, pela
pena de Antero, sugere-se como alvo do humor o sortilégio exercido sobre
os novos pelos cepticismos e complexidades da "turva" consciência moderna
de que dão prova as quatro composições fradiquianas, também de Antero,
dadas como extraídas da colectânea portadora do título jocoso Poemas do
Macadam. Combatendo o Fradique satânico e fazendo-se apóstolo da Arte
ao serviço do Ideal, escreve Antero:

19
In Joel Serrão, op. cit., p. 291.
20
. In Joel Serrão, op. cit, p. 258.
203
A poesia não pode ser o grito da agonia: é a voz mais pura e mais
íntima do coração: é mesmo nas vasca/s da morte, é sobretudo nas
horas da provação, um hino, carmen.
Não estará, pois, a nova escola, com todo o seu talento e originalidade
poderosa, arrastando a Arie para um caminho de perdição, no fim do
qual não pode estar senão a ruína do mundo moral e a morte da mesma
poesia?21
Que estratégia poderosamente convincente não era utilizar o crédito da
imprensa periódica, já detentora de grande poder, para assim discutir os
poemas de Fradique ern notas biográfico-críticas, também já de si fautoras
de uma forte ilusão de veracidade! Para gáudio dos coniventes no Mbluff’,
íoram muitos, parece, os que não souberam decodificar a brincadeira,
apesar dos exageros e das distorsões com que tinha sido montada, piscadelas
de olho aos leitores. Luciano Cordeiro, no Livro de Crítica, Arte e Literatura
Portuguesa, saído no próprio ano do "bluff, integra o poeta Ulurus nos
nomes cimeiros do Parnaso oitocentista, emparceirando-o com Byron,
Goethe, Heine, Espronceda, Musset, Poe, Baudelaire22!

Detentor de uma veia humorística sublinhada por quantos com ele


conviveram, Eça volta a utilizar Fradique na nova mistificação de 1870, O
Mistério da Estrada de Sintra, levada a efeito com a ajuda do Diário de
Noticias. É agora uma apresentadora feminina que no-lo faz conhecer, a
sonhadora e fátua condessa Luísa, cujo salão Carlos Fradique Mendes
frequenta, O delineio da personagem continua a torná-la representativa, sob
distorsões humorísticas, de atitudes modernas, num diálogo com a imagem do
poeta satânico que fora proposta ao público pelos textos vindos
anteriormente a lume; somam-se-lhe, todavia, elementos importantes, que o
posterior Fradique eciano virá a herdar. Adquire um vulto — um vulto que
lembra, como o do Stanislau de O Réu Tadeu o belo Satã, musculoso e triste, de
Ary Scheffer; continuando amigo de Baudelaire, usa um cuidado vestuário
singular -• quase uma obra de arte- pela graça; tem um passado de viagens e

21
In Joel Serrão, op. cit, p. 266.
22
Apud Joel Serrão. op. cit,, p. 340.
204
aventuras exóticas; habita em Paris, onde convive com os luxos do Império; é
detentor de um espírito que colhe pelo "imprevisto profundo e que fazia
cismar", um espírito que Luísa considera "verdadeiramente original e
superior", mas que outros rotulavam só de "excêntrico". A tudo isto, que
leva a Condessa a aproximá-lo de dois tipos sociais estrangeiros — o do
gentleman e o do dandy —, Fradique soma um traço onde ecoa a reacção
coeva à poética do mal baudelairiana, documentada pelo próprio poema
A Carlos Baudelaire de Fradique/Antero: a impassibilidade artística, esse
convívio friamente sereno com o horror, fruído como motivo estético. E do
diálogo provável com os poemas baudelairianos à beleza – "rêve de pierre",
"coeur de neige" unido à brancura dos cisnes — que resulta a subversão
grotesca da partida de Fradique para a guerra franco-prussiana movido pelo
desejo de ver "os campos de batalha ao luar, ou aos archotes", com curiosas
"atitudes de mortos"23. E Luísa cita, dele, um poema à Rigolboche - bem
próximo de outros do Fradique/Antero —, que, sempre em diálogo com
Baudelaire, alia à evocação do viver fátuo de uma "cocotte" chique a
insinuação das podridões fatais. Era esse "cómico lúgubre" (a expressão é
utilizada pela Condessa Luísa) — evidente em associações inesperadas,
como Vénus e Macadam, cancã e esquife, canalha e pálida , que tornava
Fradique um reputado "filósofo do boulevard'\ de cuja excentricidade dão
prova a história grotesca da paixão mística que nutrira por uma negra
antropófaga, seguida pelo cheiro 24 -eco paródico, com certeza, de poemas
baudelairianos como La Vie antérieure , La Géante e Parfum exotique —
ou o discurso paradoxal em que, louvando a mulher irlandesa, estabelece
uma relação metonímica entre a graça feminil e os lagos25

Mais aberta é, como vemos, neste Fradique de O Mistério da Estrada de


Sintra, a paródia cultural que representa: através dele, Eça ri de modelos
estrangeiros — sobretudo esse Baudelaire torturado, esteta e "dandy" — que
seduziam a sua geração; mas fá-lo no corpo de uma obra mistificadora que
pretende alvejar, uma vez mais, a Lisboa que cabeceava de sono: humor de duas
vertentes, pois, Já no final do romance e provavelmente com a pena de Ramalho,
sabemos que Fradique se encontra numa quinta dos subúrbios da

23
O Mist da Est. de Sintra, in Obras..., II, p. 1418.
24 Ibid., p.1413.
25
Ibid., p. 1414.
205
capital, escrevendo de parceria com F.- outra personagem um livro que, como
ambos prometiam "à natureza mãe" que vicejava a seus olhos, havia de levar
"ao extermínio todos os trambolhos a que as escolas literárias dominantes
em Portugal" tinham querido "sujeitar as invioláveis liberdades do
espírito"26.
Fradique ri-se, em suma, do grande público português, num riso que Eça
secunda, rindo todavia também da personagem que caricaturalmente
conglobava seduções sofridas pela geração nova a que pertencia; e assim’
fazendo, ria-se de si e dos seus confrades.
O Fradique que Eça, agora sozinho, retoma nos quinze anos terminais do
nosso século, enriquecendo-o com traços novos num amplo projecto
ficcional, permanece fiel ao estatuto humorístico com que a personagem
nasceu. De novo surge ela enxertada num jogo mistificador acreditado pela
imprensa, jogo cujas peças — um relato memorialístico e cartas — voltam
a manipular astutamente disposições discursivas geradoras de potentes
efeitos de veracidade27; e do êxito que tiveram no escamoteio da ficcio-
nalidade, por repletos que estivessem os textos de distorsões humorísticas,
dá conta a carta que Eça escreve à Esposa em Junho de 189028, dizendo-lhe
que Fradique ocupava todas as conversações da capital, e que o pior era.
crer-se que ele efectivamente existira, arrebatando as "simpatias" que
deveriam ir para o seu autor. Entre as estratégias mais propicias a forjar essa
ilusão, estava o aproveitamento ficcional de conhecidas personalidades
reais — Oliveira Martins, Antero, Ramalho, Guerra Junqueiro — dadas
como amigos de Fradique, amigos que o comentam e a quem ele escreve29

