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ERICH-MARIA REMARQUE
ERICH-MARIA REMARQUE
A CENTELHA DA VIDA
Publicações Europa-América
PUBLiCAÇõESEUROPA-AMÉRICA,LDA. Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL
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debaixo dele e sobre a sua cabeça, mais próximo e mais
violento, compreendeu o que se passava: pela primeira vez os
aviões não iriam mais longe. A cidade era bombardeada.
paulo
De novo o solo tremeu. O 5O9 tinha a impressão de que
poderosas matracas subterrâneas o martelavam,
Estava outra vez plenamente lúcido, dissipada como fumo a sua
fadiga mortal. Cada abalo do chão repercutia-se na sua cabeça.
Durante um momento mais, simulou estar morto - depois, quase
sem dar por isso, avançou unia das mãos com cuidado e afastou
a capa do rosto o suficiente para poder observar a cidade.
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até ela; mas, ao fim dos seus dez anos de cativeiro, tornara-
@@"-sç para ele mais do que unia simples cidade. Primeiro fora
a im .suportável da,liberdade perdida.
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Clé~ do Séc. XX 25 - 2
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guntou Ahasver.
ligou importância.
- No campo de Theresienstadt, descobrimos um dia que cada uni
,nós tinha uni bocado de chocolate na algibeira sem o saber.
Iimo-lo escondido antes do internamento e esquecêramo--lo.
Ocol ate de leite que vinha dum distribuidor automático. Nas
caixas ia também o retrato de Hindemburgo.
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- Porquê?
- Sei lá! Foi essa a ordem.
- E os SS? Viste-os?
- Não. Berger alcançou o fundo da barraca pelo espaço entre as
camas.
O 5O9 seguiu-o. Esperara Berger para falar com ele é
encontrava-o tão indiferente como os outros. Não compreendia.
- Tu não sais? - perguntou a Bucher.
- Não. Bucher tinha 25 anos e estava no campo há sete. Seu pai
fora redactor dum jornal sociál-democrata. Isto bastara para
que prendessem o filho. "Se ele sair daqui", pensou o 5O9,
"pode viver ainda quarenta anos. Quarenta ou cinquenta. Eu, em
compensação, tenho 5O anos. Restam, diante de inim, dez anos,
o máximo vinte". Tirou um bocado de madeira do bolso e pôs~se
a niastigá-lo. -Por que pensarei eu
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Berger regressou.
- 5O9, Lohmann quer falar-te. Lohmann jazia no fundo da
barraca, sobre uma prancha de baixo. Ele é que exigira este
lugar. Estava gravemente atacado de disenteria e não podia já
levantar-se. Pensava ele que assim, era mais decente. Não era
mais decente, mas toda a gente se habituara já. Quase todos,
mais ou menos, tinham diarreia. Lohmann sofria atrozmente.
Agonizava e, a cada cólica, pedia que o desculpasem. O seu
rosto estava tão rivido que dir-se-ia o de um negro esvaziado
de todo o sangue. Agiuva a mão: o 5O9 curvou-se para ele. As
pupilas do doente tinham uni brilho amarelado.
tirá-lo facilmente.
- Por que queres tu que to arranquem? As pálpebras de Lohmann
ergueram 1se e tombaram lentamente.
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- Porquê?
- Ficaremos com a cama dele, Kaiser e eu.
- Não te incomodes, será tua.
O 5O9 examinou um instante o raio dourado, que parecia
estranho à atmosfera fétida. A pele do homem que acabara de
falar assemelhava-se à de um leopardo: estava coberta de
manchas negras. O prisioneiro pÔs--se a comer palha podre.
Algumas camas mais longe, dois homens discutiam; ouviam-se as
suas vozes agudas, as pancadas débeis que trocavam.
- Arranquem-na! - murinurava
O 5O9 sentou-se na borda do catre.
- Não poderíamos trocá@la. Seria demasiado perigoso. Ninguém
se arriscaria.
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- Oh!
- Sim - disse Berger numa voz grave e dura. - Eles
aproxiani-se. Vais ser vingado, Lohniann.
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- Unia cidadezita arde. Que temos nós com isso? Nada. Nada vai
mudar. Nada.
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O 5O9 sabia que daí a alguns minutos a luz atingiria uma outra
inscriçào quase apagada: Escrevam a Leab Sand- Nova lorque ...
já não era possível decifrar o nome da rua. Havia em seguida:
paí ... e depois dum espaço apodrecido da madeira ... morto.
Procurem Léo. Léo devia ter desaparecido. Mas a inscrição de
nada serviria. Nem um sequer dos presos do campo pudera
prevenir Leah Sanders, de Nova Iorque. Ninguém saíra vivo
dali. O 5O9 olhava o tabique com um ar ausente.
O polaco Silber quando ali estivera, com os seus intestinos
sangrando, chamara@lhe o "Muro das Lamentaçóes". Também ele
conhecia de cor a maior parte das inscrições; ao princípio
chegava a fazer apostas sobre qual a primeira a ser atingida
pelo raio de sol. Morrera pouco depois, mas os nomes
continuaram todos os dias a acordar por alguns n-únutos para
unia vida espectral, para logo recaírem na obscuridade. No
Verão, quando o Sol subia mais alto no céu, apareciam outras
inscrições traçadas mais abaixo no tabique, e, no Inverno, o
rectângulo varria o alto da parede. Mas havia muitas, russas,
polacas, yddishes, que permaneciam eternamente invisíveis
porque a luz nunca as alcançava. A barraca fora levantada tão
rapidamente que os SS não tinham curado de mandar aplainar os
tabiques. Os presos ainda menos se importavam. Ninguém tentava
decifrar as inscrições das partes sombrias do tabique. Quem
teria tido a loucura de sacrificar um fósforo precioso para
aumentar o seu desespero?
