You are on page 1of 54

APONTAMENTOS

DE
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
DEMOCRACIA E FILOSOFIA
A FILOSOFIA DO SÉCULO XX

1
Reproduzido da obra
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
de Bryan Magee

«Como Divulgador
da Filosofia,
Bryan Magee
é insuperável»
The Times

2
DEMOCRACIA E FILOSOFIA

DEPOIS DA QUEDA DAS CIDADES-ESTADOS

DA ANTIGA GRÉCIA,

FOI SÓ NO SÉCULO XVIII QUE AS SOCIEDADES QUE PODIAM SER


CHAMADAS DE DEMOCRÁTICAS FIZERAM A SUA REAPARIÇÃO
— UM PERÍODO DE MAIS DE DOIS MIL ANOS. PRIMEIRO FORAM
OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, FUNDADOS EM 1776.
SOMENTE 13 ANOS MAIS TARDE, A REVOLUÇÃO FRANCESA DE
1789 DEU UM ÍMPETO COMPLETAMENTE NOVO À PROPAGAÇÃO
DE IDEIAS SEMELHANTES POR TODA A EUROPA. A
DEMOCRATIZAÇÃO, NO SEU SENTIDO MODERNO, TINHA
COMEÇADO. As IDEIAS ESTAVAM A DESEMPENHAR UM PAPEL
RELEVANTE NESTES DESENVOLVIMENTOS, ACIMA DE TUDO A
IDEIA DE COMBINAR A LIBERDADE DO INDIVÍDUO COM A
IGUALDADE SOCIAL. OS PROBLEMAS POSTERIORES SOBRE
COMO RECONCILIAR ISTO COM A ORDEM SOCIAL E A
PROSPERIDADE ECONÓMICA VIERAM PARA DOMINAR A
FILOSOFIA POLÍTICA.

3
OS UTILITARISTAS

OS EMPIRISTAS CONCENTRAM-SE NA
MORAL E NA POLÍTICA

«Todos por um e ninguém por mais do que um» e «A maior


felicidade para o maior número» são adoptados por
princípios de orientação

DURANTE A PRIMEVA METADE do século XIX, a filosofia


no mundo de expressão inglesa procedia de Kant, numa ignorância quase
completa. A sua. obra-prima, Crítica da Razão Pura (178]), só foi
traduzida para inglês em I854, meio século completo depois da sua morte,
e então, tal como hoje, só umas quantas pessoas cultas inglesas sabiam ler
alemão. Consequentemente, para além de Hume, tiveram-se poucos
progressos na metafísica e na teoria do conhecimento. Os grandes avanços
surgiram na moral e na filosofia política. A sua aplicação na política
pública, numa altura em que a Grã-Bretanha dominava qualquer coisa
como um quarto da raça humana, teve um impacte a nível mundial.
JEREMY BENTHAM
O filósofo inglês e
reformador social Jeremy
Bentham foi o fundador do
REFERÊNCIA DE ESQUERDA utilitarismo. Acreditava que
os interesses do indivíduo
O primeiro filósofo com influência duradoura na língua inglesa, estão em conformidade com
depois de Hume, foi Jeremy Bentham (1748-1832). Nasceu em Londres e a sociedade.
foi educado em Oxford e depois nos tribunais de Londres, onde se
qualificou como causídico. Foi a imensa injustiça social que via no seu trabalho como estudante de
Direito que o tornou activamente interessado em questões de moralidade pública. Apesar de se ter

PANÓPTICO. Um dos principais objectivos de Bentham era a reforma prisional e


ele acreditava que essas reformas resultariam numa «moral reformada, saúde
preservada, indústria revigorada e instrução difundida». Para explicar esta visão, ele
concebeu uma prisão-modelo, o panóptico, que infelizmente nunca chegou a ser
adoptada. No entanto, Bentham foi recompensado financeiramente pelos seus esforços
e o dinheiro foi aplicado na fundação da University College.

dedicado a escrever abundantemente sobre ética, política e questões legais durante a sua longa vida,
sempre esteve vigorosamente envolvido com a aplicação pratica destas ideias. Tornou-se o chefe de
uma escola de pensamento e acção que se designa pelo nome de ^radicalismo", que liderou o
4
movimento a favor de reformas liberais nas prisões, na censura, na educação, nas Íeis que regiam a
actividade sexual, na corrupção nas instituições públicas — em resumo, o que se tornou desde então
como um familiar ponto de referência liberal de esquerda na política social.

NOVA UNIVERSIDADE
As principais influenciam filosóficas de Bentham foram os pensadores pré-revolucinários
franceses; e o seu posterior desenvolvimento através dele iria influenciar, depois de si o aparecimento
do socialismo britânico, mais tarde, no século XIX. Bentham e os seus principais seguidores eram
livres-pensadores; e uma vez que nessa os livres-pensadores ainda não iam estudar em Oxford ou em
Cambridge eles criaram a primeira universidade nova de Inglaterra desde a Idade Media, a University
College London, fundada em 1826. Jeremy Bentham continua a. fazer sentir lã a sua presença no
sentido mais literal da palavra. No átrio da entrada, o seu corpo embais amado, vestindo as suas roupas
habituais, esta dentro de uma edema de vidro e apenas a sua beca foi substituída por um modelo em
cera. E até há pouco tempo Bentham era sempre mencionado nas actas do corpo docente como
«presente, mas impedido de votar».
Em parte talvez devido aos seus muitos envolvimentos práticos, Bentham assumiu uma
atitude curiosamente inebriante relativa ã publicação. Antes de completar uma obra começava logo
outra, deixando muitas vezes a primeira inacabada — ou, se a acabava, não fazia nada para publicá-la.
Foi principalmente através da intervenção dos seus amigos que as suas obras chegaram a ser
publicadas, muitas delas depois da sua morte. Na verdade, o que tornou o seu nome
internacionalmente famoso foi uma tradução francesa feita por um admirador, publicada em Paris em
1802. E nesta altura ele já se tornara cidadão da nova República Francesa, o que aconteceu em 1792, e
exercia algumas influências no resto da Europa e nos Estados Unidos. Bentham foi um progressista
tardio e, ao contrário da maioria das pessoas, tornou-se mais radical à medida que ia envelhecendo. Em
1824, apenas alguns anos antes da sua morte aos 84 anos, fundou, a suas próprias expensas, The
Westminster Review, que seria durante muitos anos uma defensora extremamente eficaz das ideia
«avançadas». Por exemplo, foi The Westminster Review que, quase três décadas mais tarde, chamou a
atenção do mundo para a filosofia de Schopenhauer, depois desta ter ficado praticamente esquecida,
num desprezo quase completo, durante 35 anos.

O MAIOR BEM
Como princípio de orientação para a política pública, Bentham adoptou uma máxima que
tinha sido enunciada no início do século XVIII por um filósofo escocês-irlandês chamado Francis
Hutcheson: «A melhor acção é a que obtém a maior felicidade para o maior número.» Bentham
desenvolveu isto numa filosofia moral, que defendia que a correcção ou a incorrecção de uma: acção
deveria ser julgada apenas em termos das suas consequências (de maneira que os motivos, por
exemplo, eram irrelevantes); que as boas consequências eram aquelas que proporcionavam prazer a
alguém, enquanto as más consequências eram aquelas que causavam dor a alguém; e portanto, em
qualquer situação, o procedimento correcto a seguir era aquele que iria maximizar o excesso de prazer
sobre a dor, ou então minimizaria o excesso de dor sobre o prazer
Esta filosofia ficou conhecida como utilitarismo, porque o seu objectivo era julgar cada acção
pela sua utilidade, o mesmo é dizer pelo seu proveito ao provocar consequências de um determinado
tipo. Os seus proponentes aplicavam estes princípios à moralidade privada, assim como à prática
política, legal e social. Esta filosofia teve uma influência permanente na forma como a Grã-Bretanha é
governada. «A maior felicidade para o maior número» entrou na língua inglesa como uma frase de
5
propaganda familiar para todos.
Depois de este princípio ter sido aceite, a única dificuldade envolvida ao tomar decisões era a
dificuldade em calcular as consequências. Ao fazer esse tipo de cálculo, veio a lume outro princípio
importante: «Todos por um e ninguém por mais do que um.» As atitudes que estes princípios
originaram eram muito diferentes das tradicionais. Por exemplo, formas de actividade sexual que não
traziam sofrimento a ninguém eram irrepreensíveis para os utilitaristas e, contudo, algumas destas
actividades foram selvaticamente punidas pelas leis da altura.
Por outro lado, havia então alguns métodos de trabalho que
implicavam um sofrimento desnecessário para as pessoas, até
mesmo a ruína, e eram perfeitamente legais. Por isso, a «O INDIVÍDUO É
divulgação das ideias do utilitarismo ajudaram a causar SOBERANO ACIMA
importantes mudanças práticas na sociedade. A atitude
utilitarista de punição defendia que as penalidades deviam DE SI PRÓPRIO,
ser suficientemente severas para intimidar, mas não mais do ACIMA DO SEU
que isso, uma vez que poderiam causar um sofrimento
desnecessário. Durante a segunda metade do século XIX, os CORPO E DA SUA
«princípios utilitaristas invadiram as instituições MENTE»
governamentais e a administração na Grã-Bretanha e
mantiveram a sua influência poderosa desde então. Até certo
ponto isto marca a diferença entre a Grã-Bretanha e os
JOHN STUART MILL
Estados Unidos, onde a ênfase sempre foi mais fortemente
sentida nos direitos individuais, com uma relutância
correspondentemente maior para sacrificar o indivíduo ao
bem-estar da maioria e uma menor prontidão para aceitar a
intervenção do governo.

CRIANÇA-PRODÍGIO
O homem que fez mais do que qualquer outra pessoa para organizar e liderar o radicalismo
em nome de Bentham foi James Mill e foi grandemente através dos seus esforços que Bentham foi
capaz de alcançar uma influência tão poderosa na política britânica. O outro pretexto para a fama de
Mill foi o facto de ele ser pai de John Stuart Mill, que iria tornar-se o mais conhecido de todos os
filósofos de língua inglesa do século XIX, continuando a sê-lo ainda hoje.
John Stuart Mill (1806-1873) foi educado inteiramente pelo seu pai: não foi à escola, nem
ingressou na universidade. O pai educou-o à força desde muito cedo: grego aos três anos, latim,
aritmética e história dos sete anos em diante, vários ramos de matemática antes dos 12 anos. Stuart
Mill também foi educado para acreditar no utilitarismo e foi ele que colocou esse termo a circular.
Aos 17 anos, Stuart Mill começou a trabalhar na Companhia das Índias Orientais, onde o seu
pai era um dos funcionários mais antigos, e aí permaneceu até à extinção da companhia 35 anos mais
tarde, em 1858. Este domínio esmagador por parte do seu pai em tudo o que dizia respeito à sua vida,
até Stuart Mill completar os 20 anos, precipitou um colapso nervoso que degenerou numa grave
depressão nessa idade, o que fez com que ele sentisse necessidade de mais válvulas de escape pessoais.
No entanto, saiu do estado de depressão e aos 25 anos conheceu uma mulher casada, Harriet Taylor,
com quem se envolveu apaixonadamente, facto que acabou por ser aceite pelo marido desta, apesar de
isso ter chocado a sociedade convencional. Depois da morte de John Taylor em 1851, Mill casou com
Harriet, mas ela morreu em 1858. Durante os anos entre 1865 e 1868 Mill foi membro do Parlamento,
onde se destacou ao propor o direito de voto para as mulheres.

6
IGUALDADE PARA AS MULHERES
O primeiro livro de Mill tornou-o famoso: Sistema de Lógica, uma obra em dois volumes
publicada em 1843. Apesar do seu título, era um sistema geral de filosofia como um todo,
aproximando e actualizando a filosofia empirista desenvolvida por Locke, Berkeley, Hume e Bentham
— embora sem a teologia de Berkeley e o cepticismo de Hume. Durante muitos anos o livro foi a
melhor exposição sistemática disponível desse tipo de filosofia e isso trouxe-lhe fama e influência
mundiais apesar do facto de não ser particularmente original. Mais famosos e com uma influência mais
duradoura até aos nossos dias foram os seus livros Ensaio sobre a Liberdade (1859) e A Sujeição das
Mulheres (1869).
A tese central do Ensaio sobre a Liberdade é que «a única consequência que a humanidade
tem garantida, individual ou colectivamente, ao interferir com a liberdade de acção de qualquer um dos
seus membros, é a protecção individual». Por outras palavras, o indivíduo devia ser livre para fazer o
que quiser, desde que não prejudique seriamente outras pessoas — tal como um juiz uma vez, a
propósito disso, sublinhou a um réu:
«A sua liberdade de agitar um braço termina onde começa o meu nariz.» O livro de Mill
continua sendo considerado a exposição clássica para este conceito de liberdade do indivíduo e ainda é
bastante lido como tal.
A Sujeição das Mulheres é ainda mais notável. Depois de Platão, que defendia que as
raparigas deviam ser educadas da mesma maneira que os rapazes, o único vulto digno de nota que
exigiu igualdade para as mulheres foi Epicuro — e depois dele não houve mais ninguém até ao século
XVIII, com a agitação das ideias liberais que rodearam a Revolução Francesa. A razão para que isto
tenha acontecido é difícil de explicar satisfatoriamente, em especial tendo em vista o prestígio
incomparável que Pia tão exerceu durante longos períodos através desses dois mil anos. A Sujeição das
Mulheres foi o primeiro livro dedicado por um pensador famoso à defesa da causa pela igualdade dos
sexos -e foi isso que aconteceu com toda a atracção e convicção características de Mill. Por esta razão,
tal como seria de esperar, o livro continua a granjear grande estima junto das feministas em toda a
parte do mundo.

7
OS PRAGMATISTAS AMERICANOS

O CONHECIMENTO COMO FORMA DE


ENVOLVIMENTO PRÁTICO

Saber é algo que fazemos e é considerado como uma


actividade prática. As questões de significado também são
mais bem entendidas neste contexto.

QUANDO OS ESTADOS UNIDOS foram fundados como nação independente, perto do final
do século XVIII, isso deu um novo ímpeto ao desenvolvimento de uma cultura e de uma abordagem de
ideias especificamente americanas. Mas foram precisos mais duzentos anos aproximadamente para que
a filosofia americana se desenvolvesse ao ponto de chamar a si a atenção internacional; e, depois,
houve uma época no final do século XIX e início do século XX em que o melhor departamento
universitário de filosofia do mundo foi considerado por muitos como sendo o de Harvard. Desde então
houve três notáveis filósofos americanos que obtiveram um estatuto de clássicos e tornaram-se
conhecidos como «os pragmatistas americanos». De entre eles, o mais original era Charles Sanders
Peirce, o mais agradável de ler era William James e o mais extraordinariamente influente foi John
Dewey.

SABER É FAZER
Segundo a Enciclopédia Britânica, C. S. Peirce (1839-1914) é «agora reconhecido como a
inteligência mais original e mais versátil que as Américas jamais produziram». O seu pai era professor
de Matemática em Harvard e era o matemático mais importante do seu tempo. O próprio C. S. Peirce
formou-se em Matemática e em Ciências e durante muito tempo ganhou a vida como cientista e a
actividade filosófica era algo que ele desenvolvia nos seus tempos livres. Contudo, a partir dos 48 anos
Peirce dedicou-se à filosofia a tempo inteiro. Nunca escreveu nenhum livro e grande parte da sua obra
foi publicada apenas após a sua morte, quando a sua Colectânea de Ensaios foi editada em oito
volumes.
Talvez o argumento central de Peirce seja defender que o conhecimento é uma actividade.
Somos incitados a inquirir e a querer saber por uma qualquer necessidade, ou lacuna, ou dúvida. Isto
leva-nos a avaliar a nossa situação-problema, a tentar ver o que está mil ou o que está em falta em
determinada situação e conseguir saber como consertá-la. Este esquema aplica-se até mesmo quando o
nosso problema é puramente teórico; e também se aplica tanto na vida quotidiana como nas ciências. A
aplicação da inteligência é acima de tudo estimativa e visa alcançar o entendimento. O conhecimento
consiste em explicações válidas. O primeiro ensaio importante de Peirce chamou-se Como Tornar
Claras as Nossas Ideias (1878) e nele Peirce defendia que para compreender claramente uma palavra
devemos perguntar-nos que diferença faria a sua aplicação na avaliação da nossa situação-problema ou
numa solução proposta para ela. Essa diferença constitui o significado da palavra. Uma palavra cuja
aplicação não faz muita diferença em relação a alguma coisa que não possua um significado expresso.
8
Assim, «pragmatismo» -uma palavra que o próprio Peirce ajustou para se utilizar neste contexto -foi
sugerido por ele como um método para exprimir os significados das palavras; e consequentemente,
podemos dizer, como uma teoria da significação.

