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A derrota de Lenine

Francisco Martins Rodrigues


«Estamos em condições bem mais difíceis do que durante a invasão directa dos guardas brancos».
«O Estado não funcionou como prevíramos, o carro não obedece ao condutor». «Os comunistas
julgam dirigir a máquina burocrática mas é ela que os conduz.»
A dramática intervenção de Lenine perante o XI Congresso do partido, em Março de 1922, traça um
momento-charneira nos destinos da Rússia. No horizonte desenham-se já os contornos da futura
URSS de Staline; para trás fica o fracasso da democracia dos sovietes.
Poderia a revolução ter sido salva com outra política? Para responder temos que pôr de lado
raciocínios viciados que a historiografia oficial soviética fez aceitar durante décadas como
indiscutíveis, à sombra da imagem dum Lenine dotado de poderes mágicos para mudar o curso da
História.
O álibi Staline
A primeira dessas fraudes é a que diz respeito à passagem do poder para Staline. Os revisionistas
começaram a carpir desde 1956 que, «se tivessem sido seguidas as últimas recomendações de
Lenine quanto à substituição de Staline poderiam ter-se evitado as consequências nefastas do culto
da personalidade». Que pena Lenine não ter podido «designar um candidato digno para o cargo de
chefe do partido e do estado»!
Nunca será de mais mostrarmos o que há de reaccionário neste argumento. Para começar, a noção
autocrática da designação de sucessor, bem reveladora da espécie de «democracia socialista» que a
nomenklatura conseguia conceber. Depois, como é que um partido com uma tão rica experiência
revolucionária e uma tão notável plêiade de dirigentes, à frente de uma sociedade em ebulição,
chegara ao ponto de ficar à mercê de um herdeiro «indigno»? Teremos que engolir a história da
«tremenda perversidade» de Staline e da «cegueira inacreditável» com que todo o corpo dirigente se
lhe submeteu?
Na realidade, os revisionistas sempre fingiram ignorar que a designação de «um candidato digno» à
sucessão de Lenine se cingia na prática à opção entre as duas primeiras figuras, Staline e Trotsky,
qualquer deles com perfil de «homem forte». A escolha de um outro membro do CC que não tivesse
qualidades de ditador abriria um período de tremenda incerteza e ameaças de cisão.
E isto, só por si, comprova que a revolução estava perdida e ninguém sabia como lhe acudir. Nem
mesmo Lenine.
Em busca dum super-aparelho
Tornou-se tradicional citar as prevenções de Lenine contra os métodos autoritários de Staline e a
proposta da sua substituição como secretário-geral. Com isso tem-se obscurecido o facto de que as
atenções de Lenine nos derradeiros meses de vida iam para o reforço do aparelho.
De facto, o que choca nos seus últimos escritos é a insistência nas questões internas da direcção, no
aperfeiçoamento do aparelho de Estado, preocupação inabitual em quem sempre procurara o fio
condutor da luta de classes. Pressentindo a ameaça de cisão na direcção do partido, faz nas suas
últimas mensagens uma série de propostas para ampliar e fazer reunir mais amiúde o comité central,
reforçar os poderes dos órgãos centrais de controlo e planeamento, seleccionar mais
cuidadosamente os dirigentes…
No seu último escrito defende, como fecho de abóboda das instituições soviéticas e garante da
vitória da revolução, a fusão da Comissão Central de Controlo, órgão partidário, com a Inspecção
Operária e Camponesa, um dos ministérios de Staline. Deixa instruções minuciosas sobre a
reorganização da IOC, que deveria tornar-se «uma instituição exemplar», constituída por 300 a 400
especialistas, «muito bem pagos» e dotados de plenos poderes para supervisionar a gestão superior
do Estado e a «organização científica do trabalho»; especifica as normas de admissão dos
candidatos a estes postos, a atribuição das suas funções, etc.; — quer dizer, um corpo de
superadministradores, competentes e incorruptíveis, capaz de vigiar e depurar o aparelho de Estado
burocratizado.
