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História da Filosofia baseada em GIOVANNI REALE e DARIO ANTISERI

Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


Professor. Especialista em direito processual civil pela Universidade Cândido Mendes (Rio de
Janeiro/RJ). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Parecerista da
Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e da Revista Eletrônica de Direito Processual
(REDP). Colunista do Empório do Direito.

Encontro 1
INTRODUÇÃO, EXPLICAÇÕES E OBJETIVOS
Assista:

O desafio e o guia de G. REALE & D. ANTISERI


Qualquer proposta por uma História da Filosofia terá de levar em consideração que
ela trará um labor hercúleo. Sim: uma produção historiográfica séria pressupõe rigoroso
aparato metodológico. Mas o método nele mesmo é inútil. Já presenciei gigantescas
discussões acadêmicas sobre o objeto da história do direito, por exemplo. O que seria fonte
histórica? O que é digno de atenção na gnosiologia de um historiador? O Estado e seus
documentos “oficiais”? As chamadas “fontes primárias”? Livros da literatura? Notícias de
jornais de uma época? As estatísticas? As ideias? As artes?
As discussões são válidas e gozam de importância. Mas, n’alguns casos, acabam
entrando num loop formidável. O que percebo é que, quanto mais os acadêmicos se
preocupam com a capitação da “fonte da história” (ou de “como estudar história”), menos
estão dispostos a mergulhar no objeto tão sonhado: a história. Discute-se tanto, mas tanto,
sobre o papel do sujeito cognoscente da historiografia (o “historiador”), que o objeto
cognoscível (a HISTÓRIA, afinal) se torna algo menosprezado. Fala-se do rumo, do
caminho, da cognição, de como viajar... Mas não se viaja. Fala-se do que deve ou não deve
ser atingido, mas não se atinge nada. Certa vez, um colega (professor de história) me relatou
algo que considero sintomático: “Marcelo, tive que dar aulas de Império do Brasil. Eu sabia
muita coisa da Escola dos Annales, sabia da vida e da obra de LEOPOLD VON RANKE, sabia de
inúmeros aspectos da historiografia marxista. Mas simplesmente não lembrava de fatos, de
história propriamente dita”. Foi aí que ele passou a estudar história e frutos da historiografia,
deixando um pouco de lado a árvore que dá o fruto.
Enfim: teorias da história (suas preocupações metodológicas) são interessantíssimas
e sempre me chamaram atenção, mas não tardou muito para que eu me notasse vítima de
mim mesmo: passei a respirar um “vapor” longe de um líquido. Algum líquido pode haver, e,
dentro de minhas limitações, empreenderei os esforços para obtê-lo.
Para propor uma História da Filosofia sem entrar numa insuportável e anacrônica
“evolução história”, basear-me-ei na História da Filosofia de GIOVANNI REALE e de DARIO
ANTISERI. A obra que servirá de verdadeiro sumário para nosso curso é dividida em sete
volumes. São eles:
 Volume 1 – filosofia pagã antiga;
 Volume 2 – Patrística e Escolástica;
 Volume 3 – do Humanismo a Descartes;
 Volume 4 – de Spinoza a Kant;
 Volume 5 – do Romantismo ao Empiriocriticismo;
 Volume 6 – de Nietzsche à Escola de Frankfurt; e
 Volume 7 – de Freud à atualidade.

Se alguém quiser acompanhar o curso com os próprios livros, recomendo


fortemente. Utilizo a versão da Editora Paulus.
É claro que não utilizarei somente a obra de G. REALE e de D. ANTISERI. Ela será
útil enquanto “bússola”. Um verdadeiro sumário! Repetir friamente as lições desse autores
seria reducionismo inútil. É claro que as menções deles serão mais frequentes do que de
quaisquer outras obras. Por honestidade intelectual, TUDO o que for retirado (ipsis litteris
ou não) desses sete volumes serão referenciados em nossas notas de rodapé. Ainda que a
soma delas seja insuportável. Por isso, já agradeço, desde já, a paciência do leitor e
do ouvinte.

Um curso de História da Filosofia, por quê?


Por trás de qualquer ideia deste mundo há filosofia. É com base nisso que monto
este curso. Esquerdistas acusam direitistas de “conspiração” quanto aos problemas e os abusos
decorrentes da Escola de Frankfurt. Quem se dedica ao estudo da filosofia, porém, sabe bem
que o background de todas as ideias desse mundo é alimentado pela filosofia. Com o nazismo,
com o fascismo, com o comunismo ou com qualquer outro projeto totalitário de poder foi
assim. Estudar filosofia, portanto, é uma possibilidade de diagnosticar males mundanos e se
guiar para a liberdade pessoal. Note bem: um guia para a liberdade pessoal. Não um guia para a
coerção estatal de suas ideias contra “o outro”. Minha proposta é de mim para o seu eu. Não faço,
aqui, nenhum credo para política estatal. Meu curso não é um manual catequético para
impor, pela coerção estatal, uma crença política.
Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


Professor. Especialista em direito processual civil pela Universidade Cândido Mendes (Rio de
Janeiro/RJ). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Parecerista da
Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e da Revista Eletrônica de Direito Processual
(REDP). Colunista do Empório do Direito.

Encontro 2
GÊNESE DA FILOSOFIA ANTIGA
Assista:

Gênese da filosofia entre os gregos


A primeira página da História da Filosofia proposta por GIOVANNI REALE e DARIO
ANTISERI é bastante direta: a origem da filosofia é grega e ocidental. Os orientais tiveram lá
sua importância em aspectos científicos: os gregos do período helenístico souberam absorver
esses ensinamentos para recriá-los teoricamente. Eles dizem: “a filosofia, como termo ou
conceito, é considerada pela quase totalidade dos estudiosos como criação própria do gênio
dos gregos”1.

A origem não está no oriente. Está nos gregos


É claro que os orientais bradaram: nós fizemos filosofia! Mas essa tese foi rebatida
ainda no século XIX: “a crítica rigorosa produziu uma série de provas verdadeiramente
esmagadoras contra a tese de que a filosofia dos gregos tivesse derivado do Oriente”:

a) na época clássica, nenhum dos filósofos ou dos historiadores gregos


acena minimamente à pretensa origem oriental da filosofia;
b) está historicamente demonstrado que os povos orientais, com os quais
os gregos tiveram contato, possuíam de fato uma forma de “sabedoria”
feita de convicções religiosas, mitos teológicos e “cosmogônicos”, mas

1
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 3.
não uma ciência filosófica baseada na razão pura (no logos, como dizem os
gregos). Ou seja, possuíam um tipo de sabedoria análoga à que os
próprios gregos possuíam antes de criar a filosofia;
c) em todo caso, não temos conhecimento da utilização, por parte dos
gregos, de qualquer escrito oriental ou de traduções desses textos. Antes
de Alexandre, não resulta que tenham chegado à Grécia doutrinas dos
hindus ou de outros povos da Ásia, como também que, na época em que
surgiu a filosofia na Grécia, houvesse gregos em condições de
compreender o discurso de um sacerdote egípcio ou de traduzir livros
egípcios;
d) admitindo que algumas ideias dos filósofos gregos possam ter
antecedentes precisos na sabedoria oriental (mas isso ainda precisa ser
comprovado), podendo assim dela derivar, isso não mudaria a substância
da questão que estamos discutindo. Com efeito, a partir do momento
em que nasceu na Grécia, a filosofia representa nova forma de expressão
espiritual, de tal modo que, ao acolher conteúdos que eram fruto de
outras formas de vida espiritual, ela os transformava estruturalmente,
dando-lhes forma rigorosamente lógica2.

A operação filosófica dos gregos sobre os saberes


egípcios e caldeus
Os gregos absorveram duas coisas importantes: 1.ª) noções de matemática e
geometria do Egito – tudo com caráter “utilitarista”, “responde, por exemplo, à necessidade
de medir novamente os campos depois das inundações periódicas do Nilo, ou à necessidade
de projeção e construção das pirâmides”; e 2.ª) questões de astronomia dos babilônios (=
caldeus), cujo fim utilitário esteve vocacionado para “fazer horóscopos e previsões” 3.
Sobre a matemática prática dos egípcios, os gregos (PITÁGORAS [Πυθαγόρας], e.
g.) souberam transformar “aquelas noções em uma teoria geral e sistemática dos números e
das formas geométricas, indo muito além dos objetivos predominantemente práticos” 4.
Sobre o assunto, aliás, MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS bem notou que “todo o processo
racionalista é um processo extensista, um modo de calcular, uma logistikê, como diria
Pitágoras. Não se apreciam as coisas, mas se contam; não se avaliam os valores, mas apenas
o extensista dos valores”5. E sobre a criação dos babilônicos, os gregos acabaram purificando

2
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 4-5.
3
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 5.
4
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 5.
5
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 172.
essas noções “com fins predominantemente cognoscitivos, por causa do espírito ‘teorético’ que
visava ao amor do conhecimento puro, o mesmo espírito que [...] criou e nutriu a filosofia” 6.

