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PARK, Margareth Brandini.

Educação formal versus educação não-formal:


impasses, equívocos e possibilidades de superação. In: FERNANDES, Renata
Sieiro e PARK, Margareth Brandini (orgs.). Educação Não-Formal:
contextos, percursos e sujeitos. Campinas, SP; UNICAMP/CMU;
Holambra, SP: Editora Setembro, 2005. p. 67-90

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Capítulo 3

Educação formal versus educação não-formal: impasses, equívocos


e possibilidades de superação

Margareth Brandini Park


pedagoga e doutora em educação pela Faculdade de Educação da UNICAMP,
professora convidada do curso de pós-graduação em gerontologia da mesma
universidade pesquisadora do Centro de Memória da UNICAMP

Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, eu já respiro melhor.


A uns Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo.
Adélia Prado

Introdução

Embora há muito experiências de educação não-formal pululem pelo país e


mesmo pelo globo terrestre [Nota: 1], a nomenclatura referente às
propostas identificadas com o chamado terceiro setor continua colada ao
universo das práticas escolares.
O grande referencial para as práticas de aprendizagem é, sem sombra de
dúvida, aquele que constitui o universo do sistema educacional obrigatório e
presente na vida de grande parte dos indivíduos. Quando não o é,
transforma-se no objeto de desejo de excluídos...
A nomenclatura "não-formal", já apontada em artigos de nosso livro
Educação não-formal: cenários da criação (Simson, Park e

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Fernandes, 2001), não é adequada, pois ela tem forma. Seus conteúdos, e
espaços, objetivos e estratégias de atuação são idiossincráticos, embora, em
muitos momentos, as linhas divisórias entre tais práticas e as demais
terminem por se cruzar, gerando embates e debates. Afonso (1989) defende
uma posição fundamental para tais práticas, a de se constituírem em
propostas que visem a transformações sociais; já Trilla (1996) não
caracteriza a educação não-formal com tal enfoque, descrevendo a amplitude
de formas que ela assume e o caráter de legalidade, de subordinação a um
órgão que a legisle.
Na verdade, ou a propósito, a forma da educação não-formal é bastante
fluida, com contornos maleáveis que se ajustam a indivíduos, desejos,
conteúdos. E aqui já temos uma questão na qual devemos nos deter. Qual é,
ou melhor, quais são as formas da educação formal? Lugares específicos,
relações espaço-temporais controladas, mensuradas, perpetuadas. Forma
fixa? Desde os locais nas classes, cada classe em seu lugar, cada coisa em
sua hora. As tentativas de vivências na heterogeneidade continuam
representando verdadeiros desafios. A ordem é sempre buscada em nome da
exeqüibilidade dos afazeres e do peso do cotidiano.
Experiências existem, inúmeras, que tentam inverter setas, substituir séries
por ciclos, reordenando o funcionamento escolar e: a produção de seus
saberes, mas elas, geralmente, terminam por gerar novas ordens a serem
seguidas. A nota que vira conceito, mas é explicada enquanto nota...
Como abrir mão do grande cabedal de conhecimentos/fazeres e saberes
gestados na e pela cultura escolar, para tentarmos definir outras propostas
educativas?
Vamos ao dicionário. Lá encontramos que formal é aquilo que diz respeito a
forma; evidente, claro, manifesto, patente; preciso,próprio, genuíno; que
não é espontâneo; que se atém às fórmulas; estabelecidas; convencional;
que é amigo das formalidades, de etiquetas; formalista. Relativo às: leis, às
regras ou à linguagem pró-

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prias de determinado domínio de conhecimento, e que considera


independentemente do conteúdo, da matéria ou da situação concreta a que
se aplicam (Dicionário Folha/Aurélio, 1995, p. 305).
Bem, então as propostas dessa outra educação podem não ser tão
evidentes, podem ser espontâneas, não se ater às fórmulas estabelecidas,
podem ser não-convencionais, inimigas de formalidades, de etiquetas, não
relativas às leis, normas etc.
Já temos aqui um bom ponto de partida para entender certas
animosidades que ocorrem no cotidiano entre as instituições escolares e os
projetos existentes no entorno, caracterizados como educação não-formal.
Nos últimos anos, a disciplina tem dominado as pautas educacionais. Dar
limites, garantir refúgios na escola diante da violência social, trabalhar
direitos e deveres, desmistificar interpretações tendenciosas dos estatutos.
A progressão continuada, as classes de aceleração, tudo isto constitui o
pano de fundo que, segundo alguns educadores, destituiu parte do poder do
agente avaliador, afrouxando os liames que garantiam, minimamente,
alguns comportamentos. Educadores clamam por limites, normas, regras
que os deixem respirar de forma não tão sôfrega e aí... os projetos do
entorno pregam a tolerância, a busca do prazer, do querer fazer, das não-
imposições. Um verdadeiro acinte, uma desconexão. E o paradoxal é que
ambos os espaços educacionais pregam que há necessidade de seduzir as
crianças, os jovens, os adultos para suas propostas. Lembramos aqui que a
palavra seduzir vem de seducere, que significa desviar; se considerarmos
tal significado, podemos inferir que precisamos de fugas, atalhos que
quebrem a monotonia dos caminhos trilhados no dia-a-dia. O obrigatório; o
cotidiano e o usual precisam ser camaleônicos para seduzir. A força da
obrigação pode exercer um domínio sem prazer, morno. Mas a questão não
é tão simples, uma vez que poderíamos questionar-nos: toda seriedade é
necessária e fundamentalmente ruim, ao passo que o prazeroso é sempre
bom e suave? E o processo de aprendizagem,

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só ocorre em um dos casos? Não ouvimos, em várias oportunidades que


aprender envolve esforço e sofrimento? O que fazer com esses pensamentos
que estão no imaginário de um tanto de gente?
Os projetos oferecem bolsas, cestas básicas, locais seguros e outros
benefícios para as famílias. E a escola? Oferece insegurança crescente nos
seus espaços? Oferece melhorias de vida no futuro?
Quando um campo novo de conhecimento está a se constituir, seus termos
podem ser emprestados, tranqüilamente, de outras áreas, porém quanto
mais o tempo passa mais começam as inquietações e os desejos de busca
das suas especificidades e particularidades.

