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revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/05/o-brasil-virou-o-pais-do-fanatismo.html
Desde então, à medida que cada vez mais pessoas aprenderam a escrever
“impeachment”, a reação dos partidários de ambos os lados ganhou contornos ainda
mais radicais. Em meados de março, duas manifestações tomaram conta das ruas das
principais cidades brasileiras: uma a favor do governo, e a outra, maior em número,
contra. Os protestos não registraram confusões, mas foram palco de cenas
preocupantes: faixas com a suástica nazista pedindo a volta da ditadura militar em
plena avenida Paulista, pessoas hostilizando jornalistas ideologicamente
contrários ao movimento e acusações de golpismo para quem é contra o governo.
Há alguns anos a ciência tenta explicar por que, afinal, é tão fácil alinhar-se a um
conjunto de pessoas que encontrou um Judas particular e culpá-lo por todo o caos do
universo. Uma prova disso é o paradigma dos grupos mínimos, elaborado nos anos
1970 pelo psicólogo Henri Tajfel, da Universidade de Bristol, na Inglaterra. Ao serem
aleatoriamente agrupados de acordo com critérios irrelevantes, como o pintor favorito,
os participantes do experimento criaram forte ligação entre aqueles que dividiam a
mesma turma, exaltando suas qualidades e hostilizando os rivais. Ao final do
experimento, formou-se o “nós contra eles” – será que alguém aí ouviu algo parecido
com isso no que ficou convencionado chamar de protestos de março?
Ainda no século 19, o pensador francês Gustave le Bon já havia atentado para o
comportamento bizarro das pessoas ao se unirem em grupos, formando uma espécie de
mentalidade única irracional – ou o que o escritor Nelson Rodrigues chamaria de
“unanimidade burra”. Na obra Psicologia das multidões (WMF Martins Fontes), de 1895, Le
Bon escreveu: “Nas grandes multidões, acumula-se a estupidez, em vez da inteligência.
Na mentalidade coletiva, as aptidões intelectuais dos indivíduos e, consequentemente,
suas personalidades se enfraquecem”. É como se, ao se unir aos seus pares, as
pessoas deixassem de usar a razão e passassem a deixar a emoção tomar conta,
tornando-se presas fáceis de manipuladores. Segundo o historiador Jaime Pinsky, autor
do livro Faces do fanatismo (Contexto), o grande perigo das devoções extremas é a
convicção inabalável. “A certeza da verdade do fanático não é resultante de uma reflexão
ou de uma dedução intelectual”, diz o escritor.
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A isso se junta o experimento do psicólogo Philip Zimbardo, da Universidade Stanford.
Há mais de 40 anos, ele resolveu simular o comportamento dentro de uma prisão,
atribuindo aleatoriamente o papel de “guardas” e “prisioneiros” a estudantes. No
entanto, o que deveria seguir por duas semanas durou apenas seis dias. Ninguém ali era
Meryl Streep, mas os participantes do estudo interpretaram tão bem seus papéis que os
“guardas” se revelaram verdadeiros sádicos, humilhando e causando traumas entre os
“prisioneiros”. “Em grupo somos capazes de realizar ações que individualmente não
seríamos”, diz Ligia Mendonça, participante do convênio do laboratório de
psicopatologia clínica e psicanálise da Universidade de Toulouse.
Além de inspirar o filme The Stanford Prison Experiment (“O experimento da prisão de
Stanford”, em tradução livre), lançado em janeiro nos Estados Unidos, o estudo de
Zimbardo também ajudou na formulação da teoria da identidade social, dos psicólogos
John Turner e Henri Tajfel – o mesmo dos grupos mínimos. Segundo a ideia, quanto mais
inserido em um conjunto, mais o participante acata seus valores. “Quando uma pessoa
pertence convictamente a um grupo, ela adquire uma identidade social: valores,
objetivos, memórias etc. Essa identidade contrapõe o participante aos que não fazem
parte do seu grupo”, diz o psicólogo Geraldo José de Paiva, da Universidade de São
Paulo.
O TRIUNFO DA BARBÁRIE
Como explicar que a nação de Johann Wolfgang Goethe, Ludwig van Beethoven e Albert
Einstein também tenha se tornado o local onde se realizou uma das maiores atrocidades
da história? Para especialistas, o fenômeno nazista na Alemanha vai além da ideia
de um aparente surto psicótico coletivo. “Um líder carismático como Hitler, que
promete felicidade a qualquer preço, passa a ser uma figura sedutora para uma massa
desacreditada que vive o desemprego, a fome e a escassez de alimentos”, afirma Ana
Maria Dietrich, professora do programa de pós-graduação da Universidade Federal do
ABC. “Em momentos de crise, tende-se a eleger um líder e também a escolher bodes
expiatórios.”