No canto inferior esquerdo desse recorte, o Egito. Na parte amarelada, o trecho espacial correspondente à
civilização dos caldeus.

Poemas homéricos e poemas gnômicos


A arte, a religião e as condições sociopolíticas de um povo são elementos centrais da
definição da filosofia de um povo.
Podemos ilustrar isso com um exemplo do século XX: o nazismo. O nazismo soube
construir uma semiótica (uma arte peculiar7) – basta pensar na suástica e no peso de sua
significação8 e em como os nazistas dominaram o território da linguagem 9 muito antes de
HITLER. Quanto à religião, ERIC VOEGELIN explora bem o desejo religioso hitleriano (por
ele chamado de “um monismo relativamente primitivo”), já que “Hitler planejou um grande
observatório e planetário como o centro do desenho arquitetônico na reconstrução de Linz,
que ele considerava seu lar”10 (peso do romantismo e do darwinismo – nova “religião” guiada
pelo iluminismo, com seu pensamento “progressista” e com a visão racista de “desenvolvido”

6
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 5.
7
Sobre o interesse de A. HITLER nas artes, ver o documentário Archietektur des Untergangs [“Arquitetura da
Destruição”], de PETER COHEN.
8
A respeito, ouvir podcast “Senso Incomum”, de FLÁVIO MORGENSTERN, intitulado “O nazismo era ‘de
direita’?” (https://goo.gl/dmXZ8T), notadamente sua análise da Kabbalah hermética (comparada com a
Kabbalah judaica). O S das SS (tropas de assalto do Terceiro Reich, as Schutzstaffel) é reto [ϟ ϟ], imitando
uma runa nórdica. Como se nota, os três elementos identificadores acabam se interseccionando.
9
Cf. VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas. Tradução Maria Inês de Carvalho. São Paulo: É
Realizações, 2008. Capítulo 5.
10
VOEGELIN, Eric. Hitler e os Alemães. Tradução Elpídio Mário Dantas Fonseca. São Paulo: É Realizações,
2007, p. 167-168.
e “selvagem”). Finalmente, no aspecto das condições sociopolíticas do povo, não custa
lembrar qual era a situação dos alemães depois da 1.ª Guerra Mundial: derrotados, colocados
de joelhos diante do mundo e, principalmente, economicamente instáveis (com tributação
e inflação galopante11).
Em síntese: a arte (1), a religião (2) e as condições sociopolíticas (3) definem a filosofia
de um povo e, com os gregos, isto não seria diferente:

1) Com efeito, a grande arte, de modo mítico e fantástico, ou seja,


mediante a intuição e a imaginação, tende a alcançar objetivos que
também são próprios da filosofia.
2) Analogicamente, por meio da fé, a religião tende a alcançar certos
objetivos que a filosofia procura atingir com os conceitos e com a razão.
3) Não menos importante (e hoje se insiste muito nesse ponto) são as
condições socioeconômicas e políticas, que frequentemente
condicionam o nascimento de determinadas ideias e que, de modo
particular no mundo grego, ao criar as primeiras formas de liberdade
institucionalizada e de democracia, tornaram possível precisamente o
nascimento da filosofia, que se alimenta essencialmente da liberdade12.

Assim, os poetas tiveram “importância extraordinária na educação e na formação


espiritual do homem grego, muito mais do que tiveram entre outros povos”, bastando

11
“Da bei Kriegsbeginn unmittelbar große Geldsummen benötigt wurden – allein die erste Mobilmachungswoche kostete
ca. 750 Millionen Reichsmark – stand dem Staat anfangs nur die Notenpresse zur Verfügung. Um die aus dem
vermehrten Geldumlauf resultierende Inflationsgefahr in den Griff zu bekommen, gab es theoretisch zwei
Möglichkeiten: die Erhebung von Steuern und die Aufnahme von Krediten. Anders als England, das erhebliche Teile
der Kriegskosten über Steuern auf Kriegsgewinne aufbrachte, setzte das Deutsche Reich fast ausschließlich auf Kredite
und Anleihen. Eine Kriegssteuer auf Unternehmensgewinne wurde erst im Frühjahr 1917 eingeführt, und sie wurde
von den Unternehmern überwiegend in die weitgehend unkontrollierte Preisgestaltung integriert, so dass die
Öffentliche Hand selbst dafür aufkommen musste” – “Desde o início da guerra, imediatamente grandes somas
de dinheiro foram necessárias – só a primeira semana de mobilização custou aproximadamente 750
milhões de Reichmarks [moeda oficial da Alemanha entre 1924 e 1948] –, tanto que as máquinas de
impressão [Notenpresse], inicialmente, estiveram à disposição apenas do Estado. Para o controle da inflação
que decorreu da grande circulação de dinheiro, o governo teria duas opções: cobrar mais impostos e/ou
retirar os empréstimos [die Erhebung von Steuern und die Aufnahme von Krediten]. Diferentemente da
Inglaterra, que optou por quitar os custos de guerra com impostos, o Estado alemão acabou dependendo
quase que exclusivamente de empréstimos e títulos. Foi apenas na primavera de 1917 que um imposto
de guerra (que recaía sobre os lucros das empresas) foi introduzido no sistema tributário alemão”, mas
no fim das contas o pagamento desses custos foi feito pela iniciativa pública [Öffentliche Hand] (KRUSE,
Von Wolfgang. Ökonomie des Krieges. In: BUNDESZENTRALE FÜR POLITISCHE BILDUNG [org.].
Dossier – Der Erste Weltkrieg. Bundeszentrale für politische Bildung, Bonn, abr. 2018).
12
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 6.
lembrar, aqui, dos poemas homéricos (Ilíada13 e Odisseia14, - “que, conforme se sabe,
exerceram nos gregos influência análoga à que a Bíblia exerceu entre os hebreus, uma vez
que não havia textos sagrados na Grécia”)15.

Busto de HOMERO [Ὅμηρος] (século VIII a.C.) – Museu Britânico.

GIOVANNI REALE e DARIO ANTISERI arrolam três fatores da obra de HOMERO: “a)
Com efeito, Homero tem grande senso da harmonia, da proporção, do limite e da medida; b)
não se limita a narrar uma série de fatos, mas também pesquisa suas causas e razões (ainda
que em nível místico-fantástico); c) procura de diversos modos apresentar a realidade em sua
inteireza, ainda que de forma mítica (deuses e homens, céu e terra, guerra e praz, bem e
mal, alegria e dor, totalidade dos valores que regem a vida do homem)” 16. Além disso, os
poetas líricos gregos “fixaram de modo estável outro conceito: a noção do limite, ou seja, a
ideia de nem demasiadamente muito nem demasiadamente pouco, isto é, o conceito de justa medida,
que constitui a conotação mais peculiar do espírito grego e o centro do pensamento
filosófico clássico”17. ARISTÓTELES, aliás, asseverou que “como o igual é um ponto
intermediário, o justo será um meio-termo”18.
Não parece haver exagero na importância que se atribui a HOMERO. Analisando a
literatura ocidental, OTTO MARIA CARPEAUX escreveu:

13
Sobre a Ilíada, recomendo a análise de TATIANA FELTRIN: https://goo.gl/S4KnKA. Mais profundamente
(ponto de vista “menos leigo”, digamos), ver MALTA, André. Itinerário para o estudo de Homero. Disponível
em: https://goo.gl/cQJsLs.
14
Sobre a Odisseia, recomendo a análise de TATIANA FELTRIN: https://goo.gl/uoyQPq.
15
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 6-7.
16
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 7.
17
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 7.
18
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 108.
Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão indiscutida. O nome de
Homero tornou-se sinônimo de poeta. Essa glória é, em grande parte, o
resultado de inúmeros esforços malogrados de imitá-lo. Será difícil
enumerar as epopéias “modernas” que se escreveram para rivalizar com
Homero; e o fracasso manifesto de todos os imitadores fortaleceu a
unanimidade de opinião: Homero é o maior dos poetas. Os gregos
antigos consentiram, mas por outros motivos; porque nunca – senão nas
últimas fases da decadência literária – um poeta grego pensou em imitar
Homero. As epopéias homéricas eram consideradas como cânone fixo,
ao qual não era lícito acrescentar outras epopéias, de origem mais
moderna. A Ilíada e a Odisséia eram usadas, nas escolas gregas, como
livros didáticos; não da maneira como nós outros fazemos ler aos
meninos algumas grandes obras de poesia para educar-lhes o gosto
literário; mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo.
Para os antigos, Homero não era uma obra literária, leitura obrigatória
dos estudantes e objeto de discussão crítica entre os homens de letras.
Na Antiguidade também, assim como nos tempos modernos, Homero
era indiscutido: mas não como epopéia, e sim como Bíblia. Era um
Código. Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses
filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções
políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e
estadistas, como argumentos irrefutáveis. “Homero”: isto significava a
“tradição”, no sentido em que a Igreja Romana emprega a palavra, como
norma de interpretação da doutrina e da vida19.