E certo que Lenine não se ocupa apenas com esse plano utópico de um sistema de autocontrolo do
aparelho estatal. Nas suas últimas cartas, notas e artigos há o plano da cooperativização, apelos para
uma revolução cultural, a denúncia dos sintomas de chauvinismo russo, a necessidade de elevar a
participação das massas na actividade do Estado…
Mas a vida não lhe consente ilusões: de imediato, escreve, o centralismo terá que prevalecer sobre a
democracia, porque as massas ainda não estão preparadas para exercer a autogestão socialista; numa
fase posterior chegará a vez de a democracia ter prioridade sobre o centralismo. Que as massas não
estavam preparadas para exercer a democracia socialista num país de cem milhões de pequenos
camponeses, totalmente arruinado e faminto, em que «o proletariado deixou de existir como classe»
(Lenine, 33, 59), era a evidência mesma; mas a centralização férrea significava que o regime se
opunha ao jogo dos mecanismos económicos e à vontade maioritária da população, um e outra
apontados para a restauração capitalista. Como poderia sair daqui uma «fase posterior» de
autogestão socialista? Lenine iludia-se ao querer divisar, no fim do túnel do capitalismo de Estado,
a passagem ao socialismo.
O «Partido de tipo novo»
Outra das falsificações habituais era a tese de que o partido comunista só nos anos trinta teria
mudado de carácter, sob o efeito do «culto da personalidade». Aparece-nos hoje claro, pelo
contrário, que o partido monolítico stalinista nasceu no X Congresso sobre os escombros do velho
partido revolucionário bolchevique. Não ainda na sua forma acabada, mas já dotado dos
mecanismos essenciais.
Argumentava-se habitualmente na nossa corrente «marxista-leninista» (tal como entre os
revisionistas e trotskistas) que Lenine apenas determinou a dissolução das plataformas e fracções
por se terem tornado um perigo à unidade interna, «um luxo inadmissível» (alguns notavam mesmo
que Lenine concebia essa medida como meramente temporária e que ressalvava a continuação do
debate no partido, o que é verdade); Lenine patrocinou a eleição de oposicionistas para o comité
central; além disso, dizia-se, o congresso aprovou por unanimidade um plano de democratização
interna e de desburocratização do partido, restabelecendo as eleições a todos os escalões. Se esse
plano tivesse sido posto em prática…
Mas, justamente, o compromisso solene de democratização serviu de cobertura ao que houve
realmente novo no congresso e que foi um movimento irresistível para a supressão das
divergências. Por isso, o resultado efectivo do congresso foi que a democratização ficou letra morta
e a medida «temporária» de proibição de plataformas e fracções passou a lei inviolável do partido,
alargada sucessivamente à proibição de toda a divergência, ao policiamento interno, por fim ao
terror.
Disse-se que «o partido não podia tolerar as ameaças de cisão que o assaltavam, com uma
virulência até então desconhecida». Mas porquê esse pavor da ruptura justamente quando acabava a
guerra civil e os riscos de contra-revolução tenderiam a diminuir? Não tinha havido debates acesos
e públicos quando o poder parecia prestes a ser derrubado?
Como explicar que «a autoridade imensa da velha guarda» tornasse o partido «frágil, vulnerável a
qualquer cisão»?
A verdade é que o partido, sem o saber, mudava radicalmente de natureza. Já não era a vanguarda
das massas em luta pela revolução mas a coluna vertebral do poder, e um poder com uma base
social muito limitada, obrigado a proteger-se da pressão espontânea das massas para o retorno ao
capitalismo. Nesta nova situação, as normas internas do velho partido bolchevique já não serviam.
Mesmo antes de serem subvertidas, sob o cuidado de Staline, nas receitas monolíticas do chamado
«partido leninista de tipo novo», começaram a ser desmanteladas, ainda sob a direcção de Lenine.