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vez ficara. Observou-o até que ele desapareceu atrás das Ias.
A ameaça não o amedrontava. As ameaças eram o pão quotíno do
campo. Apenas pensava no que ela encobria. Tarribém ndke
sentira que alguma coisa mudara. Se assim não fosse, nada te-
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Era falso.
- Porque não têm necessidade deles. Estão fora da cidade.
- Como se isso importasse! Quando unia bomba cai, cai mesmo.
- O campo nunca será bombardeado.
- Sim? Grande novidade essa. Como soubeste tu isso? Os
americanos mandarani-te um boletim de informação? Ou
prevenirani-te pela rádio?
Mas eu vou dizer-te unia coisa. Eles não sabem que gênero de
campo é aquele, compreendes? Vêem apenas barracas que podem
perfeitamente tomar por barracas militares. Vêem casernas; as
nossas casernas SS. Vêem edificiosonde trabalham os nossos
presos. Para eles são fábricas, portanto objectivos militares.
Lá em cima é cem vezes mais perigoso do que aqui. É por isso
que eu não quis que habitassem lá. Aqui não há casernas nem
fábricas. Compreendeste, enfim?
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Ninguém respondeu.
- Não o consentirei. Nós, os oficiais SS, tenios o dever de
dar o
Estendeu o braço.
- Ao trabalho! HeilHífler!
- Heil HítIer! - gritaram os oficiais. Neubauer deixou a
administração. "Ele nada disse da Rússia", pensou. "Nem do
Reno. Do Muro do Oeste, que foi arronibado, nada também.
Aguentar. Ele pode falar. Nada possui. É um fanático. Vê-se
bem que não tem uma loja perto da estação. Não é accionista do
Diário deMellen. Não tem um palmo de terra. Eu tenho tudo
isto. E se me pulverizam o que tenho, que me darão em troca?"
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Friedrichsallee. Era uni grande edificio, do qual o
rés-do-chão :>cupado por unia loja de confecções e os dois
andares superio-
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Toma, Alfred, aqui tens unia boa coisa para esta noite. E
agora mar. pomar era o orgulho de Neubauer. Era um vasto
terreno à saída
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isto não podia viver nem morrer. Agora, que tenho alguma
coisa, estou para perder tudo." bservou os olhos rosados do
coelho. Tudo correra bem hoje. O bardeaniento devia ter sido
consequência dum erro. São coisas acontecem com tripulações um
pouco jovens. A cidade não tinha rtância militar; a não ser
assim, já a teriam tentado destruir. bauer sentiu-se
tranquilizado. "Mucki ... ", disse, e pensou: "Em rança? Sim,
com certeza. Quem quereria arruinar-se no últirrio
nto?"
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Weber bocejou.
- Mande fazer a chamada nominal, para saber quem falta. Um
movimento quase imperceptível percorreu as filas dos
prisioneiros. A chamada por nomes significava uma espera
suplementar de, pelo menos, uma ou duas horas - com os russos
e os polacos, que não compreendiam o alemão, havia erros
constantes.
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'masmim
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@,YNõ- te darão a injecção - gritou Goldstein à maneira de as
últimas notas. -Temos o kapo enfermeiro, ele gra-
as
para a rua que conduzia à sua barraca. O vento que su- _,7
4#,iMca. aumentara e bateu-lhes de frente quando dobraram a
dos prisioneiro
levantou a cabeça.
Quase parece que também arde aqui. Sim. ZoNN- ver-se agora o
funio. Subia do vale, enchia as ruas como um
Ifz;-w*iAís e depressa se espalhou entre as barracas. Durante
uni
"I TnW11V+1,*] IR
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"O 5O9 baixou a luz. Berger estava perto dele, com o frasco de
iodo mão. -Abre aVarou. Por sua vez, via agora, nitidamente, o
rosto de Liohmann. Era
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Ele disse que a coroa não está registada. Quando Veio para cá
ainda isso não existia, Há sete anos que ele está no campo.
Nessa altura arrancavam os dentes de ouro, tuas não os
registavam. Mais tarde é que começaram a fazê-lo,
- Tens a certeza?
O 5O9 encolheu os ombros. Calarani-sé por um instante.
- É claro que podemos dizer a verdade e entregar o dente. Ou
tor-
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Não. Ainda não. Mas é possível que venha a pedir a sua parte.
Isso não tem importância. A questão está em saber se ele não
mais vantajoso denuncíar~nos. k@O 5O9 reflectiu. Sabia que
havia pessoas capazes de tudo por um
çO de pão.
Não tinha aspecto disso -respondeu por fim, - A ser assim, que
nos teria dado os fósforos?
Não tem nada a ver unia coisa coma outra. Devemos ser pruntes.
Se não, seremos ambos liquidados. E Lebenthal connosco.
O 5O9 sabia-o bem. Vira enforcar homens por menos.