Religiosidade grega
A religião grega deve ser tratada numa bifurcação: i) a religião pública; e ii) a
religião dos mistérios. A segunda tem acentuada importância. “Para Homero e para
Hesíodo, que constituem o ponto de referência das crenças próprias da religião pública,
pode-se dizer que tudo é divino, pois tudo o que acontece é explicado em função de
intervenções dos deuseus. Os fenômenos naturais são promovidos por numes: raios e
relâmpagos por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar são provocadas pelo tridente de
Poseidon, o sol é levado pelo áureo carro de Apolo, e assim por diante. Mas também a vida
social dos homens, a sorte das cidades, as guerras e a paz são imaginadas como vinculadas
aos deuses de modo não acidental e, por vezes, até de modo essencial”. Todos esses deuses
são “homens amplificados e idealizados, e, portanto, diferentes do homem comum apenas por
quantidade e não por qualidade. É por isso que os estudiosos classificam a religião pública dos
gregos como uma forma de ‘naturalismo’, uma vez que ela pede ao homem não
propriamente que ele mude sua natureza, ou seja, que se eleve acima de si mesmo; ao

19
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, v. 1. 3.ª ed. Brasília: Senador Federal, Conselho
Editorial, 2008, p. 46-47.
contrário, pede que siga sua própria natureza. Fazer em honra dos deuses o que está em
conformidade com a própria natureza é tudo o que se pede ao homem”20.

Zeus no jogo de computador Age of Mythology, da Ensemble Studios.

Apollo no jogo de computador Age of Mythology, da Ensemble Studios.

20
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 8.
Poseidon no jogo de computador Age of Mythology, da Ensemble Studios.

Mas como falei acima, a religiosidade grega não tem esse cariz apenas público. Nos
“círculos restritos, desenvolveram-se os ‘mistérios’, com as próprias crenças específicas”.
Daí deriva o chamado Orfismo, o que vem do poeta trácio ORFEU (Oρφεύς), “cujos traços
históricos são inteiramente cobertos pela névoa do mito”. Os adeptos do Orfismo são os
Órficos. Eles seguem, em resumo, o seguinte:

a) No homem hospeda-se um princípio divino, um demônio (alma) que


caiu em um corpo por causa de uma culpa originária.
b) Esse acontecimento não apenas preexiste ao corpo, mas também não
morre com o corpo, pois está destinado a reencarnar-se em corpos
sucessivos, a fim de expiar aquela culpa originária.
c) Com seus ritos e práticas, a “vida órfica” é a única em grau de por fim
ao ciclo das reencarnações e de, assim, libertar a alma do corpo.
d) Para quem se purificou (os iniciados nos mistérios órficos) há um
prêmio no além (da mesma forma que há punições para os não
iniciados)21.

21
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 8-9.
O Orfismo foi, assim, tão importante? Sim: sem ele “não se explicaria
Pitágoras, nem Heráclito, nem Empédocles e, sobretudo, não se explicaria uma parte
essencial do pensamento de Platão e, depois, de toda a tradição que deriva de Platão; ou
seja, não se explicaria grande parte da filosofia antiga” 22.

Scuola di Atene, de RAFFAELLO. Representa-se, aí, um “rito órfico”, sendo que “a base da coluna quer
indicar que a revelação órfica constitui a base sobre a qual se constrói a filosofia. Pitágoras, Heráclito,
Empédocles, Platão e o tardio Platonismo se inspiraram no Orfismo”23.

A falta de dogmatismo na religião dos gregos


Os gregos não tinham, digamos assim, uma Bíblia. Eles “não tiveram livros sagrados
ou considerados fruto de revelação divina”, de maneira que “não tiveram uma dogmática
[...] fixa e imutável”. Foram os poetas que serviram de “veículo de difusão de suas crenças
religiosas”24. A “vantagem” prática disso esteve na liberdade de pensamento: isso seria
fundamental para um embrião da filosofia.

Condições culturais

22
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 9.
23
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 9.
24
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 9.
Enquanto o homem oriental esteve mergulhado em fundamentalismos religiosos,
os gregos tiveram essa liberdade dos dogmas míticos. Este foi um fator que favoreceu a
gênese da filosofia ocidental entre os gregos. E, “com a constituição e a consolidação da Pólis,
isto é, da Cidade-Estado, o grego deixou de sentir qualquer antítese e qualquer vínculo à
própria liberdade; ao contrário, descobriu-se essencialmente como cidadão. Para o grego, o
homem passou a coincidir com o cidadão. Dessa forma, o Estado tornou-se o horizonte ético
do homem grego e assim permaneceu até a era helenística. Os cidadãos sentiram os fins do
Estado como seus próprios fins, o bem do Estado como seu próprio bem, a grandeza do
Estado como sua própria grandeza e a liberdade do Estado como sua própria liberdade” 25.

Conceito grego de filosofia


Para a maioria, foi PITÁGORAS [Πυθαγόρας] quem cunhou o termo “filo-sofia”.
“O termo certamente foi cunhado por um espírito religioso, que pressupunha ser possível
só aos deuses uma ‘sofia’ (‘sabedoria’), ou seja, a posse certa e total do verdadeiro, enquanto
reservava ao homem apenas uma tendência à sofia, uma contínua aproximação do
verdadeiro, um amor ao saber nunca totalmente saciado”. Seria o “amor pela
sabedoria”26. Tudo em três conotações: conteúdo, método e objetivo. Um incansável
especular pró-verdade. A filosofia clássica aceita a categoria da verdade: a sua busca é
incansável, mas legítima. Diferentemente dos exageros pós-modernistas, MÁRIO FERREIRA
DOS SANTOS nos lembra que “essa dignidade [de buscar a vitória] é a do filósofo quando
investiga o absoluto”27. MIGUEL REALE também alertara que “a Filosofia reflete no mais alto
grau essa paixão da verdade, o amor pela verdade que se quer conhecida sempre com maior
perfeição, tendo-se em mira os pressupostos últimos daquilo que se sabe”. Um filósofo é,
pois, “um pesquisador incansável”28. É claro que há variantes: um EDMUND HUSSERL dará
preferência para sua gnosiologia fenomenológica: “o pensamento filosófico”, diz, estaria
“definido pela posição perante os problemas da possibilidade do conhecimento” 29. Há ainda
as doutrinas céticas, que podem descambar, e. g.: i) num anti-dogmatismo; ou ii) num
conservadorismo desconfiado de racionalismo (MICHAEL OAKESHOTT, por exemplo30).

25
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 10.
26
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 11.
27
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 110.
28
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 3.
29
HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Tradução Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70, sem
data, p. 21.
30
Que vai direto ao ponto: “em nenhuma área, especialmente na política, é possível separar o conhecimento
técnico do prático, assim como em nenhum campo eles podem ser considerados idênticos entre si e por
consequente um assumir o lugar do outro” (OAKESHOTT, Michael. Conservadorismo. Tradução André
Bezamat. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2016, p. 33). Este autor é a prova escancarada de que o
Num aspecto do anti-dogmatismo, MIGUEL REALE observa que “o ceticismo radical já
alberga em si mesmo a sua contradição, porque, se o cético apresenta sua doutrina, é porque
afirma ou nega alguma coisa. O cético, no momento em que põe em dúvida a possibilidade
de conhecer, já está afirmando algo de que não pode abrir mão, para poder subsistir como
cético: ⸺ a necessidade de duvidar...”31.
Tudo isso, porém, será assunto de nosso longo curso, na vastidão de nossos muitos
e futuros encontros.

conservadorismo não condiz, necessariamente, com a religião cristã ou com uma religiosidade qualquer
de cariz “fundamentalista”. Ele, aliás, é agnóstico. Um admirador brasileiro, L. F. PONDÉ, é ateu...
31
REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 160.
Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


Professor. Especialista em direito processual civil pela Universidade Cândido Mendes (Rio de
Janeiro/RJ). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Parecerista da
Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e da Revista Eletrônica de Direito Processual
(REDP). Colunista do Empório do Direito.