FALIBILIDADE

Está contida uma grande dose de originalidade nestas ideias. Elas rejeitam uma ideia de
conhecimento que não tenha sido aceite pelos cientistas durante, pelo menos, 250 anos e que seja uma
ideia de conhecimento como um facto impessoal. Sem ter necessariamente que perceber que o estavam
a fazer, os cientistas aceitaram o que poderíamos chamar de
ideia observadora de conhecimento, como se o homem
estivesse, de alguma forma, a observar o mundo do seu «O REAL É
exterior e a enunciar o conhecimento a partir das suas
observações. Peirce dizia que nós não fazemos isto: nós
ENTÃO AQUILO A
adquirimos o nosso conhecimento como participantes e não QUE, MAIS CEDO
como espectadores. Fazemos parte do mundo, vivendo no seu
interior; e é essencialmente através da busca pela OU MAIS TARDE,
sobrevivência que nos esforçamos por conhecê-lo e
compreendê-lo. Por isso, somos as partes interessadas. O
O
conhecimento é um instrumento, talvez o instrumento mais CONHECIMENTO
importante para a nossa sobrevivência: nós utilizamos o nosso
conhecimento. E, porque a coisa mais útil sobre ele é o seu E O RACIOCÍNIO
poder explanativo, nós vamos confiar nele, tal como fazemos
com qualquer explicação, porque só assim ele funciona e só
ACABAM POR
assim produz resultados exactos; se começarmos a notar nele DAR ORIGEM»
algumas dificuldades sérias, tentamos melhorá-lo ou talvez até
mesmo a substituí-lo. Isto significa que o conhecimento
científico não é um conjunto de certezas, mas um conjunto de CHARLES SANDERS PEIRCE
explicações. E o crescimento do nosso conhecimento
científico não consiste em adicionar novas certezas ao grupo
das já existentes, consiste sim em substituir as explicações já existentes por explicações melhores.
Um pouco mais cedo, no mesmo século, um filósofo em Cambridge, na Inglaterra, chamado
William Whewell também teve alguns destes discernimentos; mas Peirce desenvolveu-os mais
amplamente. A partir destes princípios incrementou-se, de uma maneira geral, uma visão da ciência e
do conhecimento que acabou por desalojar o conceito predominante no século XIX. No século XIX, as
pessoas tinham a ciência como uma coisa certa, um conhecimento incorrigível, um facto sólido; na
verdade, achava-se que todo o conhecimento que era genuinamente digno desse nome tinha que ter
essas características de certeza. Uma coisa não podia ser conhecimento e, ao mesmo tempo, corrigível.
No entanto, no decorrer do século XX, as pessoas começaram a aperceber-se de que nenhum
conhecimento é certo, nem mesmo na nossa ciência; que tudo nele é falível e, em princípio,
improvável, até mesmo substituível. A história do conhecimento apoia isto de maneira tão óbvia que
pode ser considerado surpreendente que ninguém se tenha apercebido disso antes. Em comparação, o
pouco que é «conhecido,> em qualquer época continua a ser considerado como inquestionável pelas
gerações futuras. É virtualmente certo que a nossa própria era não vai fugir a esta regra.
Uma outra característica geral do pensamento do século XX que foi prefigurada por Peirce diz
respeito à relação existencial do homem com o seu conhecimento, o facto de ele não se encontrar fora
do mundo a olhar para ele, mas faz parte dele e é um participante, cujo conhecimento e entendimento
dele tem, acima de tudo o resto, que ir ao encontro das suas necessidades urgentes. Este conceito
acabou por ser defendido em comum por várias escolas de pensamento posteriores que estavam
9
acostumadas a pensar em si como opositoras: por exemplo, Heidegger e a moderna forma de
existencialismo que se desenvolveu a partir dele, Wittgenstein e a filosofia analítica que alimentou a
sua obra publicada a título póstumo e a epistemologia evolutiva que resultou da obra de Karl Popper.

PROSA LÚCIDA
Peirce viveu e trabalhou no obscurantismo e era lido apenas por um punhado de amigos e de
especialistas. Foi um amigo de longa data, chamado Wil1iam ]ames (1842-1910), que tornou o
«pragmatismo americano» conhecido em todo o mundo. James formou-se em Medicina em Harvard e
mais tarde foi aí professor de Anatomia e de Fisiologia, mas depois tornou-se professor de Psicologia.
James tinha um estilo de prosa excepcionalmente agradável, bastante diferente do do seu irmão mais
novo Henry James, o romancista enquanto Henry se tornaria famoso pela densidade e pela lentidão da
sua prosa, a de Wil1iam era rápida, cheia de surpresas e lúcida devido a toda a sua riqueza de textura e
e metáforas. Se tivéssemos que avaliar apenas o estilo literário, diríamos que Henry era o filósofo e
Wil1iam o romancista. Os livros de Wil1iam alcançaram admiradores internacionais durante a sua
vida e continuaram a ser bastante lidos desde então. Se hoje em dia mencionarmos o nome «James» no
departamento de filosofia de uma universidade, as pessoas vão partir do princípio de que estamos a
referir-nos a William James, ao passo que no departamento de literatura vão presumir que estamos a
referir-nos a Henry James. Os livros mais conhecidos de William são: Princípios de Psicologia (1890);
As Variedades da Experiência Religiosa (1902); O Pragmatismo (1907).

UMA TEORIA DA VERDADE


Enquanto Peirce tinha apresentado o
pragmatismo como uma teoria da significação> James «NADA É VITAL
tratava-o como uma teoria da verdade. Ele defendia que
essas afirmações e teorias são tão verdadeiras que
executam todas as tarefas que lhes estão destinadas:
PARA A CIÊNCIA;
primeiro do que tudo enquadram todos os factos
conhecidos, estão de acordo com todas as afirmações NADA PODE SER
confirmadas e com as leis científicas da experiência, mas
também se opõem à crítica, sugerem critérios úteis,
produzem vaticínios exactos e assim por diante. Se uma
CHARLES SANDERS PEIRCE
afirmação satisfizer todas estas exigências, ele pergunta
qual será o motivo que nos impede de lhe chamar
«verdadeira>,. Infelizmente para James, muitas pessoas pensavam que ele defendia a ideia crua de que
a verdade é tudo o que resulta. O termo «pragmatismo» era já de si bastante infeliz neste contexto,
porque levava a interpretações erradas. Além do mais, uma interpretação superficial de James foi
incentivada em relação ao que parece que ele defendia sobre a crença religiosa — que se uma
afirmação religiosa ou sistema de afirmações tivesse hipóteses de ser verdadeira, por outras palavras,
não pudesse ser reprovada, e um determinado indivíduo fosse tirar um bom proveito ao acreditar nisso,
então o facto de acreditar nisso estava justificado. Este era um conceito que estava prestes a tornar-se
mais intimamente ligado ao nome de Jung. Peirce manteve boas relações pessoais com James e,
escusado será dizer, não era superficial na sua compreensão em relação às teorias de James, mas
dissociou-se publicamente da interpretação que James deu ao pragmatismo. O próprio James acabou
por cansar-se do que parecia ser uma controvérsia interminável e frequentemente repetitiva em volta
do pragmatismo e passou a concentrar a sua obra em outros problemas, deixando deliberadamente o
campo do pragmatismo a um filósofo mais jovem, chamado John Dewey.

10
INTERNACIONAL
John Dewey (1859-1952) começou por ser visto como um jovem tímido de Nova Inglaterra,
educado na Universidade de Vermont. Era um bom aluno, sem ser brilhante, e recusaram-lhe por duas
vezes uma bolsa para estudar filosofia a um nível de pós-graduação e no final teve que pedir
emprestados quinhentos dólares a uma tia para o fazer. No entanto, graduou-se e passou toda a sua
carreira como professor universitário, primeiro na Universidade de Michigan, depois em Chicago e
finalmente na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque.
Dewey começou por ser hegeliano, mas depressa passou para o pragmatismo. De acordo com
as teorias pragmáticas, esteve sempre envolvido numa grande variedade de actividades práticas, por
exemplo em grupos científicos e políticos, e na fundação de novos tipos de escolas. Ele estava sempre
a tentar divulgar as suas ideias a um público mais vasto e produziu um jornalismo de elevada
qualidade, assim como muitos livros. Tornou-se internacionalmente conhecido e influente. Leccionou
em Tóquio, Pequim e Nanquim e desenvolveu pesquisas educacionais na Turquia, no México e na
Rússia da era soviética. Aos 78 anos liderou uma comissão independente de inquérito quanto às
acusações feitas contra Trotsky nos julgamentos de Moscovo; o seu veredicto, após uma investigação
cuidadosa, foi «inocente". Quando a famosa História da Filosofia Ocidental de Bertrand Russell foi
publicada em 1946, apenas a um único filósofo vivo foi dedicado um capítulo inteiro e foi ele John
Dewey. A sua produção de livros era tão grande que se tornava difícil uma selecção, mas talvez o que
dá a expressão mais concentrada das suas ideias centrais seja Lógica: a Teoria da Inquirição (1938). O
seu livro mais popular foi Reconstrução da Filosofia (1920) e talvez o mais influente tenha sido A
Escola e a Sociedade (1899).

APRENDER FAZENDO
Dewey considerava um facto inevitável que, desde há QUANTO MAIS...
centenas de anos, os maiores sucessos na aquisição de
conhecimentos provinham, sem dúvida nenhuma, da ciência. INTERACÇÕES
Houve duas características deste facto que o abalaram
violentamente: é mais confiante do que o nosso conhecimento
APURAMOS,
em outros campos e também é mais útil para nós, no sentido em MAIS
que marca uma diferença maior nas vidas que realmente
levamos. Como pragmatista, Dewey considerava que o CONHECEMOS O
conhecimento de qualquer tipo era, acima de tudo, uma
actividade humana e examinou o conhecimento científico deste
OBJECTO EM
ponto de vista para saber se o que ele tinha de tão especial podia CAUSA
adaptar-se a outros tipos de saber e chegou à conclusão de que
sim. Ele achava que a ciência era uma forma altamente
disciplinada e auto crítica de interrogação com uma estrutura JOHN DEWEY
lógica que podia ser aproveitada, com sucesso, a quase todos os
tipos de interrogação. Começamos sempre com uma dificuldade sentida de qualquer espécie, por isso a
nossa primeira preocupação é clarificá-la, por outras palavras, é trabalhar continuamente na
formulação do nosso problema. Este processo pode ser difícil e pode passar por diversas etapas. A
próxima etapa é inventar uma possível solução para o problema. E a seguinte é testar essa solução
experimentalmente. Se a nossa solução for rejeitada pelos testes, teremos que repensar: mas se for
confirmada através da experiência teremos resolvido o problema e poderemos prosseguir.
Dewey acabou por achar que este era o padrão fundamental e desejável para todas as
interrogações. Segundo ele, é assim que o nosso conhecimento e a nossa competência podem
desenvolver-se em todas as áreas — apesar, é claro, de os procedimentos particulares utilizados, tipo
11
de provas, métodos experimentais, etc., diferirem em campos diferentes. Uma vez que a crítica
desempenha um papel essencial neste processo, Dewey considerava-a como uma actividade social
inegável. Isto levou a que ele se interessasse bastante por instituições e pela forma como elas
funcionavam. A crítica também ficou intrinsecamente ligada à sua concepção de democracia, na qual
ele estava bastante empenhado, sendo um assunto sobre o qual escreveu muita coisa. Dewey defendia
que a educação das crianças devia ser baseada nesta abordagem de solução de problemas aquilo que
denominamos «aprender fazendo» — porque combinava o sentido prático com a total avaliação da
importância da teoria e incentivava as crianças a serem imaginativas em ambos os níveis e, acima de
tudo, porque iria educá-las para possuírem uma aptidão geral em todos os campos da actividade
humana. As suas ideias sobre a educação foram influentes a nível mundial. Quando ele começou a
escrever sobre o assunto, a educação era tida, em quase toda a parte, como algo que era imposto por
intermédio de uma disciplina rígida a uma criança obstinada, contra a vontade dela. Os métodos
propostos por Dewey para ressaltar as energias naturais da criança, por forma a levar a cabo o processo
educacional, surtiram efeitos extraordinários. Ele foi um dos primeiros grandes modernistas em teoria
de educação e talvez o melhor de todos.

12
A FILOSOFIA
DO SÉCULO XX

O SÉCULO XX FOI O PRIMEIRO, DESDE A IDADE MÉDIA, EM QUE


TODOS OS FILÓSOFOS ERAM ACADÉMICOS. EM PARTE COMO RESULTADO
DISTO, HOUVE UM CRESCIMENTO SIGNIFICATIVO DA PREOCUPAÇÃO
RELATIVAMENTE À ANÁLISE. OCORRERAM DESENVOLVIMENTOS
MACIÇOS NA ANÁLISE LÓGICA E NA ANÁLISE LINGUÍSTICA, MUITO PARA
ALÉM DO QUE SE TINHA SONHADO NA HISTÓRIA ANTERIOR SOBRE ESTA
MATÉRIA. POR OUTRO LADO, OS MAIORES PROGRESSOS SUCEDERAM-SE
EM DUAS FRENTES. UM DELES FOI UMA RESPOSTA DA CIÊNCIA DO
SÉCULO XX, QUE OBRIGOU A UMA REAVALIAÇÃO RADICAL DA
NATUREZA DO CONHECIMENTO HUMANO COMO TAL. O OUTRO FOI UMA
TENTATIVA PARA COMPREENDER A CONDIÇÃO HUMANA NUM
UNIVERSO QUE JÁ NÃO ERA VISTO COMO TENDO SIDO CRIADO POR
DEUS, NEM COMO TENDO UM SIGNIFICADO OU UMA FINALIDADE
PRÓPRIOS.

13
14
FREGE
E A LÓGICA MODERNA

A LÓGICA PASSA A SER O CENTRO

No início do século XX ocorreram rupturas na lógica que


afectaram toda a restante filosofia.

O SISTEMA DA LÓGICA apresentado por Aristóteles permaneceu inalterado na sua forma


essencial até ao século XIX. Nessa altura, a lógica passou a ser considerada como parte integrante das
leis que governam o pensamento. Tal como Schopenhauer disse, já não somos capazes de pensar com
coerência sem obedecermos a estas leis, tal como não somos capazes de dobrar os nossos membros no
sentido contrário ao das articulações. No entanto, na última fase do século XIX, um alemão chamado
Gottlob Frege (1848-1925) previu quais seriam as consequências que iriam derrubar esta concepção de
lógica e que trariam desenvolvimentos revolucionários a este assunto

A LÓGICA É OBJECTIVA
Tal como muitas ideias de grande importância, isto parece óbvio depois de explicado, mas
nunca fora óbvio antes. Acontece o seguinte: uma coisa realmente provém ou não de outra coisa e seja
isso verdade ou não ela não pode definitivamente depender de nada que tenha a ver com a psicologia
dos seres humanos. Por outras palavras, a lógica não consiste em «leis de pensamento» nem tem
mesmo nada a ver com o pensamento. As relações lógicas são independentes do pensamento humano.
Claro que nós, seres humanos, podemos conhecê-las, aprendê-las, examiná-las, interpretá-las mal e
assim por diante, mas podemos fazer tudo isto com muitas outras coisas que existem
independentemente de nós. A questão é que as proposições lógicas são verdades objectivas. Podemos
entendê-las ou não conseguir entendê-las, mas a sua existência não tem nada a ver com nenhuma
característica do pensamento humano.
Quando este critério foi aplicado à filosofia geral, teve consequência graves. Desde Descartes,
a filosofia ocidental foi dominada pela questão: «Que posso saber?» A teoria do conhecimento, a
epistemologia, estava no seu centro; e isso queria significar que o que se passava na mente das pessoas
era o assunto principal de investigação. Mas as ideias de Frege tiveram como consequência a
«despsicologia» da filosofia. Qual é a sua finalidade e o que depende de quê são coisas independentes
da mente humana. Assim, as nossas tentativas para compreendermos mundo não podem legitimamente
centrar-se na epistemologia. A clara implicação disto é a filosofia dever basear-se na lógica e na
epistemologia; e a obra Frege precipitou mudanças nessa direcção que continuaram persistentes em
muitas das principais áreas da filosofia por todo o século XX.

15
A MATEMÁTICA É LÓGICA
Um outro grande feito de Frege dizia respeito à nossa compreensão da matemática.
Evidentemente que a matemática consiste quase inteiramente no que provi do quê. E os argumentos e
demonstrações matemática tal como todos os outros argumentos e demonstrações têm que começar por
algum sítio, a partir de algum: premissas; e também têm que ter, pelo menos, uma regra de origem se
quiserem passar para além das su premissas. Como já foi dito, não é possível para um demonstração
provar a validade das suas próprias premissas, nem das suas próprias regras de origem, porque se o
tentasse fazer estaria a cair num círculo vicioso; porque já teria aceite o que se tinha proposto provar.
Isto significa que todas as demonstrações matemáticas têm início em premissas não confirmadas e
utilizam regras de procedimento cuja validade não estabelecem. Assim, o que uma «prova»
matemática válida realmente prova é que, dadas as regras de procedimento, essas conclusões derivam
dessas premissas. Não provam que as conclusões são
verdadeiras, porque não pode provar que as premissas sejam
verdadeiras. Uma vez que isto se aplica a todos os «NÃO HÁ NADA
argumentos e demonstrações matemáticas sem excepção,
toda a matemática tem que ser vista como, de alguma
maneira, flutuando livremente no ar, sem qualquer apoio
MAIS OBJECTIVO
visível. Começando com a aritmética, o objectivo que Frege
se propunha mostrar era que todos os pressupostos e regras DO QUE AS LEIS
não confirmados que sustentam este edifício da matemática
podem ser oriundos dos mais elementares princípios da
lógica. Isto teria como consequência validar a matemática
DA MATEMÁTICA
como um conjunto de verdades necessárias que provêm de
premissas puramente lógicas. O objectivo era estabelecer a
matemática sobre bases sólidas; mas este programa iria ter GOTTLOB FREGE
dois conjuntos de efeitos secundários que foram, cada um
deles, de importância histórica.
Se a lógica abarcava toda a matemática como uma
consequência necessária, era tão verdade dizer que a lógica fazia parte da matemática como o era dizer
que a matemática fazia parte da lógica. Em qualquer dos casos, o que durante mais de dois mil anos se
tinha pensado que constituía toda a lógica não passaria de um pequeno pedaço dela. À luz desta
probabilidade, o estudo da lógica sofreu uma transformação passando para um campo vasto e
altamente técnico sobrepondo-se à matemática e hoje é ensinada e pesquisada em todas as principais
universidades do mundo.
O outro importante efeito secundário era a matemática ter uma extensão igual à da lógica, o
que fazia com que a «despsicologia» da lógica implicasse automaticamente a «despsicologia» da
matemática. Ao longo da história da matemática, sempre houve uma disputa sobre a sua natureza
fundamental entre os que a viam como um produto da mente humana, tal como a linguagem, e os que a
viam como tendo uma existência independente e própria. Se o programa de Frege tivesse sido
efectuado com sucesso, a sua disputa assentaria a favor da última opção.