É assim que, no ano seguinte, já afastada a crise política (debate sindical, Cronstadt, passagem à
NEP), Lenine insiste na necessidade de um partido mais unido, reclama de novo que se elimine o
espírito de fracção, apoia Trotsky, Staline e Kamenev contra os grupos da «oposição operária» e do
«centralismo democrático» e congratula-se com «a maior unanimidade conseguida pelo partido».
«Enganam-se os que falam de senilidade do partido», diz. Mas era de senilidade que de facto se
tratava. Eleito Staline para secretário-geral, acelerou-se a agonia dos vestígios de democracia
interna (Staline ainda teve que tolerar polémicas até à expulsão de Trotski, mas eram já discussões
com o adversário amordaçado). O futuro lugar de Staline como «herdeiro de Lenine» ficou-lhe
assegurado quando ele compreendeu que, em última análise, tudo giraria em torno de uma forte
cadeia de comando.
Teorização do stalinismo
Os trotskistas não gostam que se lhes recorde que a teorização do futuro Estado stalinista foi feita…
por Trotsky. Trabalho forçado, poder dos directores, Estado policial, foram por ele justificados em
1920, não como medidas excepcionais em situação de catástrofe mas «porque não é possível passar
da anarquia burguesa à economia socialista sem ter recorrido (…) aos métodos coercivos de
organização económica». Se a coacção económica só por si não chega para estimular a afluência de
mão-de-obra ao mercado de trabalho, há que instituir o trabalho obrigatório.
Convicto da «impossibilidade da ulterior existência de uma sociedade baseada no trabalho livre»
(!), Trotsky investe contra os «preconceitos liberais» nessa matéria e propõe que «se considere toda
a população do país como um reservatório de força trabalhadora, a organizar numa ordem
rigorosamente estabelecida», e que o poder central imponha às administrações locais metas de
trabalho a realizar, para que estas façam a mobilização das forças de trabalho. Isto não eram planos
de gabinete. Ele já tivera ocasião de os experimentar durante a mobilização militar dos ferroviários,
justificada pela situação de guerra, mas que lhe aguçara o desejo de quebrar a espinha aos sindicatos
recalcitrantes.
Defende também com vigor o retorno à direcção unipessoal nas fábricas, argumentando que «a
ditadura do proletariado traduz-se pela abolição da propriedade privada e não pela forma de
direcção das empresas». Excluindo explicitamente a gestão colectiva, que apelida de «conselho de
ignorantes», Trotsky afirma que ela só interessa à «burocracia operária, retardatária», e faz a
apologia eloquente do «administrador avançado, firme e consciente» que, «tendo a fábrica na mão,
procura provar a si e aos outros que é capaz de dirigir» (!).
Tendo percebido, com a sua habitual argúcia, que o sistema de direcção operária era nocivo para o
novo tipo de regime «soviético», Trotsky batia-se sem complexos pelo triunfo dos directores, que
viriam a ser o núcleo da burguesia estatal. Convicto de que o problema do regime «não é de excesso
de burocracia mas de ausência de uma burocracia eficiente», ele diz que «a via do socialismo tem
que passar pela mais alta tensão da estatização. (…) Assim como a lâmpada brilha com uma chama
mais viva antes de se apagar, também o Estado, antes de desaparecer, reveste a forma de ditadura do
proletariado, isto é, do mais impiedoso governo, de um governo que imperiosamenle abarca a vida
de todos os cidadãos».