26
. Ibid., pp. 1435-36.
27
Comunicações apresentadas a este Colóquio - "A influência de Ximénès Doudan
n'A correspondência de Fradique Mendes", por A. Campos Matos, e "A correspondência
de Fradique Mendes —uma auto-necrografia", por Orlando Grossegesse — deixaram bem
em relevo comoja estràtégia disçursiya]utilizada por Eça de Queirós foi ao encontro de
práticas oitocentistas que tiveram alguma representação. ?
28
In Correspondência (Leitura, coordenação, prefácio e notas de Guilherme de Castilho),
vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 115.
29
Recorde-se que, nas cartas de Fradique que só postumamente vieram a lume, se encontra
uma dirigida a "E..." - o próprio Eça- e outra que, não mencionando explicitamente o nome
do destinatário, lhe seria com certeza também destinada: trata-se das cartas VI e V das
Cartas inéditas de Fradique Mendes.
206
A nova personagem emerge. do contexto europeu finissecular, um contexto
"decadentista", disposto ao espiritualismo e à fantasia, saturado do cientismo,
e que não trouxera, afinal, a solução dos mistérios do mundo, céptico ante o
Progresso burguês, que banalizava, triturava e amolecia. A excentricidade que
continua a marcá-la representa, como no primeiro Fradique, a concentração
caricatural de estereótipos epocais30 preparada de novo por uma apreciação
hiperbólica – a que o Narrador memorialista traça do homem que fora seu
34
amigo ("originalíssimo" 31 , "estranho" 32 , "incompa- rável" 33 ),
complementada pelo juízo de que a sua correspondência mostra "em
excelente relevo" a excepcionalidade superior de que fora dotado. Tais
matizes exageradamente superlativos inculcam-nos, como na confecção do
primeiro Fradique, que um jogo humorístico se vai estabelecer entre eles
e as cartas, concebidas pelo "autor implícito da ficção - Eça, para
simplificarmos — como textos que devem "desiludir" a expectativa de
"grandeza" suscitada pelos comentários do Narrador; assim se obtém que a
irrisão atinja não só a personagem do protagonista — Fradique —, mas
também a desse Narrador tão seduzido pelos ouropéis espirituosos do
amigo julgado inigualável . É, "mutatis mutandis ", a estratégia que já
presidira ao romance O Conde de Abranhos , deixado por Eça numa fase
embrionária: como o Escritor anunciava a Ernesto Chardron, em carta de

30
Por mais de uma vez sublinha o texto, embora de forma indirecta, que as ideias e atitudes
que Fradique representa circulavam na época. Assim, diz o Narrador que "estes turistas da
inteligência abundam em França e em Inglaterra" (p. 1015); J. Teixeira de Azevedo
(provável disfarce ficcional de J. Batalha Reis) define Fradique como um "guapo erudito",
cujas noções "são bocados do Larousse diluídos em água-de-Colónia" (p. 1010). Acrescente-
se que entre a personagem Nde Eça e Xavier Doudan ou Frédéric-Thomas Graingorge, o
dândi defunto de quem (Taine)se diz testamenteiro em Notes sur Paris, de 1867, há muitos
pontos de contacto, como provaram neste Colóquio os trabalhos de A. Campos Matos e
Orlando Grossegesse referidos na nota 27.
31
A Correspondência de Fradique Mendes, in Obras...»II, p. 1002.
32
Ibid., pp. 989, 995.
33
.Ibid., p. 1008.
34
O recurso ao conceito de "autor implícito" tornou-se frequente em narratologia após a -
obra de W. C. Booth, The rhetoric of ftction, de 1961 (trad. port., Arcádia, 1980). Por ele
se deàigna o; estratego do texto, não. confundível com. o narrador, porque, como sublinha
Booth, este é apenas um dos elementos que ele cria e do qual pode estar distanciado "by
large ironies". Vid. Vítor M. de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 83 ed., Coimbra,
Almedina, 1988, pp. 224-225; Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de
Narratologia, Coimbra, Almedina, 1987, pp. 39-41.
207
Junho de 78 (ou 79), o livro, que teria como sub-título Apontamentos
biográficos, e reminiscências íntimas por Z. Zagalo seu secretário particular,
seria constituído pela "biografia dum indivíduo imaginário, escrita por um
sujeito imaginário", tendo por fim "a exposição das pequenezes, estupidezes,
maroteirinhas, e pequices que se ocultam sob um homem que um país
inteiro proclama grande"; e esclarecia:

O Zagalo, secretário, é tão tolo como o Ministro; e o piquant do livro é


que querendo fazer a apologia do seu amo e protector, o idiota
Zagalo apresenta-nos, na sua crua realidade, a nulidade da personagem.
Mas para se avaliar este elemento cómico é necessário ler a cousa.

Sendo uma biografia, o livro é implicitamente um romance: porque o


Conde d'Abranhos, como homem, tem paixões, casa, é enganado, bate-
se em duelo, atravessa episódios grotescos ou dramáticos, etc., etc. De
tal sorte que o livro é verdadeiramente um pequeno romance,
apresentando (sic) sob uma forma nova, que creio não ter precedentes em
literatura. 35

Importante se tornava para o saldo global do romance que ele se inaugurasse,


pois, pela dedicatória que da biografia do Conde faz o biógrafo "à Exma.
Srª Condessa de Abranhos", deixando expresso um enorme débito de
veneração e gratidão ao "grande homem" público que toda a Lisboa chorara e
que ele tivera o privilégio de conhecer na intimidade.

Voltemos a Fradique. Infere-se do que fica dito que o "autor implícito" da


obra não subscreve os juízos admirativos do Narrador sobre o amigo e que
desautoriza humoristicamente a qualidade da sua correspondência Julgada
por aquele tão excepcional testemunho de "transcendente ironia", de "vivaz
invenção" e de "gosto” que nos diz, ao terminar o relato memorialista, ser
ela "uma consolação e uma esperança" para quem olhe "os tempos incertos e
amargos" do Portugal coevo 36 . Esclareça-se, aliás, que já alguns críticos,
confundindo Eça com o Narrador, levados pela mistificadora retórica
adoptada (muitos dos elementos que o Narrador dá sobre si, na biografia de

35
In Obras, vol. IV, pp. 1213-1214.
36
A Corresp. de F. M., in Obras..., vol. II, p. 1041.
208
Fradique, coincidem, como adiante lembraremos, com factos da de Eça),
manifestaram a sua perplexidade ante a verificação de não serem as cartas
de molde a fazerem o leitor anuir à tão gabada excelência desses textos.
Sem se aperceber do humor que articula o relato memorialístico com a
correspondência, escreve, por exemplo, João Gaspar Simões:

Mas Fradique era um grande homem e um grande homem só pode


ser retratado maior que o natural. Consciente disso, Eça de Queirós
afina a sua pena para um género de retratos à maneira de Plutarco. (...)
É essa novela que salva a Correspondência de Fradique Mendes. As
cartas que vêm depois só quando reflectem o talento satírico de Eça
de Queirós parecem, de; facto, escritas por um grande homem.