FAMA TARDIA
Frege era um matemático e passou toda uma longa vida de trabalho no departamento de
matemática da Universidade de Iena. Apesar de ter publicado as suas descobertas, elas não foram lidas
pelos membros dos departamentos de filosofia das universidades alemãs, que na altura estavam
firmemente enraizadas no idealismo alemão, com a sua crença empenhada no conceito de que a
matemática era um produto da mente humana. Durante muitos anos, as descobertas de Frege também
não cativaram o mundo dos filósofos de expressão inglesa, mas também poucos eram os que sabiam
ler em alemão. Assim, Frege passou os seus anos mais produtivos no obscurantismo. Mas acabou por
16
ser um inglês, Bertrand Russell, que o «descobriu», e tornou muito conhecida a sua obra no mundo —
apesar de Russell já ter efectuado as suas próprias pesquisas redescobrindo e reinventando o que Frege
já tinha feito.
Antes de se voltar para a filosofia, Russell estudara matemática em Cambridge. E o facto de
ter tido em criança uma ama alemã fez com que soubesse falar alemão antes mesmo do inglês. Tudo
isso permitiu a Russell combinar e desenvolver ao máximo o trabalho que ele e Frege tinham iniciado
separadamente. E ao desenvolver as suas implicações ao longo de todos os ramos da filosofia pode
dizer-se que ele iria tornar-se o filósofo individual mais influente do século XX.

17
RUSSEL E A FILOSOFIA ANALÍTICA

A FILOSOFIA CENTRA A SUA ATENÇÃO


NA LINGUAGEM

Bertrand Russell utilizou a nova lógica para analisar


afirmações da linguagem comum. Isto inaugurou uma nova
forma de abordar a Filosofia.

BERTRAND RUSSELL (1872-1970) teve uma das vidas mais


interessantes entre as grandes figuras da filosofia. Era neto de Lorde
John Russell, que conduziu o Projecto de Reforma de 1832 até à
Câmara dos Comuns e posteriormente tornou-se primeiro-ministro da
Grã-Bretanha. Ambos os pais do jovem Bertie morreram antes de ele
completar os quatro anos, por isso ele foi viver com os avós, que o
educaram em casa; e isto quer dizer que ele cresceu num ambiente
familiar da aristocracia inglesa no apogeu da sociedade britânica, numa
altura em que a própria Grã-Bretanha estava no auge do seu esplendor
imperial como potência mundial. A seu tempo, Russell herdaria o BERTRAND RUSSEL
título de conde do seu avô, através do irmão mais velho.
Ruassel passou os últimos 15 anos da
sua vida numa campanha activa
contra o fabrico de armas nucleares.
Mesmo aos 90 anos, esteve entre os
chefes de Estado durante a crise dos
APAIXONADO mísseis cubanos de 1962, quando os
EUA mandaram os Soviéticos
PELA MATEMÁTICA retirar os mísseis nucleares de Cuba
ou enfrentariam um ataque nuclear.
Aos 11 anos, Russell apaixonou-se pela matemática. Na sua
autobiografia, ele escreveu: «A partir do momento em que Whitehead
e eu terminámos os Principia Mathematica, quando eu tinha 38 anos, a matemática era o meu principal
interesse e a mais importante fonte da minha felicidade." Russell foi para Cambridge, onde estudou
matemática a princípio e depois conciliou-a com a filosofia. Em consequência disto, o seu primeiro
livro de importância duradoura, publicado em 1900, era um estudo sobre o grande matemático e
filósofo Leibniz. Foi o único livro que ele escreveu sobre outro filósofo —muito ..embora, claro, a sua
História da .Filosofia Ocidental. um best-seller internacional quando foi publicada em 1946, fosse
inteiramente dedicada à obra

18
PIONEIRO
NA LÓGICA
Russell estava envolvido com a vida numa vasta frente. Enquanto jovem, foi um activista
socialista e concorreu ao Parlamento como candidato pelo Partido Trabalhista. Esteve na vanguarda
das novas ideias sobre questões sociais que se tornaram influentes nos primeiros anos do século xx, o
tipo de atitudes liberais e radicais em relação à guerra, ao império, à reforma legal, às classes sociais,
ao casamento, à moral, e assim por diante, cujo defensor mais notável na Grã-Bretanha desse tempo
foi George Bernard Shaw — uma posição da qual Russell foi o sucessor de Shaw no final da sua vida.
Na meia-idade, Russell escreveu livros e crónicas sobre esses assuntos. Casou quatro vezes e a partir
de uma certa idade tornou-se um manifesto mulherengo.
Devido a este leque de actividades, combinação de
talentos e conhecimentos sociais, Russell estava sempre a
viajar para o estrangeiro; e em todo o lado onde se deslocava
«O SEGREDO DA
conhecia pessoas ao mais alto nível, na política, na literatura, FELICIDADE É
nas ciências e no mundo académico. Teve uma vida
extraordinária. Escreveu mais de sessenta livros, ganhou o ENFRENTAR O
Prémio Nobel da Literatura e manteve-se activo como figura
pública até uma altura que distou uns escassos dois anos do
FACTO DE QUE O
que seriam os seus cem anos de vida. MUNDO É
Talvez surpreendentemente para uma pessoa com
esta descrição, a sua contribuição para a filosofia começou a
HORRÍVEL,
um nível bastante técnico. Independentemente de Frege, ele HORRÍVEL,
chegou à conclusão de que a aritmética e talvez toda a
matemática podiam derivar de princípios fundamentais da HORRÍVEL»
lógica. Isto foi defendido no seu livro Os Princípios da
Matemática, publicado em 1903. Utilizando os princípios
fundamentais de Frege juntamente com os seus próprios, BERTRAND RUSSEL
embarcou então na gigantesca tarefa de provar a sua teoria,
efectuando as verdadeiras reduções requeridas para demonstrá-lo. Fez isto em colaboração com a
pessoa que lhe tinha ensinado matemática em Cambridge, Alfred North Whitehead. Juntos produziram
três grossos volumes dos Principia Mathematica, publicados em 1910-13, considerados por muitos
como a maior contribuição individual para a lógica desde Aristóteles. Foi apenas depois destas
enormes proezas no campo da lógica matemática que Russell dirigiu os seus esforços para a filosofia.
Nesta altura já tinha 40 anos.

A BUSCA PELA CERTEZA


O seu primeiro livro de filosofia, publicado em 1912, foi Os Problemas da Filosofia. Continha
ideias originais e, contudo, ao contrário da sua obra na lógica matemática, era acessível ao principiante
interessado. Esta era uma característica de todos os seus livros seguintes, tal como, evidentemente,
tinha sido das obras de quase todos os grande filósofos. De salientar que entre os seus livros estava um
cujo título resumia o seu programa como filósofo: O Nosso Conhecimento do Mundo Exterior como
Campo para o Método Científico da Filosofia, publicado em 1914. Outros livros importantes são A
Filosofia da Lógica Atomista (1918), A Análise do Espírito (1921) e A Análise da Matéria (1927)
Depois seguiram-se os anos ::m que Russell esteve mais Profundamente mergulhado nas suas
actividades política, social e educacional. Mas depois surgiu Significação e Verdade (1940) e O
Conhecimento Humano (1948). Russell encerrou a :ua carreira na filosofia com um livro que avaliou,
com olhar crítico, o trabalho da sua vida, A Evolução do Meu Pensamento Filosófico, publicado em
1959.
19
Como filósofo, Russell sentia-se em linha de sucessão directa dos famosos empiristas
britânicos, entre os quais se destacaram as figuras de Locke, Berkeley, Hume e Mill. (Na verdade, Mill
era o padrinho de Russell.) Acreditava que todo o conhecimento do mundo exterior — tanto o nosso
conhecimento quotidiano global como o nosso conhecimento científico — era oriundo, afinal, da
experiência e o que ele queria fazer era descobrir uma demonstração racional da certeza deste
conhecimento e colocá-lo em bases sólidas e inabaláveis.

ANALISAR O QUE DIZEMOS


Enquanto os seus antepassados tomaram como garantido que o conhecimento era uma questão
da epistemologia e abordaram-no apenas nesses termos, Russell trouxe aos problemas todo o
mecanismo da lógica que ele, Whitehead e Frege tinham desenvolvido entre eles. Tal como antes,
tentou dar à matemática as bases lógicas seguras, por isso agora tentou fornecer ao nosso
conhecimento do mundo exterior, incluindo o nosso conhecimento científico, as bases lógicas seguras,
e em ambos os casos o objectivo era estabelecer o conhecimento humano com absoluta certeza.
Russell nunca foi capaz de o fazer em nenhum dos casos; mas em ambos alcançou coisas muito
positivas enquanto tentava. Dado o programa de Russell e o seu trabalho, para ele era natural aplicar as
técnicas da análise lógica às nossas comuns afirmações do conhecimento. Logo de imediato, descobriu
sérias dificuldades no que respeita ao significado e à verdade, até mesmo nas afirmações mais simples.
Se dissermos que «O herdeiro do trono britânico é careca», o significado da nossa afirmação parece
óbvio; e se tentarmos determinar a sua verdade verificando os factos descobrimos que ela é falsa. Mas
suponhamos que vamos mudar a afirmação apenas
ligeiramente por forma a que pareça quase a mesma: «O «A MATEMÁTICA
herdeiro do trono francês é careca.» Isto é verdadeiro ou
falso? Não existe um trono francês e, consequentemente, POSSUI NÃO
não existe herdeiro, por isso a afirmação não se refere a
nada nem a ninguém. Então como podemos dizer se ela é APENAS
verdadeira ou falsa? Na verdade, será que ela significa
alguma coisa? VERDADE COMO
Assim que Russell sujeitou a nossa maneira TAMBÉM BELEZA
normal de falar sobre as coisas a este tipo de análise
lógica, expô-la como um campo minado de problemas e — UMA BELEZA
armadilhas. Mostrou, tal como no exemplo de cima, que as
duas afirmações possuem exactamente a mesma forma FRIA E AUSTERA.
gramatical e, contudo, dois conjuntos de implicações
lógicas totalmente diferentes, por forma a que pelo menos
COMO A DE UMA
num dos casos a forma linguística do que estamos a dizer
está, na verdade, a esconder a sua verdadeira natureza
ESCULTURA»
lógica, o que pode ser altamente problemático.
BERTRAND RUSSEL

O NASCIMENTO
DA FILOSOFIA ANALÍTICA
Esta obra pioneira de Russell iniciou um desenvolvimento na filosofia que se tornou
conhecido como «filosofia analítica» e que quase acabaria por dominar a filosofia do mundo de
expressão inglesa durante grande parte do século XX. No decorrer do tempo, ela assumiu diversas
formas, mas uma que era comum a todas era a análise pormenorizada de proposições, ou dos termos
individuais e dos conceitos que ela empregava, ou das suas implicações lógicas tanto internas como
20
externas, com vista a trazer à superfície tudo o que nelas estava oculto. A questão fundamental sempre
foi esta: «Que estamos realmente a dizer quando dizemos isto ou aquilo?»
Entre os grupos que continuaram a abordagem de Russell e a desenvolveram, houve um que
surgiu em Viena na década de 20 e ficou conhecido como o Círculo de Viena. Consistia mais em
cientistas e matemáticos do que em filósofos e a sua principal preocupação era determinar as bases
filosóficas de uma visão científica. A sua era uma filosofia que ficou conhecida como o positivismo
lógico. Defendiam que o verdadeiro significado de uma afirmação era revelado quando nos
perguntávamos: «Que teríamos que fazer para determinar a veracidade ou a falsidade desta
afirmação?» Por outras palavras, que diferença observável faz a sua veracidade ou falsidade para a
forma como as coisas realmente são?
Uma afirmação que pretende ser sobre a realidade mas cuja veracidade ou falsidade não faça
diferença observável a nada que não tenha conteúdo nem significado — não quer dizer nada. É nesta
convicção que eles têm algo fundamentalmente em comum com os pragmatistas americanos, mas a sua
formulação era mais compacta: apenas as afirmações que são empiricamente verificáveis são
empiricamente significativas; e o verdadeiro significado de qualquer afirmação dada é revelado através
da sua verificação.
É com este bisturi que os positivistas lógicos eliminam grande parte do absurdo extravagante
que herdaram do passado, principalmente da tradição já decadente do idealismo alemão. A sua
dissecação de formas religiosas de falar sobre o mundo e também do discurso político da ascensão da
ideologia fascista no mundo de expressão alemã desse tempo era implacável. Aqui estava uma
filosofia com um apelo especial para os jovens iconoclastas. O livro que a apresentou ao mundo de
língua inglesa, Linguagem, Verdade e Lógica (1936), foi escrito por uma pessoa ainda na casa dos 20
anos, A. J. Ayer. Com a ascensão dos nazis ao poder na Áustria como na Alemanha (a fusão dos dois
países foi feita por Hitler em 1938), os membros do Círculo de Viena dispersaram-se e fugiram
principalmente para os Estados Unidos e para a Grã-Bretanha, onde exerceram uma importante
influência em toda uma geração.

SENSO COMUM
Entretanto, na Grã-Bretanha, um amigo de longa data de Russell, chamado G. E. Moore, tinha
adoptado a análise das afirmações da linguagem comum, não utilizando nem a ciência nem a lógica
técnica como sua bitola, mas sim o senso comum. Isto evoluiu grandemente através da intervenção de
uma personalidade chamada J. L. Austin, numa forma de filosofia que acabaria por desalojar o
positivismo lógico. Ficou conhecida como «filosofia linguística>, ou «análise linguística» e o seu
critério era a utilização comum da linguagem. Os positivistas lógicos estavam errados, segundo diziam
os linguistas, ao tentarem confinar os padrões científicos em todas as formas de expressão linguística.
Inúmeros tipos diferentes de discurso espontâneo compõem a vida humana e cada um deles tem a sua
lógica própria. Os problemas filosóficos são confusões conceptuais que surgem quando uma forma de
expressão linguística apropriada a um tipo de discurso é mal utilizada no contexto errado. A tarefa do
filósofo é desfazer essas confusões, empregando as utilizações comuns da linguagem segundo o seu
critério. Quando ele mostrar como surgiu uma tal confusão, não só já teremos resolvido o problema
como também já o eliminámos — tudo estará claro e já não será considerado um problema.

COMPREENDER O MUNDO
O atractivo da filosofia linguística recebeu o seu maior impulso na obra final de Wittgenstein,
21
um discípulo de Russell, sobre quem nos debruçaremos no próximo capítulo. Mas, tal como o
positivismo lógico acabaria por ser considerado como a corrente filosófica mais na moda entre a
geração do mundo de expressão inglesa durante a Segunda Guerra Mundial, também a filosofia
linguística faria moda na geração seguinte, sobretudo na Grã-Bretanha. Desde então, a filosofia de
ambos os países passou a estar menos ligada à moda e os seus problemas derivam de um vastíssimo
leque de assuntos, de forma nenhuma confinados às ciências. Mas a visão dominante do papel da
filosofia continuou a ser a análise lógica de formulações na linguagem, em que a opinião era trazer à
luz implicações ocultas — e essa foi uma tarefa inaugurada por Russell.
No entanto, o próprio Russell começou a achar cada vez mais que os filósofos que se lhe
seguiram estavam a cair numa coisa que era essencialmente uma actividade decadente da análise em si
— começaram a considerar a filosofia como sendo análise —, quando o que ele pretendera era aplicar
a nova lógica do século XX à tarefa tradicional da filosofia no entendimento da natureza da realidade
exterior a nós mesmos.

22
WITTGENSTEIN E A FILOSOFIA
LINGUÍSTICA

UMA FILOSOFIA QUE NÃO VAI ALÉM


DA LINGUAGEM E DA LÓGICA

Wittgenstein produziu duas filosofias, tendo ambas sido


influentes. Na mais recente, a análise linguística alcançou o
seu grau supremo de requinte.

APESAR DE LUDWIG WITTGENSTEIN (1889-1951) ter nascido em


Viena e de ter escrito em alemão, passou a maior parte da sua carreira como
filósofo na Grã-Bretanha, na Universidade de Cambridge, e adquiriu a cidadania
britânica. Em qualquer dos casos, por ter três quartos de ascendência judaica,
nunca poderia ter regressado à Áustria durante o nazismo. O seu pai fora o mais
magnata do aço da Áustria e Ludwig herdou dele uma fortuna. Era um de cinco
irmãos, três dos quais se suicidaram e o outro, Paul, tornou-se internacional-
mente famoso como pianista. Paul perdeu o braço direito durante a Primeira
Guerra Mundial, depois do que passou apenas a executar peças para a mão
esquerda de compositores famosos da altura, incluindo concertos de Ravel e de
Prokofiev.