Encontro 3
“NATURALISTAS” OU FILÓSOFOS DA “PHYSIS”
Assista:

Os Jônios e o “princípio” das coisas. TALES DE MILETO


TALES DE MILETO [Θαλῆς ὁ Μιλήσιος] é o pensador ao qual se atribui o começo
da filosofia grega. TALES viveu em Mileto (Jônia), “provavelmente nas últimas décadas
do séc. VII e na primeira metade do séc. VI a.C. Além de filósofo, foi cientista e político
sensato. Não se tem conhecimento de que tenha escrito livros. Só conhecemos seu
pensamento através da tradição oral indireta” 32. Essa região, diz GIORGIO DEL VECCHIO,
concentra a chamada “Escola Jônica”, cujos pensadores tentaram explicar os “fenômenos do
mundo sensível reduzindo-os a certos tipos”33.
Ele propõe um princípio originário e único das coisas existentes: a água. O princípio
(arché) “não é termo de Tales (talvez tenha sido introduzido por seu discípulo Anaximandro),
mas é certamente o termo que indica, melhor que qualquer outro, o conceito daquele quid
do qual todas as coisas derivam. Como nota Aristóteles em sua exposição sobre o
pensamento de Tales e dos primeiros físicos, o ‘princípio’, é ‘aquilo do qual derivam
originariamente e no qual se resolvem por último todos os seres’, ‘uma realidade que
permanece idêntica no transmutar-se de suas alterações’, ou seja, uma realidade ‘que

32
DEL VECCHIO, Giorgio. História da Filosofia do Direito. Tradução João Baptista da Silva. Belo Horizonte:
Editora Líder, 2006, p. 13.
33
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 18.
continua a existir de maneira imutada, mesmo através do processo gerador de todas as
coisas’”34.
Essa visão filosófica acabou por chamar o dito “princípio” em physis (natureza).
“Assim, os filósofos que, a partir de Tales até o fim do séc. V a.C., indagaram a respeito da
physis foram denominados ‘Físicos’ ou ‘Naturalistas’. Portanto, somente recuperando a
acepção arcaica do termo e captando adequadamente as peculiaridades que a diferenciam da
concepção moderna será possível entender o horizonte espiritual desses primeiros
pensadores”35. Com efeito, a mentalidade grega dessa época “não se vira para os problemas
éticos, nem tão pouco para os jurídicos, pois preocupa-se exclusivamente com a natureza
física”36.
A água do princípio de TALES DE MILETO não pode ser pensada simplesmente:
H²O. “A água de Tales deve ser pensada de modo totalizante, ou seja, como a physis líquida
originária da qual tudo deriva e da qual a água que bebemos é apenas uma de suas tantas
manifestações. Tales é um ‘naturalista’ no sentido antigo do termo e não um ‘materialista’
no sentido moderno e contemporâneo. Com efeito, sua ‘água’ coincidia com o divino” 37.

Busto atribuído a TALES DE MILETO [Θαλῆς ὁ Μιλήσιος].

34
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 18.
35
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 19.
36
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Tradução Antonio José Brandão. Revisão e prefácio
de L. Cabral de Moncada. Atualizada por Anselmo de Castro. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Suc.,
1972, p. 37.
37
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 19.
ANAXIMANDRO DE MILETO
Em boa tese, pode-se dizer que ANAXIMANDRO DE MILETO [Ἀναξίμανδρος] foi
discípulo de TALES, tendo nascido aproximadamente no final do século VII a.C. Ele
“elaborou um tratado Sobre a natureza, do qual chegou um fragmento até nós. Trata-se do
primeiro tratado filosófico do Ocidente e do primeiro escrito grego em
prosa”38.
ANAXIMANDRO DE MILETO aprofundou a questão do “princípio”, sustentando que
“a água já é algo derivado e que, ao contrário, o ‘princípio’ (arché) é o infinito, ou seja, uma
natureza (physis) in-finita e in-definida, da qual provêm todas as coisas que existem”. Ele usa
o termo “á-peiron, que significa aquilo que está privado de limites, tanto externos [...] como
internos. Precisamente por ser quantitativa e qualitativamente i-limitado, o princípio á-
peiron pode dar origem a todas as coisas de-limitando-se de vários modos. Esse princípio
abarca e circunda, governa e sustenta tudo, justamente porque, como de-limitação e de-
terminação dele, todas as coisas geram-se a partir dele, nele consistem e nele existem”39.
A gênese do cosmo se explica assim: “de um movimento, que é eterno, geraram-
se os primeiros dois contrários fundamentais: o frio e o calor. Originalmente de natureza
líquida, o frio teria sido em parte transformado pelo fogo-calor, que formava a esfera
periférica, no ar. A esfera do fogo ter-se-ia dividido em três, originando a esfera do sol, a
esfera da lua e a esfera dos astros. O elemento líquido ter-se-ia recolhido nas cavidades da
terra, constituindo os mares”. Pueril que pareça essa visão, ela é o começo de um caminho
imensamente percorrido “pelo logos avançado para além do mito”40.

Busto atribuído a ANAXIMANDRO DE MILETO [Ἀναξίμανδρος].

38
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 19.
39
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 19-20.
40
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 20-21.
ANAXÍMENES DE MILETO
Discípulo de ANAXIMANDRO, ANAXÍMENES (Άναξιμένης) escreveu Sobre a
natureza “em sóbria prosa jônica”41. O “princípio”, para ele, deve ser infinito, mas ele pensava
em algo “como ar infinito, substancia aérea ilimitada. Escreve ele: ‘Exatamente como a nossa
alma (ou seja, o princípio que dá a vida), que é ar, se sustenta e se governa, assim também
o sopro e o ar abarcam o cosmo inteiro’” 42.
ANAXÍMENES “escolheu” o ar como princípio porque “sentia necessidade de
introduzir uma realidade originária que dela permitisse deduzir todas as coisas, de modo mais
lógico e mais racional do que fizera Anaximandro. Com efeito, por sua natureza de grande
mobilidade, o ar se presta muito bem (bem mais do que o infinito de Anaximandro) para
ser concebido como em perene movimento. Além disso, o ar se presta melhor do que
qualquer outro elemento às variações e transformações necessárias para fazer nascer as
diversas coisas. Ao se condensar, resfria-se e se torna água e, depois, terra; ao se distender (ou
seja, rarefazendo-se) e dilatar, esquenta e torna-se fogo”43.

Perfil atribuído à ANAXÍMENES (não identifiquei a autoria)

HERÁCLITO DE ÉFESO
HERÁCLITO (Ἡράκλειτος) viveu entre VI e V a.C., em Éfeso. Também escreveu
algo intitulado Sobre a natureza. Ele desenvolveu a ideia de que “tudo escorre” (panta rhei),
de que “tudo se move”. É dizer: “nada permanece imóvel e fixo, tudo muda e se transmuta,
sem exceção. Em dois de seus mais famosos fragmentos podemos ler: ‘Não se pode descer
duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo

41
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 21.
42
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 21.
43
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 21.
estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se
reúne, vem e vai” – esse raciocínio abarcaria toda a realidade, sem exceções 44.
Com essa premissa, HERÁCLITO nota que estados contrários se atraem: o molhado
se torna seco, o vivo morre, o novo envelhece. Isto seria uma “guerra perpétua”, mas o final
disso é uma “pacificação de beligerantes”: isso “é o ‘princípio’ em portanto, Deus ou divino:
‘Deus é dia-noite, é inverno-verão, é guerra-paz, é saciedade-fome’”45.
Deu valor ao fogo, que seria “como ‘raio que governa todas as coisas’”, a
inteligência, a razão, logos, lei racional. “Em Heráclito já emerge uma série de elementos
relativos à verdade e ao conhecimento [...]. A Verdade consiste em captar, para além dos
sentidos, a inteligência que governa todas as coisas” 46.
Foi com essa influência de HERÁCLITO que “os estóicos adotaram uma filosofia
panteísta, sustentando que o universo seria conduzido por um princípio geral, logos, a razão,
estando o mundo da matéria impregnado de racionalidade” 47.

HERÁCLITO, na pintura de JOHANNES MOREELSE

PITÁGORAS
A filosofia de PITÁGORAS (Πυθαγόρας) surtiu efeitos religiosos e políticos. “O
ideal político pitagórico era uma forma de aristocracia baseada nas novas camadas dedicadas
especialmente ao comércio, que [...] haviam alcançado elevado nível nas colônias, antes
ainda do que na mãe-pátria”48. Pouca coisa dele chegou, efetivamente, às gerações
posteriores (o próprio ARISTÓTELES não teve elementos para diferenciar o homem de

44
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 23.
45
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 23.
46
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 24.
47
NADER, Paulo Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 112.
48
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 25.
PITÁGORAS das ideias dos pitagóricos): “não é possível, portanto, falar do pensamento de
Pitágoras, considerado individualmente, e sim do pensamento dos Pitagóricos, considerados
globalmente”49. Aliás, “segundo parece, era oral o ensino de PITÁGORAS e, por isso, não se
encontra traço de seus escritos: das suas teorias chegaram até nós apenas fragmentos
recolhidos em apontamentos de discípulos e as referências de ARISTÓTELES, que as
contestou”50.
O número: “os Pitagóricos indicaram o número (e os componentes do número)
como o ‘princípio’, ao invés da água, do ar ou do fogo”. Com essa descoberta de que em
todas as coisas há regularidade matemática (numérica), o ocidente ganhou novo rumo para
seu desenvolvimento espiritual. “Deve ter sido determinante para isso a descoberta de que
os sons e a música, à qual os Pitagóricos dedicavam grande atenção como meio de purificação
e catarse, são traduzíveis em determinações numéricas, ou seja, em números: a diversidade
dos sons produzidos pelos martelos que batem na bigorna depende da diversidade de peso
dos martelos (que é determinável segundo um número), ao passo que a diversidade dos sons
das cordas de um instrumento musical depende da diversidade de comprimento das cordas
(que é analogicamente determinável segundo um número)”. Além disso, “são leis numéricas
que determinam os anos, as estações, os meses, os dias, e assim por diante”51. Nessa filosofia,
o princípio de todas as coisas é a matemática: inclusive a justiça e a sua “medida”. Aliás, “para
os pitagóricos, a Justiça é a relação aritmética, uma equação ou igualdade. À luz desta
concepção, deduzem o conceito de retribuição, de troca, de correspondência entre o facto
e o tratamento adequado dele [...]. Encontra-se nesta concepção – a qual se aplica
igualmente à pena – o germe da futura doutrina aristotélica da Justiça” 52. De qualquer
maneira, MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS entende que PITÁGORAS “afirmava que todas as
coisas finitas podem ser vistas triadicamente. O três preside-as como começo, meio e fim
(término)”53.
Atrelar a justiça ao número fez FRANCISCO CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA criar
uma teoria da ação (ação judicial, não ação humana) muito interessante e criativa. Superando
a classificação de ações baseada em repetidos esquemas de gênero e espécies de sua época 54,