Figura fim de século, são fim de século as suas ideias e os seus


conceitos, e posto que muito brilhantes e elegantes, de maneira
alguma podem ser tomados como lucubrações de um espírito superior.
Quando muito, são obra de um jornalista mundano de lustre apreciável
Mau serviço prestado à memória de Fradique. Se Eça de Queirós se
limitasse a escrever a biografia idealizada que forma a pequena
novela preliminar da Correspondência, talvez acreditássemos que
Fradique fora um homem superior, realmente uma grande figura.
Mas lidas as suas cartas, a lenda desfaz-se.37

Geraldo Moser, por sua vez, apesar de admitir que se recolhe uma "impressão
de caricatura" da abundância dos "adjectivos superlativos" utilizados pelo
Narrador para enaltecer Fradique, afasta, todavia, a hipótese de que "a
exaltada admiração" com que ele nos é apresentado constitua "uma última
mistificação que o autor utiliza para troçar as suas próprias aspirações"; no
seu entender, a personagem — não um homem de acção, mas um esteta —
"encarna para sempre o tipo mais brilhante do intelectual português, o
homem que, devido à inocente ignorância e à menos inocente indiferença
em que vive a maioria dos seus contemporâneos, e também à sua altivez e
isolamento, se coloca na pouco invejável posição de profeta clamando no
deserto"; daí que, tomando a criação de Fradique como um "protesto (...)

37
In Eça de Queirós, Lisboa, Arcádia, Cot, 11A Obra e o Homem", 1961, pp. 190-192.
209
contra a vulgaridade e a mediocridade" reinantes no Portugal coevo, lhe
confira propósitos nacionalistas — a personagem parece-lhe um "símbolo
consolador" — confirmados pelo seu "relançamento", entre 1889 e 92, na
Revista de Portugal, destinada por Eça a vivificar intelectualmente o
País 38. Outros críticos, que não participam desta admiração por Fradique,
mas que também captam deficientemente o jogo humorístico que preside
ao todo textual de A Correspondência de Fradique Mendes, erigem a
personagem a porta-voz do seu criador, verberando um Eça que através dela
faria a exaltação do requinte e da curiosidade intelectual associados a
atitudes derrotistas. Assim procede António Sérgio, quando denuncia o
"topa-a-tudismo" de Fradique — "ideal quantitativo de dissipação do
intelecto"; e vai até ao ponto de afirmar, após dizer que as suas cartas,
"decerto encantadoras e de delicioso estilo", não mostram "o mais esvaído
traço da profundidade filosófica do epistológrafo":

Creio que esse caso de apresentar o Fradique como um pensador


profundo e ao mesmo tempo as cartas dele, escritas pelo próprio Eça
— é o único em que a este faltou "espírito", humorismo, sensatez e
autocrítica.39

António José Saraiva, depois de analisar com muita pertinência as atitudes


fradiquianas, conclui também, por sua vez:

O Fradiquismo é uma desistência de agir sobre o meio e as condições


sociais. Eça encontrou-se em face de problemas que ultrapassavam a
sua educação e a sua ideologia. (...) O seu proudhonismo ficava em
pouco, e não lhe oferecia soluções aplicáveis. A Evolução nada
remediava.

E talvez isto explique como Eça se foi metendo na sua concha e


segregando o Fradiquismo. (...) Eça desinteressou-se daquilo que não
cabia dentro do seu esquema do mundo e estava além da sua capacidade

38
Geraldo Moser, "O mito de Fradique Mendes. Eça e Doudaii", in Livro do Centenário
de Eça de Queiroz, Edições Dois Mundos - Portugal / Brasil, 1945, pp. 393-4, 396-97.
39
A. Sérgio, "Fradique'', in Ensaios, t. VI (Col. Obras Completas), Sá da Costa, 1976 (2a ed.),
pp. 69, 104, 120 (nota N).
210
de acção: "não há nada a fazer". E agora ou passeia pela terra longe
quanto pode do sebento mundo argentário, à maneira de Fradique, ou
vem contemplar árvores e plantar couves na sua quinta como Jacinto,
ou se escapa para a aventura como Gonçalo — de qualquer maneira,
enfim, se evade. 40

Se tantas leituras descuraram o jogo humorístico subjacente à totalidade


textual de A Correspondência de Fradique Mendes, não foi, porém, porque
faltassem subreptícias advertências do "autor implícito" da obra sobre o
distanciamento crítico/jocoso em que estava perante o protagonista e o seu
biógrafo. Essa instância, se não tem "voz" no discurso, é a responsável,
como ficou já dito, da estratégia global que configura a matéria narrativa,
organizando-a e modulando-a; ora todo o jogo textual do relato
memorialístico se desenrola por forma a despertar no leitor! a "reserva"
risonha perante biografado e biógrafo, uma reserva que se projecte sobre a
correspondência daquele, por este seleccionada. Já ficou em relevo que o tom
hiperbólico das apreciações do Narrador sobre Fradique é de molde — pela
sua própria desmesura — a fazer desconfiar o leitor da "validade" que deva
conceder-lhes; e ratificam essa desconfiança quer os comentários críticos,
citados pelo Narrador, que Fradique merece a alguns "amigos" portugueses
(retomaremos um pouco adiante a questão), quer os incidentes diegéticos
imaginados pelo autor implícito, conformados de maneira a suscitarem
um riso distanciador a respeito do par constituído por biógrafo e "herói".

O Narrador, preso metonimicamente ao meio português, ganha a comicidade


de quem se deixa "embasbacar" pela novidade exógena: vemo-lo atrapalhar- -
se burlescamente perante o homem que tem em Paris o "seu centro" e o "seu
lar"41, espiar-lhe a elegância e a "originalidade intensa"42, recear a sua
própria canhestrice ("e eu que nesse instante, defronte do espelho no
patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a
frescura da minha rosa..."43), enganar-se nos juízos que formula levado

40
As ideias de Eça de Queirós, cap. V, ”0 Fradiquismo", Lisboa, Centro Bibliográfico,
1947, pp. 137-139.
41
A Corresp. de F, M., p. 990.
42
lbid., p. 993.
43
Ibid., p. 993.
211
pelo culto apressado do diferente44, entregar-se, misturando "realidade" e
ficção, a sonhos grotescos45, conferir ao seu herói "proporções grandiosas" à
medida que o ouve dissertar sobre o "babismo"46. Os hiperbólicos elogios
de Fradique colocados na boca deste "avaliador" assim desautorizado pelo
cómico não serão para ser tomados, pois, como uma dístorsão avantajante
provinda do embaimento que o toma ante o que julga a "civilização"
requintada? uma distorsão, em suma, idêntica às que (tão caricaturalmente
acentuadas) o levam a transfigurar num Júpiter "vestido de flanela azul" o
homem "gordo", "mole" e de "barbas encaracoladas" que se "alastrava"
numa cadeira de braços no Hotel Sheperd do Cairo — ou numa estátua de
Praxíteles "que usasse um colete de Madame Marcel" a bela dama loura que
o acompanhava — ou num magnífico "C'est le Dieu!" o bárbaro "Cest le
deux!" com que o criado negro que servia o macarrão identificara o rotundo
Tonante, ou seja, Théophile Gautier 47?