AVENTURA EXCITANTE
Ludwig cresceu.fascinado pelas máquinas e recebeu uma instrução firmemente baseada na
física e na matemática. Foi para estudar engenharia aeronáutica que partiu para Inglaterra em 1908 e
passou três anos na Universidade de Manchester. Enquanto lá esteve ficou fascinado pelo que er~m na
verdade questões filosóficas sobre a matemática que ele estava a usar. Isto fez com que ele lesse os
Princípios da Matemática de Russell. O livro foi uma revelação. Wittgenstein fez uma visita a Frege na
Alemanha para discutir o livro e a conselho de Frege abandonou o seu posto em Manchester e foi para
Cambridge estudar filosofia sob a orientação de Russell, que escreveu mais tarde: «Conhecer
Wittgenstein foi uma ( aventuras intelectuais mais excitantes da minha vida.»

OS LIMITES DO SENTIDO
Na adolescência, Wittgenstein leu Schopenhauer e chegou à conclusão de que Schopenhauer
estava, segundo ele mesmo diz, fundamentalmente certo. Durante o resto da vida, Wittgenstein aceitou
uma visão de realidade total que via como dividida, por um lado, entre um plano do qual não podemos
ter um entendimento conceptual e, por conseguinte, do qual não podemos dizer nada. Por outro lado,
23
via este mundo fenomenal da nossa experiência, do qual podemos, na verdade, falar e tentar
compreender. Ele sempre achou que a filosofia inteligível tinha que restringir-se ao mundo do qual
podemos falar, com a do de se tornar inutilmente absurda caso se ultrapassassem os limites.

LINGUAGEM E REALIDADE
No entanto, ao princípio ele viu o trabalho pioneiro de Frege e de Russell como uma
possibilidade de colocar a visão de Schopenhauer do mundo fenomenal em bases mais sólidas, bases
essas não só epistemológicas como também lógicas. Por sua vez, isto tornou possível explica como o
mundo pode ser descrito através da linguagem, explicando assim a relação entre linguagem e
realidade. E como próximo passo isto seria, em princípio, possível para nós demonstrarmos em
pormenor quais eram os limites que podiam ser inteligivelmente expressos na linguagem e, portanto,
quais eram os limites do pensamento conceptual inteligível. Uma vez que Schopenhauer estava
«fundamentalmente certo», estas eram as únicas tarefas importantes que faltava à filosofia
desempenhar. Assim, a filosofia mais antiga de Wittgenstein era baseada numa versão revista do
programa de Kant-Schopenhauer para tentar estabelecer os limites daquilo que é apreensível pelos
seres humanos. Wittgenstein começou por trabalhar o tema em termos dos novos desenvolvimentos do
século XX na lógica e na análise da linguagem.

FORMA LÓGICA
Esta é a essência do primeiro livro de Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus (1921). O
título proibido foi-lhe sugerido por G. E. Moore e parece conter uma alusão ao Tractatus theologica-
politicus de Espinosa.
O livro de Wittgenstein é quase sempre referido simplesmente como Tractatus. Wittgenstein
acreditava honestamente que com este livro tinha clarificado os problemas importantes que
permaneciam por abordar na filosofia, por isso afastou-se para se dedicar a outras coisas. O seu livro
tornou-se a bíblia do Círculo de Viena e influenciou fortemente toda uma geração de filósofos. No
entanto, enquanto fazia isto, o próprio Wittgenstein estava a chegar à conclusão de que esse conceito
estava errado. Assim, com alguma relutância ao princípio, regressou ao mundo da filosofia de
Cambridge em 1929 e aí permaneceu até à sua morte em 1951. Durante este segundo período,
Wittgenstein não publicou virtualmente nada; mas depois da sua morte apareceu um conjunto
volumoso de escritos, volume após volume. O mais importante de todos foi Investigações Filosóficas,
publicado em 1953. Pelo menos na Grã-Bretanha, provavelmente foi a obra isolada mais influente da
filosofia desde a Segunda Guerra Mundial. O livro divulgou o nome de Wittgenstein fora da filosofia,
em campos que oscilam entre a sociologia e a crítica literária, e tornou-o um dos ícones intelectuais do
seu tempo. Wittgenstein produziu, então, duas filosofias diferentes no decorrer da sua vida e cada uma
delas exerceu grande influência.
Normalmente são referidas como «o primeiro Wittgenstein» e «o último Wittgenstein». A
sensação que ele próprio teve de que a sua primeira filosofia estava bastante errada é a denominada
«teoria ilustrada do significado». Esta expressão assentava numa analogia com a pintura. Um pequeno
pedaço de tela é um tipo de objecto totalmente diferente da extensão de uma cena campestre e,
contudo, um pintor é capaz de fazer com que a primeira represente a segunda com um reconhecimento
imediato, colocando nela determinadas manchas de cor com a mesma relação com que os elementos
correspondentes se referem uns aos outros na paisagem A este conjunto de relações internas comuns a
ambas Wittgenstein deu o nome de «forma lógica» e disse que era porque a forma lógica era a mesma
em ambos os casos, em que uma podia representar a outra. De forma semelhante, ele defendia que
somos capazes de reunir palavras, que representam coisas, em frases que têm a mesma forma lógica
24
que o estado de coisas que as frases descrevem e, por conseguinte, são capazes de representar a
realidade com precisão (ou, claro, com imprecisão) através da linguagem. Por isso, é a forma lógica
que nos permite falar sobre o mundo.

FORMAS DE VIDA
Mais tarde, Wittgenstein começou a achar
que tinha escolhido uma das muitas grandes tarefas
que a linguagem é capaz de executar e generalizou
uma teoria de significado completa a partir daí. A
linguagem pode fazer muitas outras coisas para além
de retratar a realidade: pode dar ordens (este foi o seu
primeiro contra-exemplo) e fazer todo o tipo de
coisas que não podem retratar nada. Para explicar
como o significado funciona, ele abandonou a sua
metáfora de um retrato e, ao invés, adoptou a
metáfora do instrumento. Segundo dizia, a linguagem
é um instrumento que pode ser usado para um
número indefinido de tarefas diferentes e o seu
significado consiste em todas as várias coisas que
podem ser feitas com ele. Se pegarmos numa palavra
ou num conceito solados, o seu significado consiste
na soma total das suas utilizações possíveis, que
podem ser várias. Não existe .necessariamente uma
«única coisa» que «represente»: não é provável que o
seu significado seja unilateral, muito embora haja
provavelmente uma semelhança familiar entre os seus
muitos rostos. Mas quando mostrarmos tudo o que A TEORIA ILUSTRADA
pode ser feito por ela já descrevemos exaustivamente
DO SIGNIFICADO
o seu significado: já não resta mais nada, por assim
dizer. Uma tal descrição rejeita duas teorias Apesar de a tela ser um tipo de objecto muito
tradicionais de significado. Uma delas é que as diferente daquele que está a ser pintado, o artista é
capaz de representar a cena usando a cor, por
palavras específicas representam coisas específicas e forma a que os dois partilham a mesma «forma
possuem significados fixos: a verdadeira situação é lógica». De igual modo, Wittgenstein acreditava
muito mais multiforme e fluida do que isso. A outra é que as palavras podem representar a realidade se,
que as palavras desviam os seus significados das mais uma vez, ambas partilharem a mesma forma
intenções dos seusutilizadores, por forma a que para lógica.
compreender o que uma pessoa diz é necessário saber
o que ela tem em mente. Wittgenstein insistia em dizer que a linguagem é pública. Nós aprendemo-la e
à forma como a urilizamos através de outras pessoas em situações sociais. Segundo ele diz, não pode
haver uma linguagem particular: isso iria contradizer a própria natureza da linguagem.
Na verdade, Wittgenstein acreditava que as palavras recebiam, afinal, o seu significado de
formas completas de vida. Existe, por exemplo, todo um mundo de actividade científica e os termos
científicos derivam os seus significados da forma como são usados neste mundo — e isso pode mudar
com o tempo. De forma semelhante, existe todo um mundo de actividade religiosa que possui a sua
própria linguagem e um mundo de actividade musical e um mundo de negócios e um mundo militar e
um mundo teatral e assim por diante. O que é aparentemente o mesmo conceito pode funcionar de
forma bastante diferente em mundos diferentes. Por exemplo, o que constitui «prova», é bastante
diferente para um advogado, para um historiador e para um físico. O boato não é admissível como
25
prova num tribunal> ao passo que por vezes ele é a única
prova que um historiador possui e nesse caso pode fazer uso
criterioso dele, enquanto para um físico a questão do boato
nem sequer se coloca — não existem boatos na física. Foi «O SIGNIFICADO
este aspecto da filosofia de Wittgenstein que foi
considerado pela primeira vez como um instrumento útil
para os sociólogos e para os antropólogos e foi aproveitado DE UMA
por alguns deles.
PALAVRA É A
A FILOSOFIA COMO LINGUAGEM SUA
Houve um período na terceira metade do século
XX em que Wittgenstein dominou a filosofia em UTILIZAÇÃO NA
Cambridge, J. L. Austin dominou-a em Oxford e os seus
métodos sobrepuseram-se. Ambos viam os problemas
filosóficos não como eles nos eram apresentados pelos LINGUAGEM
mistérios fundamentais do mundo em que nos encontramos
tempo, espaço, matéria, ligação causal e assim
sucessivamente — mas como confusões nas quais LUDWIG WITTGENSTEIN
tropeçamos como resultado do nosso abuso da linguagem,
como se, digamos, utilizássemos o termo "prova» num
contexto enquanto ele seria apropriado apenas num outro e
assim ficaríamos entregues a uma desordem lógica.
O exemplo é muito simples para ilustrar o
assunto: o tipo de confusões com que os filósofos se
«SE UM LEÃO preocupam era, globalmente, muito mais subtil do que
isso. A tarefa do filósofo, segundo eles achavam, era
PUDESSE FALAR arrumar todas essas desordens através de uma análise
meticulosamente cuidada da nossa utilização da
NÃO O linguagem. Isto deu origem a muitos estudos empíricos
ENTENDERÍAMOS» válidos sobre a linguagem e forneceu oportunidades
para exibições de brilhantismo e subtileza de análise, o
que dava às pessoas imenso prazer fazer. Mas a
abordagem completa não ia mais além do que a
LUDWIG WITTGENSTEIN linguagem e a lógica relativamente aos seus problemas.
Ela proporcionava uma análise racional para o assunto.
Dizia-se que os problemas empíricos iriam ser
resolvidos através de métodos empíricos, quer eles fossem de senso comum, da ciência adequada, da
política, do sistema judicial ou quaisquer outros. Contrariamente ao que muitas pessoas pensaram no
passado, a filosofia não podia contribuir com nada a este nível. A sua tarefa era resolver problemas
conceptuais, analisar e clarificar conceitos e a sua utilização. Com base nisto, muita da filosofia do
mundo de expressão inglesa acabou por ser envolvida apenas pela linguagem e as suas preocupações
particulares transformaram-se em problemas que diziam respeito ao significado, às referências e à
verdade.

O DISCURSO COMO ACÇÃO


No entanto, após um determinado período de tréguas, cada vez mais pessoas no próprio
mundo da filosofia, enquanto apreciam completamente os méritos desta abordagem, passaram a achar
26
que ela era indevidamente limitada, demasiadas vezes inclinada a tombar para a escolástica. Quando
A. J. Ayer descreveu a obra de J. L. Austin como árida, houve muitos colegas que concordaram com
ele. Hoje em dia, a tendência entre os filósofos analíticos é cada vez mais aplicar as suas técnicas
formidáveis de análise aos problemas exteriores aos confins da lógica e da linguagem -na verdade,
através de toda uma gama de temas que os filósofos raramente consideraram no passado, incluindo a
música, o sexo e as políticas sociais sobre assuntos relacionados com a raça eo sexo, juntamente com
tipos mais tradicionais de problemas que continuam a ser procurados. No entanto, a abordagem
continua a ser através da análise de conceitos e de métodos de utilização linguística característicos
desses campos. Para prestar justiça a Austin, ele contribuiu com uma ideia particularmente produtiva
para a filosofia, a «lei do discurso». Salientou que sempre que dizemos alguma coisa estamos a fazer
alguma coisa: a descrever, a negar, a incentivar, a mandar, a perguntar, a sugerir, a explicar, a avisar e
assim por diante. Pode até ser impossível falar sem fazer uma destas coisas: e Austin afirmava que era
capaz de distinguir mil acções diferentes que as pessoas executam pela sua utilização linguística das
palavras. Normalmente, ele começava a sua análise de uma frase perguntando: «Que estaria uma
pessoa a fazer se dissesse isto? E em que circunstâncias seria realmente usado?» E argumentava que,
se não houvesse circunstâncias imagináveis nas quais a afirmação seria utilizada, então ela não teria
significado. Um tipo de lei do discurso que identificou despertou especialmente a fantasia das pessoas
e foi a isso que ele chamou «expressões linguísticas representativas». Estas são afirmações que
executam as acções que descrevem. Exemplos disso são «Agradeço-te», «Felicito-te», «Prometo» e
«Peço desculpa».

O SÉCULO DA LINGUAGEM CONSCIENTE


No entanto, o nome de Austin não entrou para o mundo da cultura geral, ao passo que o de
Wittgenstein entrou. A ingenuidade e a subtileza das análises que Wittgenstein faz dos significados
linguísticos tornaram-no popular aos olhos de uma série de críticos literários, tal como a sua posição
essencial desses significados em formas de vida o tornou popular entre os sociólogos e os
antropólogos. Por razões que ultrapassam o âmbito da filosofia e que afectam todas as artes e todos os
assuntos académicos, o século XX tem estado mais preocupado com a linguagem e mais consciente
em relação à sua utilização do que o século anterior. Sendo assim, a filosofia linguística que se
desenvolveu ao longo do século XX deu por si a adequar-se ao temperamento da sua época e recebeu
uma aceitação mais rápida da comunidade intelectual em geral do que é provável que tenha acontecido
em qualquer época anterior.
Em nenhuma altura anterior nenhum filósofo de nome e de mérito acreditou que o tema
adequado à filosofia era a linguística e, na verdade, muitos filósofos notáveis do século XX também
não acreditavam nisso. Já tinham sido feitas referências ao facto de que Bertrand Russell, que
apadrinhou essa abordagem, se declarou embaraçado por qualquer pessoa pensar nisso como uma
concepção adequada da filosofia; e houve também outros vultos importantes, cujos métodos eram
muito diferentes dos de Russell, que estavam a seguir caminhos bastante diferentes.

27
O EXISTENCIALISMO

DE KIERKEGAARD A HEIDEGGER

O indivíduo acha que a sua própria identidade é um


problema e espera descobrir um significado na vida através
da investigação do mistério da sua própria existência.

MARTIN HEIDEGGER
SØREN KIERKEGAARD
Um importante expoente do existencialismo,
O fundador do existencialismo nasceu e viveu a
Heidegger continua a ser uma influência
maior parte da sua vida em Copenhaga. As suas
contínua no pensamento intelectual.
ideias inspiraram muitos filósofos do século XX,
Originalmente foi educado para ser um jesuíta,
particularmente os existencialistas. Kierkegaard
antes de estudar com Husserl e de se tornar o
acreditava que nenhum sistema de pensamento era
seu sucessor na Universidade de Freiburg. O seu
capaz de explicar a experiência única do indivíduo.
apoio ao nazismo arruinou a sua reputação.

A FILOSOFIA MAIS NA MODA na Europa durante o período imediatamente seguinte ao da


Segunda Guerra Mundial foi o existencialismo. Ele floresceu não só em universidades como também
nos mundos do jornalismo de qualidade, dos intelectuais de café, nos poemas, nos romances, nas peças
de teatro e nos filmes, até mesmo em cabarés e clubes nocturnos. Foi indubitavelmente um dos
movimentos intelectuais mais importantes do século XX e permanece sendo um elemento significativo
do pensamento contemporâneo, para além de ter deixado para trás de si uma série de peças de teatro e
de romances duradouros.

28
Uma coisa curiosa em relação a isto é que a moda veio muito tempo depois da filosofia. O
principal filósofo existencialista do século XX, Martin Heidegger, escreveu as suas obras mais
importantes durante a década de 20; e os pensadores que lhe estão próximos em linha de influência
eram muito anteriores a essa época e destacaram-se no século XIX: Kierkegaard e Nietzsche (em
relação a Nietzsche ver pp. 172-179). A súbita moda das ideias existencialistas que pareciam ter
surgido praticamente do nada nas décadas de 40 e 50 estava, de facto, enraizada num processo de
reacção contra a experiência do domínio e ocupação nazi, de que a Europa estava a começar a emergir.