O GEMEC

O Grupo de Estudos em Memória, Educação e Cultura (GEMEC) originou-se


em 1994 no âmbito da disciplina de pós-graduação intitulada manifestações
da cultura popular aplicadas à educação, cuja responsável era a professora e
doutora Olga R. de Moraes von Simson. Os encontros do grupo ocorrem nas
dependências do Centro de Memória da UNICAMP, quinzenalmente. Os
profissionais que dele participam são de diversas origens: antropólogos,
pedagogos, historiadores, educadores sociais, arte-educadores, jornalistas,
professores, músicos, psicólogos, engenheiros, fotógrafos, estudantes de
graduação e pós-graduação. A diversidade do grupo revela-se fundamental
para garantir uma reflexão que extrapole os limites das áreas e disciplinas,
possibilitando maior proximidade com o cotidiano que habitamos, onde a
amálgama produzido nos oferece indícios de suas partes.
Em dez anos muitos foram os produtos gerados pelo grupo: seminários
cursos, workshops, livros, artigos, cursos na universidade. No presente
texto, utilizaremos como referência algumas produções do grupo.
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Educação formal, educação não-formal, educação social: por uma educação


sem adjetivos

Não diferente dos relatos de Trilla (2003), a experiência dos educadores


sociais que constituíram nosso grupo foi fundamental para a elaboração da
proposta de se "construírem" as especificidades do campo da chamada
educação, não-formal, que tem forma. Quais seriam, então, suas formas,
melhor dizendo?
O extinto projeto Sol, da cidade de Paulínia (SP), foi e ainda é de extrema
importância para tais reflexões, por vários motivos, dentre eles a presença
de seus educadores, coordenadores e arquiteto no grupo de estudos
explicitado acima; e a proximidade da UNICAMP, que possibilitou inúmeros
trabalhos, tais como estágios, dissertações e teses desenvolvidos, tendo por
base seu espaço idiossincrático. O projeto teve a duração de 13 anos e foi
extinto em meados de 2001; atualmente, em suas instalações funcionam
creches municipais que, segundo a administração, visam suprir o déficit de
vagas na educação infantil. O fato de o projeto possuir um patrimônio
arquitetônico, projetado pelo arquiteto. Izaak Vaidergorn e pela comunidade,
está em consonância com marcas de uma educação que transcende muitos
aspectos daquela que melhor conhecemos. O Projeto Sol deveria oferecer
calor e luz e, assim, fertilizar e fazer brotar cores, formas e sons a partir de
sua ágora, o centro vazio da arena a ser ocupado a cada necessidade do
grupo.
Tais profissionais traziam seu dia-a-dia para discussões no grupo, gerando
e alimentando os debates, gestando reflexões. Delas, a certeza da
necessidade de pensar como são desenhados os espaços e tempos dessa
educação, mostrada em Simson, Park e Fernandes (2001), conforme
transcrição abaixo:

A atitude transgressora do comportamento acontece porque é a própria


estrutura arquitetônica que a presume, pois esse espaço

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de circulação inclui o que está por fora ou atrás do limite dado pelo círculo e
fora dos olhares vigilantes dos adultos, diferentemente do panóptico,
explicitado por Foucault, em que a circulação restringe-se aos locais de
vigilância e de controle constantes, ou seja, o interno dos espaços
circulares, que não tem as bordas como possibilidades de lugares de
transgressão, diante do que é esperado (p. 171).
Outra certeza é que "o diálogo com o diferente é que possibilitará a transição
entre o estranhamento provocado e a possibilidade de lidar de forma
diferente com essa situação, gerando uma produção de táticas e estratégias
que permitam esse enfrentamento construtivo do diferente" (idem, op. cit.,
pp. 173-74).
E as provocações? Elas surgiam costuradas às falas no grupo de estudos
que descreviam cotidianos, como: "nas aulas, a gente fazia..." São aulas
mesmo? Com hora exata para começar e parar?; "Não, não é bem assim..."
São atividades? "São, mas não são atividades soltas, são atividades que
acontecem decorrentes de um eixo, de um projeto." Muitas vezes as
reflexões provocavam diálogos repletos de conflitos, que eram
exaustivamente debatidos até se esgarçarem, produzindo novas sínteses.
Aula, escola, classe, professor... Palavras repletas de sentidos que
perpassam os espaços da chamada educação não-formal. No Projeto Sol era
utilizada uma nomenclatura interessante e organizadora dos espaços e
tempos de aprendizagem: havia o primeiro período, o segundo período e o
tempo de brincadeira para separar os dois. Nos períodos as atividades eram
desenvolvidas de acordo com os combinados anteriores sobre estudo e
pesquisa de temas e seus desdobramentos, e as crianças podiam circular
pelas salas que ofereciam atividades diversificadas naquele espaço. Pelos
relatos que ouvimos de educadoras de lá, era comum que aqueles que
estabeleciam um compromisso com o tema, por terem participado de sua
escolha, assim como de seus desdobramentos, con-

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tinuassem no grupo que desenvolvia os trabalhos a ele relacionados. O


tempo da brincadeira assemelha-se ao nosso velho e bom recreio, sempre
esperado ansiosamente pelas crianças e pelos educadores, cada qual com
suas necessidades, uns querendo movimentar os corpos, outros descansar.