Este tipo de discurso permite situar o verdadeiro alcance da reviravolta operada por Trotsky a partir
de 1923, quando ergue contra Staline a bandeira do antiburocratismo e da liberdade de debate
partidário. Indignava-se por não se ter apercebido de que a militarização do trabalho iria exigir um
partido militarizado. A verdade é que, em 1922 ainda Staline e os seus amigos se opunham às
propostas de Trotsky, justamente por serem demasiado «centralizadoras e burocráticas». Depois
Staline percebeu que eram eficazes e indispensáveis…
Para nós, hoje, a velha polémica entre stalinistas e trotskistas não faz sentido. Fossem quais fossem
as diferenças de perspectivas, eles completavam-se, cada um no seu domínio, como os construtores
do regime. Se Trotsky tivesse alcançado o poder, teria necessariamente percorrido uma trajectória
de ditador semelhante à de Staline porque a edificação de uma economia capitalista estatal só podia
ser feita pela violência e exigia o arrasamento implacável das conquistas revolucionárias da classe
operária.
Quanto a Lenine, como é conhecido, pôs desde logo sérias reservas à febre totalitária de Trotsky.
Mas Lenine não rompeu com Trotsky por causa do seu plano de militarização do trabalho, como
não rompeu com Staline, por causa do seu projecto de militarização do partido. Apoiou ume outro,
tentando limitar-lhes os excessos, porque, em alternativa, só via a desagregação do poder.
Lenine entre dois fogos
Em fins de 1920 estalou no partido a polémica que desde 1918 viera crescendo entre os chefes
sindicais e os burocratas do aparelho económico do Estado. Desencadeada pela Oposição Operária,
a discussão prolongou-se e radicalizou-se na Conferência dos Sindicatos, no Congresso dos
Sovietes e no X Congresso do Partido. Com fortes apoios na classe operária, a Oposição Operária,
chefiada por Chliapnikov, reclamava a a entrega da gestão da economia a um congresso dos
produtores da Rússia.
Ao ver-se publicamente atacada por Trotsky, que defende uma rigorosa estatização dos sindicatos, a
oposição apresenta-se no congresso do partido com uma plataforma completa: reactivação dos
comités de fábrica; princípios igualitários nos salários; acabar com a invasão de burocratas no
aparelho administrativo; preenchimento dos cargos por eleição; «ampla circulação da informação,
liberdade de opinião e de discussão, direito de crítica no interior do partido e dos sindicatos» como
meios para pôr termo ao «sistema burocrático dominante» (Kollontai).
Lenine demarca-se de ambas as tendências. Faz ver que a transmissão dos direitos de administração
económica aos sindicatos, na situação existente, conduziria à fragmentação e à destruição. Condena
por outro lado o autoritarismo de Trotsky, observando que o seu «Estado operário» era uma ficção,
e que os operários tinham que se defender do Estado, dada a sua «deformação burocrática».
As críticas de Lenine a uns e a outros eram justas mas a vida não consentia posição intermédia. No
ano seguinte, já em plena NEP, Lenine reconhecia que era preciso «defender por todos os meios os
interesses de classe do proletariado na luta contra o capital» e que, nas empresas estatais, havia
«oposição de interesses quanto às condições de trabalho entre a massa dos operários e o director»,
mas mesmo assim insistia nos «plenos poderes à direcção das empresas»; se se queria pôr de pé a
produção, era preciso deixar claro que os sindicatos «não têm nada que se imiscuir na gestão das
empresas». Os «esquerdistas» foram assim condenados como o «perigo principal» e as propostas da
Oposição Operária rejeitadas como um «desvio anarco-sindicalista (que) conduz à queda da
ditadura do proletariado».
Deste modo, a plataforma equilibrada de Lenine, que o congresso aprovou, acabou por ser uma
etapa intermédia no caminho que Trotsky esboçara e que Staline materializou, com a absorção de
todos os órgãos democráticos de massas pelo aparelho burocrático. A história iria demonstrar que a
centralização também conduzia, por outras vias, à «queda da ditadura do proletariado» que Lenine
temia.
