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Transação Penal

I– Foi sempre o acaso matéria de muita angústia e tortura para os


homens, tendo não poucos afirmado preferir o inferno definitivo à
dúvida provisória. É de espíritos avisados, com efeito, acautelar-se
contra as contingências humanas; donde o haver a sabedoria das
nações batido na forja de seus anexins este, que é a quinta-essência do
bom-senso vulgar: Nunca deixar o certo pelo duvidoso.
Ainda que a fortuna ajude os audaciosos, como cantou O Cisne
de Mântua(1), contudo a maioria prefere, quando lhe toca a vez, eleger a
alternativa que não lhe pareça temerária nem por demais gravosa; se,
com as mãos, tenta alcançar as estrelas do céu, olha sempre lhe não
venha a faltar a terra debaixo dos pés. E arremata com resignação: O
ótimo é inimigo do bom!
Sendo muito vária a sorte nos sucessos humanos, nunca o é
mais, porém, que nos negócios jurídicos. Tão incertas e imprevisíveis
se mostram, deveras, as soluções dos pleitos judiciais, que apenas
os insensatos lhes aventuram prognósticos; os prudentes, esses
aguardam o trânsito em julgado da sentença, uma vez que até aí
ninguém tem razão.
Isto parece compreende bem a voz pública, em todos os pontos
do globo, ao declamar o prolóquio (na verdade, turpilóquio): “De
cabeça de juiz, (omissis)… nunca se sabe o que vem”. É que “a sentença faz do
branco preto, e do quadrado redondo”(2).
Daqui por que os próprios órgãos do Poder Judiciário são os
que encarecem aos litigantes a conveniência da conciliação(3), firmes
em que, nas mais das vezes, é melhor um mau acordo que uma boa
demanda(4).

II – Do mesmo passo que em outros ramos do Direito, agora


também na esfera penal, com o advento da Lei nº 9.099, de 26.9.95 (que
dispôs sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais), é possível, em
certos casos, a realização de acordo. As hipóteses em que se permite
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ele são “as infrações penais de menor potencial ofensivo” (art. 60), isto é, “as
contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima
não superior a um ano” (art. 61). Porém, consequência do princípio da
retroatividade da lei nova mais favorável, tais efeitos poderão
operar-se até em casos de réus condenados por “crimes em que a pena
mínima cominada for igual ou inferior a um ano” (art. 89), suspendendo-se
condicionalmente o processo.
Mediante a composição dos danos civis, poderá portanto o
autor da infração (primário e de bons antecedentes) obter
pronunciamento judicial, em que lhe seja infligida pena restritiva
de direitos (cf. art. 43 do Código Penal: prestação de serviços à
comunidade; interdição temporária de direitos e limitação de fim de
semana) ou multa.
A Lei dos Juizados Especiais Criminais atendeu, sem contradita
possível, a notáveis e antigas aspirações da sociedade, porque:
imprimiu rapidez à solução dos conflitos penais(5), estimulou a
reparação dos danos causados à vítima, beneficiou o delinquente
primário (seja subtraindo-o logo ao tormento do processo-crime,
seja evitando-lhe o estrépito e o prejuízo que a menção de fato
desabonador, em sua folha de antecedentes, de ordinário acarreta),
reduziu o número espantoso de feitos, originados de questões de
bagatela que assoberbam e empecem o Judiciário, etc.
Prevenindo a objeção do inteligente leitor, de que a aceitação do
acordo pelo autor do fato equivale a confissão e, pois, contrasta com o
dogma constitucional da presunção de inocência, que domina o
processo penal, diremos que:
a) é direito do autor da infração penal recusar a proposta (de
aplicação imediata de pena não privativa de liberdade); como se
trata de acordo, imprescindível é seu consentimento, para que
se aperfeiçoe;
b) desde que o aceite, porém (porque diz com o seu interesse), que
muito se isto importe confissão? De feito, que coisa é preferível:
aceitar o infrator o acordo, e receber sanção, que todavia não
constará de assentamentos criminais nem induzirá reincidência
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(art. 76, § 4º), ou enjeitá-lo, por amor só da intangibilidade do


princípio da presunção do estado de inocência, e vir a ser, ao
cabo, condenado, e sobre isso ter o nome lançado no rol dos
convictos, não só para seu desdouro, senão ainda para
caracterização de futura reincidência?!
Não se há mister da sabedoria de Salomão, para desatar, sem
erro, a melhor ponta do dilema!

III – O acordo, ora instituído no âmbito da Justiça Criminal,


conforma-se com a velha parêmia de que, em certos casos, mais
conveniente é transigir que contender.
Aqueles que já se desempenharam de defesas na barra do Júri,
esses conhecem que também aí se concertam transações, bem que
muito à puridade e discretamente.
E se, a mais de um respeito, esta prática mereceu a eminentes
varões críticas aceradas(6), formam por igual legião os que a têm por
beneficente, não só tolerável.
Aos delitos da competência do Tribunal Popular a lei cominou
penas geralmente extremadas. Figure-se a hipótese, muito comum, de
réu que responde a processo por homicídio simples: poderá ser
absolvido, é claro; mas poderá também ser condenado (e a pena igual
ou superior a seis anos, se o for nos termos da decisão de pronúncia),
para cumprimento em regime fechado. Em tal caso, não nos parece
repugne à dignidade de seus nobres ofícios, nem lhes contrarie os
padrões éticos, isso de o promotor de justiça e o advogado optarem
por uma solução intermediária, ou de equidade, exortando os jurados
a reconhecer, v. g., que o réu cometeu homicídio privilegiado.
A sociedade será desagravada, com a condenação do réu a certa
pena; o promotor de justiça haver-se-á desincumbido retamente de
seu múnus, ao pleitear a condenação do homicida a uma pena que lhe
não retire a esperança de emenda e de recuperação; o advogado, este
não terá pouco de que se ufanar: afinal, poupou o cliente à desgraça do
cárcere, a “casa dos mortos”, como lhe chamou um alto espírito(7).
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Em suma: a Lei nº 9.099, de 26.9.95, ainda que se reputem


verdadeiras (o que admitimos, sem contudo conceder) as críticas
que alguns lhe têm disparado, representa edificante esforço de
aperfeiçoamento da Justiça Criminal.
E isto já a faz respeitável; os seus autores, dignos de louvor e
reconhecimento.

Notas

(1) “Audentes fortuna juvat” (Eneida, liv. X, v. 284).


(2) Cf. Arthur Rezende, Frases e Curiosidades Latinas, 1955, p. 721:
“Sententia facit de albo nigrum, de quadro rotundum”.
(3) Compete ao juiz “tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes” (art.
125, nº IV, do Cód. Proc. Civil).
(4) Formas variantes do adágio: Mais vale má avença que boa
sentença; mais vale um pássaro na mão que dois voando; mais
vale um tico-tico no prato que um jacu no mato; quem tudo
quer, tudo perde, etc.
(5) Já em 1921, abrasado em zelo apostólico, Rui verberava a
lentidão da Justiça com estas formais palavras: “Justiça atrasada
não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” (Oração aos Moços,
1a. ed., p. 42).
(6) É do número dos que não estão pelo acordo no Júri o insigne
Magistrado Aben-Athar de Paiva Coutinho. Ao aviso de Sua
Excelência, a barganha, “embora implique em pena mais branda para
o réu, não possibilita o exercício de defesa plena que poderia vir a
beneficiá-lo” (cf. Edição Policial, abril/1991).
(7) Eliézer Rosa, Romeiro Neto, O Último Romântico da Advocacia
Criminal, 4a. ed., p. 23.

Carlos Biasotti
Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

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