Projetos e projetos

Os usos e abusos do termo "projeto" para designar coisas completamente


diferentes contribuem para a confusão de significados. Projeto pode designar
a instituição que oferece espaços de educação não-formal, como, por
exemplo, Projeto Fundação Orsa ou Projeto Sol- Prefeitura de Paulínia. Pode
designar, ainda, as formas como são organizadas as atividades naqueles
espaços, formas de projeto, temáticos, agrupamentos de interesses etc. Mas
nem toda proposta de educação não-formal acontece em seu cotidiano sob a
forma de projeto, e o ensino formal pode trabalhar com projetos em salas de
aula [Nota: 2]; ainda, cada escola tem um projeto pedagógico, que
representa sua proposta de trabalho naquele espaço, com aquela
comunidade. Parece-nos que o conceito de projeto abarca uma certa aura de
novidade, de possibilidades criativas que podem contribuir para modificações
das relações de aprendizagem, das relações com o entorno, de gestões
compartilhadas da "coisa pública". Podemos entender, ainda, projeto como:
intenção; doutrina, filosofia, diretriz; concepção de produto ou serviço,
esboço ou proposta, desenho; empreendimento; atividade organizada com o
objetivo de resolver um problema; tipo de organização temporária.
Os projetos têm por características: ter objetivos definidos, ser realizados
sob encomenda, ser finitos e irregulares, no sentido de fugir da rotina. Eles
têm, portanto, princípio e fim e apontam para a Criação de algo diferente
(SME-SP, s.d.).

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Percebemos, pois, que poderia ser produtivo e interessante explicitar,


quando do uso do termo, o que, exatamente, estamos querendo focalizar.
Com tal atitude, o exercício repetido poderá contribuir para o desvelamento
não só do conceito utilizado como da prática estabelecida nesses espaços
educacionais diferenciados.
Essa dificuldade para estabelecer campos diferenciados acirrou, em muitos
momentos, o conflito com as unidades escolares. A descrição de atividades
prazerosas, a flexibilidade, a "disciplina solta", mesmo que existentes só na
nomenclatura e não na prática efetiva, provocam a instituição escolar. E
quem ganha com o conflito? Sem dúvida, muito da demanda dos projetos
que se classificam dentro do campo da educação não-formal advém da
expulsão de crianças e adolescentes do ensino formal. Reconhecido isto,
quais, os passos que nós, educadores, podemos dar para o enfrentamento
da questão, uma vez que os dois campos da educação, o formal e o não-
formal, são de direito do cidadão, da criança, do jovem, do adolescente e do
velho?

As várias vozes

Tentando uma aproximação das falas dos profissionais envolvidos nos dois
campos, busquei as vozes de dirigentes das escolas, educadores sociais,
administradores, professores e freqüentadores do extinto Projeto Sol sobre
questões que envolvem esses dois espaços. Os depoimentos foram recebidos
por escrito, e a instrução era para que escrevessem sobre as relações que
experienciaram enquanto educadores e freqüentadores que ,têm contato
com os dois campos educacionais. Um dos objetivos era o de mapear
possíveis costuras entre eles, e outro de verificar as nomenclaturas utilizadas
para definir tais espaços e práticas [Nota: 3].
Muitos dos trabalhos de educação não-formal são realizados

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por ONGs, OSCIPS e OSCs. As ONGs estão mais popularizadas e já não se
revestem tanto de posições quixotescas; hoje muitas delas poderiam ser
rotuladas de "braços do Estado", como explicitado no artigo de Valente
(s.d.). Segundo a autora,

sem dúvida, são entidades da Sociedade Civil que dispõem de uma margem
de liberdade na sua forma de reflexão e atuação que ultrapassam em muito
as propostas concebidas e praticadas por setores declaradamente oficiais.
Talvez resida aí o seu papel inovador e a sua capacidade visionária. Mas,
também dependem de recursos liberados por esse mesmo Estado (ou
supra-Estado) para seu funcionamento, mediante a elaboração de projetos
que devem percorrer os processos de avaliação, definidos fora de sua
esfera de autonomia (p. 21).

Como os educadores do ensino formal, responsáveis por possíveis pontes


com projetos desenvolvidos por tais organizações, as enxergam, a seus
projetos e a suas estratégias de ação?
O depoimento abaixo, da vice-diretora de uma unidade educacional, é
instigante:

trabalhar em parcerias com ONGs ou outras entidades é importante para


um gestor educacional. Contudo, faço as seguintes ressalvas:
- nossos parceiros só nos procuram quando necessitam de público ou
assinaturas em convênios para aquisição de verbas;
- por maiores tentativas que façamos para trabalhar em conjunto, só
comparecem às nossas reuniões para demonstrarem os respectivos pontos
de vista e jamais tendo tempo para discutir os nossos. A impressão que se
dá é que estão nos informando de algo já anteriormente discutido e
imutável. Conseguimos um "caminhar juntos" em algumas ações
esporádicas e pontuais, mas um trabalho a longo e médio prazo é muito
difícil;
- mesmo em alguns projetos que assinamos juntos, não nos chamam para
opinar a respeito de contratações, horários etc. Freqüentemente, já nos
trazem os projetos acabados, com as con-

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tratações e, alegando que o prazo está estourado, solicitam as nossas


assinaturas. Quando questionamos algumas ações, dificilmente conseguem
tempo para nos ouvir;
- existe um grande nepotismo em muitas ONGs. A contratação de técnicos
ou especialistas, se formos ver a fundo, são membros e parentes das
entidades preponentes; até agora ainda não vi nenhuma definição clara a
respeito de certas contratações, o que me leva a desconfiar se alguns dos
projetos são feitos para acertar a vida profissional de algumas pessoas.
Apesar de tudo isso, as ONGs fazem trabalhos necessários onde o Poder
Público não se encontra atuando. Até agora ainda não entendi por que
certas
partes da cidade têm tantas ONGs atuando e em outras, talvez até mais
necessitadas, não encontramos nenhuma.