Quanto à personagem de Fradique, ela continua, fiel ao estatuto dos


avatares anteriores, a representar, como ficou já dito, uma concentração
caricatural de atitudes epocais: desenvolve, complexifica e inscreve em
contexto finissecular a paródia da silhueta "dandy" já esboçada no Fradique
de O Mistério da Estrada de Sintra , essa silhueta que Carlyle, no Sartor
Resartus (O Alfaiate remendado) 48 ou Baudelaire, em Le dandy (um
capítulo do ensaio Le peintre de la vie moderne)49, deixaram "retratada"

44
Lembre-se que o Narrador recorda a fascinação que sobre ele tinham exercido as
Lapidarias de Fradique—a obra que, em arte, depois dos poemas de Baudelaire, mais o tinha
impressionado; mas que lembra ainda que, ao dizê-lo àquele "homem genial", o ouvira não
só retorquir que "não considerava assináveis esses pedaços de prosa rimada, que decalcara,
havia quinze anos, na idade em que se imita, sobre versos de Leconte de Lisle", mas também
recusar admiração ao "maganão das Flores do Mal", cuja fortuna, dizia, seria menos perene
do que a de Boileau (Ibid., pp. 994-995).
45
ibid., p. 999-1001.
46 ibid. p. 1004-1005
t
47
Ibid., p. 998-1001.
48
Esta obra parece-me estar em bem estreita relação intertextual com o projecto de Eça:
desenvolvendo uma estratégia produtora de potentes efeitos de veracidade, ela apresentasse
como uma biografia do Professor alemão Teufelsdröekh, autor de uma obra sobre a
filosofia do vestuário de que vão sendo citados fragmentos.
49
Este ensaio, inspirado pela obra do pintor Constantin Guys que Baudelaire apreciava muito,
foi publicado, na imprensa em 1860 e depois integrado em Curtosités Esthétique

212
em páginas célebres; é a que corresponde ao homem distinto, culto, rico e
sem profissão, movido acima de tudo - diz o poeta de Les Fleurs du
Mal — pelo "besoin ardent de se faire une originalité", mas conten-
do-se "dans les limites extérieures des convenances". E Baudelaire ex-
plica, acentuando aspectos que quadram perfeitamente com Fradique;

Le dandysme n’est même pas (...) un goüt immodéré de la toilette


et de l’élégance matérielle. Ces choses ne sont pour le parfait
dandy qu’un symbole de la supériorité aristocratique de son
esprit. Aussi, à ses yeux, épris avant tout de distinction, la
perfection de la toilette consiste-t-elle dans la simplicité absolue,
qui est, en effet, la meilleure manière de se distinguer. Qu'est-
-ce donc que cette passion qui, devenue doctrine, a fait des
adeptes dominateurs, cette institution non écrite qui a formé une
caste si hautaine? (...) C’est une espèce de culte de soi-même qui
peut survivre à la recherche du bonheur à trouver dans autrui,
dans la femme, par exemple; qui peut survivre même à tout ce
qu'on appelle les illusions. C’est le plaisir d'étonner et la
satisfaction orgueilleuse de ne jamais être étonné. Un dandy peut
être un homme souffrant; mais, dans ce dernier cas, il sourira
comme le Lacédémonien sous la morsure du renard.

On voit que, par certains côtés, le dandysme confine au spiritualisme


et au.stoicisme. Mais un dandy ne peut jamais être un homme vul-
gaire.

(...) De là naít, chez les dandys, cette attitude. hautaine de caste


provocante, même dans sa froideur. Le dandysme apparaít surtout
aux époques transitoires oú la démocratie n'est pas encore toute
puissante, ou l’aristocratie n'est que partiellement chancelante et
avilie. Dans le trouble de ces époques, quelques hommes déciassés,
dégoútés, désoeuvrés, mais tons riches de force native, peuvent
concevoir le projet de fonder une espèce nouvelle d’aristocratie,
d'autant plus difficile à rompre qu’elle sera basée sur les facultes les
plus précieuses, les plus indestructibles, et sur les dons célestes que
le travail et 1'argent ne peuvent conférer. Le dandysme est le dernier
éclat d'heroísme dans les décadences. (...) Mais, hélas! la marée

213
montante de la démocratie, qui envahit tout et qui nivelle tout, noie jour
à jour ces derniers représentants de Forgueil humain (...).50

Fradique caricatura, pela excentricidade e pela inoperância, este requinte


e este aristocratismo intelectual do dândi sublinhados por Baudelaire. A
rejeição do vulgar, a vibração estética, o culto da forma, a ironia, a
curiosidade desinteressada por países e doutrinas, o grande saber histórico
e etnográfico, o passadismo — manifestações características do dandismo
“Fin de siècle”—concretizam-se nele em opiniões e atitudes desconcertantes
que o transformam num cómico "hiper-dândi": lembrem-se as escovas de
prata, as camisas de seda e o paletó escuro que usa no próprio norte de
África; a sua entrega ao "babismo"; a necessidade que proclama da recolha
da Ciência aos Santuários para que fique defendida da "curiosidade das
plebes" e da proliferação consequente da anarquia rnoral; a urgência que
também diz de combater o empastamento do espírito, sujeito à "infecção de
banalidade" causada pelas "ideias feitas", com purgas de vida selvagem
entre Hotentotes nus51; a caridade que exerce através do criado Smith; o
amor que vota ao povo português não só pelas qualidades, mas também
pelos defeitos (a sua "morosa paciência de boi manso", a sua "calma
aquiescência à vassalagem com que.depois do Senhor Rei venera o Senhor
Governo"...), que o conservam "pitoresco" nomeio da odienta modernização
universal52 o seu desejar consequente que o País se mantenha como nos
tempos marialvas e fradescos, para poder vir retemperar cá a fibra cansada
da monotonia europeia.

Por caricatural que o autor implícito do A Correspondência... assim torne


o requinte fradiquiano, não deixa, porém, de o dar como "un héroisine dans
les décadences" (para retomarmos a expressão de Baudelaire), cuja
positividade é marcada quer pela expressão de estesias e sentimentos
depurados, quer pela denúncia justiceira da maldade, da tacanhez e do mau
gosto (e que irrisão pela caricatura pratica por sua vez a personagem!). No

50
Baudelaire, Lepeintrede la vie moderne, cap. IX, Le dandy, in Curiosités Esíhé fiques (Oeuvres
Complètes, Plêiade, 1954, pp. 906-908).
51
Ibid,. p. 1013
52
Ibid., p. 1025.
214
amor verdadeiramente cortês por Clara, no "enternecimento infinito" com
54
as crianças necessitadas53 nas "impressões" colhidas no contacto com a
simplicidade rural portuguesa ("a penetrante bondade das coisas" no
sonho, bem finissecular, com um estilo capaz de traduzir "desde os mais
fugidios tons de luz até os mais subtis estados de alma" (um estilo "como
ainda não há"55), .Fradique mostra a fina qualidade do seu espírito, amante
dos "encantos diversos de Linha e de Cor" 56, da nobreza intelectual, da
simplicidade autêntica que aquiete e tonifique a alma. Lógico é, pois, que
se torne um juiz severo quer do amolecimento e da banalização trazidos pelo
progresso (lembre-se quanto lamenta, por exemplo, que a "saloia
macaqueação" de Paris57 coloque em risco de extinção o pitoresco pátrio),
quer da mediocridade do nosso meio, criador de "tipos" miserandos como
Pacheco, o comendador Pinho, o P.e Salgueiro; no campo da estesia
literária, congraça-se com o mencionado desejo de um estilo dotado de nova
ductilidade sugestiva a rejeição das estereotipias obsoletas, da efusão
sentimentalista, do atulhamento desordenado, do casticismo excessivo, da
"erudição decorativa", dos maneirismos subtis — pendores literários, todos
estes, que aquele "céptico de finas letras"58 julgava incapazes de atrair uma
verdadeira "clientela de espíritos"59 (recorde-se que se Fradique admira a
simplicidade tensa do "sublime" Acto I de Frei Luís de Sousa60, critica o
lirismo "apaixonado e dolorido" 'd la Musset61, a fluidez inane do
"decadismo"62, ou a profusão de um Camilo, que, "com o verbo completo
duma raça na ponta da língua, hesita, tataranha, amontoa, retorce, embaralha e
faz um pastel confuso"63).
O distanciamento humorístico do "autor implícito" em relação a Fradique
mostra-se da forma mais clara quando atinge pela irrisão a própria