— E se, por hipótese, Lenine tivesse tomado partido pela Oposição Operária, não se poderia ter
evitado o pior? — perguntam ainda hoje os adeptos da descentralização. Não cremos que isso
tivesse modificado substancialmente o curso dos acontecimentos. Poderiam ter-se desencadeado
convulsões do tipo da posterior «revolução cultural» chinesa, mas, a prazo, também não era isso que
arrancaria a revolução russa ao impasse em que caíra.
Não havia forças económico-sociais mínimas para instituir a autogestão socialista -eis o facto que
teimosamente se recusam a encarar os «esquerdistas». A vida só permitia um regime de capitalismo
de Estado, e este passava forçosamente pela concentração do poder nas mãos de uma nova
burguesia burocrática. Fosse como fosse, porém, as propostas da Oposição Operária exprimiam de
forma idealizada os anseios socialistas da classe operária e a sua ansiedade perante a confiscação
inexorável do poder a que vinha sendo sujeita, em nome da necessidade de garantir a sua ditadura
de classe. E isso deve ser tido em conta para compreender a evolução dos antagonismos sociais.
Cronstadt
O esmagamento da revolta de Cronstadt é um episódio-chave na agonia da revolução. Não porque o
levantamento anunciasse a «terceira revolução, a autêntica», como proclamaram os seus adeptos
anarquistas, mas porque, ao recorrer à força das armas contra um movimento que exprimia a
insatisfação de operários e camponeses, o partido bolchevique deu um passo irreparável para
destruir os seus laços com as massas e se tornar o órgão da burguesia burocrática nascente.
A rebelião criava, sem dúvida, uma situação de emergência. Forças burguesas inimigas podiam
instalar-se às portas de Petrogrado; a frota do Báltico podia ser perdida; a contemporização podia
servir de estímulo ao reacendimento da guerra civil. Mas fica de pé a questão: a que ponto chegara a
decadência do regime para ser possível ao comité da frota do Báltico, um dos tradicionais baluartes
revolucionários, levantar milhares de trabalhadores contra o governo em nome de exigências
democráticas, como novas eleições para os sovietes por voto secreto, liberdade de propaganda, de
imprensa e de reunião, libertação dos presos políticos socialistas?
A revolta de Cronstadt foi o ponto alto de uma vaga de hostilidade ao governo bolchevique, que,
após o fim da guerra civil, percorreu a Rússia com greves e tumultos, levando mesmo à declaração
do estado de sítio em Petrogrado. Saudada até hoje pelas correntes anarquistas e anarquizantes
como o momento mais avançado da revolução — «em 1921, a revolução chegara a uma
encruzilhada: tomar a via democrática ou seguir a ditatorial» (Ida Mett); «tentativa de união do
proletariado e do campesinato contra a burocracia» (Ciliga) —, apresentada como a resistência
popular à «contra-revolução bolchevique», ela foi sobretudo um movimento) pequeno-burguês pela
restauração do mercado. Os anarquistas sempre caem na ratoeira da vontade («concreta» expressa
por grupos de trabalhadores em cada local e no plano imediato, sem querer saber se ela compromete
os interesses globais da classe a longo prazo, ideia que lhes parece demasiado («abstracta». As
reivindicações económicas dos rebeldes giravam em torno da liberdade de comércio; as suas
exigências políticas apontavam para a restauração da democracia burguesa, as suas proclamações a
favor de «sovietes sem comunistas» correspondiam à táctica da burguesia na emigração, que
procurava derrubar os comunistas em nome da liberdade dos sovietes para depois liquidar estes. A
«via democrática» conduziria a breve prazo ao desmembramento e pulverização do poder e, após
mais ou menos episódios intermédios, ao triunfo da contra-revolução. Lenine tinha boas razões para
ver nela uma «contra-revolução pequeno-burguesa».
Mas este levantamento conseguiu arrastar na sua esteira fracções importantes do proletariado
porque os trabalhadores perdiam a esperança numa «via socialista» que começava pela delegação
do poder nos aparatchiks e em concessões aos burgueses.