EU E DEUS
O fundador do existencialismo é normalmente
considerado como sendo um pensador dinamarquês «O SUPREMO
chamado Soren Kierkegaard (1813-55). Ele escreveu
numa altura em que o filósofo dominante da época era o PARADOXO DE
recém-falecido Hegel. Segundo dizia Kierkegaard,
Hegel explicava tudo em termos de enormes esferas de
TODO O
ideias, nas quais as coisas reais e as entidades PENSAMENTO É A
individuais nem sequer eram muito mencionadas,
considerando que os factos são as únicas coisas TENTATIVA DE
individuais que existem. As abstracções e as
generalizações não existem no mesmo sentido: elas são
DESCOBRIR ALGO
ajudas que inventamos para nós mesmos, por forma a QUE O PENSAMENTO
podermos pensar e estabelecer ligações. Mas se
quisermos entender o que existe temos que descobrir NÃO PODE PENSAR»
alguma forma de chegarmos a um entendimento apenas
com as entidades individuais, porque elas são tudo o SØREN KIERKEGAARD
que existe. Isto é especialmente verdadeiro nos seres
humanos. Hegel tinha visto o indivíduo realizando-se a
si mesmo apenas quando era absorvido numa entidade maior e mais abstracta do estado orgânico,
considerando que, segundo Kierkegaard, é o próprio indivíduo que é a entidade moral suprema e,
portanto, são os aspectos pessoais e subjectivos da vida humana que são os mais importantes. Devido
ao valor transcendente das considerações morais, a actividade humana mais importante é tomar
decisões: é através das escolhas que fazemos que criamos as nossas vidas e nos tornamos nós mesmos.
Para Kierkegaard, tudo isto tinha implicações religiosas: ele acreditava, na tradição central do
cristianismo protestante, que o que mais interessava acima de tudo era a relação da alma individual
com Deus.

DOIS EXISTENCIALISMOS
Muitos pensadores concordaram com Kierkegaard até à altura em que ele se refere a Deus,
mas não partilharam a sua crença em Deus. Por causa disto desenvolveram-se, lado a lado, duas
tradições paralelas do existencialismo: o existencialismo cristão e o existencialismo humanista. Ambos
atingiram a sua mais alta produtividade no século xx. Este livro não vai tentar embrenhar-se nas
tradições religiosas do existencialismo, excepto para salientar que alguns dos teólogos mais originais
do século xx foram significativos pensadores existencialistas, que se sentiram devedores de
Kierkegaard. Neles se incluem Karl Barth, Paul Tillich e Rudolf Bultmann. Uma das preocupações
deste livro é para com a tradição puramente filosófica do existencialismo, aquela que não apela à fé
religiosa: o existencialismo humanista. Também este tem as suas raízes no século XIX na obra de
29
Kierkegaard, mas por outro lado, também na obra de Nietzsche, que era ateu. O seu representante mais
notável foi Martin Heidegger.

MACULADO PELO NAZISMO


Martin Heidegger (1889-1976) nasceu em Baden, na Alemanha, no mesmo ano em que nascia
Wittgenstein em Viena. Viveu na Alemanha durante toda a sua existência e também foi um académico
durante toda a vida. Enquanto aluno em Freiburg, estudou sob a orientação do famoso Edmund
Husserl (1859-1938) e foi educado segundo o método especial de Husserl, que iremos resumir daqui a
pouco. Fez um uso fundamental dos seus métodos na sua obra-prima Ser e Tempo, que foi publicada
em 1927 e dedicada a Husserl.
Heidegger aderiu ao partido nazi e quando os nazis chegaram ao poder em 1933 tornou-se o
primeiro reitor nacional-socialista da Universidade de Freiburg. No entanto, Husserl era judeu, ou pelo
menos parcialmente judeu; por isso, nessa época, Heidegger repudiou publicamente a sua ligação com
Husserl. Esta atitude manchou a sua reputação pessoal para o resto da vida. Demitiu-se do cargo de
reitor um ano mais tarde; mas, quando os Alemães foram derrotados no final da Segunda Guerra
Mundial, Heidegger foi proibido de leccionar durante seis anos devido ao seu passado nazi. Esta em
sido uma grande controvérsia desde então, muito utilizada contra ele pelas pessoas que discordam da
sua filosofia. Mas, na verdade, o facto de :er nazi não impedia que Heidegger fosse um pensador
interessante, tal como outros pensadores não foram desmerecidos por serem comunistas. A ideia de
que um grande pensador ten que ser um ser humano moralmente admirável é romântica, chegando
mesmo a ser infantil, e em todo o caso existem muitos exemplos na história da filosofia que
contradizem esta teoria, pelo que não a podemos levar muito a sério.

EXAMINAR APENAS A EXPERIÊNCIA


Ser e Tempo é apresentado num único volume, mas era para ser uma obra em dois volumes,
só que nunca foi terminada. Ao invés, a filosofia de Heidegger mudou de direcção; assim, temos o que
passou a ser conhecido como «o primeiro Heidegger" e «o último Heidegger». Este último não contém
nenhuma obra-prima e tem tendência a apresentar as ideias de Heidegger num processo de discussão
das ideias de outras pessoas, principalmente as de Nietzsche e as dos pré-socráticos — muito embora
também as de alguns poetas, nomeadamente de Novalis. Ser e Tempo continua a ser a obra-prima
reconhecida de Heidegger e passou a ser considerada como a origem do existencialismo do século XX.
A utilização do método de Husserl é tão importante para Ser e Tempo que antes de o
conteúdo desse livro poder ser discutido este método precisa de ser entendido. Pode ser abordado da
seguinte maneira: Husserl concordava com Descartes que para cada um de nós há uma coisa cuja
existência é indubitavelmente certa e é ela a nossa consciência desperta; por conseguinte, se quisermos
construir a nossa concepção de realidade sobre bases sólidas, esse é um lugar por onde podemos
começar. Mas ele também concordava com Hume em que, se olharmos, digamos, para uma mesa, a
nossa consciência é em relação à mesa e não de nós mesmos por termos tido a experiência de olhar
para a mesa. Em circunstâncias normais, a nossa consciência sempre assume esta forma. Estamos
directamente conscientes dos objectos, mas não de nós próprios como objectos. No entanto, todas as
tentativas para provar que esses objectos existem independentemente da nossa consciência parecem
condenadas ao fracasso. É visivelmente impossível provar a existência do mundo exterior.
Neste ponto, Husserl faz uma sugestão engenhosa. Ele diz que não nos devemos afundar em
problemas insolúveis sobre a existência independente dos objectos da consciência. É indubitavelmente
certo que eles existem como objectos de consciência para nós, seja qual for o outro estatuto existencial
que possam ou não ter. Assim, investiguemos esses objectos como parte da consciência numa certeza
30
absoluta de que eles existem como tal, sem fazer quaisquer outras suposições sobre eles. Como
objectos de consciência, eles estão directamente abertos à nossa investigação, tal como qualquer outra
coisa. Por isso, ponhamos de lado (ou entre parênteses, por assim dizer) as perguntas sem resposta e
façamos progressos com tudo aquilo que estamos tão bem equipados para investigar.

O NOSSO MUNDO HABITADO


Então, Husserl formou uma nova e completa abordagem à filosofia dedicada à investigação da
consciência e seus objectos. Era uma análise sistemática da experiência e ficou conhecida como
fenomenologia porque tratava tudo como se fossem fenómenos. O termo adquiriu também uma
utilização geral em filosofia: as pessoas falam sobre «a fenomenologia» de uma actividade, de
qualquer actividade, e isso significa uma descrição ou análise das experiências conscientes envolvidas.
Para dar um exemplo, a filosofia da matemática trata de questões como as bases lógicas da
matemática e a natureza do número, prova e assim sucessivamente, enquanto a fenomenologia da
matemática trata da matemática como uma actividade consciente e das experiências envolvidas nessa
actividade. E claro que existe uma fenomenologia de tudo, não apenas da nossa percepção dos objectos
materiais, mas também das artes, da religião, das ciências e, na verdade, das coisas que nos são
«internas», tais como os nossos próprios pensamentos, sentimentos, recordações, dores e assim por
diante. A soma total de coisas que na realidade experimentamos é o total daquilo de que estamos
realmente certos, embora apenas como fenómenos e experiência. Não obstante, este é o nosso mundo,
aquele que na verdade experimentamos, aquele em que na realidade vivemos; e por esta razão o termo
Lebenswelt, que significa literalmente «mundo habitável», foi inventado por Husserl. A soma de
possibilidades oferecidas pela filosofia de Husserl é uma investigação exaustiva do nosso Lebenswelt.

O QUE É A EXISTÊNCIA?
Heidegger estudou esta abordagem sob a
orientação do próprio Husserl. Mas o problema específico a
que ele recorria era um que tinha alcançado através de um «NÓS PRÓPRIOS
ponto de partida diferente. Ele foi afectado pelo facto de
que desde Descartes o problema do conhecimento tinha SOMOS AS
sido tratado pela filosofia ocidental como o seu problema
fulcral. Esta abordagem cartesiana considerava a realidade
como uma divisão entre mente e matéria, sujeito e objecto, ENTIDADES A
observador e observado, conhecedor e conhecido.
O jovem Heidegger pode não ter tido SEREM
conhecimento da obra dos pragmatistas americanos, mas a
sua objecção à epistemologia tradicional tinha muita coisa ANALISADAS»
em comum com a deles. Ele achava que ela era falsa
relativamente às realidades da situação. Não estamos
isolados do mundo, a olhar para ele. Nós próprios somos
uma parte integrante do mundo; e a nossa existência não MARTIN HEIDEGGER
pode ser concebida a não ser num mundo de qualquer tipo.
Fazendo uma reflexão mais profunda, o mistério central não é o conhecimento mas sim o ser, a
existência. O que é esta existência que encontramos dentro de nós ou connosco? O que é preciso para
alguma coisa existir? Como é que existe alguma coisa? Porque não existe simplesmente nada?

31
A ANÁLISE DO SER
A existência de que temos uma consciência imediata e indubitável é a nossa. Por conseguinte,
Heidegger julgava que a maneira para abordarmos o problema da existência é levar a cabo uma análise
fenomenologista daquilo que temos consciência e de quando temos consciência da sua existência. E é
assim que começa o seu livro Ser e Tempo. De uma maneira lenta, meticulosa, sistemática e quase
deliberadamente pedestre, ele separa as faixas distinguíveis que vão constituir a consciência que temos
da nossa existência. Por exemplo, ele mostra que não podemos tê-la a menos que exista uma espécie
de campo da consciência, uma cena, cenário ou ambiente, algum tipo de mundo em que ela possa
ocorrer; e, portanto, o nosso ser é inerentemente «mundano,). Pelo menos, para nós, o ser e um
determinado tipo de mundo são inseparáveis. Assim, não poderemos tê-lo, a menos que haja uma
apreensão de que qualquer um dos dois está a acontecer; mas isso necessita da dimensão do tempo; por
consequência, a existência de que estamos conscientes é inerentemente temporal. Mais uma vez, não
podemos ter uma consciência da nossa própria existência, a menos que ela se encontre na nossa
consciência; é preciso que ela nos preocupe de alguma maneira, pelo menos minimamente, para que
tenhamos consciência dela: a preocupação é um elemento irredutível, e assim por diante. Poderíamos
supor, quando começámos, que a consciência da nossa existência é algo tão imediato, directo e
transparente que não é capaz de uma análise mais profunda, mas Heidegger refuta este argumento
fazendo uma análise rica e profundamente criteriosa sobre o assunto. A conclusão a que ele finalmente
chega é que, nos seus aspectos mais importantes, a nossa maneira de ser possui uma estrutura tripla,
cujos elementos correspondem ao tempo passado, presente e futuro, por forma a que, em última
análise, ser é tempo — daí o título do livro.

SERMOS NÓS MESMOS


A partir destes princípios, Heidegger continua a analisar a situação humana. Longe de
começarmos como indivíduos isolados que encarnam então o problema de estabelecer contacto com
outras pessoas, a nossa existência é, desde o início, uma existência partilhada e social e o nosso
problema é o de nos tornarmos indivíduos, encontrando um modo autêntico de existência pessoal.
Estamos constantemente a ser empurrados para um futuro desconhecido e a ter que fazer escolhas sem
nenhuma certeza sobre os seus resultados. A culpa e a ansiedade são problemas nossos, principalmente
a ansiedade perante a morte. Desejamos que as nossas vidas tenham uma base ou fundação metafísica
e que também tenham algum significado; contudo, não temos garantia nenhuma de que alguma destas
coisas realmente exista com objectividade; e se não existirem as nossas vidas podem até ser sem
sentido e absurdas — caso contrário, todo o significado que possam ter é aquele que lhes atribuímos.

SENTIDO SEM DEUS


Estes temas passaram a dominar o existencialismo no século XX, aceitando o desafio de
Nietzsche e tentando confrontar um universo sem Deus. Tentaram encontrar uma base para os valores
num mundo sem nenhum significado objectivo e sem metas ou finalidades próprias. Tentaram
encontrar maneiras de descobrir ou de criar um sentido para as vidas transitórias dos indivíduos que
não têm vida depois da morte. Depois da Segunda Guerra Mundial, estas ideias foram popularizadas a
um ponto que raramente aconteceu com outra qualquer corrente filosófica. Nessa altura o centro
internacional para eles era Paris e a maioria dos escritores existencialistas famosos, exceptuando
Heidegger, era francesa. Aquele que tornou o existencialismo conhecido em todo o mundo foi Jean-
Paul Sartre, que não era apenas um filósofo, mas também um romancista e um dramaturgo de gabarito
32
internacional. Continuaremos a história do existencialismo com ele no próximo capítulo.

33
BERGSON E A RECENTE
FILOSOFIA FRANCESA

A FILOSOFIA COMO UM RAMO DA


LITERATURA

Em França, a filosofia desenvolveu-se no século XX como


uma parte da cultura literária geral, sem grande interesse na
ciência, na lógica e na análise.

HENRI BERGSON (1859-1941) nasceu em Paris,


filho de mãe inglesa e de pai polaco e judeu, e cresceu tendo o
francês como a sua língua materna. Passou a sua vida
profissional como professor universitário de Filosofia, mas era
um escritor tão atractivo e influente que era muito lido fora do
ambiente universitário. Em 1927 foi galardoado com o Prémio
Nobel da Literatura. Entre os seus livros mais famosos,
destacamos: Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência
(1889), Matéria e Memória (1896) e A Evolução Criadora
(1907). Nos últimos anos da sua vida, as suas ideias adoptaram
um rumo religioso e ele pode ter sido recebido no seio da Igreja
Católica pouco antes da sua morte; se assim foi, a mudança foi
deliberadamente adiada e mantida em segredo, porque ele não
queria parecer que estava a abandonar o povo judeu enquanto HENRY BERGSON
este estava a ser vítima da perseguição dos nazis e durante o Durante a Primeira Guerra Mundial,
tempo em que a França esteve sob a ocupação alemã. Bergson efectuou várias missões
diplomáticas, incluindo uma à América.
Quando se formou a Sociedade das
Nações, tornou-se o primeiro presidente
da sua Comissão para a Cooperação
INTUIÇÃO Intelectual
Bergson acreditava que os seres humanos devem ser
fundamentalmente explicados em termos de um processo evolutivo. Ele era de opinião que desde o
princípio a função dos sentidos nos organismos humanos não tinha sido fornecer ao organismo as
representações» do ambiente que o odeia, mas sim estimular as reacções de um carácter que preserva a
vida. Primeiro os órgãos sensoriais, depois o sistema nervoso central e a seguir as mentes
desenvolveram-se ao longo de inúmeras épocas como parte equipamento de sobrevivência de um
organismo e sempre como acessórios do comportamento; e até hoje o que eles nos fornecem não são
imagens objectivas do ambiente que nos rodeia mas sim mensagens que fazem com que nos
comportemos de determinadas maneiras. A nossa concepção do meio que nos rodeia não é nada
34
semelhante a uma série de fotografias pormenorizadas: ela é altamente selectiva, sempre pragmática e
sempre automática. Prestamos atenção quase só às coisas que nos interessam e a concepção que
fazemos do ambiente que nos rodeia é construída em termos dos nossos interesses, do ser dominante
que constitui a nossa própria segurança. Só se percebermos isto é que a verdadeira natureza do
conhecimento humano pode ser entendida.
Quanto à evolução, Bergson acreditava que os processos mecânicos de uma selecção casual
são inadequados para explicar o que acontece. Parece haver algum tipo de impulso persistente em
direcção a uma individualidade maior e, contudo, de uma simultânea complexidade ainda maior,
apesar do facto de que isto sempre significou um aumento de vulnerabilidade e de risco. A este ímpeto
Bergson dá o nome de impulso vital.
Bergson acredita que, uma vez que tudo está sempre a mudar, o fluxo do tempo é fundamental
para toda a realidade. Na verdade, experimentamos este fluxo dentro de nós da forma mais directa e
imediata, não através de conceitos, nem através dos nossos sentidos. Bergson chama «intuição>, a este
tipo de conhecimento não imediato. Ele acredita que também possuímos conhecimento intuitivo no
que respeita às nossas decisões de agir e, portanto, um conhecimento imediato do nosso próprio
domínio de livre vontade. No entanto, este conhecimento imediato da natureza interna das coisas é
bastante diferente, em carácter, do conhecimento que o nosso intelecto nos dá do mundo que nos é
exterior.