53
. Ibid., p. 1029.
54
Ibid., p. 1083 (carta a M. me de Jotiarre, datada da Quinta de Refaldes)
55
Ibid., p. 1036.
56
Ibid., carta IX (a Clara), p. 1069.
57
Ibid., p. 1023.
58
Ibid., p. 1031.
59
Cartas Inéditas de Fradique Mendes (in Obras..., III, p. 850).
60
Ibid., p. 864.
61
Ibid., p. 851..
62
Ibid:, pp. 842-844.
63 Cf, no mesmo volume, a carta A E... p. 861.
9

215
positividade da personagem. Votos aberrantes , como os de ficar a "velha
Palestina" — "Terra dos Milagres" — preservada da invasão da via férrea64,
ou de vir a ter o Brasil como Imperador, para manter-se "brasileiro", um
"moço forte" que detestasse o livro65 resultam da justa censura à banalização
causada pelo progresso; uma exemplificação burlesca (pelos "desníveis"
semânticos e estilísticos) segue a referência à caridade fradiquiana pelos
fracos, mostrada como um sentimento estendido budistamente "a tudo que
vive":

Uma ocasião em Paris, correndo ambos a uma estação de fiacre, para


nos salvarmos dum chuveiro que desabava, e seguir, na pressa que
nos levava, a uma venda de tapeçarias (onde Fradique cobiçava umas
Nove Musas Dançando entre Loureirais), encontrámos apenas um
cupé, cuja pileca, com o saco pendente do focinho, comia
melancolicamente a sua ração. Fradique teimou em esperar que o
cavalo almoçasse com sossego — e perdeu as Nove Musas. 66

O maior deslustre humorístico da positividade da personagem vem, contudo,


de lhe não ser dada pelo autor implícito da obra a capacidade de se
concretizar em opções duradouras e produtivas que comprometam o ser.
Fradique define-se a si próprio, mesmo depois do "dégel", como "um
homem que passa, infinitamente curioso e atento", "um turista"67, que, todo
entregue à "função intelectual", se não dá a nenhuma religião nem a nenhum
sistema, ainda que tudo queira prospectar, porque o seu interesse dura só
o tempo em que das investigações resulte "alguma emoção ou surpresa
intelectual"68; aberto ao divino, bom, desejoso de justiça social, limita a
sua acção a socorrer com esmolas, através de Smith, calamidades conhecidas

64
. Ibid., carta a Bento de S.
65
Ibid., carta a Eduardo Prado, p.1108.
66
Ibid., p. 1030.
67
Corresp. de F. M., Obras..., II, p. 1015. Alude o Narrador (p. 1028) à evolução de que deu
conta em Fradique, a partir de 1880, e que um amigo francês comum denominava por "le dégel
de Fradique": a que o teria levado de uma aparente impassibilidade (traduzida no fragmento,
citado, de uma carta datada de 1855) à manifestação de estar aberto ao “leite da bondade
humana", como dizia outro amigo de ambos. Ora é no fragmento de uma carta a Oliveira
Martins, de 1882, citada pelo Narrador, que Fradique se define como um "turista”.
68
. Ibid., p. 1018.

216
pelo jornal69; o lindo amor por Clara deperece, "como tudo o que vive" (e
é para o manter na imaginação como um "deslumbramento incomparável"
que empreende uma longa viagem, furtando-se a vê-lo agonizar 70); enfim,
não publica nenhuma obra (em aberto fica se terá escrito alguma), reduzido
ao silêncio pela "sublime ambição" — é o Narrador quem fala — "de só
produzir verdades absolutamente definitivas, por meio de formas
absolutamente belas"71. O "programa" que preside à criação da personagem
parece, em suma, querer mostrá-lo como fluídico e inoperante; e se o
Narrador — esse Narrador desautorizado pelo cómico — fala elogiosamente
do "tão constante e claro propósito de abstenção e silêncio" do seu amigo72,
Alceste , um jornalista parisiense ficcionalmente dado como autor de um
artigo necrológico consagrado a Fradique, lamenta que da sua riqueza
intelectual - "bloco de ouro em que poderia ter talhado um monumento
imperecível" — não tenha ele tirado senão "curtas lascas, migalhas, que
espalhou às mãos cheias, conversando pelos salões e pelos clubes parisienses:

Todo esse pó de ouro se perdeu no pó comum. E sobre a sepultura de


Fradique, como sobre a do grego desconhecido de que canta a
Antologia, se poderia escrever: - Aqui jaz o ruído do vento que passou
derramando perfume, calor e sementes em vão...73

A cómica e inoperante singularidade dada pelo Eça de A Correspondência...


ao seu "hiper-dândi", tão admirado pelo Narrador, mas apreciado e criticado
por outros "juízes" que ele cita, não pode deixar de ser dada, mercê da
estratégia da obra, um meandroso fito de auto-crítica e de balanço risonho
do percurso da sua geração, levado a cabo pelo Escritor quando, a partir de
meados da década de 80, se reúne com alguns dos seus confrades no grupo
"jantante" dos "Vencidos da Vida"74. Pelo jogo montado entre realidade e -

69
Ibid., p. 1029
70
. Ibid., p. 1103.
71
Ibid., p. 1037.
72
Ibid., p. 1037.
73
Ibid., p. 1032.
74
Já em 1941 Gustavo Sequeira estabelecia uma conexão entre Fradique e os "Vencidos da Vida":
cf. Fradique Mendes, símbolo dos “Vencidos da Vida”, conferência organizada pelo jornal O
Século (Lisboa, Biblioteca Nacional, 1942).
217
ficção no interior do universo romanesco, a obra propõe efectivamente ao
leitor que conexione esse "universo" com o Autor e o seu círculo intelectual:
são amigos do Narrador e de Fradique — amigos com quem este dialoga
epistolarmente — muitos dos companheiros de geração de Eça (só Marcos
Vidigal e J. Teixeira de Azevedo não têm correspondentes reais, em bora o
último pareça identificável com J. Batalha Reis); na interrelacionação
diegética de Fradique com o Narrador e esses amigos ecoam factos da
biografia de Eça e dos seus companheiros; o vulto físico e intelectual de
Fradique apresenta facetas que quadram com Eça e que ele sublinhou em
vários dos seus camaradas (muitos dos pontos de vista da personagem — o
cepticismo religioso, a admiração por Jesus e Buda, a consciên cia do
incessante devir histórico, a crítica dos malefícios do parlamentarismo, a
repulsa pela Lisboa afadistada "traduzida do francês em calão”75— são
partilhados pelos homens de 70). Por esta via, parece querer-nos dizer o
Escritor que Fradique — o "turista" das ideias, o fino céptico, o esteta,
ediado em Paris - representa um "modelo” cultural que perpassa, colhendo
graus diversos de fidelidade e de adesão, na atitude intelectual do escol que
vinha denunciando, desde meados da década de 60, a tacanha inércia da
sociedade portuguesa; dado o distanciamento humorístico mantido em
relação ao herói e à admiração que lhe vota o Narrador, parece pretender,
todavia, sugerir-nos também que o aristocratismo estético e intelectual
concretizado pelo dândi, tendo facetas válidas que lhe dão jus a emitir juízos
pertinentes sobre a realidade portuguesa e epocal, não é o fermento capaz
de modificar o que diagnostica certeiramente como maléfico ou medíocre.
Assim parecendo significar que se cruzam com Fradique, numa intercepção
maior ou menor, Eça e muitos dos seus confrades geracionais, A
Correspondência de F. M. será, sob muitos ângulos, uma homenagem
risonha — como o fora, na data próxima de 1885, a republicação de
O Mistério da Estrada, de Sintra — à amizade e solidariedade dos homens
de 70, um eco "da graça, da vivaz invenção, da transcendente ironia, da
fantasia, do humorismo e do gosto"76 que vivificavam as suas relações (e
quantas páginas magníficas de Eça, em cartas ou textos memorialísticos,

