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Alexandra Tedesco*
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil
MICELI, Sergio. Sonhos da periferia: inteli- jadas de modo simultâneo. Busca-se, com
gência argentina e mecenato privado. 1. ed. isso, apreciar o livro a partir de um proce-
São Paulo: Todavia, 2018, 184p. dimento análogo ao que o autor direciona a
seus objetos, objetivando, desse modo, que
Obedecendo às escolhas teóricas da essa resenha crítica contribua para destacar o
obra, não se pode acusar o leitor de con- caráter frutífero das considerações de ordem
trariar o autor ao vincular a publicação do teórica e metodológica que perpassam a obra
livro Sonhos da periferia (2018) a um proje- publicada pelo sociólogo e professor titular
to mais amplo, que perpassa a trajetória in- de sociologia na Universidade de São Paulo,
telectual do sociólogo Sergio Miceli e que, Sergio Miceli.
como argumentaremos, parece, em seus O livro está dividido em três partes.
termos, se constituir como mais um lance Além da introdução constam um capítulo
de um robusto projeto existencial, capaz de sobre as vanguardas argentinas e brasileiras
dotar de sentido heurístico as escolhas de sob prisma comparativo, um artigo sobre a
recorte e as operações de enquadramento revista Sur e, finalmente, um capítulo de-
que organizam o livro. O ponto de vista que dicado às trajetórias de Alfonsina Storini e
aqui se assume está construído a partir de Horacio Quiroga. Esta resenha acompanha-
um repertório conceitual afinado com o do rá os argumentos na ordem de sua exposição,
autor, o que permite que o argumento do no intuito de dar prioridade às operações de
livro, bem como a investida que a publica- enquadramento e às escolhas de recorte que
ção representa num campo específico — a parecem costurar o ordenamento dos temas,
saber, aquele da sociologia dos intelectuais fornecendo assim os subsídios para um ba-
e da história intelectual que tanto impulso lanço final.
ganhou nos estudos latino-americanos das Na introdução, Miceli explicita que
últimas décadas a partir da circulação dos a escolha do recorte, a década de 1920, se
aportes de Pierre Bourdieu —, sejam cote- justifica pelo fato de que nesse contexto
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X020040013
Resenha recebida em 5 de março de 2018 e aceita para publicação em 26 de junho de 2018.
* Doutora pela Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento
de História, Programa de Pós-graduação em História, Campinas/SP — Brasil. E-mail: alexandra.tedesco@
gmail.com. http://orcid.org/0000-0001-7840-5014.
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dial das Letras. Esse é, aliás, o primeiro lidade de Boedo e Florida, compõem o argu-
dos objetos aos quais Miceli se dedica em mento de Miceli. Tudo se passa como se os
sua tarefa comparativa, na medida em que brasileiros se tivessem deixado contaminar
a relação de Brasil e Argentina com as ex- menos pela vida pública do que os argen-
-metrópoles se apresenta distinta não apenas tinos pelas relações que os cercavam, emol-
em grau mas, sobretudo, em efeito no cam- durando um quadro em que “em ambos os
po — a escolha do título do livro já está, a países, o campo intelectual foi sendo mo-
essa altura, plenamente consonante com as delado por forças sociais de elite cujas bases
escolhas teóricas do autor. O fato de que, na de sustentação material e simbólica estavam
Argentina, a ausência de iniciativa pública desigualmente sediadas na esfera estatal e no
em matéria de cultura tenha sido resiliente setor privado” (p. 37).
chama atenção como dado constitutivo da Após esse estudo comparado, o segundo
predominância do mecenato privado, que capítulo, que retoma alguns pontos do livro
amplia sua influência conforme a literatura de 2012, Vanguardas em retrocesso, intitula-se
argentina vai reforçando seu intercâmbio sugestivamente “A inteligência estrangeira-
internacional. Tal situação é confrontada da de Sur”. Se é ponto pacífico que poucas
com o contraexemplo brasileiro, no qual, instituições culturais receberam tantos olha-
destaca Miceli, além de não ser possível falar res acadêmicos como a revista dirigida por
em uma relação sólida com os modernistas Victoria Ocampo, não é menos recorrente
portugueses, a estabilidade do funcionalis- que as posições de revisão se enfrentem com
mo público fornecera, aos brasileiros, um es- uma espiral de filiações de prestígio e de re-
tatuto precocemente profissional em relação cusas ideológicas. Miceli não deixa de situar
ao país vizinho. sua posição, momento em que, inclusive, sua
O caso do Brasil, funcionando enquan- opção pela originalidade que a sociologia dos
to ponto comparativo, ajuda a perceber, na intelectuais pode aportar a temas canônicos
sequência do argumento, que o funciona- da historiografia e da crítica literária se faz
mento do nascente campo intelectual argen- mais proeminente. Nesse sentido, apesar da
tino esteve permeado por fissuras e tensões vasta literatura, salienta Miceli, “posições tão
muito específicas. A questão da imigração, antagônicas por vezes silenciam a respeito de
por exemplo, e sua incidência nas discussões feições sociais, políticas e intelectuais dos pa-
sobre o idioma nacional, a partir das quais tronos das revistas, das quais preferem se es-
as posições intelectuais pareciam responder quivar” (p. 38). Apartado, pois, das acusações
ao chamado de “preservar o que enxergavam de que a Sur era um reflexo superestrutural da
como o tesouro do espanhol castiço passou oligarquia agropecuária e, ao mesmo tempo,
a fazer as vezes de custódia das prerrogativas da tradição laudatória que a julga a partir de
sociais cuja continuidade parecia em risco” seu próprio cânone, a saber, o gosto bom e
(p. 28), bem como as clássicas fissuras de belo, Miceli pretende inserir-se na senda aber-
classe, como aquela explicitada pela sociabi- ta por autores como Tulio H. Donghi e John
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King, a partir das quais a revista se torna ob- vinculados à Sur respondiam, a rigor, num
jeto de análise social, não somente estético. tom abertamente espiritualista e impres-
Nesse sentido, a sociabilidade do círculo ínti- sionista, como se acompanha, sobretudo, a
mo de Ocampo, suas relações familiares, seus partir dos textos de Eduardo Mallea.