Outra educadora, da mesma região, comenta que não há constância em


muitas das atividades propostas nesses projetos, como, por exemplo, os
trabalhos com as tarefas escolares. Ela afirma:

por meio dessa vivência pude perceber que o atendimento de todas tem um
caráter predominantemente assistencialista, não obstante declarem um
ideário educacional. Isso, a meu ver, está relacionado aos modos de se
compensarem as carências socio-econômicas dos atendidos e às
dificuldades estruturais das próprias organizações ao levarem a cabo
projetos educativos.

Em outra cidade de nossa região, uma educadora vivenda várias


experiências relacionadas à educação não-formal. Apresentamos algumas de
suas considerações:

muitas vezes fizemos apresentações nas escolas e também muitas vezes as


escolas vieram até o Sol assistir e participar de alguns eventos e
apresentações. Algumas vezes fizemos algumas ações, com a educação
infantil, pois as crianças de 6 anos na educação infantil provavelmente
viriam para o Sol no próximo ano. Assim, tivemos encontros com as escolas
de educação infantil, poucas vezes tivemos parcerias e não tivemos um
trabalho conjunto que permeasse decisões da Secretaria de Educação...
Como,

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por exemplo, professores que orientavam os pais para que tirassem seus
filhos do Sol porque estavam indo mal na escola e subentendia-se que era o
Projeto que estava atrapalhando a vida escolar das crianças. Isso é reflexo
da formação pedagógica que temos, voltada só para a sala de aula e que
considera que só a escola é que faz educação.

E pondera:

por outro lado, penso que é ousado, mas prudente percebermos e


validarmos o encontro e ação de intercâmbio realizada pelas crianças e
jovens que freqüentavam ambos os espaços, porque eles, embora
soubessem que estavam em dois espaços com diferenças significativas,
faziam relações, trocas, comentários. Contavam na escola o que acontecia e
o que estavam aprendendo no Sol e, por outro lado, contavam no Solo que
estavam fazendo na escola e mais um monte de coisas que transitam
nessas relações. Acho que precisamos pensar nessas trocas provocadas
pelas crianças e jovens, porque a cada comentário que faziam da escola,
para nós que estávamos no Sol, faziam com que pensássemos nessa
relação. Também, é claro, tivemos muitos encontros conflituosos e até
briguentos mesmo.

Mesmo quando há convênios com entidades e com o ensino formal, que,


sem dúvida, representa um grande avanço, este se dána prática, segundo
uma educadora que gerencia o processo:

estes adolescentes têm uma programação com oficinas, hora de


agradecimentos e outras atividades oferecidas pelo Externato com enfoque
religioso e disciplinador. Entretanto, estes alunos também são atendidos
pela Secretaria Municipal de Educação com uma proposta pedagógica
inclusiva. Os professores planejam semanalmente as atividades de maneira
interdisciplinar, com atividades mais lúdicas do que aula expositiva,
oficinas, teatro... Enfim, há um conflito metodológico e nos tem colocado
constantemente em reunião para viabilizar o convênio.

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O embate entre educar e prestar atendimentos pontuais é explicitado no


depoimento de duas educadoras que exercem cargos administrativo-
pedagógicos, na Rede Municipal de Ensino da cidade de Campinas (SP):

Na realidade os encontros caminham apenas no viés assistencialista, sem o


trabalho educacional junto às famílias. Existe uma integração mais estreita
entre as entidades, e menos intensa entre entidades e instituição escolar,
porque as realidades são diferentes e as finalidades também. Enquanto as
entidades preocupam-se mais com a assistência às famílias, as escolas têm
por objetivo o processo educativo das crianças.

O relato de uma educadora que trabalha em uma escola de periferia,


retratada pelo grau de violência que vivencia diariamente, é contundente
para demonstrar o percurso, o cotidiano repleto de desafios, os grupos que
desenvolvem trabalhos solitários e a universidade, que persiste utilizando-se
da periferia em suas pesquisas, sem oferecer retornos ou promover
continuidade. O fato de ser uma educadora da área da educação especial a
coloca em situação privilegiada para análises, pois seu cotidiano é
entrecruzado pelos mais variados campos de atendimento aos seus alunos,
tais como saúde, assistência social, educação, conselhos tutelares etc.,
conforme podemos apreender de sua fala:

Fiquei sabendo que uma entidade promovia reuniões mensais no bairro,


com o sentido de criar uma rede de contato entre as diversas ONGs,
escolas, lideranças de moradores, universidade e interessados em fazer
parcerias. Comecei a participar por necessidade de encaminhamento de
dois dos meus alunos para a fisioterapia, pois não tinha como transportá-los
para os atendimentos. Gostei muito das reuniões. No princípio, havia uma
promessa de força para o bairro a partir da cooperatividade entre os
núcleos. Havia muitas propostas interessantes. E eu tentava fazer com que
a direção e os professores da escola participassem, mas era

