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A música indígena brasileira é parte do vasto universo cultural dos vários povos

indígenas que habitaram e habitam o Brasil. Sendo uma das atividades culturais mais
importantes na socialização das tribos, a música dos índios brasileiros é polimorfa e de
enorme variedade, tornando impossível um detalhamento extenso no escopo de um
único artigo. A seguir se descrevem algumas características genéricas, lembrando que
os casos individuais podem apresentar mesmo discrepâncias significativas em relação a
este resumo.

Os povos indígenas do Brasil perfaziam juntos na época de Cabral cerca de 5 milhões


de almas. Desde lá a população total declinou violentamente em função do patético
choque contra a cultura portuguesa, que resultou em massacre, escravização e
aculturação em larga escala dos índios. E com essa devastação muitas tradições se
perderam de forma irreversível. Apesar disso, no que tange à sua música ainda há um
enorme campo a ser estudado e compreendido pelo branco, que começa a demonstrar
respeito real pelos seus irmãos autóctones apenas há pouco tempo, apesar de bulas
papais, conclusões filosóficas e debates morais de longa memória que denunciavam e
condenavam os abusos desde os primeiros tempos da Descoberta.

A música indígena tem recebido alguma atenção do ocidental desde o início da


colonização do território, com os relatos de Jean de Léry sobre alguns cantos
tupinambá, em 1558, e de Antonio Ruíz de Montoya, cujo extenso léxico inclui um
universo de categorias musicais do guarani antigo.[1][2] Estudos recentes têm-se
multiplicado a partir do trabalho de pesquisa de Villa Lobos e Mário de Andrade no
século XX, e hoje a música indígena é objeto de estudo e interesse de muitos
pesquisadores de todo o mundo, que têm trazido à consciência do homem branco uma
pletora de belezas naturais da terra.

Alguns grupos foram contactados de imediato pelos Jesuítas desde o século XVI, foram
fixados na terra pela criação das Missões ou Reduções, e ali contribuíram ativamente,
como instrumentistas, cantores e construtores de instrumentos, para criar uma fascinante
e original cultura musical, embora toda nos moldes europeus e infelizmente conhecida
apenas através de relatos literários. Este porém foi um fenômeno isolado, e não é central
a este artigo, e tampouco as manifestações híbridas folclóricas nascidas nas regiões de
contato entre índio, branco e negro.

Ao contrário do que se poderia supor, a tradição musical indígena não é um objeto de


antiquário, é algo vivo e sempre em mutação, sendo constantemente praticada e
renovada, incorporando até mesmo material não-índio, ainda que mantenha seus valores
e formas essenciais preservados, e é uma vitrine de suas visões de mundo, cristalizadas
em formas sonoras.[3][4]

Origem e caráter da música indígena


A maioria dos povos indígenas associa sua música ao universo transcendente e mágico,
sendo empregada em todos os rituais religiosos. A música indígena é ligada desde suas
origens imemoriais a mitos fundadores e usada com finalidades de socialização, culto,
ligação com os ancestrais, exorcismo, magia e cura. É importante também nos ritos
catárticos, quando a música "ao trabalhar com proporções, repetições e variações,
instaura o conflito ao mesmo tempo em que o mantém sob controle.".[5]
Segundo certas lendas a música foi um presente dos deuses, entristecidos com o silêncio
que imperava no mundo dos humanos. Noutras tribos a música é tida como originária
do mundo dos sonhos, onde vivem as tribos míticas de animais e dos ancestrais. Ali é
conhecida pelas pessoas sem espírito, aquelas que por algum motivo estiveram no
limiar da morte e de lá retornaram, tornando-se introdutoras de novas melodias após
esse contato com o mundo do além. Menos dramática e mais comumente, a criação de
novas músicas se deve aos pajés, que as intuem em seus transes onde estabelecem
contato com deuses e ancestrais, ou aos guerreiros mais distinguidos da tribo, que
sonham com elas.

A sua música tem definido caráter socializador, estando presente em festividades


grupais e na esfera privada, "sendo um elemento fundamental do processo de
construção do mundo social e conceitual, e não como um mero epifenômeno ou reflexo
deste".[6] As relações sociais são assinaladas musicalmente, delimitando, por exemplo,
faixas etárias, status social, estados afetivos, gêneros sexuais, individualidades e grupos.
Por fim, o canto e a dança "cumprem também um papel fisiológico na própria
constituição dos estados psíquicos, atualizando a experiência dos eventos míticos".[7]
Nesse sentido social, a música indígena parece ser predominantemente coletiva, sendo
que os casos de cantores solitários ou de estruturas melódicas mais variadas são
considerados, por alguns, influências de outras culturas, em muitos casos africanas.[8]

Rituais

Índios cantando no Kuarup.