75
Corresp. de F. M., p. Í023.
76
. A citação é extraída da Corresp. de F. M. (p. 1041), correspondendo às qualidades que o
Narrador, na conclusão do seu relato, vinca elogiosamente no espírito de Fradique.
218
nos dão o clima desse convívio!). Mas não deixará de traduzir em Eça
alguma má-consciência , provinda, naquele final da década de 80 em que o
País atravessava tempos tão "incertos e amargos"77, da apreensão de ser um
brilho que se ficava no brilho essa inteligência irónica, esse gosto requintado,
esse vasto saber que ele e os seus amigos —transformados em desenganados
e jocosos "Vencidos da Vida" — tinham adquirido. O autor implícito de
A Correspondência... parece sorrir de Fradique e do Narrador que tanto o
admira como Afonso da Maia sorri de João da Ega e de Carlos, apreciando
a sua riqueza intelectual, a sua graça e o seu diagnóstico certeiro sobre o
marasmo português, mas lamentando que moços tão capazes se fiquem pela
sedutora espuma do espírito; subvertida por esse sorriso fica a conclusão,
emitida pelo Narrador, de serem "uma consolação e uma esperança" para
o País – por provarem que ele "não é inteiramente um cadáver que sem
escrúpulos se pise e se retalhe" – a vitalidade intelectual e a "transcendente
ironia" atribuída a Fradique num grau máximo 78.

Circunstanciemos um pouco mais. Da aproximação inculcada entre o


Narrador e o próprio Eça, são prova, como se disse já, as similitudes criadas
entre circunstâncias diegéticas e a biografia do Escritor: as relações do
Narrador com Fradique iniciam-se em 1867, em Lisboa (quando o Narrador,
como Eça e os seus amigos, anda entusiasmado com Baudelaire e Leconte
de Lisle, e Fradique, o autor das Lapidárias – identificado com o poeta dado
a conhecer ao público português em 69 — se lhe afigura um desses poetas
"magnificamente novos", que faziam "a notação fina e sóbria das graças e
dos horrores da Vida [...] ambiente e costumada" 79); intensifica-as um
reencontro, em 1871, no Egipto (que Eça visitou na mesma data), seguido
por "seis anos de intimidade intelectual"80, assegurada por uma
correspondência regular; a ligação mais chegada, mas sempre mantida no
plano da discussão de ideias, começa em 1880, em Paris — Fradique está
então nos cinquenta anos e no período do seu "dégel"81 -, continuando até
1887, aí, em Londres, ou em Lisboa (lembremos que o diplomata Eça de

77
Assim se exprime o Narrador, ao concluir o seu relato (ibid., p. 1041).
78
Corresp. de F. M., Obras..., II, p. 1041,
79
Ibid., p. 984.
80
Ibid,, p. 1002.
81
Ibid., p. 1028.
219
Queirós vive no estrangeiro e que a "fantasia” readquire uma grande
presença na sua obra a partir desse ano de 80, que é o da publicação de
O Mandarim); em 1888—ano em que se inicia a publicação de A Correspon-
dência de F. M. — tem lugar, necessariamente, a repentina morte do
herói82.
Fradique parece por sua vez "fabricado" com traços reconhecíveis em Eça
e nos seus amigos, traços vincados, nestes, pelo Escritor em conhecidas
páginas: a personagem nasce nos Açores, como Antero; tem "as qualidades
eminentes de corpo e de coração" que Eça encontrava em Ramalho83; a
distinção dândi (a que não falta a cabaia chinesa84), a vasta curiosidade, o
imenso saber que a personagem alia com a resistência à civilização
trivializadora e o amor ao torrão natal hiperbolizam traços que o Escritor
possui e que ele salienta em Ramalho85 ou em Eduardo Prado — esse
brasileiro sediado em Paris, mas sempre com "fina saudade" dos seus
cafezais, que tinha corrido o mundo, possuía um criado inglês e era
e simultaneamente "homem de biblioteca" e "homem da natureza" 86 ; em

82
Ibid., p. 1031.
83
Ramalho Ortigão (Carta a Joaquim de Araújo) , in Notas Contemporâneas (Obras.... II, p. 1381.
Ibid., p. 1391: "A figura de Ramalho (...) tem no meio da figura anémica e derreada dos seus
contemporâneos, o mesmo destaque vivo que tem o seu espírito entre os espíritos neutros e apagados. Tem
a saúde, a firmeza, a força, a linha desempenada, a marcha sólida, o movimento ágil”.
84 Ibid., pp. 994, 1026.
85 Ibid., p. 1385: "...Ramalho entrava na ciência com a exaltação dum convertido. Reconhecera que o

moderno homem de letras deve possuir, em uma generalidade suficiente, os princípios do movimento
científico contemporâneo; — e, como um guerreiro que num arsenal se arma rapidamente para uma batalha
urgente, começou a prover-se dos elementos essenciais da filosofia, da economia, da moral, da política, da
história, das belas-artes, da ciência, da indústria. (...) Ia do socialismo à astronomia, da história à química,
lendo hoje um estudo sobre o jubileu de Bonifácio VIII, amanhã um compte rendu sobre a refinação dos
açúcares. Enchia-se de noções, de factos, de pontos de vista, de ideias.”
86
Eduardo Prado , in Notas Contemporâneas (Obras..., II, p. 1625). App. 1618-19, lê-se:
"Prado foi um viajante, do tipo pensativo de Anacársis (...). Viajou vastamente, viajou
intensamente: não como vagabundo, mas como filósofo, para quem o mundo constitui
aquele livro que louva Descartes, o mais proveitoso de folhear, ainda que o mais dificultoso de
compreender, porque esse vive, e os outros livros são as almas embalsamadas Toda a Europa,
a Arábia, a Palestina, o Egipto, a índia, a Austrália, as duas Américas, as ilhas do Pacífico,
terras fortemente estudadas, finamente assimiladas, lhe penetraram no espírito para sempre";
e a pp. 1624-25: "As dilatadas viagens, as residências nas capitais de mais sedução, as afeições
floridas longe da Pátria, têm encontrado nele uma natureza magnificamente impermeável, não já
ao cosmopolitismo, incompatível com individualidade tão acentuada - mas mesmo aquela
influência das civilizações muito fortes, muito criadoras, muito rebrilhantes. Este homem, que há
vinte anos trilha o boulevard, não tem (louvado ele seja, e por tal louvar louve ele a Deus!) um traço
mínimo de boulevardismo, E o seu espírito, sempre em movimento dentro do movimento
intelectual da França, permanece tão livre e próprio da sua raça como se sobre ele nunca pousasse
sequer a sombra amável duma ideia francesa (...). Não! não há nele nenhum francesismo
220
87
Ramalho exalta Eça a capacidade de ver verdadeiro pela qual Fradique
seduz o Narrador88; se a "vivaz invenção", a "fantasia", o "humorismo",
são qualidades da personagem, Eça, tão "espirituoso" ele próprio, elogia com
entusiasmo o espírito de Ramalho (a "disposição cerebral que faz
descobrir o cómico [...] através das exterioridades convencionais e das
fórmulas consagradas"89) e louva Eduardo Prado "pela inata alegria, pela
vivacidade inventiva, pela veia ricamente cómica, pela
abundância,delicioso humorismo da anedota"90 91.
O Narrador sublinha que todos — ele e os amigos —, "apesar das desseme-
lhanças de temperamentos ou das maneiras diferentes de conceber a vida”,
tinham "sentido a sedução" desse Fradique "adorável" explicita, contudo,
algumas reservas que o dândi simultaneamente suscitava (e assim consegue
o "autor implícito" de A Correspondência... que, no interior da ficção, seja
discutida a validade do aristocratismo intelectual, "turístico" e inoperante,
encarnado pela personagem, e que seja "representada" também a relação,
mais aderente ou mais crítica, dos homens de 70 com a atitude cultural
caricaturada): Oliveira Martins, tomando embora Fradique pelo "português
mais interessante do século XIX", considerava que lhe faltava na vida "um
fim sério e supremo", pelo que receava que, com tantas qualidades "em si