gostos e preferências presumidas, todos esses Sociabilidade fundamentada na antigui-
dados ajudam a observar que, para além das dade de seu prestígio, aponta Miceli, a Sur
adesões refletidas dos membros e do reivindi- é também o espaço privilegiado de conso-
cado apoliticismo da revista, opera um senso lidação de um cânone, Jorge Luis Borges, a
prático e um conjunto de posições que garan- quem Miceli dedica as páginas mais ácidas
tem a inteligibilidade social do empreendi- de sua análise. O autor destaca que, em con-
mento. sonância com o caráter sempre arredio de
A narrativa de Miceli é pródiga em Borges às críticas dos “especialistas” e à sua
acompanhar o amadurecimento de uma postura de juiz sentencioso, a crítica sempre
tensão que levará ao descrédito da Sur frente foi imensamente generosa com o escritor.
à opinião pública nos anos que se seguem à Não por acaso, nesse sentido, “a brigada de
caída de Perón, após 1955, mas que já está comparsas combatia ‘o exercício ilegal da crí-
posta a partir dos primeiros anos da década tica’, a saber, as incursões de acento socioló-
de 1940. O efeito que os fascismos europeus gico, desacatos à ortodoxia dos magistrados
causam nas revistas irmãs do empreendi- do belo” (p. 77). A posição de Borges nas re-
mento de Ocampo, a Nouvelle Revue Fran- lações de seu tempo, bem como os influxos
çais e a Revista de Occidente — de Ortega da crise internacional, são observados, no ar-
y Gasset — constrangem a Sur a rever sua gumento de Miceli, a partir da própria prosa
posição de ostentatória neutralidade. Num borgeana, atentando para uma cumplicida-
espaço de meses, pontua Miceli, relações de de habitus que se expressa nas narrativas.
sólidas da revista, como o próprio Ortega e Alguns efeitos de erudição, como pequenas
Drieu de la Rochelle, passam a criticar a pos- alusões em francês, por exemplo, contri-
tura “ambígua” de Sur frente ao acirramento buem para evidenciar o argumento de Mice-
das tensões no velho continente, momento li a respeito da relação que Borges mantinha
em que a “neutralidade” deixava de parecer com seus discípulos, entre eles Mallea: “en-
uma opção viável. Politicamente, sugere Mi- quanto os artilheiros da brigada destroçam
celi, a revista fez o jogo das forças conserva- as investidas materialistas do sociologismo,
doras enquanto, culturalmente, deu impulso o sumo sacerdote ensaia o esboço da onto-
inédito e vigoroso ao mercado editorial. Essa logia que lastreia os artifícios literários” (p.
posição de hegemonia das consagrações cul- 85). A ontologia de Sur, a metafísica de Bor-
turais relacionava-se, para o autor, com uma ges: eficientes modos de negar a temporali-
opção constante na trajetória da revista, a sa- zação histórica e as análises de cunho social
ber, a transmutação das lutas sociais em di- que sua aceitação certamente permite. Em
lemas civilizatórios, aos quais os intelectuais epílogo contrastivo, lemos que esse mesmo
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das por uma tradição que costumava creditar linguagem marcadamente sociológica, o
o sucesso ao gênio e vice-versa, sem atentar- tom combativo de algumas considerações e,
se para as inflexões sociais das posições ou, principalmente, essa retumbante vinculação
num extremo oposto, associando de modo que abre o livro, nos parecem tão reveladores
irrefletido uma tomada de posição teórica a quanto a análise minuciosa da documenta-
uma adesão ideológica manifesta. A socio- ção e o rigor analítico do autor, dimensões
logia aparece aqui, como antes aparecia em polifônicas que tornam o livro indispensável
Bourdieu, como esporte de combate: trata-se para qualquer um que esteja interessado, e
de propor uma narrativa menos complacente aberto, aos temas mais candentes da história
com a dos sonhos estéticos da vanguarda. intelectual latino-americana e, ao mesmo tem-
Entrar em contato com o livro de Miceli po, à sua interface de colaboração disciplinar.
é, por todo o exposto até aqui, abrir-se para
um repertório criativo e inovador de análises
que procuram, a partir de luz nova, observar
fenômenos consagrados de história intelec-
tual. Para além do rigor documental e da
prosa erudita do sociólogo, nesse sentido, a
aposta comparativa e a análise de trajetórias
contribuem para alocar o livro, sem ressalvas
nesse momento, num movimento de reno-
vação que é, sintomaticamente, protagoniza-
do por historiadores e sociólogos argentinos
como Alejandro Blanco e Carlos Altamira-
no. Em certo momento da análise de Sur e
dos vínculos societários por ela organizados,
Miceli aponta que “para desconcerto dos es-
tetas, o anúncio de pianos de cauda é tão
revelador quanto a peroração patrioteira de
Mallea ou os artifícios literários de Borges”
(p. 14). Ilustrando a tese a partir de seu pró-
prio texto, Miceli nos fornece uma chave de
leitura interessante para a dedicatória que
inaugura o livro, dirigida aos hermanos Ale-
jandro Blanco, Adrián Gorelik, Carlos Al-
tamirano e Jorge Myers: interlocutores de
seu projeto intelectual e colaboradores da
aproximação comparativa em termos lati-
no-americanos. Desse modo, a opção pela
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