49
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 26.
50
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Tradução Antonio José Brandão. Revisão e prefácio
de L. Cabral de Moncada. Atualizada por Anselmo de Castro. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Suc.,
1972, p. 38.
51
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 26-27.
52
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Tradução Antonio José Brandão. Revisão e prefácio
de L. Cabral de Moncada. Atualizada por Anselmo de Castro. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Suc.,
1972, p. 39.
53
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 40.
54
Cf. COUTO E SILVA, Clóvis. A teoria das ações em Pontes de Miranda. Ajuris 43, Porto Alegre, 1988,
p. 75.
PONTES DE MIRANDA sistematizou as ações numa “constante 15” – teoria quinária das
ações. Em sete preciosos volumes (Tratado das Ações), PONTES identificou a presença
constante de feixes eficaciais das sentenças. Essas forças constantes seriam: i) a eficácia
condenatória; ii) a eficácia executiva; iii) a eficácia mandamental; iv) a eficácia declaratória;
e v) a eficácia constitutiva. Uma sentença de despejo, por exemplo, “comanda,
preponderantemente, a restituição do bem locado (eficácia principal: executiva); desfaz o
contrato (eficácia imediata: constitutiva); declara o direito do autor à recuperação da coisa
(eficácia mediata: declarativa); e, estando a locação averbada no cartapácio real, manda
cancelar o registro (eficácia mandamental)”55 – sobre essa ilustração de ARAKEN DE ASSIS
podemos acrescentar a eficácia condenatória dos honorários advocatícios e/ou das custas
processuais (5 + 4 + 3 + 2 + 1 = 15). Esse estudo ponteano das ações judiciais manteve
“homologia estrutural manifesta com a Mecânica Quântica”, como bem salientou EDUARDO
JOSÉ DA FONSECA COSTA. Este importante processualista de São Paulo bem resumiu a teoria
quinária:

Aqui, a sentença (devendo-se lembrar que para Pontes de Miranda


sentença e tutela jurisdicional são uma mesma e única coisa) é vista como
um “átomo”: a) tem cinco “níveis de energia” (o declaratório, o
constitutivo, o condenatório, o mandamental e o executivo); b) dentro
de cada nível se encontram “cargas”, às quais se pode atribuir o peso 1,
2, 3, 4 ou 5; c) a soma dos pesos medidos em cada “nível” sempre resulta
em 15 (quinze); d) não existem dois níveis com idêntico peso ou
“quantum de energia”. Conseguintemente, tudo se passaria como se no
“mundo das sentenças” todos os átomos tivessem o mesmo peso,
embora, internamente, esses pesos se distribuíssem de uma forma
diferente nos cinco níveis de energia de cada átomo. Na verdade, é como
se para cada tipo de ação existisse um “espectro de energia” sentencial
único, que lhe servisse como uma marca registrada.
Uma sentença de despejo, p. ex., teria o seguinte “espectro de energia”:
carga 5 (cinco) de execução (= comando para a restituição do imóvel
locado) + carga 4 (quatro) de constituição (= desfazimento do contrato
locatício) + carga 3 (três) de declaração (= reconhecimento do direito
subjetivo do autor à recuperação da coisa alugada) + carga 2 (dois) de
mandamento (= ordem para que se cancele a averbação do contrato de
locação no cartório de registro imobiliário) + carga 1 (um) de
condenação (= condenação do réu nas despesas processuais). Já a
“configuração espectral” de uma sentença de usucapião, p. ex., seria a
seguinte: carga 5 (cinco) de declaratividade (= reconhecimento do
direito de propriedade do usucapiente); carga 4 (quatro) de
mandamentalidade (= determinação para provocar-se o oficial de
registro); carga 3 (três) de constitutividade (= formação do título a ser
levado ao registro no cartório); carga 2 (dois) de executividade (=
colocação na esfera do autor daquilo que até então estava posto sob a

55
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 14.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 83.
esfera do réu); carga 1 (um) de condenatoriedade (= condenação do
vencido nas despesas do processo)56.

Essa noção pitagórica sobre os números traz noções gráficas interessantes. A


disposição dos pares e dos ímpares trazem noções axiológicas para os pitagóricos. Os números
pares, uma vez separados por uma flecha, deixam um campo vazio em sua direção final. Os
ímpares, diferentemente, sempre deixam uma unidade a mais (“que os de-limita e de-
termina”57).

Os pitagóricos também enxergavam os números pares como femininos, e os ímpares


como masculinos. Os pares também seriam retangulares, enquanto os ímpares seriam
quadrangulares58.

O número 1 (o “um”) pitagórico não é par nem ímpar: “tanto é verdade que dele
procedem todos os números, tanto pares como ímpares: agregado a um par, gera um ímpar;
agregado a um ímpar, gera um par”59.

56
COSTA, Eduardo José da Fonseca. Uma arqueologia das ciências dogmáticas do processo. Revista
Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, v. 61, 2008.
57
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 27. A figura foi retirada dessa obra.
58
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 28. A figura foi retirada dessa obra.
59
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 28.
Número perfeito: para os pitagóricos, o “número de perfeito” seria o 10 (“dez”),
que visualmente era representado por um triângulo perfeitamente acabado, “formado pelos
primeiros quatro números e tendo o número 4 em cada lado (a tetraktys)”60:

Busto atribuído a PITÁGORAS

XENÓFANES DE CÓLOFON
XENÓFANES DE CÓLOFON (Ξενοφάνης ὁ Κολοφώνιος) teria nascido no século
VI a.C. Afirma-se que “sua problemática é de caráter teológico e cosmológico”, sendo ele
considerado “pensador independente, tendo apenas algumas afinidades muito genéricas com
os eleatas”. Seus versos criticavam a concepção dos deuses que HOMERO e que HESÍODO
haviam fixado. O erro fundamental, aqui, seria o antropomorfismo, “ou seja, em atribuir
aos deuses formas exteriores, características psicológicas e paixões iguais ou análogas as que
são próprias dos homens, apenas quantitativamente mais notáveis, mas não qualitativamente
diferentes”61. Ele desprega o antropomorfismo dos deuses. Deus passa a ser visto em
dimensão não humana, mas cosmológica.

60
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 28.
61
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 30.
XENÓFANES – não descobri a autoria do desenho

PARMÊNIDES
PARMÊNIDES (Παρμενίδης) é considerado pai da ontologia, i. e., da teoria do ser.
A ontologia estuda o que é, não o que deve ser. É o mundo do ser.
Ele “põe sua doutrina na boca de uma deusa que o acolhe benignamente”. Essa
deusa “simboliza a verdade que se revela”, e sinaliza “três vias: 1) a da verdade absoluta; 2)
a das opiniões falazes (a doxa falaz), ou seja, a da falsidade e do erro; 3) finalmente, uma via
que se poderia chamar de opinião plausível (a doxa plausível)”62.
Primeira via – verdade absoluta: o grande princípio de PARMÊNIDES “é o
próprio princípio da verdade”. Seria o seguinte: “o ser é e não pode não ser; o não-ser é e não
pode ser de modo nenhum”63. Sobre o ser reside um positivo puro; sobre o não-ser um negativo
puro. Para que haja o ser, é preciso que seu oposto também exista: o não-ser.
Segunda via – caminho da razão: caminhar para a verdade é caminhar na razão
(“senda do dia”). Caminhar para o erro é caminhar com os sentidos (“senda da noite”). “O
caminho do erro resume todas as posições daqueles que, de qualquer modo, admitem
expressamente ou fazem raciocínio que impliquem o não-ser, que, como vimos, não existe,
porque impensável e indizível”64.
Terceira via – aparências plausíveis: “resumidamente, Parmênides teve de
reconhecer a liceidade de certo tipo de discurso que procurasse dar conta dos fenômenos e
da aparência das coisas, com a condição de que tal discurso não se voltasse contra o grande