O FLUXO DA REALIDADE
O que o nosso intelecto nos oferece são sempre os materiais requeridos para a acção e aquilo
que nós queremos fazer é sermos capazes de prever e de controlar os acontecimentos, para que o nosso
intelecto nos apresente um mundo que podemos manusear e utilizar, um mundo partido em pedaços
manuseáveis, objectos separados em medidas anotadas de tempo. Este é o mundo dos assuntos
quotidianos, dos negócios, do senso comum e também da ciência. A sua extraordinária utilidade para
nós é apresentada nos triunfos da tecnologia moderna. Mas tudo isso é um produto da nossa maneira
de enfrentar o mundo, exactamente da mesma forma e pelas mesmas razões, tal como um cartógrafo
que vai representar uma paisagem viva em termos de uma grelha geométrica rectangular. É
inegavelmente útil e até mesmo prodigioso e permite-nos fazer todo o tipo de coisas práticas que
queremos fazer; contudo, não nos mostra a realidade. A realidade é contínua. No tempo real não
existem instantes. O tempo real é um fluxo contínuo, sem unidades separáveis, não assinaladas em
extensões que se podem medir. Acontece algo de semelhante com o espaço: no espaço real não
existem pontos nem lugares separados e específicos. Tudo isto são artifícios da mente.

O SER E O TEMPO
Assim, vivemos simultaneamente em dois mundos. No mundo interior do nosso
conhecimento, tudo é contínuo e tudo é um fluxo perpétuo. No mundo exterior que nos é apresentado
pelos nossos intelectos existem objectos separados que ocupam determinadas posições no espaço
durante períodos mensuráveis de tempo. Mas claro que o tempo exterior, o tempo dos relógios e do
cálculo, é uma construção artificial e não é igual ao tempo «real» daquele fluxo contínuo do qual
temos uma experiência interna directa. No ponto culminante da sua filosofia, Bergson identifica este
fluxo de tempo interiormente experimentado com a própria vida e com a força da vida, o impulso vital
que faz avançar perpetuamente o processo de evolução. Ficará na memória que a filosofia de
Heidegger também culminou na identificação do ser e do tempo, apesar de os dois filósofos terem
chegado à mesma conclusão separadamente e através de pontos de partida diferentes.
35
Na sua época, Bergson teve como contemporâneos alguns críticos muito importantes, como,
por exemplo, Bertrand Russell. A sua principal queixa foi que, apesar de Bergson tornar as suas ideias
atractivas com analogias vivas e metáforas poéticas, não as apoiava muito na forma de argumento
racional. Deixou que elas ficassem entregues às intuições dos próprios leitores. Além disso, os seus
críticos queixaram-se de que as suas ideias não se opunham muito bem à análise lógica. Os seus
defensores responderam dizendo que ele possuía todas essas características em comum com os
melhores escritores criativos e que isso se devia ao facto de ele oferecer critérios em lugar de
argumentos lógicos. Em qualquer dos casos, é certo que as suas ideias tinham uma enorme aceitação e
permanecem como um elemento inconfundível da filosofia do século XX.

ROMANCISTA E DRAMATURGO
Muitas dessas mesmas características foram partilhadas por Jean-Paul
Sartre (1905-80), que as possuía em grande abundância. Sartre foi não só um
escritor brilhante como também um dramaturgo e romancista
internacionalmente famoso, algo que mais nenhum filósofo tinha conseguido
até então: os que estiveram mais próximos foram Rousseau, que escreveu dois
romances que obtiveram grande sucesso, e Camus, de quem já iremos falar.
Em 1964 Sartre foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, mas
recusou-o. Pode ser que a sua fama como escritor venha a sobrepor-se e a
perdurar à sua fama como filósofo. Sartre nasceu em Paris e cresceu como
uma criança extraordinariamente estudiosa — As Palavras (1964) é um livro
autobiográfico sobre a sua infância. Talvez sem surpresa, tornou-se professor
de Filosofia. Em 1938 publicou um romance, A Náusea, que é na verdade um
relato fenomenológico de uma mente em processo de desintegração. Em 1936
surgiu a sua primeira obra importante escrita e dedicada expressamente à filosofia: A Imaginação. A
Segunda Guerra Mundial mudou a vida de Sartre. Depois de se alistar no Exército francês, foi
capturado e preso pelos Alemães. Na prisão estudou a filosofia de Heidegger e escreveu a sua primeira
peça de teatro. Quando foi libertado, viveu na Paris ocupada, onde escreveu a sua obra filosófica mais
importante: O Ser e o Nada (1943).
O final da guerra tornou-o famoso, em parte como filósofo, mas mais pelas suas duas peças de
teatro As Moscas (1943) e Huis Clos (1944). A sua conferência de 1946 O Existencialismo É Um
Humanismo deu início ao existencialismo na sua carreira lendária de precursor de moda na Europa do
pós-guerra. Nesta altura, Sartre renunciou à sua carreira académica e tornou-se um escritor a tempo
inteiro. A sua companheira, Simone de Beauvoir, foi a primeira escritora feminista internacionalmente
aclamada com o seu livro O Segundo Sexo (1949). Os seus outros amigos mais próximos incluíam o
escritor Albert Camus, que foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1957, e um excelente
filósofo chamado Maurice Merleau-Ponty, com quem Sartre fundou o periódico Les Temps Modernes.
Sartre começou a envolver-se profundamente numa política revolucionária de esquerda, agindo muitas
vezes como defensor ou apologista do comunismo. lntitulando-se agora um materialista histórico,
começou a escrever uma obra de dimensão importante, Crítica da Razão Dialéctica, que visava a
reconciliação entre o existencialismo e o marxismo. Sartre deixou-a inacabada, mas foi publicado um
volume dessa obra.
A história de Sartre como filósofo passa claramente por três fases distintas, em que cada uma
delas vai sofrer uma vigorosa influência de mais um ou dois pensadores. Husserl domina a obra da sua
primeira fase, onde se incluem A Náusea, A Imaginação e Esboço de Uma Teoria das Emoções
(1939). Heidegger domina a segunda, que foi o período mais influente de Sartre, trazendo à luz a
publicação de O Ser e o Nada (1943) e O Existentialismo É Um Humanismo (1946). Depois, Hegel e
Marx acabaram por dominar a longa fase final da produtividade de Sartre. Nestas primeiras duas fases,
36
ele foi bastante mais famoso do que as pessoas cujas ideias estava a divulgar e isto teve como
resultado que essas ideias passaram a estar mais directamente associadas a ele do que a eles nas mentes
de muitas pessoas.

SOMOS NÓS QUE NOS CRIAMOS


A contribuição pessoal mais significativa de Sartre e aquilo por que a sua filosofia ficou mais
conhecida foi a forma como ele dramatizou a liberdade do indivíduo. Segundo Sartre, num mundo
onde Deus não existe, não temos outra alternativa a não ser escolher e criar, nesse sentido, os nossos
próprios valores. Contudo, ao fazermos isso estamos a estabelecer as regras que vão reger as nossas
vidas. E ao fazermos isso estamos a determinar a forma como as nossas próprias personalidades se
desenvolvem: estamos a criar-nos a nós mesmos. Muitas pessoas consideram esta liberdade e esta
responsabilidade demasiado aterradora de enfrentar, por isso afastam-se delas fingindo que já estão
ligadas a normas e regras já existentes. Mas isto é o que Sartre chama de «má-fé>,. Segundo ele diz,
uma pessoa possui realmente «a escolha total de si mesmo,> e viver ao máximo significa fazer essa
escolha e viver depois de acordo com ela: «compromisso», tal como ele lhe chama. Muitos jovens
acham estas ideias excitantes, tal como também o achou um grande número de dissidentes que ansiava
por escolher abandonar a sociedade por qualquer razão. No entanto, na sua fase posterior mais
marxista, Sartre dizia que tinha exagerado quanto ao ponto em que o indivíduo era capaz de se libertar
das pressões da sociedade em que vivia.

O ABSURDO
Albert Camus (1913-60), um amigo de Sartre, foi o escritor que
inventou a descrição «absurdo>, ou «o absurdo» para uma situação em que os
seres humanos exigem que as suas vidas tenham um significado num universo
indiferente que é por si totalmente sem significado ou sem objectivo. Segundo
defendia Camus, é uma exigência que nunca pode ser satisfeita. Mas, nesse
caso, de que adianta viver depois que a frágil insignificância da vida humana
for completamente compreendida e assimilada? Ele abriu, de forma famosa, o
seu ensaio O Mito de Sísifo (1942) com as palavras: «Só há um problema
filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não
ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia.» Ele conclui
que uma pessoa destruir-se é uma espécie de capitulação. Num apelo aberto ao orgulho — «nada se
equipara ao espectáculo do orgulho humano» Camus reclama uma vida de recusa estóica a
acomodarmo-nos à insignificância cósmica, uma vida em que o sentido é uma forma de rebelião contra
as circunstâncias cósmicas das pessoas Para além de O Mito de Sísifo e de um livro chamado O
Homem Revoltado (1951), Camus desenvolveu estas ideias principalmente numa série de romances: O
Estrangeiro (1942), A Peste (1947) e A Queda (1956). Em 1960 morreu num acidente de viação. O
romance que estava a escrever na altura, O Primeiro Homem, foi publicado inacabado em 1994.
Camus, uma personalidade inusualmente cativante, foi descrito como «um santo sem um Deus»,. Um
homem branco e pobre na Argélia, quando foi denunciado pela esquerda francesa por se recusar a
apoiar a Frente de Libertação Nacional da Argélia, respondeu: «Acredito na justiça, mas defenderei a
minha mãe antes da justiça.» A um amigo comunista ele fez o seguinte reparo: «Aconteça o que
acontecer, era capaz de te defender contra um pelotão de fuzilamento, mas serias obrigado a concordar
se eu fosse morto.» No final, rompeu relações com Jean-Paul Sartre pelas insistentes desculpas deste
em relação ao terror comunista.

37
A VOZ DO CORPO
O menos conhecido mas talvez o melhor dos filósofos radicados em Paris nessa época foi
Maurice Merleau-Ponty (1908-61). Os seus livros mais importantes são A Estrutura do
Comportamento (1942) e a Fenomenologia da Percepção (1945), principalmente este último. A sua
contribuição especial foi trazer para a filosofia um reconhecimento muito necessário sobre a
importância do corpo humano. Tanto os fenomenologistas como os existencialistas tiveram tendência a
escrever como se o que cada ser humano é, acima de tudo, é um centro de consciência desperta e,
portanto, algo que pode ser julgado como abstracto ou imaterial, apesar de, evidentemente, nenhum
dizer reqlmente isso.
Merleau- Ponty insistia em dizer que é fundamental para a
nossa identidade como seres humanos que sejamos objectos físicos, em
que cada um deles possui uma localização diferente e única no espaço
ou no tempo. Tudo o que pode ser experimentado por todos pode não só
ser experimentado através do sistema físico único de cada objecto: toda
a restante realidade pode ser apreendida apenas a partir da perspectiva
do seu ponto de vista único. Tudo isto continua a ser verdade mesmo
que sejamos mais do que apenas corpos: estamos perpetuamente
conscientes dos nossos corpos e sem eles não conseguimos compreender
nem agir. Sendo assim, o corpo humano deve ser considerado como
sujeito ou orno objecto? Ele é os dois — e, contudo, estranhamente, não é nenhum. Não é um sujeito
desincorporado da experiência, porque é um objecto físico do mundo, e, contudo, não é um objecto do
mundo, tal como os outros objectos materiais, uma vez que é um objecto consciente das suas
experiências.
Merleau-Ponty escreveu com grande profundidade e discernimento sobre os problemas
filosóficos profundos implicados na subjectividade, incluindo a sua perspectivação inevitável e,
portanto, de carácter inerentemente incompleto. Estes problemas apresentam dificuldades profundas e,
assim, é inevitável que as suas obras façam sérias exigências ao leitor. Isto evitou que elas
alcançassem o mesmo tipo de fama ou de popularidade que as de Camus e de Sartre, mas é possível
que fossem de melhor e mais duradoura qualidade.

O APARECIMENTO DO ESTRUTURALISMO
Quando Jean-Paul Sartre morreu em 1980, mais de cinquenta mil pessoas foram ao seu
funeral. Ele tornara-se numa coisa rara, um filósofo com um público fiel. Mas nessa altura já não
estava no limiar o progresso intelectual: o movimento avant-garde já tinha passado. No final da
década de 60, o estruturalismo tornara-se uma moda em Paris e fazia arte de uma abordagem mais
geral da filosofia, a que e chamou «a viragem linguística». Para reduzir ao mais simples, o
estruturalismo é o conceito de que todo o tipo de discurso, seja ele filosófico ou outro, é ma estrutura
da linguagem e isso é tudo o que existe. O texto não nos apresenta mais nada a não ser ele mesmo: não
existe mais nada «para além» da linguagem. Isto fez com que os defensores do estruturalismo
Interpretassem os textos primeiro em termos de regras que regem as várias utilizações da linguagem -
para vê-las respeitantes ao discurso, à linguagem, à comunicação, etc. Esta abordagem crítica dos
textos ficou conhecida como «desconstrução».

38
RENOVAÇÃO DE VELHAS IDEIAS
Louis Althusser (1918-90) tentou integrar as ideias dominantes do estruturalismo no
marxismo. Ao fazer isso ele considerou Sartre como o filósofo marxista mais importante aos olhos dos
aventureiros intelectuais. Ao mesmo tempo, e de forma paralela, Jacques Lacan (1901-81) trouxe uma
abordagem estruturalista às ideias de Freud e da psicanálise. Lacan defendia que o inconsciente é
literalmente «estruturado como a linguagem», com a consequência de que a desconstrução nos fornece
a maneira certa de compreendê-lo
Michel Foucault (1926-84) imaginou o conceito de que todos os tipos de discurso são uma
tentativa por parte do seu utilizador para exercer poder sobre os outros, para que os textos possam ser
desconstruídos com sucesso apenas se esse facto fosse tido em atenção; além do mais, as
personalidades dos que exercem esse poder são moldadas pelo que fazem e, portanto, também elas
podem ser reveladas e compreendidas por uma abordagem de desconstrução em relação àquilo que
dizem ou escrevem.
Estes e outros filósofos radicados em Paris estimularam o interesse internacional, tal como os
seus antecessores já o haviam feito. Contudo, havia uma diferença importante. Enquanto Bergson,
Camus e Sartre foram escritores soberbos — por exemplo, todos eles foram distinguidos com o Prémio
Nobel da Literatura —, os estruturalistas e os pós-estruturalistas têm tendência a escrever numa prosa
atormentada, densa, complicada e opaca. O seu estilo foi ridicularizado pelos filósofos analíticos de
expressão inglesa, que alegaram que, quando estas frases complicadas eram esclarecidas e analisadas,
muitas vezes mostravam-se como retoricamente ocas, não dizendo nada de concreto, abordando
vagamente os assuntos. Ou seja, talvez não dissessem nada, ou então apenas algo de banal, falso ou
contraditório. Quando em 1922 a Universidade de Cambridge agraciou com um título honorário o
estruturalista mais importante do momento, Jacques Derrida, houve uma explosão de protestos
públicos por parte dos filósofos que consideraram isso um escândalo. No entanto, essa controvérsia
ajudou a manter o estruturalismo na mira do público.
A natureza retórica do estruturalismo e do pós-estruturalismo, o que pode alienar outros tipos
de filósofos, é capaz de ter um grande atractivo para as pessoas cuja abordagem à linguagem não é
através da análise lógica -por exemplo, para os estudantes de literatura.

39
POPPER
DA CIÊNCIA À POLÍTICA

O conhecimento científico passou a ser conjectural e


permanentemente aberto a uma revisão à luz da experiência.
Parece que os mesmos princípios se aplicam à política.

DURANTE PELO MENOS DUZENTOS ANOS depois de


Newton, a maior parte das pessoas cultas do Ocidente considerara a
nova ciência como um determinado conhecimento, um facto
irrefutável completa e absolutamente seguro. Quando se descobria um
novo facto ou uma lei científicas, eles não estavam abertos a
mudanças. Acreditava-se que esta certeza era a característica distinta
da ciência: o conhecimento científico era o conhecimento mais seguro
que os seres humanos possuíam e podia ser considerado uma verdade
incorrigível. Julgava-se que o crescimento da ciência consistia na
adição de certezas recentemente descobertas a um corpo sempre em
fase de expansão de certezas existentes, como uma arca do tesouro, cujo conteúdo continua a aumentar
com o tempo: o que já lá está limita-se a ficar igual, à medida que são acrescentadas coisas novas. Os
que estão familiarizados com as ideias de Locke e de Hume entendem que as leis científicas não
podem ser provadas conclusivamente; mas, tendo em vista o sucesso aparentemente ininterrupto da
sua aplicação através de longos períodos de tempo, essas pessoas têm tendência a considerá-las aquilo
a que podemos chamar infinitamente prováveis, ou seja, tão próximas de estarem certas que, em
termos práticos, não fazem a menor diferença.

CONHECIMENTO INCERTO
No virar do século XX, surgiu um génio científico que foi comparável a Newton. Era ele um
judeu alemão chamado Albert Einstein (1879-1955) — e produziu teorias incompatíveis com as de
Newton. Tal como Newton, Einstein era surpreendentemente fértil em ideias fundamentais. É mais
conhecido pelas suas contribuições para a teoria da relatividade: a sua teoria da relatividade restrita,
publicada em 1905, e a sua teoria da relatividade geral, tornada pública em 1915. Não é surpresa
nenhuma que estas teorias tenham sido bastante controversas ao princípio; mas virtualmente ninguém
que tivesse conhecimentos nesse campo podia negar que elas eram merecedoras da maior
consideração. E esse facto em si teve implicações desconcertantes, porque, se Einstein estava certo,
então Newton estava errado -e, nesse caso, nunca tínhamos «conhecido» afinal o conteúdo da ciência
newtoniana.