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um movimento difícil. Nas reuniões mensais eu era indiretamente cobrada e


cobrada sobre a posição da escola na comunidade. Esta minha "tentativa"
de participação da escola nos projetos do bairro e mesmo minha própria
participação nessas reuniões e projetos durou uns três anos. Conheci o
presidente de uma ONG ligada à universidade que defendia a proposta de
maior participação dos mecanismos de acesso ao saber de uma
universidade à comunidade. Apresentei o presidente à escola e
conseguimos montar um grupo de sete professores que participaram, por
um semestre, de encontros semanais na universidade, junto de mais um
grupo de moradores e agentes comunitários do bairro. Os encontros tinham
como objetivo a discussão dos problemas pertinentes ao bairro e
encaminhamento de possíveis soluções. Neste período chegamos a
participar do terceiro encontro de Comunidade Saudável da região dos
Amarais (caracterizada enquanto periférica e violenta pelas diversas mídias
locais), com um ônibus de alunos e a fanfarra de nossa escola. Lembro-me
que os lanches para as crianças foram pagos por minha conta particular. No
entanto, ao final do semestre, não obtivemos nenhum resultado concreto a
partir dos encontros. Também não obtivemos certificados e não fomos
remunerados conforme o combinado. A universidade não conseguiu fazer a
"ponte". Nossos esforços pareceram sem sentido e fomos perdendo o
entusiasmo "por essa e por outras" da universidade. Concomitante a isto,
as reuniões na instituição do bairro foram se esvaziando. Em minha opinião
acontecia o mesmo problema: falta de resultados concretos e abrangentes.
Não sei de quem é a culpa, se do gigantismo dos problemas sociais, ou se,
de um modo muito sutil, da falta de organização e compromisso profundo
dos setores, ou de um "maquinário" que não anda.

A falta de credibilidade dos grupos que gerenciam os projetos aparece nos


depoimentos acima. Destaco: contatos aligeirados e pontuais com a escola,
ausência de debates, nepotismo, posturas assistencialistas, medicalização de
situações de ensino/aprendizagem de alunos que apresentam
comportamentos questionáveis.

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o último depoimento retrata a realidade de uma periferia com muitos


projetos que não conseguem dialogar entre si, muitas vezes sobrepondo
atividades, oferecendo propostas pontuais que não avançam. Explicita ainda
o descompromisso de certos setores da universidade com relação às
comunidades, evidenciando acordos não cumpridos em projetos de parceria.
A quebra das expectativas do grupo acaba definindo o desenho que suas
práticas assumem nos anos subseqüentes: a volta a um caminho mais
solitário, perdendo com isso o educador, os alunos, as famílias, as
comunidades e a universidade, que fica cada vez mais distante do trabalho
de extensão comunitária que diz almejar.
A experiência dessa educadora demonstrou que ela consegue articular uma
proposta de trabalho quando se alia a um curso de uma universidade cujos
alunos necessitam de estágio. Os alunos deslocam-se para a periferia
articulando necessidades e produzindo resultados felizes, pois os
atendimentos na área de saúde são viabilizados na vizinhança, abolindo
custos e dificuldades de transporte comuns aos portadores de necessidades
especiais. Interessante é que a educadora minimiza essa conquista - a
ansiedade para resolver uma gama imensa de necessidades das crianças ter-
mina por criar um desalento que desqualifica suas conquistas.
Porém como a administradora de um projeto existente no local enxergaria a
relação com essa mesma escola?

Esta relação, num primeiro momento, é marcada pela troca de documentos


como a declaração de matrícula, relação de notas e freqüência dos usuários
e comunicados necessários, quando há alteração na rotina das atividades
de ambas as partes. No início das atividades solicitávamos a declaração de
matrícula, que é condição para a criança ser atendida na instituição, e não
tínhamos como necessário a relação das notas e freqüência. Entretanto, nos
contatos com as famílias quando trabalhávamos a relação destas com a
escola, fomos percebendo que a linguagem, símbolos, conceitos e códigos
usados pela

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escola nas reuniões com os responsáveis e presentes nas listas e


documentos a que têm acesso nas reuniões, ou quando são chamadas, não
eram de domínio de todas, ou seja, não havia compreensão por parte das
famílias do que a escola dizia com as informações que apresentava sobre a
vida escolar das crianças. No nosso entendimento, nesta situação configura-
se uma relação de poder onde a escola não preocupa-se em fazer-se
entender, e as famílias não percebem-se em condições de solicitar
esclarecimentos, argumentar e ter uma postura cidadã diante de um serviço
prestado pelo Estado.

Avaliando essa relação com a educação formal, temos percebido, por outro
lado, que a escola não lida bem com as crianças, adolescentes e famílias que
freqüentam espaços de educação não-formal (esta não é uma situação
exclusiva da nossa instituição outras instituições têm a mesma avaliação),
pois estes, por terem maior consciência de seus direitos e deveres, não
aceitam ou questionam tratamentos; às vezes comuns e aceitáveis no
espaço escolar, mas que ferem o respeito, a dignidade e mesmo a
compreensão daquelas pessoas como seres em desenvolvimento. Nestes
casos, aqueles que são "problemas" na escola podem estar exercendo sua
cidadania e solicitando da escola uma postura diferente. Exemplo disto é o
diálogo entre uma mãe de aluno e uma professora da escola, que, quando
reclamou do comportamento da criança, ouviu da mãe: "no projeto que
participa, onde é tratado com respeito, ele tem outro comportamento".