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O 5O9 podia distinguir, através dos arames, uma parte das ruas
do grande campo, que fervilhavam de prisioneiros aproveitand
'o o resto do seu tempo de repouso. Via-os falarem uns com
os outros, formareni pequenos grupos, irem e virem nas ruas.
E, se bem que, em suma, se não tratasse se não de uma outra
parte do campo de concentração, parecia-lhe que um abismo o
separava deles como duma pátria perdida, onde eram conhecidas
ainda, apesar de tudo, a vida e a fratemidade. Ouvia atrás de
si os passos moles dos presos que se arrastavam para as
latrinas e não precisava de virar a cabeça para ver os
seusolhos sem vida. Era a custo que ainda falavam - por vezes
estertoravani, ou então havia entre eles discussões fatigadas;
já não pensavam. O calão do campo denominava-os de muçulmanos
por causa da resignação total com que se abandonavam à sua
sorte. Os seus movimentos eram de autómatos sem vontade; tudo
se extinguira neles, a não ser alguinas funções orgânicas;
eram mortos-vivos que caíam como moscas durante o frio.
Povoavam o pequeno camp<>. Estavam despedaçados, perdidos,
nada já podia salvá-los - nem mesmo a liberdade.
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- Não.
- Então? Que queres tu que eu te dê?
- Nada. Apenas te perguntei se tinhas arranjado alguma coisa
para çomer.
Lebenthal parou,
O 5O9 olhou-o.
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Lebenthal sacudiu-se.
- Se eles perderem a guerra - murmurou. - Só nessa condição.
Mas quem sabe?
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ia já a que se ater. A guerra corria inal, sabia-se; irias a
revolução ije muitos esperavam havia anos nunca viera.
calou-se.
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- Quanto?
- Três.
- Tem os de ir, Frítzi! - disse a outra rapariga.
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"Não terá ele fonie?", pensava o 5O9. "Para que está ele a
falar? Isto não lhe atormenta o estômago?".
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G. Clássicos cioSéc. XX 25 - 5
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- Não percebo nada, Até agora sempre tive homens sem a menor
dificuldade.
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dia à superficie.
- Que diz?
- Se tem unia necessidade tão urgente desses homens, podia
pedir voluntários. Evitaremos assim todas as formalidades. Se
um, preso quer sacrificar-se pela ciência, nós nada temos a
objectar. Não é absolutaniente regular, mas eu tomo isso à
minha conta, sobretudo se se tratar das bocas inúteis do
pequeno campo. Os homens assinarão unia declaração e pronto.
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- Há carregadores?
- Não.
- Então, temos de o carregar nós. vão procurar Westhof e
Meyer.
- Os sapatos! - murmurou, de súbito, Leben~, muito agitado.
- Com mil raios! Esquecemo-4os. Ainda podem servir.
- Sim, mas é preciso que ele tenha qualquer coisa nos pés.
- Ainda está na barraca o par de sapatos esfarrapados de
Buchsbauin. Vou buscá-los.
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,;cgisa que eles nunca faziam, mas esta visita não era
lia@itual e valia inais não correr o risco, Ahasver açaíniou-o
de tal maneira que, podendo embora respirar, ele não pudesse
ladrar, Depois em-
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Wiese endireitou-se.
- E preciso que vás para o hospital, meu amigo, ocupar-se-ão
lá de ti.
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- É Ruth Holland.
O campo das mulheres erguia-se à esquerda do pequeno campo, de
que estava separado por urna fila, dupla de arames não
electrificados. Compunha-se apenas de duas pequenas barracas,
instaladas no decurso da guerra, quando as prisões maciças
tinham começado. Antes disso não havia mulheres no campo.
- Nunca se volta.
- Afasta-te, Ruth! Ele olhou para as torres de vigia.
- É perigoso estar aí!
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Ele não voltará, vocês bem o sabem, todos!
O 5O9 não respondeu. Nada tinha a responder. Estava aturdido,
insensível. Não sentia mais nada, nem por si nem
- Ele não voltará - repetiu Ruth Holland -, ele não deve ir.
Bucher baixava os olhos. Estava por de mais impressionado para
poder responder.
Berger vQItou-se.
- Foi por minha culpa! - gritou, de súbito, o velho. - Fui eu,
a minha barba, foi dela que veio todo o mal! Sem isso, ele
teria ficado, oh!
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Berger empurrou-o.
- Vai-te einbora e come o teu pão, se não tiram-to.
- Não te preocupes, eu acautelo-me. Karei atulhou a boca de
pão. Fizera estas perguntas como quem se informa sobre o
destino duma viagem, sem pensar em mal. Crescera no campo de
concentração e nada mais conhecia.
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- Assinem aqui.
O 5O9 olhou para a mesa. Não compreendia por que tinha de
assinar. Aos prisioneiros dão-se ordens - e é tudo. Sentiu
então que o observavam. Era um dos escriturários, sentado
atrás do kapo. Tinha unia cabeleira dum vernielho-flainejante.
Quando se apercebeu de que o 5O9 reparara nele, abanou
imperceptivelmente a cabeça e baixou logo os olhos para a
secretária.
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O 5O9 soltou uni grito e não se moveu mais, Weber puxou-o pela
gola e pô-lo de pé. Imediatamente, o 5O9 tombou.
