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O Livro X da República: Uma questão moral

Juliano Orlandi (Professor Filosofia Puc-PR)

Retirado de http://filosofiadapucpr.blogspot.com/2010/10/o-livro-x-da-republica-uma-
questao.html em 20 de novembro de 2010.

Tradicionalmente o Livro X da República é lembrado pela dura crítica que dirige aos
poetas e à arte em geral. Aos olhos modernos, parece bastante estranho que um escritor como
Platão, dotado de uma capacidade literária ímpar, defenda a expulsão da poesia de sua cidade
ideal. O que nos choca é justamente o fato de que possuímos uma opinião absolutamente
contrária: a arte, para nós, vale como algo que amplia e aprofunda nossa compreensão da
realidade. Surpresos, então, perguntamos: por que Platão considera a arte e a poesia como
coisas nocivas e dispensáveis?

O filósofo ateniense, lançando mão de sua teoria das ideias ou formas, nos responde:
a poesia está a três pontos da verdade. Suas obras são imitações imperfeitas de objetos
particulares que são, por sua vez, cópias igualmente imperfeitas das idéias ou formas. Existem,
assim, retrospectivamente o nível inteligível, que se caracteriza por conter objetos universais e
atemporais, o nível sensível, que contém objetos particulares utilizados na vida cotidiana e,
finalmente, o nível artístico, que contém imagens imperfeitas dos objetos sensíveis. No
exemplo platônico, temos a mesa ideal, que determina todas as particulares, as mesas sensíveis,
que são utilizadas cotidianamente, e as mesas representadas pelos artistas, que não determinam
as outras e não servem aos mesmos propósitos que as mesas particulares. De acordo com este
argumento, as produções artísticas estão distanciadas da verdade universal das ideias ou formas
e, por isso, representam coisas menores e insignificantes no pensamento platônico.

Ora, reconhecer que as obras de arte estão distantes da verdade das ideias não basta,
contudo, para expulsá-las da cidade ideal. Afinal, o que na maior parte das vezes nos chama
atenção nas produções artísticas é justamente seu aspecto fantasioso. Compreendemos, assim,
que a “mentira” ou “engano” da arte não são simplesmente negativos, mas contém algo de
positivo que pode despertar novas percepções da realidade. Ao representar cenas bíblicas, por
exemplo, as pinturas medievais “fantasiam” a aparência das personagens e apresentam uma
intenção de propagar a fé cristã. O fato de que as representações são “mentirosas” não faz a
menor diferença para avaliar o conteúdo das obras. Por que, então, Platão é tão rigoroso com a
arte e a expulsa da cidade ideal simplesmente por estar afastada da verdade?

A chave da questão se encontra no papel central que a poesia exerce na educação dos
gregos antigos. Diferente das nossas produções poéticas, as obras de Homero são utilizadas na
educação dos jovens e constituem o padrão moral na Grécia de Platão. Sua origem está ligada a
um contexto em que ainda não havia escrita e, por isso, pertencem ao domínio da oralidade.
Este fator é absolutamente decisivo para determinar o conteúdo e os limites da poesia homérica.
Assim, Platão expulsa as produções poéticas não simplesmente porque elas expressam coisas
distantes da verdade, mas principalmente porque a poesia que ele conhece tem a pretensão de
estabelecer os critérios morais dos gregos antigos. Esses critérios, afirma o filósofo ateniense,
se encontram no domínio das ideias ou formas e, por essa razão, tentar estabelecê-los por outro
meio que não o filosófico recai necessariamente em erros. Platão não reconhece qualquer
poesia diferente desta e, então, se obriga a expulsá-la de sua cidade ideal. Compreender sua
crítica aos poetas depende, por conseguinte, de dois pontos fundamentais: sua teoria das ideias
ou formas e sua perspectiva do papel da poesia na Grécia antiga.

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