Dança Terena nos Jogos dos Povos Indígenas em Olinda.


Dança Tupiniquim de protesto em Aracruz, Espírito Santo.

Uma das bases do sistema social indígena são os grandes rituais como o Quarup, o
Yawari, o Iamurikumã e os rituais de iniciação. Estes cerimoniais, dos quais muitos são
intertribais, funcionam como uma língua franca de comunicação não-verbal entre etnias
diversas. Segundo Franchetto e Basso, "as festas costuram a sociedade alto-xinguana,
um circuito cerimonial que veicula alianças e metaboliza conflitos, absorvendo
ritualmente a alteridade. (…) Esta visão do ritual intertribal como linguagem franca
coloca a música no cerne do sistema xinguano, considerando-se que estes rituais são,
por excelência, rituais musicais".[9]

Há rigorosas prescrições para uso de determinadas melodias e para quem será o


intérprete, e para quando serão executadas. Há músicas e instrumentos exclusivos dos
homens, outros só de mulheres, ou melodias cantadas apenas em um certo rito ou com
uma função específica. Em diversas etnias existe um ciclo de rituais de grande
importância relacionados às flautas sagradas, sendo realizados apenas por homens e
com um instrumental cuja visão é vedada às mulheres.

A interpretação musical pode ser cercada de rituais menores, propiciatórios ou


facilitadores, como a pintura de uma linha sobre o ouvido e lábio para facilitar o
aprendizado de canções, colocar um ramo de enodoréu à orelha para não esquecer a
melodia, e uma série de outras praxes.[10]

Sistema, simbologia e gêneros


Não seguindo o sistema tonal ocidental, a sua sonoridade apresenta uma enorme sutileza
e complexidade especialmente nos timbres e nas alturas, sendo de difícil transcrição
para a partitura ocidental. Não existe desenvolvimento de polifonia ou harmonia reais
(num sentido ocidental), sendo de uma espécie monódica ou no máximo heterofônica,
com alguns exemplos de composição antifonal. Não existe notação, e o acervo de
composições antigas é transmitido pela prática continuada entre as gerações.

A voz e o canto são dominantes na música indígena, mas existe um muito variado
instrumental de apoio e séries de peças orquestrais autônomas. Na maioria dos casos a
música é associada à dança ritual. O ritmo é fluente, em geral, binário ou ternário, às
vezes alternado em um mesmo verso. Muitas vezes sua música não está baseada na
existência de uma unidade de tempo (pulso) rígida, gerando uma contínua flutuação do
pulso.[11] A estrutura das composições também diverge da ocidental, e é enormemente
variada, dependendo bastante do texto que ilustra, tendo as repetições e variações um
papel central.

Existem canções para praticamente todos os momentos e atividades da vida, sendo


praticadas em festas para homenagear os mortos, como canções para crianças, em festas
sazonais e festas guerreiras, em ritos de passagem, no culto dos espíritos e ancestrais, e
nas festas de congraçamento entre as tribos. No âmbito familiar o repertório vocal é
pequeno; entre os clãs de sangue as suítes orquestrais, que usualmente são propriedade
de grupos familiares, são executadas também vocalmente, em uma espécie de solfejo;
nos grandes ciclos dançados voz e instrumentos adquirem igual importância, e por fim,
como ápice da vocalidade, os cantos de guerra são executados a capella.

As diferentes texturas musicais são relacionadas às esferas sociais: no nível coletivo


geral há uma maior precisão de alturas e intervalos; no nível dos clãs o timbre é
preponderante em relação às faixas de altura e à massa sonora, finalmente, nos ciclos
dançados, a textura é mais densa e utiliza nítidas oposições grave-agudo sem intervalos
de passagem. "Ocorre, portanto, uma progressão acústica que acompanha a
complexificação dos níveis sociais".[11]

Além disso, o som é relacionado à espacialidade física. "As canções são um caminho,
nomeiam os lugares, e articulam a cartografia da floresta ao movimento dos seus
habitantes, além de estarem ligadas ao mundo espiritual dos pássaros"[12]

Oralidade

A cultura indígena é basicamente oral, nela a música é uma extensão da fala, e seus
limites às vezes são sutis e imprecisos. Um discurso pode acabar em canto, ou o
inverso. Dentre as espécies vocais, existem subdivisões de acordo com o objetivo de
cada canção:

• Narrativas: falas com diferentes graus de formalidade, desde as cotidianas


entoadas por qualquer pessoa até as falas restritas a homens adultos executadas
na praça central.
• Instrutivas: narrações veiculando regras, costumes e tradições, transmitidas
através do canto ou prédica emocional pelos adultos a crianças, ou relatando de
expedições de caça e narrativas míticas. A vocalização é muito flexível e
expressiva, e o cantor serve-se de recursos tonais, timbrísticos, fonéticos e
rítmicos para dar sentido a seu enunciado.
• Canções: identificadas por seus conteúdos textuais, os quais é frequente se
referirem a algum animal e a seu comportamento, sendo que na ação ritual as
identidades do cantor e do animal são combinadas. Muitas se referem ao amor e
ao prazer sexual de modo desinibido, feliz e direto. Frequentemente se transita
entre a cantoria e a narrativa gestualizada não-musical.
• Invocações: executadas, geralmente em voz baixa, com fins práticos ou
medicinais.

[Música instrumental
Índios Kamaiurá tocando uma flauta típica, uruá.

É nas festas dedicadas aos Apapaatai, uma classe de poderosos espíritos, que acontece a
maior parte da música instrumental. As festas Apapaatai têm como motivo essencial a
cura xamânica.[13]

Dentre toda a música instrumental indígena as peças para as flautas sagradas ocupam
uma posição de destaque. Estas flautas são elementos fundamentais na cosmologia
xinguana, o que é expresso concretamente pela existência de uma casa das flautas, onde
são guardadas, casa que é também chamada de casa dos homens, um espaço
exclusivamente masculino localizado sempre no centro das aldeias. Seu uso está
cercado de tabus. Quando são tocadas as mulheres e crianças se fecham em suas casas.
Se uma mulher vê os instrumentos, é penalizada com um estupro coletivo.

O repertório para as flautas é, entre algumas culturas, altamente sofisticado, compondo


suítes completas, sendo que apenas uma suíte é tocada em cada ocasião, embora às
vezes de forma incompleta. Todas as suítes têm uma ordem ideal, mas esta,
frequentemente, é modificada durante a sessão. Se constróem através do princípio da
alternância entre um eixo horizontal (melódico) e um vertical (sucessões de solos
pontuais e trechos com partes simultâneas). Cada suíte é caracterizada por um contorno
melódico e não por uma seqüência exata de intervalos, e cada peça é formada por um
tema repetido sem alterações durante vários minutos. Cada tema é formado pela
justaposição de dois tipos de motivos, A e B: os motivos A são variáveis — e
identificam cada peça — enquanto que os B não o são e fornecem a assinatura temática
da suíte.[14]

Instrumentos
Karai Guarani com Maracá

Seu instrumental inclui instrumentos de percussão e sopro, mas classificações próprias


dos índios fazem distinções diferentes, com dezenas de categorias para "coisas de fazer
música". Os instrumentos podem ser feitos de uma variedade de materiais, como
sementes, madeiras, fibras, pedras, objetos cerâmicos, ovos, ossos, chifres e cascos de
animais.[8]

• Idiofones: instrumentos que vibram por si mesmos ou por percussão ou atrito,


podendo ser tocados diretamente ou soarem em decorrência de movimentos
indiretos. Incluem toras de madeira, bastões de percussão, fragmentos de tábuas,
chocalhos, guizos, cabaças cheias de pedrinhas ou sementes, crânios, etc.
• Membranofones: instrumentos que soam pela vibração de uma membrana neles
distendida, como os tambores. São raros entre os indígenas brasileiros e
acredita-se que os existentes sejam cópias de antigos modelos conhecidos
através dos primeiros europeus que aqui chegaram.
• Aerofones: soam pela ação do ar no seu interior. Podem ser agitados ou
soprados. São os instrumentos mais numerosos e comuns. Sua diversidade é
enorme, incluindo instrumentos com funcionamento semelhante às trombetas
(com ou sem ressoadores e lingüetas), clarinetes, buzinas, apitos e sobretudo as
flautas, de um a vários tubos, com embocadura perpendicular ou longitudinal,
havendo mesmo exemplares para sopro nasal.
• Zumbidores: soam quando agitados no ar. Consistem de um cabo decorado
ligado por uma corda a uma pequena peça de madeira oval. Ao ser girada
rapidamente a peça produz um zumbido forte. Em muitas tribos tem relação
direta com a morte, sendo utilizados em cerimônias funerárias e proibidos às
mulheres ou crianças. Em outras, porém, serve de brinquedo infantil

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