"Vemos o ser humano que já perdeu todos os laços de solidariedade. Isolado e sem
consciência de classe ou de família, ele se torna um número na massa e é capaz de
perpetrar as maiores atrocidades como quem carimba um papel"
Para dar conta das aspirações nazistas, criou-se uma verdadeira indústria da morte,
comandada por homens como Adolf Eichmann, que foi capturado em Buenos Aires em
1960. No livro Eichmann em Jerusalém (Companhia das Letras), a filósofa política Hannah
Arendt conta a história do julgamento do oficial, e o descreve não como um “maníaco
assassino”, mas como um burocrata a serviço do partido, que tinha obrigação de
obedecer ordens. Quem disser que este é o conceito do termo “banalidade do mal”,
cunhado pela autora, ganha pontos no vestibular da vida.
“Vemos o ser humano que já perdeu todos os laços de solidariedade. Isolado e sem
consciência de classe ou de família, ele se torna um número na massa e é capaz de
perpetrar as maiores atrocidades como quem carimba um papel”, afirma Ana Maria
Dietrich. O extremismo político não respeita as contradições do jogo democrático e
rejeita a ideia de saber lidar com o outro. “No caso do nazismo, a lei de que só o líder
tinha razão e os judeus eram os culpados de todas as mazelas fazia que as reflexões
sobre os problemas perdessem o sentido”, completa.
O racha entre militantes do PT e do PSDB teve início antes mesmo das eleições do ano
passado, marcadas por discussões intermináveis nas redes sociais, com o fim até de
certas amizades. Este ano, essas discussões entre pessoas pró e contra o governo
ganharam um novo palco: as ruas.
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ele, a “rachadura” do Brasil sempre existiu, com a ajuda da concentração de renda, da
disparidade regional e de preconceitos. “Essa polaridade apenas permitiu que a divisão
se expressasse”, escreveu ele.
FÉ CONTRA FOGO
A psicologia ajuda a entender por que grupos como o Estado Islâmico, o Boko Haram e
a Al-Qaeda são tão implacáveis com aqueles que consideram infiéis. Ao coordenar as
primeiras pesquisas com homens-bomba frustrados (que não explodiram por
problemas técnicos ou por terem sido pegos pela polícia), o psicólogo Ariel Merari, da
Universidade de Tel-Aviv, constatou que os principais fatores que motivavam os
terroristas a tirar o pino de uma granada não eram a religião nem o desejo de vingança,
mas sim a vontade de ser admirado pelo grupo, compensando sua falta de habilidade
social. Ou seja, corresponder às expectativas do meio é um fator mais dominante que a
ideologia. “Eles eram jovens fracos e dependentes, não o tipo de pessoa ideológica”,
afirmou Merari a GALILEU.
Não é preciso viajar no tempo para observar a ironia teológica. Parte da militância
ligada a religiões no Brasil atravanca a ampliação de direitos individuais e questões
de saúde pública, como a união civil homossexual e o aborto. Não foi à toa que, no
início de março, um vídeo que mostra fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus
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uniformizados como militares, marchando e gritando frases de efeito assustou muita
gente. Por parecer, de fato, um exército, não faltaram comparações com os
registros de Leni Riefenstahl da ascensão do regime fascista.
Não era para tanto. Segundo a Universal, a única atividade regular dos 4,3 mil jovens
que compõem o projeto Guardiões do Altar é assistir a aulas que “estimulam o debate
e a reflexão sobre aspectos do texto bíblico e do trabalho missionário”. Procurada por
GALILEU, a Universal enviou um texto disponível no seu site e respondeu às perguntas
solicitadas por e-mail com a pérola: “Se restarem dúvidas sobre o acima explicado
[no texto], ficará claro que a pergunta não tem sentido”.
“Eles acham que vocês são uma ameaça”, afirma Fábio Marton, autor de Ímpio: o
evangelho de um ateu (Leya). Criado em um ambiente religioso, o jornalista foi pastor
mirim e ajudou a exorcizar a própria mãe quando fazia parte de uma igreja pentecostal
conhecida como Igreja Evangélica Exército Celestial. “Foram quatro anos de introspecção,
até que notei uma coisa estranha em ser um robô de Cristo, uma autoaniquilação”,
afirma. Para Marton, um ponto-chave para entender os evangélicos no Brasil é
compreender sua relação com as religiões africanas. “Para os evangélicos, os orixás são
demônios, eles acreditam mais nisso do que em Deus. Esse clima de batalha eles têm
em comum com o fanatismo islâmico”, diz ele.
Para o psicólogo Ariel Merari, apesar de certos tipos de pessoas serem mais fáceis de
influenciar do que outros, os mecanismos de convencimento usados por algumas igrejas
são semelhantes aos utilizados por muçulmanos extremistas – o que muda é a influência
cultural e social. “São processos psicológicos universais que resultam da pressão ou da
vontade de ser apreciado pelo grupo.”