- todo ele se apresenta moralmente vernáculo. Até esta civilização, sempre em fermento, o
fatiga. E quando mais rebrilha a actividade social de Paris ou Londres, mais ele lamenta,
com fina saudade, o verde-negro sossego do seu Brejão". Eça terá provavelmente conhecido
Eduardo Prado em Londres, em 1884. Uma rápida informação sobre este brasileiro pode colher-se
na entrada que lhe é consagrada no Dicionário de Eça de Queiroz, assinada por A. Ca mpo s Ma
t o s , o organizador e coordenador da obra (Caminho, 1988).
87
88
89
90
A Cor. de F. M., in Obras...., II, p. 1008.
91
Ibid., p. 1008.
221
excelentes", ele só viesse "a deixar um vaudeville" 92 ; Carlos Mayer
partilhava dessa opinião, considerando-o "um génio com escritos"94;
Guerra Junqueiro dizia ter Deus modelado Fradique à pressa, amassando
um bocado de Heine, de Chateaubriand e de Brummel com "pedaços
ardentes de aventureiros da Renascença" e "fragmentos ressequidos de
sábios do Instituto de França", entornando depois sobre a mistura
"champanhe e tinta de imprensa93; o "nervoso" e "apaixonado" J. Teixeira
de Azevedo falava do "linfatismo crítico" do autor das Lapidárias e, tão
irritado pelos seus requintes quão pouco impressionado pelo seu saber,
comentava, embora achando-o também o mais interessante dos portugueses,
que as noções do "guapo erudito" eram "bocados do Larousse diluídos em
água-de-colónia". Dos nomes da Geração de 70 que, tendo convivido com
Eça, assim se recobrem de ficcionalidade, só a Ramalho Ortigão é
imputada uma longa apreciação exclusivamente positiva sobre Fradique
(considera-o "o mais completo, mais acabado produto da civilização"94),
ainda que acabe por lhe chamar "monstro", ao ouvi-lo desejar, na saudade
do "velho Portugal", que o País não perdesse a configuração marialva95;
quanto a Antero, nenhum juízo lhe é atribuído, embora o Narrador nos diga
que o seu herói conhecera e apreciara, com "elevação e carinho", o poeta das
Odes Modernas96 (o relato memorialístico integra um fragmento de uma
carta de Fradique a Antero).
Inculcando, pois, o "fradiquismo” como atitude epocal que roça, tocando
uns mais do que outros, pelos homens de 70, "dialogando" com as suas
posições, o romance parece, todavia, aproximá-lo sobretudo do próprio
Eça, tornado tão confundível com o Narrador e coincidente com tantos
traços do próprio Fradique (até o estilo do Autor e do seu dândi são
idênticos). Não julgo, porém, à luz do que fica dito, que à personagem do
hiper-dândi possa ser dado o cariz de um "esboço heteronímico", como
sustenta Carlos Reis97. A heteronímia, enquanto manifestação de um "eu"

92
Ibid., p. 1009.
93
Ibid., p. 1009.
94
Ibid., pp. 1008-1009.
95
Ibid., p. 1024.
96
Ibid., pp. 1009, 1016-1017.
97
Veja-se o trabalho de Carlos Reis citado na nota 1.
222
que se vê cindido em identidades que adquirem autonomia biográfica,
subjectiva, ideológico-cultural e discursiva, não se compadece com a
paródia que subjaz à construção de Fradique, com o jogo humorístico que
articula a personagem e o Narrador, ou ainda com a abrangência geracional
apesar de tudo conferida à sedução que o dândi emana.

O que leva Carlos Reis a afirmar que Fradique só "embrionariamente"


encena "uma estratégia de feição heteronímica"98 é verificar que ele não
atinge o factor "definitivo" da "plena vigência de um heterónimo" — a
autonomia discursiva: a personagem apenas escreve cartas que poderiam ser
crónicas do próprio Eça (e algumas foram-no de facto, como já se disse). Ora, a
meu ver, a coerência do projecto humorístico de A Correspondência de
Fradique Mendes, mesmo se ignoramos qual viesse a ser a sua versão última,
implica precisamente que o perfil de Fradique não comporte a sua realização
como autor, atendo a sua manifestação escrita a uma prosa epistolar que
se torna confundível com textos cronísticos de Eça (aliás, também
concebidos por vezes como epístolas99)- Se, como tentei mostrar, a personagem
representa uma paródia de ideias e atitudes correntes no fim- -de-século que
ecoariam na atmosfera inteligente, fantasista, crítica e chistosa da elite
em que Eça se integrava, "jogando" com as feições intelectuais e o gosto
dos seus elementos, Fradique não pode criar "forma", algo de
consistentemente seu no plano indivisível do conteúdo e da expressão
("vala comum" chama sintomaticamente a personagem, em cujo sorriso havia
"vinte séculos de literatura"100 ao cofre em que guarda os seus papéis, por
julgar com "desconsolado orgulho", como diz o Narrador, serem "pobres e
sem brilho no mundo os pensamentos que para lá arroja- va"101); no plano da
escrita, o que condiz com Fradique — parente de João da Ega— é ser um
interlocutor que, na forma "ligeira e dispersa" da carta, propícia ao vazar da
"espuma" intelectual, "radiante e efémera"102, ora dê expressão aos sentimentos
e gostos depurados de "um céptico de finas