62
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 33.
63
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 33.
64
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 35.
princípio e não admitisse, juntos, o ser e o não-ser”. “As cosmologias tradicionais foram
construídas com base na dinâmica dos opostos, dos quais um fora concebido como positivo
e como ser e o outro como negativo e como não-ser. Ora, segundo Parmênides, o erro está
em não se ter compreendido que os opostos se devem pensar como incluídos na unidade
superior do ser: ambos os opostos são ‘ser’. Assim, Parmênides tenta uma dedução dos
fenômenos, partindo da dupla de opostos ‘luz’ e ‘noite’, mas proclamando que ‘com
nenhuma das duas está o nada’, ou seja, que ambas são ‘ser’” 65.
O estudo da ontologia, por PARMÊNIDES, é interessante para a divagação filosófica
sobre Deus. Como escreveu MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, no contexto de sua Filosofia da
Crise66, “no ser infinito, não há crisis, porque nele não há limites, pois estes são fronteiras que
separam os seres, e aquele, fonte e sustentáculo de todos os outros, não tem fronteiras, mas
apenas perfil, na linguagem tão poética e tão clara de Parmênides, porque não há outro que
a ele se oponha”67. Mas essa filosofia tem um problema: “reduziu tudo à identidade,
virtualizando a heterogeneidade a ponto de negá-la, por excesso de atualização sincrética”.
Por isso, a filosofia de PARMÊNIDES é uma filosofia de crise (não da crise)68.

Busto atribuído à PARMÊNIDES

ZENÃO
É provável que as teorias de PARMÊNIDES causaram imensa repercussão, e seus
“adversários” (no plano teórico) preferiram “adotar outro caminho, isto é, mostrar no
concreto, com exemplos bem evidentes, que o movimento e a multiplicidade são inegáveis”.
ZENÃO DE ELEIA (Ζήνων ὁ Ἐλεάτης) procurou responder essas tentativas, criando uma
dialética. Ele “descobriu a refutação da refutação, isto é, a demonstração por absurdo.

65
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 35.
66
Ver nossa resenha a respeito dessa obra aqui: https://goo.gl/CFyqPU.
67
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 38.
68
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 75.
Mostrando o absurdo em que caíam as teses opostas ao Eleatismo, estava defendendo o
próprio Eleatismo. Desse modo, Zenão fundou o método da dialética, usando-o com
habilidade que maravilhou os antigos”. Seus argumentos procuraram refutar o movimento
e a multiplicidade.

Busto atribuído à ZENÃO

MELISSO DE SAMOS
MELISSO DE SAMOS (Μέλισσος ὁ Σάμιος) trouxe uma prosa “com rigor
dedutivo”, sistematizando “a doutrina eleática, ao mesmo tempo em que a corrigiu em
alguns pontos. Em primeiro lugar, afirmou que o ser deve ser ‘infinito’ (e não finito, como
dizia Parmênides), porque não tem limites temporais nem espaciais, e também porque, se
fosse finito, deveria se limitar com um vazio e, portanto, com um não-ser, o que é
impossível. Enquanto infinito, o ser também é necessariamente uno: ‘com efeito, se fossem
dois, não poderiam ser infinitos, pois um deveria ter seu limite no outro’”. Em outro ponto,
“Melisso corrigiu Parmênides” também “na total eliminação do campo da opinião, com um
raciocínio de notável acuidade especulativa: o hipotético de múltiplo poderia existir apenas
se pudesse ser como o Ser-Uno: ‘Se os muitos existissem – diz ele expressamente – cada
um deles deveria ser como é o Uno’”69.
A assim chamada Escola Eleática, quase contemporânea à Escola Jônica, tentou
investigar os mesmos problemas dos jônicos, mas “de modo mais profundo [...], no ponto
em que, elevando-se a um conceito metafísico, sustenta que o ser é uno, imutável, eterno”.
E, “para ela [Escola Eleática] há uma só distinção: o que é e o que não é; em seguida, negação,
pois do conceito de movimento e de vir-a-ser, que seria uma ilusão dos sentidos. Não seria
possível um nascer, um morrer, um vir-a-ser”70.

69
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 37-38.
70
DEL VECCHIO, Giorgio. História da Filosofia do Direito. Tradução João Baptista da Silva. Belo Horizonte:
Editora Líder, 2006, p. 13.
Desenho de MELISSO em Nuremberg Chronicle

EMPÉDOCLES
EMPÉDOCLES (Ἐμπεδοκλῆς) foi “o primeiro pensador que procurou resolver a
aporia eleática”. Para ele, “da mesma forma que para Parmênides, o ‘nascer’ e o ‘perecer’,
entendidos como um vir do nada e um ir ao nada, são impossíveis, porque o ser existe e o
não-ser não existe. Assim, não existem ‘nascimento’ e ‘morte’: aquilo que os homens
chamaram com esses nomes, ao contrário, são o misturar-se e o dissolver-se de algumas
substâncias que permanecem eternamente iguais e indestrutíveis. Tais substâncias são a água,
o ar, a terra e o fogo, que Empédocles chamou de ‘raízes de todas as coisas’”. Assim, “os
Jônios haviam escolhido ora uma ora outra dessas realidade como ‘princípio’, fazendo as
outras derivarem dela através de um processo de transformação. A novidade de Empédocles
consiste no fato de proclamar a inalterabilidade qualitativa e a intransformabilidade de cada uma”.
É assim que nasce “a noção de ‘elemento’, precisamente como algo de originário e de
‘qualitativamente imutável’, capaz apenas de unir-se e separar-se espacial e mecanicamente
como relação a outra coisa”71.

EMPÉDOCLES – não descobri a autoria do desenho

71
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 40.
ANAXÁGORAS
ANAXÁGORAS (Ἀναξαγόρας) “deu prosseguimento à tentativa de resolver a
grande dificuldade suscitada pela filosofia eleática”. Viveu em Atenas e, “provavelmente, foi
exatamente seu o mérito de ter introduzido o pensamento filosófico nessa cidade, destinada
a tornar-se a capital da filosofia antiga”. ANAXÁGORAS “também se declara perfeitamente de
acordo sobre a impossibilidade de que o não-ser exista e, portanto, de que ‘nascer’ e
‘morrer’ constituam eventos reais. Escreve ele: ‘Mas os gregos não consideram
corretamente o nascer e o morrer: com efeito, coisa alguma nasce e morre, mas sim, a partir
das coisas que existem, se produz um processo de composição e divisão. Portanto, eles
deveriam chamar corretamente o nascer de compor-se e o morrer de dividir-se’”72.

ANAXÁGORAS – imagem de EDUARD LEBIEDZKI

LEUCIPO e DEMÓCRITO
“A última tentativa de responder aos problemas propostos pelo Eleatismo,
permanecendo no âmbito da filosofia da physis, foi realizada por Leucipo e Demócrito, com
a descoberta do conceito de átomo”73.
LEUCIPO nasceu em Mileto, mas foi para Eleia (Itália). De lá, partiu para Abdera,
“onde fundou a Escola que seria elevada ao seu mais alto nível por Demócrito, nascido nesta
mesma cidade”.
Também “reafirmam a impossibilidade do não-ser, sustentado que o nascer nada
mais é do que ‘um agregar-se de coisas que existem’ e o morrer ‘um desagregar-se’, ou
melhor, um separar-se das mesmas. Mas a concepção dessas realidades originárias é muito
nova. Trata-se de um ‘número infinitos de corpos, invisíveis pela pequenez e volume’”.

72
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 42.
73
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 44.
Esses corpos são indivisíveis: á-tomos – “em grego, ‘átomo’ significa ‘o não-divisível’”.
Naturalmente, são também “incriados, indestrutíveis e imutáveis” 74.
Note bem: “átomo”, aqui, não deve ser compreendido no sentido pós-GALILEU.
Os abderitas (= aqueles da cidade de Abdera) consideram que “o átomo levava o selo do
modo de pensar especificamente grego”. Átomo, na filosofia grega de LEUCIPO, DEMÓCRITO
e também de EPICURO, significa “indivisível” e, também, “indica o princípio de toda a
realidade”75.

O Choroso Heraclito e o Risonho Demócrito, de DONATO BRAMANTE, Pinacoteca di Brera, Milão

DIÓGENES DE APOLÔNIA
Os finalmentes desses filósofos da physis “assinalam, pelo menos em parte, uma
involução em sentido eclético. Ou seja, tende-se a combinar as ideias dos filósofos
anteriores. Alguns o fizeram de maneira evidentemente inábil”, sendo séria a tentativa de
DIÓGENES DE APOLÔNIA (Διογένης ὁ Ἀπολλωνιάτης), o qual “sustentou a necessidade
de retornar ao monismo do princípio, porque, em sua opinião, se os princípios fossem
muitos e de natureza diferente entre si, não se poderiam misturar nem agir um sobre o
outro. Assim, é necessário que todas as coisas nasçam por transformação a partir do mesmo
princípio. Esse princípio é ‘ar infinito’, mas é ‘dotado de muita inteligência’” – aí estão
combinados ANAXÍMENES e ANAXÁGORAS. Esse pensamento de DIÓGENES teve repercussão
em Atenas, tanto que ele constituiu “um dos pontos de partida do pensamento socrático”76.