Superando impasses: as parcerias

O relato acima aponta a cultura escolar como responsável pelo


distanciamento da escola por parte das famílias e dos alunos; a
comunicação/vocabulário e a tonalidade, os rituais, costumam inibir e
afastar, principalmente, os grupos considerados desfavorecidos. A disciplina
incorre na mesma questão: "por favor", descul-

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pas” etc. são códigos nem sempre partilhados pelos mesmos grupos sociais.
O que pode ser uma grosseria em alguns lugares pode ser a garantia de ser
menos provocado em outros. A escola se defende, apoiada nas normas
cultas, na boa cultura, terminando por insinuar que nos "espaços
alternativos" há tolerância a possíveis "subculturas", classificadas dessa
forma em contraposição a outras; manifestações da cultura popular, rap,
hip-hop, quando aceitos, "servem" para um certo enquadramento de
indivíduos e suas práticas, domesticando-os para se administrar seus
espaços-tempos. Com tal atitude perdemos todos, a comunidade ressente-se
e a escola fecha-se. O projeto caminha paralelamente à escola, fazendo
incursões difíceis e desgastantes. Ameaças mútuas, mesmo que veladas,
impossibilitarão o crescimento dos profissionais envolvidos e,
conseqüentemente, de propostas intersetoriais que possam beneficiar a
comunidade do entorno. Mas não há necessidade desse descompasso quando
há a credibilidade, a formação de pessoas, a persistência temporal dos
projetos e a crença de que a soma dos espaços educativos pode ser benéfica
a todos [Nota: 4], como explicita a diretora de uma unidade educacional
municipal:

Necessitamos de apoio e parcerias que possam nos auxiliar na formação


dos nossos alunos. Assim contamos com o trabalho de alguns arte-
educadores do Projeto Escola é Nossa, da Secretaria Municipal de Educação,
e profissionais da Praça dos Trabalhadores [praça de esportes da região],
além de parcerias com pessoas e duas instituições do bairro; uma delas
trouxe para a escola um pouco da história de constituição dos bairros
Castelo Branco, Jardim Garcia, Jardim Londres e Vila Padre Manoel da
Nóbrega. É na confluência de três destes bairros que se localiza a escola, e
a formação deles explica, em parte, a relação entre seUS moradores. Essa
ONG é para nós referência de memória desses bairros. Eles fazem parte da
história da comunidade local. Seus , membros procuram, principalmente,
resgatar a cultura africana e têm um posicionamento efetivo sobre a
inclusão digital e o uso

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do software livre. Entendem que é necessária a democratização do acesso à


tecnologia para uma formação cidadã [Nota: 5]. Para este ano, cedemos
parte do horário de uso do laboratório de informática para que seus
membros possam formar alunos monitores que, posteriormente, irão
formar outros no uso do computador, através do software livre, além da
possibilidade de atuarem na formação de professores e funcionários da
escola. A outra instituição que desenvolve trabalhos vinculados à cultura
africana tem uma atuação mais regular conosco e trabalha com alguns de
nossos alunos em horário inverso ao da aula. Auxiliam os alunos nas tarefas
escolares para aqueles que precisam, mas principalmente oferecem um
espaço sadio onde as crianças e jovens possam permanecer e se
desenvolverem - trabalham para atender crianças e jovens em suas
necessidades básicas, culturais e de lazer, preparam para o trabalho e
valorizam a cultura da comunidade local. Para aqueles que precisam, há
apoio de terapia ocupacional, psicológico e assistência social. Possuem
oficinas de horta e escola de circo. Para este ano estarão divulgando seu
trabalho através da rádio da escola Espaço Aberto e nosso trabalho será
divulgado em seu jornal Conexão Jovem. As duas ONGs têm participado
com seus membros (crianças, jovens e adultos) de eventos promovidos
pela escola, principalmente aqueles abertos à participação da comunidade.
A Caminhada, que ocorreu no mês de maio, onde toda a escola saiu às ruas
para mostrar seu projeto e divulgar seu trabalho, teve a participação de
alguns dos participantes das referidas instituições com demonstração de
seus trabalhos. Os coordenadores dessas ONGs, além de dirigentes das
escolas estaduais locais e da Praça dos Trabalhadores, participaram não só
da execução, mas também nas reuniões de planejamento da Caminhada.
Conhecendo melhor a proposta de trabalho de quem atende seus alunos, a
escola terá mais chances de uma ação mais profícua em sua formação.
Os princípios de formação que vejo nos trabalhos dessas duas ONGs, a
valorização da cultura desses grupos sociais, democratização dos
instrumentos da cultura, formação de uma cultura de paz com incentivo à
participação e desenvolvimento do protagonismo juvenil, vêm ao encontro
dos princípios de formação de nossa escola.

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Podemos observar que os educadores, sejam aqueles que trabalham no


ensino formal, sejam os que trabalham nos projetos considerados de
educação não-formal, afirmam que todos poderão beneficiar-se de uma
educadora:

Acontece também de nem sempre termos o mesmo entendimento diante de


situações em que crianças que freqüentam os dois espaços são avaliadas
pela escola com "mau comportamento",com "problemas de aprendizagem",
crianças violentas etc. Nestas situações, tentamos fazer um movimento no
sentido de aproximar da escola o olhar que temos da criança na instituição
(técnicos e educadores) e que considera e procura compreender o contexto
familiar, a situação do entorno em que vivem e/ou situações pontuais que
podem estar relacionadas. O foco para nós não está na atitude/ação da
criança exclusivamente, mas no "recado" que ela pode estar dando aos
adultos que se relacionam com ela de que alguma coisa não está bem com
ela... Uma maneira de conferirmos os resultados do trabalho é o índice de
sucesso escolar das crianças que freqüentam os dois espaços. Em 2003
tivemos apenas 5% de reprovação (o que representa quatro crianças),
sendo que o índice da escola onde estuda a maior parte das crianças é 8%.
Embora este índice possa ser questionado, considerando o sistema
educacional atual, ele é um dos parâmetros que nos indicam estarmos na
direção certa no sentido da construção de uma relação entre a educação
não-formal e a escola, embora tenha como foco de ação o mesmo sujeito
(criança e adolescentes), possa ter clareza da função que cada uma tem na
formação das novas gerações.