Em 2013, Atlético Paranaense e Vasco disputavam uma partida decisiva pela última
rodada do Campeonato Brasileiro. Se perdesse, a equipe carioca enfrentaria o segundo
rebaixamento de sua história. Logo após o início do jogo, os olhos concentrados no
campo voltaram-se para as arquibancadas. Torcedores organizados dos dois times,
rivais de longa data, começaram uma briga que não conseguiu ser contida pelos
seguranças da Arena Joinville. O placar final de 5 a 1 para o Atlético Paranaense foi
mero detalhe frente à imagem de um pai vascaíno que protegia seu filho em meio ao
combate.
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“Certos grupos eram organizados em ‘pelotões’, e seus dirigentes eram chamados de
capitães. Essa se tornou uma face mais ligada à guerra, machista e militarizada, e a partir
dos anos 1980 essas torcidas deixaram as páginas esportivas para ocupar as páginas
policiais”, afirma o sociólogo Mauricio Murad, autor do livro Para entender a violência no
futebol (Benvirá).
Isso funciona bem quando temos uma relação emocional acima da média com o
produto. É por isso que para entender o sucesso de uma marca como a Apple é
preciso conhecer os mecanismos da religião. Para Costa, as marcas que causam
euforia têm símbolos fortes e pessoas inspiradoras que disseminam suas filosofias,
como é o caso de Jesus Cristo na Igreja católica. “Nosso cérebro também gosta de uma
novela. Como Buda, Maomé e Cristo, as marcas precisam criar envolvimento”, afirma ele.
Nada que o messias Steve Jobs não tenha feito durante suas pregações.
O CAMINHO DA TOLERÂNCIA
1478 - INQUISIÇÃO ESPANHOLA > O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi criado
para combater muçulmanos que dominavam parte da Espanha. Milhares de pessoas de
outras religiões foram mortas sob a supervisão da Igreja católica
1572 - NOITE DE SÃO BARTOLOMEU > Organizados pela monarquia católica francesa,
cristãos protestantes foram mortos durante a madrugada do dia 24 de agosto
1792 - TERROR JACOBINO > Mais de 17 mil opositores políticos foram guilhotinados por
ordem do grupo jacobino que liderava a Revolução Francesa
1871 - O FIM DA COMUNA DE PARIS > Primeiro governo operário da história, a Comuna
de Paris foi dissolvida após um massacre que resultou em prisão, tortura e morte de
quase 100 mil trabalhadores
1938 - NOITE DOS CRISTAIS > O governo nazista instaura uma política de prisão,
assassinato e destruição de propriedades de judeus, sob a coordenação das tropas de
assalto do exército alemão
1965 - GOLPE DE ESTADO NA INDONÉSIA > Após a tomada do poder pelo general
Suharto, o Partido Comunista da Indonésia foi extinto depois do massacre de quase
meio milhão de militantes
1975 - O KHMER VERMELHO > O regime comunista liderado por Pol Pot obrigou os
moradores das cidades do Camboja a migrar para o campo, fazendo cerca de 1,5 milhão
de vítimas
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2014 - ESTADO ISLÂMICO > Grupo fundamentalista proclama a independência de
regiões da Síria e do Iraque, as quais passariam a ser regidas por sua própria
interpretação da lei sagrada islâmica
3. Esse sentimento de conexão é aumentado pelo poder das narrativas. Nosso cérebro
precisa de histórias, como a de Jesus Cristo, por exemplo, para criar relação emocional
4. Quando o grupo é uniforme, ele cria uma mentalidade coletiva, com os mesmos
valores e objetivos. Sentir-se parte do grupo é o que psicólogos chamam de identidade
social
5. Os que têm identidade social intensa abrem mão de outras referências, estreitando
sua percepção e reforçando as emoções que os ligam ao grupo
7. Com o devido incentivo, as pessoas são capazes de fazer em grupo coisas que não
fariam sozinhas
POLÍTICA NO DNA
A partir de análises de estímulos biológicos, o norte-americano John Hibbing,
coordenador do Laboratório de Fisiologia Política da Universidade de Nebraska-Lincoln,
afirma que nossas opções políticas nem sempre estão relacionadas a decisões racionais
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Então é possível dizer que o cérebro pode determinar nossa visão política?
Não, “determinar” é um termo muito forte neste caso, mas os padrões de ativação
cerebral estão relacionados a nossa orientação política. Temos certas predisposições
inconscientes que se espreitam em nós, e geralmente elas ajudam a determinar
preferências políticas particulares em temas sociais, como nossa opinião a respeito de
imigração. Quando apresentávamos imagens desagradáveis, como casas pegando fogo,
pessoas usando o banheiro ou um homem comendo minhocas, o estímulo na região da
amígdala era maior em pessoas com opiniões conservadoras. Essas medições biológicas
se corresponderam bem em relação a opiniões políticas, porém menos nas questões
econômicas.
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