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- Decerto, decerto. Estou desolado por não lhe poder ser mais
útil. Mas nós nunca forçamos os nosssos protegidos, e os
nossos homens parecem sentir repugnância em deixar o campo.
Voltou-se para o 5O9 e para Bucher.
- Então vocês preferem ficar no campo? o 5O9 mexeu os lábios.
- O quê? - perguntou Netibauer com dureza,
- Sim - disse o 5O9.
- E tu, lá?
- Eu tarribém - murmurou Bucher.
- Vê, doutor? Neuhauer sorria.
- Os nossos honiens dào-,se bem aqui, Não há nada a fazer.
Wiese não sorria.
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- Caí, HerrSturmfuebrer.
O 5O9 respirou. Os velhos hábitos não estavam perdidos,, Era
-um gracejo que remontava aos primeiros tempos dos campos de
concentração. Ninguém deveria jamais convir em que fora
espancado.,
comunicação cessara,
- Então, leveni--nos.
O SS examinou a sua lista com ar esgotado.
- Tenho trinta e oito mortos.
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Qual alistamento?
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- A declaração para o Dr. Cobaia, Ele levou os outros quatro.
- Hem? E não os vão enforcar?
- Não.
O escriturário deu alguns passos ainda ao lado da padiola.
- É preciso levá-los para a barraca, é a ordem. Despacheni-se
an-
t?6
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Por que dizes iss6? Foi o próprio velho quem deu a ordem -
disse Muenzer, - Weber queria edorcá-los.
- Quem to disse?
- Foi o escriturário ruivo quem contou, Ouviu dizer. Lewinsky
permaneceu silencioso um momento; depois vOltou~se para uni
homenzinho grisalho:
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-Se não, serão para o campo a prova viva de que qualquer coisa
mudou", pensou Lewinsky. Mas não exprimiu o seu pensamento.
- Temos necessidade disto - disse. - Sobretudo agora. Ajudará
a aguentar.
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- Sim.
- E voci@s nAo?
- N6s, nAo, Lewinsky inclinou-se para o 5O9,
- Nunca teriamos acreditado que voo@s o conseguiriarn.
- Nem eu - disse o 5O9.
- Ndo quero, dizer somente que aguentassem. Quero dizer
tamhern q@ie nada vos viesse a acontecer de pior,
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O f6sforo apagou-se.
- A ponte ndo f6i destruida - disse o 5O9. - Eles
atravessaram. uma ponte intacta. Sabern c, que isto quer
dizer?
- Meu Deus, e n6s que nada sabiamos! N6s que pensdvamos que os
alem5es conservavam ainda unia parte da Franga!
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O 5O9 bebeu.
- Conservem os outros hocados, rido os deffetam. Poderemos
trocl-los por viveres. Slo mais importantes os viveres;
autiMticos.
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VM
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- Nada.
- Eu tenho cenouras.
- Não me interessa, No lavabo, Lebenthal tomava
iniediataniente uma afoiteza que es-. tava longe de ter na
barraca 22.
- @rápula!
- Es tu! Lebenthal conhecia mais de uni vendedor. Estaria, sem
dúvida, interessado nas cenouras se não tivesse víndopor causa
de Bethke. Propuseram-lhe ainda couve fermentada, um osso e
algumas batatas por preços exorbitantes; recusou e prosseguiu
a sua busca. Num dos cantos mais afastados da barraca notou um
rapaz de traços efeminados cujo aspecto diferia extrernamente
do dos outros prisioneiros. Comia avidamente qualquer coisa
duma lata de conserva e Lebenffial notou que não se tratava
apenas duma sopa aguada; por vezes, ele,parava para mastigar
dernoradamente. De pé, perto dele, Lebenthal descobriu uni
preso duns 4O anos, visivelmente bem alimentado e que não
parecia estar no seu lugar ali. Pertencia, sem dúvida alguma,
à aristocracia do campo. A sua face gorda e o crânio alvo
brilhavam e a sua mão deslizava lentarriente pelas costas do
rapaz. Este não tinha os cabelos rentes; estava cuidadosamente
penteado, de risca ao lado, E estava limpo.
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Bethke sufocava.
- Quanto? - rosnou,
- Setenta e cinco - declarou Lebenthal com firmeza. - Um preço
de amigo.
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- O ",ier é novo?
- Sei lá! Tu és doido? Assim, assim! Porquê?
- Se não é preciso cozê-lo durante mais tempo. Bethke parecia
querer saltar---lhe à cara,
- E que mais queres ainda? Molho de cogumelos, cavíar?
- Pão.
- Quem falou em pão?
- O homem da cozinha.
- Cala a boca! Veremos. Bethke tinha, de súbito, pressa de
acabar. Queria> sem mais demora, fazer brilhar o seu presente
aos olhos de Luís. O homem da cozinha podia fartá-lo à
vontade. Quando ele tivesse as cuecas de reserva, disporia dum
arguniento decisivo. Luís era garrido. Não seria dificil,
roubar uma faca. O pão não apresentava dificuldade séria. E o
t~ era apenas um baixote.
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- Como te chamas?
- Westhof. Handke cambaleou.
- Tu não te chamas Westhof, tu és um grande safado de judeu.
Como te chamas?
bebedeiras de Handke.
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Vês-me? sim. Tenho comida. Vêsa, minha mão? sim, sim. É carne.