Vivenciando espaços educativos

E os freqüentadores de um dos projetos com maior tempo de permanência,


como enxergam a relação entre o projeto e a escola?
Até hoje, eu vou fazer algum trabalho na escola, eu lembro, a gente fazia
isso lá no Raio de Sol [prenúncio do Projeto Sol], aí

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eu faço, ganho uma notinha boa [risos], eu fico com orgulho, entendeu?
Não sei... Dá uma coisa... Eu falo: "Não, eu aprendi isso lá, eu vou fazer".
Essa semana mesmo, tinha um trabalho na escola e se não fosse isso não
tinha tirado nota boa. "Nossa,que trabalho bonito!" “É... Se eu tivesse
aprendido isso lá!” (ex-frequentadora do Projeto Sol).

Embora os objetivos do Projeto Sol fossem voltados a práticas não


escolarizantes, Alcione (a ex-freqüentadora citada acima) afirma que utiliza
informações que obteve lá para atender requisitos escolares. Ela se dá bem
com o que desenvolveu no outro espaço e coloca a nota como divisor de
águas. No Projeto Sol não havia nota e cobrança. O conhecimento era
trabalhado enquanto construção, as informações iam chegando, pouco a
pouco, de acordo com o perfil que os projetos iam tomando, de acordo com
os interesses apresentados. Um tempo expandido para gastar e gerar
produtos, diferente da instituição escolar, muitas vezes engessada por um
currículo padrão que determina conhecimentos e tempos, em que o limite
acaba sendo dado pelo papel e não pelos corpos que se manifestam.
A ex-freqüentadora ainda explicita que gosta muito de arte. E arte,
segundo ela, não dá para explicar, se sente. Sabemos que um trabalho de
fruição artística exige tempos e espaços próprios. Freqüentar exposições,
manipular materiais, características que a estrutura de um projeto voltado
para a educação não-formal atende com mais facilidade. A escola tem
dificuldades para organizar tais espaços e situações de aprendizagem.
A ex-freqüentadora Valquíria endossa a fala de Alcione quando afirma que,
no Projeto Sol, ia para as salas de atividade que escolhesse, não era
obrigada a fazer o que o professor mandasse.
Rubens, também ex-freqüentador, assinala ainda em seu depoimento a
diferença entre aprender brincando, de forma gostosa, e aprender porque é
obrigado, e ainda frisa que, apesar da obrigato-

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riedade do ensino na escola, o professor "não está preparado para colocar na


cabeça do aluno o que ele precisa... Ele é uma criança e não entende". Com
sutileza de análise, compara o desfile de Sete de Setembro feito pela escola
e aquele feito pelo Projeto Sol. Segundo ele, pela escola todos desfilavam
com as mesmas roupas, ao passo que no projeto havia vários blocos
temáticos, capoeira etc. Podemos imaginar a importância, para um
adolescente, de desfilar de forma identitária, termo que escolho para
designar o grupo com o qual ele se identifica por meio das roupas e dos
projetos elaborados. Quanto à agressividade, ele comenta que o fato de uma
criança agredir alguém poderia ser direcionado na escola, de forma
propositiva, encaminhando-se o "agressor" para atividades como capoeira,
kung lu, mas não é isso o que normalmente ocorre. A pessoa é reprimida e
toda aquela energia não é canalizada, fato que não ocorria no Projeto, que
previa a inclusão de tais atividades no grupo. Diz ainda, com propriedade,
que "se o indivíduo ficar injuriado você perde a pessoa ali".
Nos depoimentos dos educandos e educadores vinculados ao Projeto Sol,
encontramos, muitas vezes, a diferenciação entre educador e professor,
atividades e aulas. Eles separam os termos e diferenciam as funções. Mesmo
que pontuando as mazelas da escola, suas falas apontam para o seguinte:
uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Frase por demais simplista,
mas esclarecedora. Os espaços são diferentes, as pessoas que trabalham
com o conhecimento são diferentes, o jeito de fazer é diferente. Somente
com relação ao aspecto disciplinar é que os educadores do campo da
educação não-formal arriscam críticas severas e uma vontade de espelhar
práticas mais propositivas dos professores, afirmações compartilhadas pelos
educadores e educandos. Sem dúvida, a experiência com as práticas da
chamada educação não-formal pode oferecer subsídios para os profissionais
da escola conseguirem lidar melhor com a agressividade apresentada,
atualmente, nos

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espaços escolares. Mesmo tendo a consciência de atuarem em espaços


diferentes, os encaminhamentos em situações de agressividade poderiam
embasar tentativas de intervenção mais positivas, que superassem
advertências, suspensões, chamados de pais à escola, medidas que, muitas
vezes, expulsam os alunos da escola, gerando, assim, demandas para as
práticas da chamada educação não-formal.

Considerações finais

Caminhando para as ponderações finais deste texto, trago a questão


contundente expressa na fala de uma educadora:

De acordo com as leituras e pesquisas que venho realizando, penso que


essa própria segmentação, dicotomização e oposição entre educação formal
e não-formal vem em um momento em que era (e ainda é) interessante
para a manutenção do status quo e enfraquecimento da escola que essa
oposição fosse vista como natural e que podem existir outras ações mais
interessantes e, principalmente, mais baratas para a educação nos
chamados países de terceiro mundo, ou seja, é interessante
economicamente que a escola seja vista como negativa e em falência e
que, em contrapartida, existam outras possibilidades educacionais mais
baratas (e, muitas vezes, em pior qualidade) e sem as garantias legais e
jurídicas da educação regida pelo Estado.