Cronstadt revelou a decomposição do movimento revolucionário de 1917-18. A correlação de forças
invertera-se: agora era a pequena burguesia que conduzia uma parte do proletariado.
A partir daqui, a sobrevivência do regime exigia também a repressão sobre os operários. Foi o que
Lenine exprimiu numa constatação que iria inspirar o futuro do regime: «O descontentamento e
efervescência entre os operários sem partido fazem da democracia uma palavra de ordem para o
derrubamento do poder soviético» (32, 198). E isto ao mesmo tempo que se tornava forçoso fazer
concessões económicas à pequena burguesia.
Cumpria-se assim a previsão dos «comunistas de esquerda»: «Para introduzir este sistema (o
capitalismo de Estado) o Partido Comunista terá de se aliar à pequena burguesia contra os operários,
arruinar-se-á como partido do proletariado» (Komunist, Abril 1918).
O pacto com o diabo
A adopção da NEP causou comoção no partido. Houve desde logo quem a acusasse de «aliança
contranatura», «pacto com o diabo», «confissão de falência». E Lenine, ao contrário do que mais
tarde tentaram fazer-lhe dizer os «leninistas», reconheceu que se tratava dum recuo e duma derrota.
«A pequena burguesia infligiu ao poder na Primavera de 1921 uma derrota económica mais grave
do que as derrotas militares que lhe tinham infligido os generais brancos» (33,14). Era imperioso
reconhecera inviabilidade da edificação socialista imediata (a táctica do assalto frontal) e passar à
táctica do cerco, isto é, recuar para o capitalismo de Estado.
A vida não consentia escolhas. Em 1917-18 fora possível fazer aceitar à esmagadora maioria
camponesa o poder dos sovietes e o governo bolchevique a troco da distribuição da terra e da
promessa de paz. Depois, os camponeses tinham suportado o pesadelo de uma nova guerra e a
requisição forçada das colheitas, como preço para evitar o regresso dos guardas brancos com os
seus massacres. Mas, ganha a guerra, já não admitiam mais requisições, nem direcção operária, nem
via socialista; queriam liberdade de negócio, simplesmente, e não havia outro recurso senão dar-lha.
Lenine ainda esperava que as concessões ao camponês negociante pudessem ser neutralizadas, no
plano económico, com uma rede de cooperativas «que conduziria por si ao socialismo»; e no plano
político, desde que houvesse «maturidade do proletariado e das massas trabalhadoras», poderiam
impor-se limites rígidos ao capitalismo privado. Mas como essas condições não se verificaram, foi
preciso transferir todo o poder para o aparelho de controlo estatal.
Assim, à pergunta de Lenine: «Quem levará a melhor com a NEP? Proletariado ou pequena
burguesia?», ia ser dada uma resposta inesperada: nem um nem outro. O ganhador ia ser uma classe
em formação, que ainda se ocultava sob a aparência de simples administradora do Estado proletário.
O crescimento da pequena burguesia nepista ia gerar, por antagonismo, o crescimento do aparelho
burocrático. O capitalismo de Estado ia fugir a todas as veleidades de controlo e tornar-se o motor
de toda a sociedade.
Ao longo dos anos, as escolas anarco-comunistas acusaram Lenine de ter herdado de Kautsky a
concepção do capitalismo de Estado como uma espécie de antecâmara do socialismo, de ter
acreditado no contra-senso de um capitalismo dominado politicamente pelo proletariado. Alguns
acusam Lenine de ter sido um arauto mais eficaz do capitalismo de Estado do que o próprio
Bukarine. Como de costume, não se preocupam em expor a sua alternativa viável àquilo que foi
uma opção desesperada.