Aí vai. Atenção. Atirou o pequeno bocado de carne por cima das
du 'as filas de arame, Era metade da porção que lhe
coubera. Ouviu-a cair do outro lado. A sombra curvou-se e
começou a procurar no chão.
- Não.
- À esquerda. mais um metro. E carne cozida. Procura bem,
Ruth! A sombra parou. -Já achaste?
Sim.
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Sim, sim. Tu tens mais? Não, dã~lha! É para ela, não é para
ti, é para ela! Com certezaDá-lha, se não... se não eu...
Parou, Que podia ele fazer? Sabia bem que a sombra devorara o
bocado de carne há muito tempo. Desesperado, deixou--se cair
no chão corno se tivesse sido atingido por uma pancada
invisível.
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- Não, isso não serviria de nada. Ele é mais forte do que nós.
- Então, que!deveríaiiios ter feito? Falar-lhe? Pedír-lhe que
fosse um pouco razoável?
Bucher não respondeu. Sabia que também isto de nada teria ser-
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Bucher hesitou.
- Talvez - disse depois.
- Tens outra coisa a propor? Bucher reflectiu uni momento. -
Não.
- Nem eu. Westhof estava com a crise. ComoHandke, aliás. Se
ele tivesse dito tudo o que Handke queria, ter-se--ia safado
com algumas pancadas apenas. Era uni tipo valente. Poderia vir
a ser útil. Mas era um pouco doido.
sim. É uma ruina. Mas foi uni homem e tinha coragem. Excessiva
coragem' ^ Defendia-se. Durante dois anos fez as delícias dos
SS. Weber quase lhe tinha amor, Um dia acabou--se.,Para
sempre. E porquê? Poderia vir a ser útil. Mas ele não podia
dominar a sua coragem.
Houve muitos como ele. Restam poucos hoje. E ainda menos são
os que não foram definitivamente inutilizados. Foit por isso
que te segurei esta noite, quando Haftdke espezinhava,
Westhof. Foi @ por 1= que eu respondi quando ele nos perguntou
o que éramos,. Compreendeste agora?
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- A tua casa, a tua loja, a tua horta. Tudo isto está intacto
ainda, não está?
G. Cl~ew do Séc. X% 25 - 8
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- Silêncio, Selma!
- Silêncio, Selma! Ouves, Freya? Silêncio! Teremos de nos
calar! Morrer em silêncio! Silêncio é tudo o que ele tem a
dizer!
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- Quase nunca.
- E de dia? Os SS entram muitas vezes nas barracas?
- Severo?
- Não, um bruto. Mas não sabe grande coisa de nós. Também tem
medo de apanhar qualquer doença. Só conhece poucos de nós. Os
rostos mudam muito depressa. Quanto ao chefe de bloco, ainda
sabe menos. A única inspecção possivel é exercida pelos
responsáveis de camarata. Portanto, temos as mãos livres, É
isto o q ue querias saber?
- Comunista - perguntou.
O 5O9 abanou a cabeça.
- Socialista?
- Não.
- Então o quê? É preciso que tenhas sido alguma coisa.
O 5O9 olhou-o no rosto. As suas órbitas estavam ainda marcada6
pelas hemorragias, o que lhe tornava os olhos ainda mais
claros. Pa~ recíam quase transparentes sob os reflexos
vermelhos e dír-se-ia não fazeTem parte do rosto devastado e
negro.
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ERICH-AfARIA REMARQUE
- E os outros?
- São todos seguros também. Os muçulmanos. Tão seguros como
mortos. Apenas lutam ainda por alguma coisa para comer e por
unia cama para morrer. Nem sequer para trair teriam força.
12O
A CENTELHA DA VIDA
- Sim, é bastante,
O 5O9 ergueu para o interiocutor o seu rosto azul e verde.
Sabia que os homens incumbidos do serviço do crernatório eram
substituídos todos os quatro ou cinco meses para serem
enviados para um campo de exterminaçào, onde passavam à câmara
de gás, Era o meio mais simpies de se deserribaraçarem de
testemunhas que sabiam derriasiado. Por consequência, Berger
tinha ainda, quanto muito, três meses para viver. Mas três
meses era muito tempo. Muitas coisas se podiam passar num
futuro próximo. Sobretudo corri a ajuda <@o campo de trabalho.
- Beni, sei. Também não lhes peço que nos fartem de comida.
Trata-se somente, para nós, de não moiref de fome,
121
ERICH-MÁRIA REMARQUE
122
A CENTELHA DA VIDA
as torres de vigia.
123
N
A CENTELHA DA VIDA
- Decerto.
- Aliás, nada nos apressa. Temos bem uns quinze dias diante de
125
ERICH-MARIA REMARQUE
- Decerto.
- E depois sempre se poderá antedatar tal ou tal
acontecimento. Dos que se darão de qualquer modo, quero eu
dizer. Também não é necessário tomar nota dos nomes dos
prisioneiros que serão, num
126
A CENTELHA DA VIDA
Neubauer aprovou.
- Ainda assim. Conhece o meu principio: ser sempre humano, na
medida do possível. É claro que quando não é possível...
Ordenssão ordens.
ERICH-MARIA REMARQUE
128
A CENTELHA DA VIDA
G. CL"")S do Sér_ XX 25 - 9
129
ERICH-MÁRIA REMARQUE
por acaso.