98
. Ibid., p. 57.
99
Tal sucede com vários dos textos integrados nas Notas Contemporâneas.
100
Corresp. de F. M., in Obras.,., II, p. 992.
101
Ibid., p. 1033-1034.
102
Ibid., p. 1040. O Narrador, a quem pertencem as expressões citadas relativas às cartas
frâdiquianas, refere, aprovando-a, a opinião de A Ices te sobre a correspondência: "c'est son génie
qui mousse”.
223
letras"103, ora dê réplica, muitas vezes paradoxal, a crenças e atitudes de
homens de 70 — e até do próprio Eça: considere-se, por exemplo, como é
logicamente a Oliveira Martins — que deixara patente o culto do heroísmo, o
papel relevante dado às personalidades fortes e a defesa do cesarismo
esclarecido em obras como História da República Romana, cuja publicação
(1885) pouco precede o lançamento de A Correspondência...— que
Fradique, na carta III, exalta a "soberana fronte de calmo e incomensurável
orgulho” da múmia de Ramsés II, inviável nos tempos modernos em que
"não há lugar para que uma alma se afirme”, traçando, a propósito,
comentários sério-jocosos sobre as fisionomias "amolgadas” dos poderosos
contemporâneos, como esse Bismarck (com o seu "focinho de buldogue
acorrentado") em quem o historiador via o César do século XIX, promotor de
uni benéfico socialismo de estado 104 ; ou como é a Guerra Junqueiro -
detractor violento das exterioridades e das hipocrisias da Igreja e advogado da
fé simples, inspiradora de uma moral de bondade — que Fradique
retorque, na carta V, com a demonstração paradoxal da imprescindibilidade das
práticas materiais que assegurem ao povo uma união fácil com Deus; ou como
é a Eça (uma redução à inicial escamoteia o nome), acusado de galicismos
e de pobreza lexical, que ele exalta o mérito de ter "ressuscitado o purista" —
"tipo" caturra da nossa "patologia social" —, condena a "forma copiosa e
folhuda" e advoga a tensão conseguida pela simplicidade105.

Em abono da sua interpretação de Fradique como um esboço heteronímico,


Carlos Reis lê a morte da personagem —causada pelo frio que apanha certa
noite na Praça da Concórdia, depois de recusar vestir, à saída de uma festa, a
peliça de um general que levara por engano a sua106 - como uma
"insinuação final da alteridade fradiquista, entendida como identidade
perfeitamente definida e autónoma107! À luz do humor que, a meu ver,

103
. Ibid,, p. 1031. A expressão pertence ao Narrador.
104
lbid„ pp. 1045-1046.
105
Cartas Inéditas de Fradique Mendes, in Obras III, pp. 858-864
106
Cor. De F.Obras..., II, p. 1031.
107
Op. cit., p. 59. Acrescenta Carlos Reis: "Quer dizer: negando-se a envergar uma indumentária
que não é a sua, Fradique de certo modo recusa-se a ocultar a sua identidade sob um disfarce
alheio; só que esse gesto custa-lhe a vida: que o mesmo é dizer, quando finalmente parece em
condições de afirmar a sua identidade, Fradique desaparece da cena dos vivos (como se um tal
gesto afirmativo fosse excessivo e inaceitavelmente ousado) e fica à mercê da posteridade."
224
preside ao romance, encontro outras "insinuações" na configuração dada ao
falecimento do herói. Aquela- forma de morte vem coroar a isotopia do
vestuário desenvolvida em toda a obra como um meio de vincar a silhueta
paródica de dândi conferida a Fradique: recorde-se como a representação do
físico da personagem, feita pelo Narrador, atenta nas suas roupas108, como
a correspondência do herói se inaugura sintomaticamente por uma carta
Ao Visconde d e A . T . sobre o alfaiate de Londres que mais requintadamente
lhe modelaria o corpo, e como outra carta — A E. Sturmm, alfaiate109
acusadora da confecção "banalizadora e achatante" de uma sobrecasaca,
viria presumivelmente a integrar-se no romance. Este último texto —
lembrado com certeza do Sartor Resartus de Carlyle, onde se apresenta a
"Philosophy of Clothes" do Professor Teufelsdröckh — desenvolve uma
teoria sobre o vestuário como índice e fautor da personalidade:
Nada influencia mais profundamente o sentir do homem, do que a
fatiota que o cobre. O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e
ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir os encantos dos
decotes e da valsa; e o máis extraviado mundano, dentro duma robe
de chambre, sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão.

Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre o pensar. Não


é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em
escarpins de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul
leva inevitavelmente a ideias conservadoras.

Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro,


lisa, insípida, rotineira, pesabunda — está simplesmente criando um
país de conselheiros!

Dentro dessa confecção banalizadora e achatante, o poeta perde a


fantasia, o dândi perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o
jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a
fé — e perdendo cada um o relevo e a saliência própria, fica tudo

108
Ibid., pp. 992, 994, 998, 1009, 1026.
109 Cartas Inéditas de F. M.s ín Obras..., III, pp. 839-841.
225
reduzido a esse cepo morai que se chama o conselheiroi A sua
tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do
País!"110

Não dizia Baudelaire que a preocupação do dândi com a "toilette" era o


símbolo da "supériorité aristocratique.de son esprit? Fradique veste a
casaca preta requintadamente talhada por Pool ou a cabaia chinesa, que lhe
insuflam uma índole dândi; e a sua recusa de vestir a peliça do general -
um general, ainda por cima, "rabugento e catarroso" — constitui uma forma
burlesca e paródica de aduzir a morte do herói acentuando o que ele
representa — um "pó de ouro" humano....

Ao ludismo humorístico – que joga com a ambiguidade — se deve, direi


concluindo, a dificuldade da leitura de A Correspondência de Fradique
Mendes. Ainda hoje debatem os críticos o sentido a dar ao Quixote: riu
Cervantes do sonhador idealista de cavalarias ou "simpatizou" com a sua
personagem? ou riu, "simpatizando" todavia? Daria a minha opção à última
modalidade de riso, mais matizada; e é ela que me parece estar presente no
Eça que concebeu o jogo textual de que Fradique emerge.

110
Ibid., p. 841.

226
A Correspondência de Fradique Mendes — uma "auto-necrografia”

Orlando Grossegesse

Em 1926, o escritor francês Valery Larbaud considerou Correspondência


de Fradique Mendes "comme un rondpoint d’oü on domine tout 1'oeuvre
d’Eça de Queiroz (...) oú on trouve l’explication et le résumé des tendances
générales de son oeuvre"111. Face a este juízo lúcido, a História literária
oficial viu noutros textos as "tendências gerais" da obra de Eça de Queiroz
que considerou principalmente realista, deixando todas as restantes
tendências na periferia deste núcleo. Só nos últimos dez anos,
aproximadamente, A Correspondência de Fradique Mendes despertou
interesse quanto à sua qualidade de texto literário. A nova tendência é, sem
dúvida nenhuma, devida à intenção de fazer de Fradique Mendes um
precursor dos heterónimos pessoanos (Reis, 1984).

No meu entender, importa reconsiderar a posição tradicionalmente marginal


de A Correspondência de Fradique Mendes. No entanto, a precipitada
ligação deste texto com Pessoa ofusca a análise da sua disposição discur-
siva peculiar (i) dentro da obra do próprio Eça e (ii) em relação ao horizonte da
recepção contemporânea.

Costuma-se dizer que Eça se baseou, após a fase do satanismo romântico,


em Proudhon e Taine, iniciando a sua fase realista (p. ex. Simões, 1973; 300
seg.). Não existe tal sucessão. Eça leu Hippolyte Taine mais atentamente
que os filólogos posteriores que só chegaram até ao prefácio da Histoire de la
littérature anglaise, onde são explicadas as categorias conhecidas de race,
milieu e moment112. Taine era, no entanto, um escritor muito mais romântico
do que deixam entrever as três categorias. Em resumo, Taine e Eça são
escritores que vestiram em algum momento os fatos de positivista

111
"Écrits dans une cabine du Sud-Express" (Lisboa, Fev. 1926) em: Valery Larbaud, Jaune bleu
blanc.
112
A vasta recepção de Taine por parte de Eça de Queiroz, a partir de 1867 (tradução de
Voyage en Italie), documenta Elza Miné (1986; 99 seg.).
227

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