40
Era isso que era preciso provar. Foram projectadas experiências cruciais para julgar entre os
dois conjuntos de teorias; e as provas empíricas penderam indiscutivelmente a favor de Einstein. As
consequências disto para a filosofia foram semelhantes a um terramoto. Desde Descartes que a busca
pela certeza tinha estado no centro, ou perto dele, da filosofia ocidental; e com a ciência newtoniana o
homem ocidental acreditou que tinha descoberto um vasto conjunto de conhecimentos sólidos sobre o
seu mundo e para além dele, conhecimentos de significado fundamental e de enorme utilidade prática.
E, o que é mais, os métodos pelos quais esses conhecimentos tinham sido adquiridos foram
bastante respeitados e cuidadosamente codificados e julgava-se que eles asseguravam a sua certeza e
que a validavam como conhecimento certo. E, contudo, descobre-se agora que nada disso tinha sido
«conhecimento>,. Então o que era? A sua utilização conduziu a enormes progressos na nossa
compreensão do mundo; a sua aplicação prática através da tecnologia revelou uma era histórica
completamente nova, nomeadamente a moderna civilização industrial; contudo, agora descobrimos
que esse conhecimento era impreciso. Isto apresentou-nos uma situação absolutamente desconcertante,
porque parecia que fomos enganados não só sobre o que era o conhecimento como também sobre o
que tratava o conhecimento.

UMA EDUCAÇÃO MULTIFACETADA


Já vimos como Locke interpretava as implicações que a revolução newtoniana na ciência
tinha tido na filosofia e como algumas das consequências mais importantes das suas ideias passaram
então a ser consideradas como teoria política e social. O filósofo do século xx que levou a cabo esta
tarefa para a revolução einsteiniana foi Karl Popper (1902-94). Popper nasceu em Viena em 1902 e era
filho de um próspero advogado. Os seus pais converteram-se do judaísmo ao cristianismo, por isso ele
recebeu uma educação luterana. Na sua adolescência, Popper foi um marxista, mas ficou gradualmente
desgostoso com a passividade dos comunistas ao permitirem que cidadãos fossem mortos se isso fosse
conveniente às suas tácticas políticas; assim sendo, voltou-se para os sociais-democratas.
Popper viveu o seu socialismo — vestia-se como um operário, viveu entre os desempregados
e trabalhou com crianças deficientes. Esta última ocupação pô-lo em contacto com o psicanalista
Alfred Adler. Simultaneamente, era um membro activo no núcleo musical de avant-garde liderado por
Schoenberg e fez amizade com o compositor Webern. Durante as férias era um adepto incondicional
do montanhismo. Casou com uma das mais bonitas estudantes da sua geração. No conjunto, a sua vida
em Viena foi excepcionalmente rica, multifacetada, cheia de compromissos entusiásticos e actividades
excitantes.
Mas depois surgiu o nazismo. Em 1937, o ano anterior a Hitler ter anexado a Áustria, Popper
aceitou um cargo numa universidade da Nova Zelândia e aí permaneceu durante a Segunda Guerra
Mundial. Quando a guerra acabou em 1945, Popper foi para Inglaterra e passou o resto da sua carreira
na London School of Economics, onde se tornou professor de Lógica e Método Científico. Em
Inglaterra viveu uma vida muito diferente da da sua juventude em Viena, isolando-se deliberadamente
para escrever as suas obras, as quais abrangiam um leque excepcionalmente vasto de assuntos. Popper
continuava a difundir novas ideias válidas aos 92 anos, quando morreu.

EXISTE CERTEZA NA CIÊNCIA


Popper percebeu que, se os séculos de confirmação recebida pela ciência newtoniana não
tinham demonstrado que ela era verdadeira, nunca nada iria provar a verdade de uma teoria científica.
As denominadas leis científicas não eram, afinal, verdades incorrigíveis sobre o mundo; elas eram
41
teorias e, como tal, eram produtos da mente humana. Se funcionassem bem na sua aplicação prática,
então isso significava que deviam estar próximas da verdade e, afinal, sempre era possível, mesmo
depois de centenas de anos de sucesso pragmático, que alguém surgisse com uma teoria melhor, que se
aproximasse ainda mais do que pudesse ser a verdade. Popper desenvolveu este critério numa vasta
teoria do conhecimento. Segundo ele, a realidade física existe independentemente da mente humana e
é de uma natureza diferente da experiência humana — e por essa razão nunca pode ser directamente
apreendida. Nós produzimos teorias plausíveis para explicá-la e se essas teorias produzirem resultados
práticos bem-sucedidos continuaremos a utilizá-las enquanto funcionarem. Contudo, quase sempre,
mais cedo ou mais tarde elas fazem-nos enfrentar dificuldades, provando serem inadequadas em
alguma situação, e depois procuramos ansiosamente uma teoria melhor, uma mais vasta que explique
tudo o que a primeira Ta capaz de explicar sem estar sujeita às suas limitações. Fazemos isto não só na
ciência mas também em todos os campos de actividade, incluindo a vida quotidiana. Isso significa que
a nossa abordagem às coisas é essencialmente uma que resolve problemas e que fazemos progressos
não por acrescentarmos novas certezas ao conjunto de algumas já existentes mas substituindo
definitivamente as teorias existentes por teorias melhores. A busca pela certeza, que obcecou alguns
dos maiores filósofos ocidentais, de Descartes a Russell, teria que ser abandonada, porque a certeza é
algo que não se encontra disponível.
É impossível provar, definitivamente, a verdade de qualquer teoria científica ou colocar toda a
ciência ou toda a matemática em bases absolutamente sólidas. O «justificacionismo», como Popper
acabaria por chamar-lhe, é completamente obstinado. Se construirmos uma casa sobre estacas num
pântano, é preciso enterrar as estacas a uma profundidade suficiente para sustentar a estrutura e sempre
que ampliarmos a casa é preciso enterrar ainda mais as estacas, mas não existem limites para esse
processo: não existe um nível «definitivo» de fundações que sustente tudo sozinho e não há uma base
fornecida ou «natural» para esta ou aquela estrutura.
No entanto, apesar de não haver uma teoria geral que possa ser provada, ela pode ser refutada,
o que significa que pode ser testada. Tal como vimos anteriormente , apesar de não haver um registo
de observações de cisnes brancos, por muitas que sejam, nunca poderá provar-se a afirmação «Todos
os cisnes são brancos», já que uma única observação de um cisne negro é suficiente para refutá-la.
Assim, podemos testar afirmações gerais procurando exemplos contrários. Sendo assim, a crítica
torna-se o principal meio pelo qual efectuamos progressos reais. Uma afirmação que nenhuma
observação possa falsificar não pode ser testada e por conseguinte não pode contar como sendo
científica, porque, se tudo o que é possível de acontecer for compatível com a sua verdade, então nada
pode ser considerado prova disso. Um bom exemplo seria a afirmação «Deus existe»: possui
significado e pode ser verdadeira, mas nenhuma pessoa intelectualmente séria a consideraria como
uma afirmação científica.

A SOCIEDADE ABERTA
O livro original em que Popper apresenta estas ideias foi A Lógica da Descoberta Científica,
publicado em 1934. Só depois de ele as ter compreendido no contexto das ciências naturais é que se
apercebeu completamente que elas se aplicavam também às ciências humanas. Popper escreveu um
livro em dois volumes chamado A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, publicado em 1945, no qual
ele aplica essas ideias à teoria política e social. Ele defendia que a certeza estava tão disponível para a
política como o estava para a ciência e, portanto, a imposição de um único ponto de vista nunca é
justificada.
As formas mais indesejáveis e indefensáveis da sociedade moderna são aquelas em que é
imposto um planeamento centralizado e se proíbem as divergências. A crítica é a principal maneira de
as políticas sociais poderem ser melhoradas antes de serem implementadas; e a menção de
42
consequências indesejáveis é a causa mais imediata para a sua modificação ou abandono depois de
terem sido implementadas.
Por conseguinte, uma sociedade que permite a discussão crítica e a oposição (que Popper
chamou uma «sociedade aberta») vai quase de certeza ser mais eficaz a resolver problemas práticos
dos seus legisladores do que uma que o não faça. O progresso vai ser mais rápido e menos
dispendioso. E tudo isto é verdade independentemente de considerações morais.
Na política, tal como na ciência, estamos continuamente a substituir as ideias estabeleci das
por aquelas que esperamos sejam ideias melhores. A sociedade também está num estado de mudança
constante e o ritmo dessa mudança é cada vez mais rápido. Assim sendo, a criação e a perpetuação de
um estado ideal de sociedade não é uma opção para nós. Aquilo que nós temos que fazer é gerir um
processo de mudança interminável que não tem ponto de paragem. Assim, aquilo em que estamos
comprometidos é na resolução perpétua de problemas. Devemos estar sempre a procurar os piores
males sociais e a tentar eliminá-los: a pobreza e a ineficiência, as ameaças à paz, a má educação, os
cuidados médicos e assim sucessivamente. Uma vez que a perfeição e a certeza são inatingíveis,
devemos preocupar-nos menos com a ideia de construirmos escolas e hospitais-modelo do que
pensarmos em livrar-nos dos piores que existem e melhorar o destino das pessoas que neles se
encontram. Não sabemos como fazer as pessoas felizes, mas podemos eliminar o sofrimento e as
contrariedades evitáveis.

O COVEIRO DO MARXISMO
No decorrer da apresentação destas ideias, Popper encena um ataque violento e maciço aos
proponentes mais influentes de uma forma ideal de sociedade, principalmente Platão e Marx. A sua
crítica do marxismo foi largamente considerada como mais eficaz do que qualquer outra jamais
produzida e foi isto que fez com que Popper se tornasse internacionalmente conhecido. Houve um
período depois de A Sociedade Aberta e 05 Seus Inimigos ter sido publicada em que qualquer coisa
como um terço da raça humana vivia sob governos que se intitulavam marxistas e só este facto deu às
ideias desse livro uma relevância global. Esse aspecto levantado no livro pode ser menos urgente
agora, mas o caso positivo do livro em relação à abertura democrática e à tolerância continua
provavelmente a ser o mais constrangedor que alguém jamais escreveu.

43
A REVOLUÇÃO EINSTEINIANA

A
s revoluções na ciência moderna mudaram a
nossa compreensão do que é o conhecimento e, O
por conseguinte, mudaram a filosofia. Uma
vez que o conhecimento científico é o conhecimento mais sólido
CONHECIMENTO
e mais útil, em termos práticos, que os seres humanos possuem, CIENTÍFICO É O
qualquer ideia sobre o que é o próprio conhecimento e qualquer
relato sobre a natureza do conhecimento nesses termos têm que
CONHECIMENTO
aplicar-se à ciência se quisermos que sejam plausíveis. Na MAIS SÓLIDO E
verdade, grande parte da história das investigações da filosofia
ocidental sobre a natureza do conhecimento foi conduzida pela
MAIS ÚTIL QUE OS
ciência. Isto foi especialmente verdade durante os últimos SERES HUMANOS
quatrocentos anos.
POSSUEM

N o século XX em particular ocorreram


mudanças profundas na ciência, que se julgou
ser algo radicalmente diferente do que antes
ALBERT EINSTEIN

se supusera. Somente na física ocorreram duas grandes revoluções. As teorias da relatividade de


Einstein substituíram a ciência tradicional. Depois surgiu a teoria quântica, que era logicamente
incompatível com a teoria da relatividade e contudo produzia resultados que eram extremamente
exactos. Não é possível que as duas teorias estejam correctas: na verdade, o mais provável é que ambas
sejam incorrectas, mas, não obstante, ambas estão integradas no uso quotidiano e produzem resultados
precisos ao milímetro. Isto levou ao raciocínio de que até mesmo o melhor do nosso conhecimento
consiste em teorias fabricadas pelo homem que são falíveis e corrigíveis — teorias que nós mesmos
esperamos e desejamos, mais tarde ou mais cedo, substituir por outras teorias melhores. O
conhecimento humano é falível precisamente porque é humano; e agora estamos perante o desafio de
compreender que ele não consiste em certezas rígidas e imutáveis, tal como as pessoas costumavam
acreditar.

O
s cientistas não se limitaram a alterar radicalmente a nossa concepção do que é o
conhecimento. Eles fizeram mais do que os filósofos do seu tempo para mudar a nossa
compreensão dos conceitos que são absolutamente fundamentais para a nossa
experiência do mundo, conceitos tais como «tempo», «espaço», «matéria» e «objecto físico». Assim,
pode ser que quando os historiadores do futuro olharem para trás, para a nossa era, consigam ver os
cientistas pioneiros como sendo, na verdade, também os filósofos pioneiros, já que foram eles quem
mais fez para mudar a compreensão filosófica das pessoas relativamente ao mundo.

44
O FUTURO DA FILOSOFIA

AUMENTAR O ESCLARECIMENTO SOBRE UMA


PESQUISA PARA A QUAL PODE NÃO HAVER FIM

Q UASE TODOS OS FILÓSOFOS que são famosos em vida são esquecidos não muito
tempo depois. Apenas um pequeno punhado dos mais famosos, aqueles que abordámos
neste livro, possuem reputações que sobrevivem não são muitos se considerarmos que
as suas vidas se estenderam por um período superior a dois mil e quinhentos anos. Por esta razão, não
far~mos nenhuma tentativa neste livro para discutir os filósofos que estão agora a viver ao mesmo
nível dos grandes do passado. Podemos ter uma certeza bastante razoável de que apenas um ou dois
filósofos da actualidade, se tanto, continuarão a ser conhecidos daqui a um século: os restantes irão
desaparecer no mesmo limbo em que habita a maioria dos filósofos que foi bastante famosa em
séculos anteriores. As modas intelectuais de cada geração, longe de serem um indicador do futuro,
estão destinadas à extinção quase certa.
Neste livro debruçámo-nos apenas sobre os filósofos cujas ideias provaram ser de interesse ou
de importância duradoura. Eles são pessoas que, em contraste, exerceram normalmente a sua maior
influência depois da sua morte. Por exemplo, Locke publicou toda a sua filosofia no século XVII, mas
foi no século XVIII que ela teve o seu impacte histórico na Europa e na América. A vida de Marx foi
inteiramente circunscrita ao século XIX, mas foi no século xx que as suas ideias mudaram o mundo. A
um nível mais modesto de influência, já passou meio século depois da morte de Wittgenstein, mas ele
é agora uma personalidade mais significativa na nossa cultura do que foi na sua época, nem se pensaria
que talvez viesse a exercer uma tal influência no futuro.

E STES FACTOS LEVAM-NOS naturalmente a supor que o futuro próximo da


filosofia tem mais probabilidades de ver o impacte total dos grandes vultos mais
recentemente falecidos. Existe um rico filão a ser desenvolvido em Heidegger como
resposta aos desafios existenciais que nos são colocados pOJ Nietzsche. E existem ricos filões para
desenvolver em Popper como resposta aos desafios que nos são colocados pelas ciências em constante
mudança e pela formação de números cada vez maiores de sociedades democráticas. O interesse voraz
na obra de Popper, mostrado pelas pessoas nas democracias emergentes, já é um fenómeno notável.
Contudo, isso continua a ser apenas uma parte deste quadro. Que mais há? Que haverá de
novo? Presumivelmente, os filósofos que mudam os assuntos de forma irreversível vão continuar a
emergir no futuro tal como o fizeram no passado — figuras como Descartes e Kant, depois dos quais
nada na filosofia voltará a ser o mesmo. Uma vez que o nosso passado histórico é tão curto e o futuro à
nossa frente é infinitamente longo, as hipóteses são que as maiores e mais elucidativas inovações que
deverão ocorrer na filosofia estão à nossa frente e não no passado. Infelizmente, esses critérios de
alteração de assuntos não podem prever-se: se os pudéssemos prever de momento, tê-los-íamos agora e
eles não fariam parte esperar com confiança, alguns dos quais têm probabilidades de ser interessantes.
45
As técnicas da análise filosófica serão trazidas a lume para revelarem o desenvolvimento de uma vasta
gama, cada vez maior, de assuntos. Os problemas mais urgentes serão os da política, mas surgirão
outros das naturezas mais diversas, desde a música ao sexo, que os filósofos do passado jamais
sonharam pensar.

T AMBÉM PARECE haver um renas cimento do interesse público pela filosofia e um


aumento da importância que as pessoas lhe atribuem. A filosofia foi recentemente
introduzida, pela primeira vez, no ensino secundário na Grã-Bretanha. É também um
desenvolvimento recente que os conselheiros de ética comercial sejam convidados a fazer parte dos
quadros das empresas e que os filósofos estejam envolvidos em governos para examinar a legislação.
Estas actividades têm muitas probabilidades de expansão. Também está a ocorrer uma mudança
correspondente nos interesses dos leitores em geral relativamente à filosofia. Um best-seller
internacional dos últimos anos, o livro de Jostein Garder O Mundo de Sofia (1991), foi uma introdução
à história da filosofia na forma inesperada de um romance. Um tal sucesso para um livro como esse
não seria sequer imaginável numa geração anterior.
Assim, o panorama da filosofia na nossa sociedade é esperançoso. Mas, quanto a isso, a
filosofia é como a música: apesar das suas muitas utilizações práticas, o seu maior valor não reside em
nenhuma delas, mas no que existe no seu interior. Pode ser que dos confins das nossas limitações
humanas nunca venhamos a ser capazes de encontrar as respostas para algumas das nossas perguntas
mais fundamentais. Mas, tal como este livro tentou mostrar, somos do futuro. Mas isto significa que já
não podemos prever os desenvolvimentos futuros mais importantes na filosofia, tal como ninguém
antes de Kant poderia ter previsto a sua existência. Por mais difícil que isso possa ser para nós
aceitarmos, o facto é que o futuro .da filosofia nos está vedado nos seus aspectos mais importantes. No
entanto, existem desenvolvimentos menores que podemos capazes de fazer progressos de tal maneira
válidos no nosso entendimento da situação humana que mesmo que nunca cheguemos a atingir
nenhuma finalidade objectiva a esse respeito acabaremos por descobrir que a viagem é uma
experiência extremamente enriquecedora e que só por si vale a pena ser efectuada. Poderão não existir
respostas finais, mas temos muitíssimo para aprender.