13O
A CENTELHA DA VIDA
- Quis saber como era isto fora do campo. O ar puro. Foi uma
asneira.
FR/CH-MARIA REMARQUE
Refúgiados?
132
A CENTELHA DA VIDA
133
ERICH-MÂRIA REMARQUE
134
A CENTELHA DA VIDA
campo, que se balançava ora sobre urna perna, ora sobre a
outra. Gritou:
- Não.
O rosto de Werrier descontraiu-se.
- Com certeza?
- sim.
135
£RICH-MARIA REMARQUE
136
exclamou Steinbrenner.
137
ERICH-MARIA REMARQUE
138
A CENTELHA DA VIDA
139
ERICH-MARIA REMARQUE
- Por que diabo não temos nós um canhão para passar esta
noite? murmurou Goldstein. - Que boa ocasião! Dirigirani-se
para as barracas.
- Os novos para a sala de desinfecção! - gritou Weber. - Aqui,
o tifo e a sarna nãoentram! Onde está o kapo elo vestuário?
O @apo apresentou-se.
- E preciso desinfectar e dispiolhar as roupas destes homens -
14O
A CENTELHA DA VIDA
Toda a coluna passara por uma tina imensa cheia de uma forte
salmoura desinfectante. No vestiário atiraram-lhes fatos
desínfectados. Depois reunirani-nos para a charnada.
141
ERICH-MARIA REMARQUE
- Isso não tem importância! Não podem estar aqui. Neste espaço
livre vão tomá-los por soldados.
142
143
ne e o seu sangue! Ela não pen sara no que dissera- Não era
possíVel! Ela falara sem intenção. Riu nervosamente.
144
A CENTELHA DA VIDA
- Ah, sim.
O feixe luminoso parou de novo sobre o número.
- Toma nota deste número, Schulte.
- Imediataniente - respondeu o Sebaifuebrei-Schulte numa voz
fresca e juvenil. - Quantos metemos aqui? @
G. O~ do Séc. XX 25 - 1O
145
ER1CH-M,@R1,4 REM.4RQUE
146
A CENTELHA DA VIDA
- Donde vieram?
- De Lohme. Parte dos recém-vindos estavam ainda deitados no
chão.
- Água! - gerneu uma voz.- Que estará ele a fazer?A encher a
barriga de água, o porco!
- Doze?
- Sim, há quatro anos.
- Meu Deus! SuIzahacher virou-se. A pergunta era demasiado
estúpida. Há quatro anos! Por que não há cem anos?
147
ERICH-MARIA REMARQUE
disse o 5O9.
Foram procurá-lo.
- Ouve bem - disse Berger -, esta noite nada nos deram para
vocês. Mas nós vamos partilhar a nossa sopa convosco,
148
A CENTELHA DA VIDA
- E vocês?
- Nós, nós ficarei-nos cá fora. Mais tarde os acordaremos para
nos darem os lugares.
149
ERICH-MARJA, UMARQUE
Não há razão para isso; vocês não são responsáveis uns pelos
outros.
uni momento.
- Abateram todos os que não podiam andar, Nós éramos três mil.
-já sabemos. Tão poucas vezes o disseste já?!
15O
A CENTELHA DA VIDA
151
£RICH-MAXA REMARQUE
- É exactamente isso.
O 5O9 olhou Sulzbacher, cuja cabeça repousava pesadamente
sobre o ombro de Berger.
152
XIII
- E tu?
- Unia hérnia dupla, Herr Scbarfuebrer. Niemann prosseguiu o
inteàogat6rio. Depois mandou regressar dois homens às
fileiras. Era uni velho processo para enganar a desconfiança
dos presos. O efeito não se fez esperar. Alguns presos
avançaram imediatamente. Niemann teve um movimento de
satisfação.
153
ERICH-MARIA REMARQUE
mente. - Vamos ver isso! À direita, à direita! Passo de
corrida! Marche!
154
A CENTELHA DA VIDA
155
ERICH-MARLA REMARQUE
156
A CENTEUIA DA VIDA
- Mas tinham dito que iam tomar nota do teu número. Tenho de
me informar.
- Como? - repetiu.
- O número dele foi anotado no outro dia - disse,
tranquilamente, Berger.
157
ERICH-MARIA REMARQUE
Ninguém respondeu.
- Ainda podes encher a barriga esta noite - declarou
generosamente. - Não vale a pena ir interrogar o chefe de
bloco a teu respeito. Vou directamente onde preciso, meu
candidato à forca.
Passeou um olhar em volta. @ Firmes! -. ladrou. Bolte chegava.
Apressado, como de costume. Há duas -horas que perdia
regularmente às cartas e acabava justamente, de ter um jogo
magnífico. Deitou um olhar enfastiado aos mortos e desapareceu
tão depressa como chegara. Handke ficou sozinho. Mandou os
homens da sopa à cozinha e dirigiu-se para a vedação de araine
farpado que separava o pequeno campo do campo das mulheres.,
Parou e observou as barracas das mulheres por cima dos arames.
11 1
- Eu - disse Sulzbacher.
- Avisa-nos logo que ele tiver partido. Os veteranos
reuniam~se na barraca. Era preferível não serem vistos por
Handke.
158
A CENTELHA DA VIDA
159
ERICH-MARIA REMARQUE
- Aqui estou.