74
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 44.
75
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 45.
76
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 46.
DIÓGENES – não descobri a autoria do desenho

ARQUELAU DE ATENAS
Concepção análoga de DIÓGENES é atribuída à ARQUELAU DE ATENAS
(Ἀρχέλαος), pois “parece que ele também falava, entre outras coisas, de ‘ar infinito’ e de
‘Inteligência’. Numerosas fontes o identificam como ‘mestre de Sócrates’”77.

Busto atribuído à ARQUELAU

Mapa conceitual – os naturalistas

Como dele
Qual é o
Classe Filósofo derivam as
princípio
coisas

TALES É a água
MONISTAS
por separação dos
(há um princípio
ANAXIMANDRO É o ápeiron contrários, por uma
que se encontra ou
espécie de injustiça

77
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 46.
se deduz da por condensação e
natureza) ANAXÍMENES É o ar infinito
rarefação

É o fogo-lógos-
natureza, símbolo
por oposição nos
do devir de todas as
particulares,
HERÁCLITO coisas e da razão-
segundo harmonia
harmonia que
no todo
governa seus
movimentos

É o número e os segundo relações


elementos do harmônico-
PITAGÓRICOS Vários.
número (= matemáticas no
limite/ilimite) todo e nas partes

É a terra (mas só
XENÓFANES
para nosso mundo)

a rigor não existe


PARMÊNIDES nenhum principiado
O ser é o princípio e
(= acosmismo),
ELEATAS ZENÃO fora do princípio
enquanto o devir
MELISSO nada existe
testemunhado pelos
sentidos não existe

Os quatro
por efeito do Amor
EMPÉDOCLES elementos: ar, água,
e do Ódio
terra e fogo

PLURALISTAS por efeito do


As “raízes” ou
(há muitos ANAXÁGORAS movimento
homeomerias
princípios impresso pelo Nous
semelhantes ao ser
por efeito do
eleático) LEUCIPO movimento do qual
DEMÓCRITO Os átomos os átomos estão
(= Atomistas) naturalmente
dotados
FÍSICOS DIÓGENES DE É o ar infinito e
por causas finais
ECLÉTICOS APOLÔNIA inteligente
(o princípio é o
único e deduzido da ARQUELAU DE É o ar infinito e
natureza) ATENAS inteligente
Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


Professor. Especialista em direito processual civil pela Universidade Cândido Mendes (Rio de
Janeiro/RJ). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Parecerista da
Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e da Revista Eletrônica de Direito Processual
(REDP). Colunista do Empório do Direito.

Encontro 4
A SOFÍSTICA
Assista:

Sofismo
O termo “sofista” tem a ver com “sábio”, com especialidade do saber – ao menos
numa acepção fechada nela mesma, otimista e, quiçá, arrogante. Depois de forte polêmica
de PLATÃO e de ARISTÓTELES, “sofismo” foi expressão que ganhou contornos negativos.
Pode-se dizer que os sofistas “operaram verdadeira revolução espiritual (deslocando o eixo
da reflexão filosófica da physis e do cosmo para o homem e àquilo que concerne à vida do homem
como membro de uma sociedade) e, portanto, centrando seus interesses sobre a ética, a política,
a retórica, a arte, a língua, a religião e a educação, ou seja, sobre aquilo que hoje chamamos
a cultura do homem. Portanto, é exato afirmar que com os sofistas, inicia-se o período
humanista da filosofia antiga”78.

O posicionamento sofista
Como escrevem GIOVANNI REALE e DARIO ANTISERI, os sofistas souberam captar
de modo perfeito o contexto sociopolítico daquele momento (crise da aristocracia; afluxo
de estrangeiros em Atenas etc.), dando uma forma e uma voz para essa “novidade”. “E isso
explica por que alcançaram tanto sucesso, especialmente entre os jovens: eles respondiam a
reais necessidades do momento, propondo aos jovens a palavra nova que esperavam, já que

78
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 73-74.
não estavam mais satisfeitos com os valores tradicionais que a velha geração lhes propunha
nem com o modo como os propunha”79.

Grupos de sofistas
Uma divisão didática sugere quatro grupos de sofistas:
1.º) os da primeira geração, “grandes e famosos mestres [...] que não estavam
em absoluto privados de reservas morais, e que o próprio Platão considerou dignos de certo
respeito”;
2.º) os Erísticos, “que levaram o aspecto formal do método à exasperação,
perderam interesse pelos conteúdos e também perderam a reserva mental que caracterizava
os mestres”;
3.º) os Político-sofistas, “que utilizavam ideias sofistas em sentido ‘ideológico’,
como diríamos hoje, ou seja, com finalidades políticas, caindo em excessos de vários tipos e
chegando até a teorização do imoralismo”; e
4.º) uma escola particular “que não se identifica com a dos mestres da primeira
geração, e tomou o nome de ‘naturalista’, enquanto contrapunha a lei positiva à natural,
privilegiando a última e relativizando a primeira” 80.

PROTÁGORAS
PROTÁGORAS (Πρωταγόρας) é o mais famoso sofista. Nasceu em Abdera, na
década de 491-481 a.C. Teve sucesso em Atenas e repercussão política. Sua principal obra
seriam As Antilogias. É dele o famoso axioma “o homem é a medida de todas as coisas,
das que são por aquilo que são e das que não são por aquilo que não são” – princípio do homo
mensura. Vale anotar que por “medida”, PROTÁGORAS queria designar “norma de juízo”; e
“todas as coisas” seriam “todos os fatos e todas as experiências em geral”. Eis o mantra do
relativismo ocidental81.
É disso que mais me afasto: relativismo. Essa proposta gnosiológica falseia a
realidade. Se o homem é a medida de todas as coisas, como queria PROTÁGORAS, então tudo
se baseará num sentido egoístico de seu intelecto. Isso cria um mecanismo doentio e dual de

79
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 75.
80
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 75.
81
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p.77.
realidade ôntica, de um lado; e outra pseudorealidade (distopia mental do sujeito cognoscente
egoísta, dono de si).
PROTÁGORAS “pretendia negar a existência de um critério absoluto que discrimine
ser e não-ser, verdadeiro e falso”82. Esse tipo de postura é arrogante. Há uma medida do justo
e do jurídico. Se escrevo “matar alguém – pena de reclusão de 6 a 20 anos” (art. 121 do
Código Penal), transmito um dado para receptores. O ato de interpretar tem de levar em conta
um a priori “da coisidade do texto”83.
Há uma verdade. Tem de haver. Veja-se a seguinte passagem – em tom jocoso – do
Canal Brasileirinhos (não sei o nome do autor):

O grande argumento do progressismo [é o seguinte:] “x é apenas uma


construção social” e portanto não existe um critério fixo de valores ao
qual possamos nos referir.
Esse argumento não significada nada. É puro ruído diversionário, já que
as sociedades primitivas também têm as suas regras e as suas construções
sociais. Por exemplo: elas têm padrões de beleza diferentes dos nossos,
mas elas têm padrões de beleza, e é isso o que importa. Os critérios
dessas sociedades funcionam para elas; e os nossos funcionam para os
nossos. A “família tradicional” desprezada e atacada pelos progressistas
como apenas uma “construção social” é uma tecnologia, um conceito
aplicado a um problema. Definir quem cuida do filho de quem, quem
herda os bens de quem, quem tem obrigação para com qual grupo etc.
Toda tecnologia é uma criação humana, assim como os meridianos do
globo terrestre ou a divisão do dia em 24 horas, que não são entidades
do mundo concreto, mas sim convenções, construções... Que
funcionam.
Nós não somos meros conceitos soltos no ar, que podem ser mudados
indefinidamente por filósofos pretensamente dotados de objetividade
cartesiana sem que isso gere consequências imprevistas. Nós não
nascemos em uma placa de Petri asséptica, e a sociedade não é um
laboratório, mas sim um sistema complexo de causas e efeitos, pesos e
contrapesos, que resultam de um longo processo de desenvolvimento
histórico. Imperfeito, como tudo mais que existe; já que a imperfeição
é o preço que as coisas pagam para poder existir, mas cujo
funcionamento foi testado e considerado aceitável pela maioria por
séculos.
E isso vale tanto para a civilização nos moldes europeus quanto para as
sociedades primitivas de algum arquipélago selvagem. Ser humano é
existir dentro de uma sociedade, o que implica acatar algumas
construções sociais, e não outras. Não faz sentido atacar os parâmetros
pelos quais uma sociedade se regula como irreais, pois eles derivam de

82
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p.77.
83
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
37.
conceitos que não podem ser provados cientificamente, mas apenas à luz
da experiência compartilhada por diferentes grupos humanos ao longo
da história. A fraqueza fatal do argumento de que tudo é uma
construção social é que, se tudo é uma construção social,
então o conceito de que tudo é uma construção social
também é uma construção social, e portanto pode ser
rejeitado junto com todos os outros. O relativismo cultural se
contradiz e cancela a si mesmo, e não serve nem para descascar um
ovo cozido... O que dirá organizar uma sociedade84.

ad infinitum (já
que “o homem é a
medida de todas
as coisas”...).