«A SUPERSTIÇÃO INCENDEIA O MUNDO INTEIRO;


A FILOSOFIA APAGA AS CHAMAS»

VOLTAIRE

46
GLOSSÁRIO

A priori. Algo que se sabe ser valido antes da experiência. O oposto a posteriori, que e algo cuja
validade só pode ser determinada peia experiência.
o Absoluto A realidade suprema concebida como um principio único, que abarca tudo. Alguns
pensadores identificaram-no com Deus; outros acreditaram nele, mas não em Deus; outros não
acreditaram nele. O filósofo que está mais intimamente associado a esta ideia ë Heget.
Afirmação analítica Uma afirmação cuja veracidade ou falsidade pode ser estabelecida peia analise
da própria afirmação. O conceito oposto e
Afirmação sintética, que tem que ser contraposta aos factos que lhe são exteriores para que a
verdade seja determinada.
Agente O eu empreendedor, como uma forma distinta de conhecer o eu, o eu que decide ou escolhe
ou age.
Agnóstico Que não e crente nem descrente, mas que suspende um Juízo.
Analise Procurar uma compreensão mais profunda de algo reduzindo-a a pedaços. O oposto disto ë a
Síntese, que significa procurar uma compreensão mais profunda de alguma coisa juntando as peças.
Antinomia Conclusões contraditórias a partir de premissas boas.
Antropomorfismo A atribuição de características humanas a algo que não e humano, por exemplo
O tempo ou Deus.
a Atitude estética Contemplar algo por si só, independentemente de qualquer utilização que possa
vir a ter.

C
Categoria Uma das nossas concepções básicas- As categorias são as ciasses mais vastas em que as
coisas podem ser divididas. Aristóteles e Kant tentaram, cada um por si, fornecer uma lista completa
das categorias, mas os filósofos já não tentam fazê-lo.
47
Cepticismo O conceito de que ë impossível saber alguma coisa com certeza.
Cognição Qualquer tipo de conhecimento ou de percepção.
Conceito Um pensamento ou ideia; o significado de uma palavra ou expressão.
Condições necessárias e suficientes
Para X ser um marido é condição necessária que X seja casado. No entanto, esta não ë uma condição
suficiente — e se X for uma mulher? Uma condição suficiente para X ser um marido é que X seja
homem e, ao mesmo tempo, casado. Esta distinção entre condições necessárias e suficientes ë
extremamente importante. Uma das formas mais comuns de erro é confundir condições necessárias
com condições suficientes.
Contingente Pode ou não ser o caso, as coisas podem pender para qualquer dos lados. O oposto e
Necessário.
Contraditório Duas afirmações são contraditórias se uma destas for verdadeira e a outra falsa: não
podem ser as duas verdadeiras, nem podem ser as duas falsas. O oposto ë Não contraditório e
aplica-se a afirmações cujos valores-verdades são independentes uns dos outros.
Contrário Duas afirmações são contrarias se não puderem ambas ser verdadeiras, mas ambas podem
ser falsas.
Corroboração Prova que sustenta uma conclusão sem ter necessariamente que prová-la.
Cosmologia Estudo de todo o universo, o cosmo. As questões que se levantam em cosmologia
podem ser filosóficas, mas também podem ser científicas.

D
Dedução Raciocinar a partir do geral para o particular. Por exemplo: «Se todos os homens são
mortais, então Sócrates, que é um homem, tem que ser mortal." É universalmente aceite que a dedução
é válida. O processo oposto de raciocínio a partir do particular para o geral é chamado Indução. Um
exemplo podia ser: «Sócrates morreu, Platão morreu, Aristóteles morreu e, partindo do princípio de
que todos os homens que nasceram há mais de 130 anos já morreram, por conseguinte todos os
homens são mortais». É um facto que a indução não revela necessariamente resultados que sejam
verdadeiros. Por isso, duvida-se de que este seja um processo genuinamente lógico. Hume acreditava
que era um processo psicológico e não lógico e o mesmo acontecia com Popper.
Determinismo O conceito de que nada pode acontecer para alem do que acontece, porque todos os
acontecimentos são o resultado necessário de causas que os antecederam — que eram, elas mesmas, o
resultado necessário de causas que as antecederam. O oposto ë
Indeterminismo. A disputa entre os dois conceitos ainda continua muito acesa.
Dialéctica i) A perícia em questionar ou argumentar, ii) Um termo técnico usado pelos seguidores de
Hegel ou de Marx para a ideia de que todas as afirmações, quer por palavras ou acções, implicam
oposição, e as duas reconciliam-se então numa síntese que inclui os elementos de ambas.
Dualismo Um conceito de que tudo é constituído por dois elementos irredutíveis. O exemplo mais conhecido é a ideia de que os seres humanos
são constituídos por corpos e mentes, sendo que os dois são radicalmente diferentes.

48
E
Emotivo Expressar emoção. Na filosofia, o termo e muitas vezes usado de forma depreciativa para
expressões que fingem ser objectivas ou imparciais, quando, na verdade, expressam atitudes
emocionais, como, por exemplo, em "definição emotiva.
Empirismo O conceito de que todo o conhecimento relativo a tudo o que realmente existe tem que
ser derivado da experiência. Assim: Mundo empírico O mundo como nos e revelado peta nossa
experiência real ou possível. Conhecimento empírico Conhecimento do mundo empírico.
Afirmação empírica Uma afirmação sobre o mundo empírico, por outras palavras, uma afirmação
sobre o que pode ou não ser experimentado.
Epistemologia A teoria do conhecimento; aquele ramo da filosofia que está relacionado com o tipo
de coisas que podemos saber, se e que podemos saber alguma coisa, e como e e o que e o
conhecimento. Na pratica, e o ramo dominante da filosofia.
Essência A essência de uma coisa ë o que a faz aquilo que ë e o que a distingue. Por exemplo, a
essência de um unicórnio e um cavalo com um único chifre na cabeça, isto deixa em aberro a questão
se os unicórnios existem. Evidentemente que não existem — por isso, a essência não implica
existência. Esta distinção é importante em filosofia.
Estética A filosofia da arte. Inclui também as questões filosóficas sobre a beleza.
Ética Reflexão filosófica sobre o modo como devemos viver e, portanto, sobre questões de certo e
errado, bem e mal, dever e não dever, obrigação e outros conceitos semelhantes.
Existencialismo Uma filosofia que começa com o contingente da existência do ser humano
individual e considera-a o principal enigma. É desse ponto de partida que se procura a compreensão
filosófica. Existem duas correntes principais: o existencialismo religioso e o existencialismo
humanista.

F
Falácia Uma afirmação gravemente errada ou uma conclusão falsa baseada numa ta! afirmação.
Falsidade Propriedade de uma afirmação ou conjunto de afirmações, nomeadamente poder provar-se
que ela e errada através do teste empírico. Segundo Popper, a falsidade e o que distingue a ciência da
não ciência.
Fenómeno Uma experiência que esta imediatamente presente. Se olharmos para um objecto, o
objecto ta! como ë experimentado por mim e um fenómeno. Kant distinguiu Isto do próprio objecto,
independentemente de este ser experimentado: a isto chama-se Nómeno.
Fenomenologia Uma abordagem ã filosofia, iniciada por Edmund Husserl, que investiga objectos
de experiência sem levantar questões, que podem não ter resposta, sobre a sua natureza independente.
Filosofia analítica Uma visão da filosofia que vê o seu objectivo como uma clarificação — por
exemplo, a clarificação de conceitos, afirmações, métodos, argumentos e teorias, separando-os
cuidadosamente.
Filosofia linguística Também conhecida como ANÁLISE LINGUÍSTICA. O conceito de que os
49
problemas filosóficos surgem a partir de uma utilização desordenada da linguagem e tem que ser
resolvidos ou dissolvidos através de uma analise cuidadosa da linguagem na qual eles foram expressos.
Filosofia Literalmente, «o amor pela sabedoria». A palavra e amplamente usada para
qualquer reflexão sustentada racionalmente sobre os princípios gerais que tenham como
objectivo uma compreensão mais profunda das coisas. A filosofia como assumo educacional
fornece treino na analise disciplinada e na clarificação de teorias, métodos, argumentos e
expressões de qualquer tipo e dos conceitos que utiliza. Tradicionalmente, o objectivo
fundamental de tudo isto tem sido obter uma melhor compreensão do mundo, apesar de no
século XX grande parte da filosofia se ter dedicado a alcançar uma melhor compreensão dos
seus próprios procedimentos.

H
Hipótese Uma teoria cuja verdade se presume por enquanto.
Humanismo Uma abordagem filosófica baseada no pressuposto de que a humanidade é a coisa mais
importante que existe e que não pode haver nenhum conhecimento de um mundo sobrenatural, se é
que existe um mundo assim. «O estudo adequado da humanidade é o homem» (Pope) ë a condensação
mais conhecida desta ideia.

I
Idealismo O conceito de que a realidade consiste afinal em alguma coisa não matéria!, seja ela a
mente ou as mentes, ou os conteúdos mentais, ou os espíritos, ou um espírito. O oposto é o
Materialismo.
Impulso vital O princípio motor do processo evolutivo, a força da vida; o que distingue os vivos dos
não vivos.
Indução Ver Dedução.
Intuição Conhecimento directo, quer seja através da percepção sensória!, quer seja por
discernimento; uma forma de conhecimento que não utiliza o raciocínio.

L
50
Lógica O ramo da filosofia que faz um estudo do próprio argumento racional — seus termos,
conceitos, regras, métodos e assim sucessivamente.

M
Metafísica O ramo da filosofia que se preocupa com a natureza suprema daquilo que existe. Ela
questiona o mundo natural «de fora" e as suas questões não podem, portanto, ser tratadas petos
métodos da ciência. Os filósofos que assumem que o mundo natural É tudo o que existe usam o termo
metafísica para. designar estruturas mais vastas e o mais generalizadas possível do pensamento
humano.
Metodologia O estudo de métodos de interrogação e argumento — sendo estes diferentes cm campos
diferentes, como, por exemplo, na física, na psicologia, na história e no direito.
Misticismo Conhecimento intuitivo que transcende o mundo natural.
Monismo Um conceito de algo que e formado por um único elemento; por exemplo, os seres
humanos, a ideia de que eles não consistem em elementos que são separáveis, como, por exemplo,
corpo e alma, mas são unitários, compostos por uma única substancia.
Mundo Em filosofia, a palavra "mundos tem fido um sentido especial, significando "toda a realidade
empírica)', e, portanto, também pode ser equacionada com a totalidade da experiência real e possível.
Os empiristas radicais acreditam que isto e tudo o que existe, mas outros tipos de filósofos acreditam
que o mundo não consegue explicar a realidade total. Esses Ëtósofos acreditam que existe um plano
transcendente, bem como um plano empírico, e são capazes de acreditar que ambos são igualmente
reais.

N
Naturalismo O conceito de que a realidade é explicável sem referência a nada exterior ao mundo
natural.
Natureza O mundo empírico tal como é apresentado à humanidade.
Necessário Tem que ser o caso. O oposto é Contingente, isto e, não precisa ser o caso. Hume
acreditava que as ligações necessárias existiam apenas na lógica e não no mundo real, um conceito que
foi defendido por muitos filósofos desde então.
Nómeno A realidade desconhecida por detrás do que se apresenta à consciência humana, sendo ó
último conhecido como Fenómeno. A uma coisa tal como e, independentemente de ter sido
experimentada, chama-se "um nómeno». «O numenal» tornou-se, portanto, uma expressão para a
natureza suprema da realidade. A expressão alemã para «a coisa em si» é Ding-an-sich, que também
foi utilizada em outras línguas e significa o mesmo que nómeno.
Numinoso (Não confundir com Numenal, ver em cima). Qualquer coisa considerada misteriosa e
estranha, trazendo insinuações para fora do plano natural.

51
O
Ontologia O ramo da filosofia que questiona o que realmente existe, distinguindo-a na natureza do
nosso conhecimento dela. A última chama-se Epistemologia. A ontologia e a epistemologia juntas
constituem a tradição centrai da filosofia e sua história.

P
Positivismo lógico A doutrina que diz que toda a existência real e atinai algo material. O oposto e o
Idealismo.
Pragmatismo Uma teoria da verdade. Defende que uma afirmação é verdadeira se executar todas as
tarefas que lhe são exigidas, isto é, descreve minuciosamente uma situação, incita-nos a prever
experiências correctamente, enquadra-nos em afirmações já bem confirmadas e assim por diante. O
nome ^pragmatismo" fá-la parecer dura, mas nas mãos certas ela e uma teoria sofisticada e valida.
Premissa O pomo de partida para um argumento. Todos os argumentos tem que começar, pelo
menos, de uma premissa e. portanto, não provam as suas próprias premissas. Um argumento válido
prova que as suas conclusões resultam das suas premissas, mas isto não e a. mesma coisa que provar
que as suas conclusões são verdadeiras, que é algo que nenhum argumento e capaz de fazer-
Pressuposição Algo tido como garantido, mas não e expresso. Todas as expressões possuem
pressuposições e estas podem ser conscientes ou inconscientes. Se uma pressuposição for errónea, uma
expressão baseada nela pode ser confundida por uma razão não evidente na própria expressão. A
filosofia ensina-nos a ficarmos bem conscientes das pressuposições e a analisá-las.
Princípio da razão suficiente A insistência de que todos os acontecimentos do mundo empírico
devem ser apresentados petos factores que os explicam, quer consigamos ou não descobrir esses
factores. Leibniz declarou este princípio fundamental a todo o raciocínio. Schopenhauer escreveu o seu
primeiro livro sobre este princípio.
Propriedade Na filosofia, esta palavra e vulgarmente usada para designar uma característica, como
"ter um diafragma e a propriedade marcante de um mamífero". Ver também Qualidades primárias e
secundárias.

Q
Qualidades primarias e secundárias Locke dividiu as propriedades de um objecto físico
naquelas que um objecto possui independentemente de ser experimentado, como, por exemplo, a sua
focalização, dimensões, velocidade, massa e assim por diante, e aquelas que implicam reacções por
parte de um observador experiente, como, por exemplo, a cor, o sabor e o cheiro de um objecto. As
primeiras Locke chamou «Qualidades primárias» e as segundas «Qualidades secundárias».

R
Racionalismo O conceito de que podemos obter conhecimento do mundo através do uso da razão,
sem confiar na nossa percepção sensorial, que e considerada pêlos racionalistas como falível. A ideia
52
contraria, de que não podemos obter conhecimento do mundo sem o uso da percepção sensorial, e
conhecida como Empirismo.

S
Semântica O estudo do significado das expressões linguísticas.
Semiótica O estudo dos sinais e dos símbolos.
Sofista Alguém cujo objectivo não é a busca da verdade mas sim vencer uma discussão. Na antiga
Greda, um solista era um professor que formava jovens que aspiravam ã vida pública nos vários
métodos de vencer disputas.
Solipsismo A crença de que existe apenas uma individualidade.

T
Tautologia Uma afirmação que é necessariamente verdadeira. A sua negação seria uma contradição.
Teleologia Um estudo das finalidades ou objectivos. Uma explicação teleolósica é aquela que explica
algo em termos dos objectivos a que se propõe.
Transcendente Fora do mundo da experiência sensorial. Alguém (Ludwig Wifgenstein) que
acredita que a ética e transcendente acredita que a ética tem a sua fonte fora do mundo empírico. Os
empiristas radicais não acreditam que exista algo de transcendente, tal como Nietzsche e os
existencialistas humanistas também não acreditam.

U
Universal Um conceito de aplicação geral, como «vermelho» ou «mulher». Debateu-se se os
universais têm uma existência própria. Será que "a qualidade de ser vermelho" existe ou existem
apenas objectos individuais vermelhos? Na Idade Media, os filósofos que acreditavam que «a
qualidade de ser vermelho» possuía uma existência real eram chamados «realistas», ao passo que os
filósofos que afirmavam que isso não passava de uma palavra ou de um nome eram chamados
«nominalistas».
Utilitarismo Uma teoria da ética e da política que julga a moralidade das acções pelas suas
consequências, que considera a consequência mais desejável como a maior felicidade do maior
número e que define o «bem» em termos de prazer e de ausência de dor.

V
Validade Uma propriedade dos argumentos. Um argumento é valido se a sua conclusão proceder das
suas premissas. Isto não quer necessariamente dizer que a conclusão seja verdadeira: pode ser falsa se
uma das premissas for falsa, apesar de o próprio argumento continuar a ser válido.

53
Verificabilidade Propriedade de uma afirmação ou conjunto de afirmações, nomeadamente aquelas
que podem ser provadas como sendo verdadeiras através da prova empírica. Os positivistas lógicos
acreditavam que apenas as afirmações empíricas que tinham significado eram aquelas que eram
verificáveis. Hume e Popper destacaram que as leis cientificas não eram verificáveis

54

You might also like