- Muito bem. Vou lá agora. Faz as tuas despedidas e o
testamento. Eles virão buscar-te com tambores e clarins.
16O
A CÊNTELHA DA VIDA
- Muito bem - disse Handke a meia voz. -já estás a contar com
isso, hem? 3á fizeste os teus planozinhos. não é verdade? Mas
isso vai custar-te caro, meu pateta! Denuncíaste-te a ti
mesmo. Vais ter agora a secção política às costas. Divisas
ilegais no estrangeiro! Isto a acres~ centar ao resto! Meu
Deus, não queria ter a tua cabeça sobre os meus ombros!
G. O~ do Séc. XX 25 - 11
161
ERICH-MARIA REMARQUE
162
A CENTELHA DA VIDA
163
ERICH-MARIA REMARQUE
- Unia hora e dez. Hoje já não haverá nada. Talvez nunca mais,
5O9. Talvez ele tenha reflectido.
164
A CENTELHA DA VIDA
Lebenthal dominara-se.
Foi assim tão duro? Tão duro quanto era possível. Pior que
nunca. É porque estás agora mais agarrado à vida
disse Berger. julgas isso? Sim. Todos nós mudámos. Talvez. Mas
conseguiremos nós livrar-nos mais tarde do medo? Isso não sei.
Deste medo, sim, Era uni medo racional. Um medo fundado. Do
outro, do medo permanente, do medo concentracionário, desse,
não sei. De resto, que importa? É preciso, entretanto,
pensarmos no dia de amanhã. E ent Handke também.
165
166
A CENTELHA DA VIDA
167
ERICH-MARIA REMARQUE
168
A CENTELHA DA VIDA
169
ERICH-MARIA REMARQUE
- Que é isto?
- Um São Cristóvão, Herr Stui-infuebrer - explicou Schulte,
solícito. - Unia medalha que dá sorte.
- Sobe!
O homem obedeceu, tremendo. Weber escolheu uma corda da caixa.
17O
A CENTELHA DA VIDA
ler a pena.
171
ERICH-MARIA REMARQUE
mente.
- Está bem, Berger quis sair. Alguém lhe tocou no ombro. Era o
kapoverde que tinha conduzido Mosse, Brede e os outros quatro
ao crematório.
- És tu o arrancador de dentes?
- sou.
- Há ainda um dente para arrancar lá em baixo. Tens de descer.
O kapo estava muito pálido. Encostava-se à parede, escorrendo
suor. Berger piscou o olho ao homem que acabara de lhe dar o
pão.
O homem seguíu-o até à porta.
- Tens a certeza?
- Tenho. Se não não me diriam para lá ir.
- Graças a Deus! Respirava.
- Dá-me o pão - acrescentou ainda.
- Não. Berger meteu a mão no bolso para defender a sua
aquisição.
- Imbecil! É para te dar o bocado maior em troca! Uma coisa
vale bem a outra!
coroa de ouro.
172
Dreyer debruçou-se.
- E de níquel - disse com desprezo -, de simples niquel.
- Não - disse Berger. - É de ouro branco.
- Hem?
- É de ouro branco. o kapo agarrou nos óculos.
- De ouro branco? Tens a certeza?
- Absoluta. A armação está suja. Mas quando a tiverem lavado
com sabão, vera que é assim.
173
ERICH-MARIA REMARQUE
174
- Que é aquilo? - perguntou Ruth Holland. Bucher apurou o
ouvido.
- Um pássaro a cantar. Deve ser um tordo.
- Uni tordo?
- Sim. Só ele é que canta tão cedo na Primavera. É uni tordo.
Agora estou a lembrar-ine.
175
ERICH-MÁRIA REMARQUE
E pessoas que nos porão fora. Não nos porão fora. Haverá uma
cama com cobertores e lençóis lavados. E pão, e leite, e
carne...
176
A CENTELHA DA VIDA
Não. Ontem já era tarde. Mas temos o tempo todo para fazer a
partícipação. Amanhã, por exemplo.
Aproxiniou-se do 5O9.
- Milionário! Milionário suíço! Eles arrancar-te-ão o dinheiro
dos rins, franco a franco, a golpes de cacete!
G. Clá~ do Séc. XX 25 - 12
177
ERICH-MARIA REMARQUE
- Isso não.
O 5O9 continuava a fitar Handke. Admirava-se por não sentir
medo, embora soubesse que estava nas mãos de Handke; mas um
sentimento mais forte se apoderara dele: o ódio. Não era o
pobre ódio dos campos de concentração, o ódio mediocre, no dia
a dia da criatura frustrada perante uma outra criatura mais
privilegiada. ,
178
A CENTELHA DA VIDA
179
ERICH-MARIA REMARQUE
- De que tamanho?
- Assim... Levinsky deitou uni olhar em redor. Ambos estavam
agachados no
baixa e rápida:
Sim - disse o 5O9. Não era verdade, mas ele não queria
devolver a arma.
- Há munições cá dentro?
- Sim, mas não muitas. Alguns cartuchos. Mas ele está
carregado.
O 5O9 meteu o revólver debaixo da cainisa e abotoou a blusa
por cima. Apertou-a contra o coração, sentindo um arrepio.
- Tenho de me ir embora - disse Lewinsky. - Tem cuidado.
Esconde-o já.