Acreditamos que boas propostas educacionais, sejam de que campo forem,


ampliam e oferecem espaços e conhecimentos para os indivíduos que
compõem os grupos sociais, sejam eles crianças, adolescentes, adultos,
velhos, pobres ou ricos. Cabe às instituições do campo da educação não-
formal procurar parcerias com as universidades e unidades educacionais
formais. Com a primeira, poderão gestar reflexões calcadas nas práticas
cotidianas, assim como documentá-las e divulgá-las; com as segundas, cabe
oferecer seu conhecimento acumulado para encaminhar situações de vi-

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olência e conflito, além de sugestões embasadas em suas práticas voltadas


à produção de conhecimento, conhecidas por oferecerem subsídios,
principalmente nas áreas da arte, por exemplo. À universidade cabe ser
parceira, tentar ajustar seus tempos ao tempo social das instituições
educativas, oferecer retorno de seus projetos. Seus pesquisadores precisam
assumir compromissos com os grupos envolvidos. Os educadores do campo
não-formal devem desenvolver disciplina intelectual para debruçar-se sobre
as próprias práticas, procurando refletir sobre elas e, também, sistematizá-
las, com o intuito de poderem socializar seu rico cotidiano. Os professores
do campo formal precisam sensibilizar-se para as especificidades e
complementaridades das propostas educativas que circulam pela sociedade,
entendendo que não são universos excludentes ou mesmo competitivos.
Algumas propostas que temos desenvolvido com tacadores têm oferecido
resultados interessantes, trabalhando o cotidiano local, com as questões da
memória, construindo parcerias entre pesquisadores, professores, alunos e
comunidade; abrindo as escolas para que os alunos saiam e a comunidade
do entorno entre; trabalhando com a cidadania cultural; trazendo os velhos
com seus depoimentos e divulgando tudo isso através de livros, exposições,
vídeos, reportagens nas diversas mídias. Temos conseguido ultrapassar os
limites normalmente postos às instituições de ensino formal.
Sabemos ser muito difícil pensar e refletir sobre as práticas cotidianas
quando estamos imersos nos rituais que desenham nossos tempos e
espaços. Talvez haja necessidade de buscar formas e possibilidades outras,
em linguagens como a poesia, clara e cristalina, para descrever outras
formas para o dia-a-dia escolar ou não, tendo por tarefa a coragem de
desbravar, de ousar ser diferente.
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Referências bibliográficas

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objetivo ou construir uma nova problemática?", in A. J. Esteves e S. R.
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Notas

Nota 1 – página 67: O chamado terceiro setor, na década de 80, estimava


um número em torno de 2 mil organizações não-governamentais no país. Em
1995, o censo realizado pelo Instituto de Estudos de Religião (ISER), com
apoio do IBGE, apontou 250 mil organizações. O coordenador do Centro de
Estudos do Terceiro Setor (CETS) da FGV e a USP afirmam que, atualmente,
elas passam de 300 mil organizações. Explicitamos esses dados para
oferecer uma visualização do volume de pessoas envolvidas em trabalhos
considerados como sendo da área da educação não-formal. Em Campinas
existem 1.640 instituições, abrangendo fundações privadas e associações
sem fins lucrativos, que movimentam R$ 391.663,00 em salários e
empregam 23.722 pessoas. A cidade lidera o terceiro setor dentre todos os
municípios brasileiros que não são capitais. Informações retiradas do texto
"Soluções sociais: produção em série", Folha de S. Paulo, 25 maio, 2004,
Caderno Sinapse, e do trabalho de Amarildo Carnicel, jornalista e
pesquisador do Centro de Memória da UNICAMP, apresentado na mesa-
redonda Mídia Comunitária como Estratégia de Educação
Formal e Não-formal, XV COLE, UNICAMP,jun., 2005.

Nota 2 – página 73: Para melhor compreensão de projetos desenvolvidos no


ensino formal, indicamos o artigo de Dirce D. P. Zan, 2003.

Nota 3 – página 74: Agradeço à coordenadora da NAE-Leste de Campinas.


Íris Maldonade, pelo apoio na obtenção dos depoimentos; a Renata Sieiro
Fernandes pela disponibilização dos depoimentos coletados para o seu
doutorado em andamento na Faculdade de Educação da UNICAMP, assim
como pela leitura e discussões do presente trabalho; às educadoras Anajara
Machado, Creusa de Lurdes Sant'Anna Schenkel, Eneida Fátima Marques,
Flávia F. de Barros Leão, Mabel Servidone, Marisa Seyr, Suely Aparecida
lório, Tânia de Medeiros Wutzki e Valéria Aroeira Garcia.

Nota 4 – página 82: "O ensino vacila entre os dois termos de uma
alternativa: ou se entrincheirar no saber (que uma boa iniciação em
psicologia permitirá 'transmitir'), ou entrar com os alunos no jogo das
relações de força ou de sedução (dos quais os discursos científicos são
apenas metáforas)" (Certeau, 1995, p. 128).

Nota 5 – página 83: O termo "cidadania" encontra-se bastante esvaziado,


dada sua atual utilização de forma indiscriminada. Por ser de ordem
politicamente correta, tem aparecido com constância absurda nos discursos
educacionais, sejam eles no campo do ensino formal ou do não-formal.
Enfatizamos que esse conceito porta um movimento. representando coisas
diferentes em momentos históricos diferentes. Autores clássicos como
Marshall classificam os direitos da cidadania em três tipos: civis, sociais e
políticos. Gostaríamos de trazer para a presente discussão o conceito
''trabalhado por Jelin (1996), o de cidadania cultural, assumindo que ele
pode ser interessante para os dois campos educacionais focalizados: "Trata-
se, obviamente, de bens simbólicos, do direito a ter uma identidade
coletiva, de pertencer a uma comunidade. Na realidade, os seres humanos
pertencemos não apenas ao gênero humano, mas também a comunidades
específicas. A condição implica um sentido de pertencer a uma comunidade
política. Nesse sentido, as comunidades e as culturas, em sua diversidade,
são os ingredientes básicos de sua humanidade, que dão sentido e conteúdo
ao princípio abstrato da igualdade. A igualdade reside, na realidade, em ser
membro de culturas diversas e particulares" (p. 21).

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