Há razões para desconfiar do sofismo85-86. Salienta MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS


que “nenhum filósofo pode negar” que “seria melhor”, diz, “se vencêssemos a crise87. ‘Seria
melhor’ se nos fosse dado transcende-la efetivamente. Nesse ‘seria melhor’, que se
apresenta no vago de uma dúvida ou na firmeza de uma certeza, o espírito humano encontra-
se sempre ante dois caminhos: procura-lo e acha-lo, ou abandonar essa busca. E há abandono
naqueles que previamente aceitam a inutilidade dessa busca, o que é ainda desespero [...]. E
é um velho princípio dos escolásticos, que vem de origens gregas, que não há nenhum
impulso emergente em nós que seja absolutamente inútil. Se tendemos para algo superior,
há em nós uma raiz mais distante que o justifica”88.
Um PROTÁGORAS será útil para o falso: “não existe um ‘verdadeiro’ absoluto e
também não existem valores morais absolutos (‘bens’ absolutos). Existe, entretanto, algo
que é mais útil, mais conveniente e portanto, mais oportuno”, de maneira que “o relativismo recebe
uma forte limitação. Com efeito, pareceria que, enquanto é medida e mensurador em relação
à verdade e à falsidade, o homem seja medido em relação à utilidade, ou seja, que, de alguma

84
CANAL BRASILEIRINHOS. Não Tenhais Medo ep. 5: O que aconteceu com os humanos? Disponível em:
https://goo.gl/HFiCGv. Acesso em 16 jan. 2019.
85
Sobre isso, recomendo VIGNE, Antonio Roberto. Sofisma, a arte de te enganar com uma falsa verdade!
Disponível em: https://goo.gl/vygh5H. Acesso em 16 jan. 2019.
86
Quanto ao problema de ignorar a realidade, v. MORGENSTERN, Flávio. Podcast “Senso Incomum” – “Crise
Intelectual”. Disponível em: https://goo.gl/wbLwtm.
87
Ver nossa resenha a respeito da Filosofia da Crise aqui: https://goo.gl/CFyqPU.
88
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 105.
forma, a utilidade venha a se apresentar como objetiva. Em suma, pareceria que, para
Protágoras, o bem e o mal seriam, respectivamente, o útil e o danoso; e o ‘melhor’ e o ‘pior’
seriam o ‘mais útil’ e o ‘mais danoso’. Entretanto, com base em tudo o que nos foi legado
de sua teoria, está claro que Protágoras não soube dizer em que bases e em que
fundamentos o sofista possa reconhecer tal ‘útil’ sociopolítico. Para fazê-lo,
precisaria ter escavado mais profundamente na essência do homem, para determinar sua
natureza”89.
Assim, por mais que o sujeito trabalhe com o objeto diante de si, há certos atributos
deste que não são retiráveis (nem modeláveis), por força de determinados caracteres ônticos
transcendentais. Essa relação pode ser exemplificada (segundo nossas próprias construções):
a) na relação do jurista com o seu principal objeto de estudo: a lei (em sentido
abrangente);
b) na relação do músico com uma escala diatónica, ele jamais poderá tocar, em seu
piano, e. g., um “sol” no lugar de um “si”, e terá de levar em conta a inserção de uma clave
de sol em sua partitura, pois ela indicará a nota “sol” na pauta respectiva:

c) na relação de um futebolista com um jogo de futebol, ele jamais poderá crer que
o gol é um chute para a arquibancada, mas apenas o cruzar da bola, em sua inteireza, após a
linha das traves;
d) na relação de um piloto com a corrida, ele jamais poderá correr na contramão
segundo o juízo de sua “construção social” – um GP de Interlagos será sempre no sentido
anti-horário; um GP como o de SPA-Francorchamps terá sempre o charme de sua Eau Rouge,
em sentido horário;
e) um penalista jamais poderá sugerir, dogmaticamente, que crime culposo possa
ser tentado, algo “tão inadmissível como um cilindro de cinco vértices”, um verdadeiro
“monstro lógico inconcebível, uma aberração absolutamente inaceitável”, como dissera JOSÉ
HENRIQUE PIERANGELI90;

89
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p.77-78.
90
PIERNAGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial. 2.ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, p. 47.
f) um discurso sociológico jamais será veiculado pela linguagem da Física, assim
como jamais será possível imaginar um discurso psicológico travestido de língua da
Jurisprudência91-92.
Em resumo:

[...] os signos são esponjas embebidas de significação pelo/para uso


social. Sentidos, esses, publicamente vividos, independentemente de
serem pensados pela mente de um sujeito aqui e agora, como
as proposições em si ou lektòn de Bolzano ou jetos pontesianos. E mesmo
quando o sujeito empírico (eu, você, alguém que não
conhecemos) se põe diante de um texto, já sempre estará
inserido em um diálogo contrafactual do qual faz parte, em
que as significações não são atribuídas aleatória e
arbitrariamente. [...]. A questão, que poderia ser posta com
honestidade intelectual, seria a seguinte: onde estão situados os sentidos?
Do mesmo modo, poder-se-ia perguntar: onde estão situados os valores?
Os céticos de plantão respondem: em lugar algum, porque eles não
existem como objetos ideais ou como objetos culturais. Seriam
sentimentos ou fenômenos psicológicos. Logo, reduzidos à mera
subjetividade. Ou, ainda: os valores e os sentidos apenas são enquanto
usados concretamente. Significados e valores seriam vivências subjetivas,
exclusivamente. Assim pensam Paulo de Barros Carvalho e Humberto
Ávila, por exemplo. Todavia, ainda que assim pensem, não negam que
existam um sentido preliminar ou prima facie nos textos, nada obstante
não procurem explicar que sentido seria esse que, não sendo atribuição
do intérprete, existiria nos enunciados93.

GÓRGIAS
Este sujeito, GÓRGIAS (Γοργίας), nasceu entre 485-480 a.C., tendo viajado por
toda a Grécia. Ele “parte do niilismo para construir o edifício de sua retórica. O tratado Sobre
a natureza ou sobre o não-ser é uma espécie de manifesto do niilismo ocidental, baseando-se
nas três teses seguintes: 1) Não existe o ser, ou seja, nada existe. [...]; 2) Se o ser existisse,

91
SILVA, Jhonatan de Castro e. Linguagem, poder simbólico e interpretação: suas implicações sobre a ciência do
direito, 2012. Disponível em: https://goo.gl/hJs0wF. Acesso em 18 dez. 2015. Como conheço bem o
autor deste texto, aviso que o termo “Jurisprudência” é usado, por Castro e Silva, com o “J” maiúsculo,
para designar a ciência do direito. Isso advém da obra de Reale, que utiliza “Jurisprudência” com o mesmo
sentido.
92
“O direito é linguagem. Não apenas linguagem, porém, e muito menos ainda apenas linguagem
formalizada. Há o direito positivo e a Ciência do Direito. Estamos a nos referir àquele através dessa; ali,
linguagem-objeto versada, aqui, pela metalinguagem” (COSTA, Adriano Soares da. A descritividade da
ciência do direito: diálogo com Humberto Bergmann Ávila. Disponível em: https://goo.gl/OaW0Rq. Acesso
em 21 dez. 2015).
93
COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
38-39.
‘não poderia ser cognoscível’. [...]; 3) Mesmo que fosse pensável, o ser permaneceria
inexprimível. Com efeito, a palavra não pode transmitir verazmente coisa nenhuma que não
seja ela própria”94.
Niilismo, vale lembrar, “é a teoria filosófica que se fundamenta sobre a admissão
de que não existe o ser, e portanto de que não existe o ser, e portanto o nada existe. Em
geral, do niilismo metafísico segue-se o relativismo gnosiológico e moral, enquanto, na
ausência do ser, não é possível fixar uma verdade e um bem absolutos”95-96.

PRÓDICO
PRÓDICO (Πρόδικος) nasceu entre 470-460 a.C., lecionando “com sucesso em
Atenas”. Ele teria sido um “mestre na arte de discursar”, sendo que “Sócrates chegou a
recordá-lo jocosamente como ‘seu mestre’. A técnica que propunha baseava-se na sinonímia,
ou seja, na distinção entre os vários sinônimos e na determinação precisa das nuanças de seu
significado”97.

94
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 78.
95
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 78.
96
Ver a dura crítica de YAGO MARTINS, relacionando o desenho Rick and Morty com a falta de sentido
extremada: MARTINS, Yago. O absurdo da vida sem Deus em Rick and Morty. Disponível em:
https://goo.gl/b31d6p. Acesso em 16 jan. 2019.
97
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 79.
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Claret, 2002.

CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, v. 1. 3.ª ed. Brasília:


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