Três anos após a tomada do poder, o regime dos sovietes, esvaziado politicamente, estava reduzido
a tentar ganhar tempo, na esperança de qualquer viragem favorável na Europa. E ganhar tempo
significava fazer concessões de todas as espécies: desde a entrega aos alemães de grandes extensões
de território à transferência do poder dos sovietes para um aparelho de Estado centralizado, à
criação de um exército convencional, à confiscação da gestão operária nas fábricas em benefício
dos directores, à concessão de privilégios aos quadros, à repressão…
Beco sem saída
Porque se voltaram os audaciosos revolucionários de 1917 para a esperança desesperada num
superaparelho, estruturado em torno de um partido monolítico? Porque os acontecimentos
escapavam a todo o controlo e manifestavam uma estranha tendência para exigirem soluções que se
excluíam mutuamente.
Era necessário dar rédeas à burguesia nepista para o restabelecimento da produção e do comércio
mas havia o perigo de deixar que ela afogasse o regime na exploração capitalista, na especulação e
na corrupção; impunha-se elevar a responsabilidade dos sovietes mas mais urgente era apertar o
controlo do partido sobre eles para não se tornarem focos de dissidência; tinha que se reconhecer
direitos sindicais aos operários mas introduzir o taylorismo e não permitir a intromissão no poder
sem partilha dos directores; combater a invasão envolvente da burocracia… com novos
departamentos burocráticos; fomentar o cooperativismo mas defender-se do ascenso inevitável dos
mencheviques que as cooperativas traziam consigo; combater o nacionalismo dos georgianos mas
não deixar crescer o chauvinismo centralista russo; reforçar a composição operária do partido mas
dar mais poderes ao comité central…
O regime chegava a um impasse insolúvel. Era essa a origem de posições que antes seriam
impensáveis em Lenine. Para romper o cerco comercial, advoga a amizade com os coronéis da
Turquia e condena os «preconceitos dos operários de Baku que põem em risco a concessão dos
petróleos a um grupo estrangeiro porque não querem trabalhar para os capitalistas»; propõe a «fusão
dos meios dirigentes dos sovietes com os do partido» (32, 183) (ou seja, na prática, a dissolução dos
sovietes); condena a «atmosfera de discussões que põe em perigo a ditadura do proletariado»; etc.
Aquilo que Lenine insiste em chamar de «ditadura do proletariado» é já nos últimos meses da sua
vida o poder duma «vanguarda consciente», gerente nominal dos interesses do proletariado, mas
acorrentando-o à edificação do capitalismo.
A tragédia da revolução russa não foi «ver-se privada do seu chefe no momento em que mais
precisava dele», como lamentavam os revisionistas. Com ou sem chefe, a revolução estava perdida
porque, depois de ter desbravado o caminho para o capitalismo, não dispunha de forças para passar
ao socialismo. E este facto priva também de sentido a acusação anarquista de que a revolução teria
sido «esmagada pelo poder autoritário bolchevique», acusação a que se associam, com matizes
diversos, anarco-sindicalistas, luxemburguistas ou «conselhistas». Antecipação histórica brilhante, a
revolução proletária carecia ainda das premissas económico-sociais para se consumar. Chamado a
primeiro plano para cumprir as tarefas da revolução democrática que uma burguesia demasiado
débil e cobarde não se atrevia a fazer, o proletariado foi a seguir de novo empurrado pela História
para a retaguarda, e com ele também o próprio partido bolchevique.
Deste fracasso só os social-democratas deduzem, com o seu «marxismo» burguês, que «os
bolcheviques não deviam ter tomado o poder visto que não havia condições para o socialismo». Se
não fosse pela revolução proletária, nenhuma outra força era capaz de arrancar a Rússia às
sobrevivências medievais e de a trazer para a época moderna. A liderar essa grande revolução e a
defendê-la até onde pôde ser defendida estiveram os comunistas e o seu chefe Lenine. Razão
suficiente para continuarmos a inspirar-nos no leninismo, contra a social-democracia, o anarquismo
e o revisionismo.
Publicado na revista comunista portuguesa Política Operária nº 38, janeiro-fevereiro de 1993.

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