18O
A CENTELHA DA VIDA
181
- Sim? E porquê?
- Porque sem os judeus não haveria campos de concentração.
Quero um padre!
182
eternidade! Oooh.. .
183
ERICH-MARIA REMARQUE
A CENTELHA DA VIDA
O 5O9 levantou-se.
- Vem aí Mahner. Vamos perguntar-lhe. Afastou-se com Berger.
- É talvez Hellwig - disse Mahner, - Ele fala toda a espécie
de línguas. Aliás, é um pouco maluco. Às vezes ouvimo-lo
declamar. Está na A.
185
ERICH-MARIA REMARQUE
1p
- E uma blasfémia, bem sabes, mas vou fazê-lo, apesar disso.
Ele não tem necessidade de mim. O arrependimento e a remição
dos pecados são possíveis sem confissão.
186
A CENTELHA DA VIDA
- Eu sabia.
- Pede que vão lá. Quer pedir perdão a todos.
- @las porquê, Senhor?
chama Lebenthal.
187
ERICH-MARIA REMARQUE
- Vai ter com Anuners, Léo - disse Berger -, por que não
hás-de ir? Quando penso que aquele nos tratou por senhores!...
188
A CENTELHA DA VIDA
Se ela vem para cá, toca no fio eléctrico. Ficaria logo assada
-
189
ERICH-MÀRIA REMARQUE
Calem a boca! - gritou alguém atrás deles. - Que foi que vos
deu? É de endoidecer!
- Morreu?
- Sim, Finalmente. Ainda queria que lhe tirássemos da cama o
novo, aquele que tem febre. Tinha medo de ser contagiado. Na
realidade, o outro é que foi contaminado. Por fim, pô&-se a
gemer, a barafustar. O padre não teve efeito radical.
- E depois?
- Em troca, concede-me provisoriamente a vida. Fez mesmo
alusão a *uma espécie de protecção da sua parte.
Até que tenha a tua assinatura. Quer dizer até amanhã à noite.
É sempre assim. já nos aconteceu ter diante de nós nienos
tempo do que agora.
19O
A CENTELHA DA VIDA
- É verdade.
O rosto de Berger tornou-se sério.
- É por isso que eu não tenho confiança. Basta que lhe dê a
crise para se entregar a actos irreparáveis. É preciso
ganhar-lhe a dianteira. o mais seguro seria tu morreres.
191
ERICH-MARIA REMARQUE
192
1 ...........
XV
ver.
G. Clásdeos, do Séc, XX 25 - 13
193
ERICH-MÁRIA REMARQUE
194
A CENTELHA DA VIDA
O SS ria.
- Não vale a pena ralar-se! Ele podia arrancar-lhe uni bife
corri todo o sossego!
- Deixa-o! Ele não tem culpa! Por que não vais antes morder o
cao ,coruja velha?
195
ERICH-MARIA REMARQUE
196
A CENTELHA DA VIDA
- De pé! De pé!
197
ERICH-MARIA REMARQUE
se ouviam.
tremer. Não eram as suas mãos nem os seus joelhos que tremiam;
eram
surdecimento geral.
- Não! já não pode ser! É demasiado tarde! Sabia que seria uma
loucura. Tudo o que tinham podido alcançar até aí seria
anulado, camaradas seus pagariam com a vida, dez por cada
preso evadido, uni massacre, novo rigores no campo- e,
entretanto, a entrada escancarada convidava à fuga.
198
A CENTELHA DA VIDA
199
ERICH-MARIA REMARQUE
Foi precisa ainda uma hora para que a entrada ficasse livre.
Há muito tempo já que se ouviam gritos e pancadas. O abrigo
devia receber ar por um orifício que teria ficado livre. Os
clamores aumentaram quando foi feito o primeiro buraco. Uma
cabeça surgiu, aos gritos, enquanto duas mãos escavavam,
desajeitadamente, a terra. Parecia uma gigantesca toupeira
tentando abrir caminho.
2OO
A CENTELHA DA VIDA
2O1
ERICH-MARIA REMARQUE
Werner olhou-o.
- Não deves vir connosco trabalhar no desentulho. É uma
loucura. Estafas-te mesmo sem fazeres nada.
- - Que queres tu que eu faça? Tenho de esperar
tranquilamente que os SS me venham buscar, não?
2O2
A CENTELHA DA VIDA
- Alfred! - gritou.
O carro tinha desaparecido.
- Porcos! - berrou, de súbito, furioso. Nunca
aparecem quando s o precisos.
ERICH-MARIA REMARQUE
2O4
A CENTELHA DA VIDA
2O5
ERICH-MARIA REMARQUE
Aproxinie-se!
O homem avançou, assustado. Neubauer só o reconheceu quando
ele chegou a alguns passos de si. Era o antigo proprietário da
loja.
Eu... eu... Eu passava para... Para quê? Blank fez uni vago
gesto para as ruínas.
- Para gozar o espectáculo, hem? Blank teve um sobressalto.
- De modo algum, de modo algum, somente... é pena!
- Decerto, é pena. Agora pode rir-se!
- Eu não rio, eu não rio, Hei-r Obersturmbannfuebrer! Neubauer
observava-o. Bland, amedrontado, mantinha-se diante dele, com
os braços colados ao corpo.
Que tem? Por que está a agitar os braços? Por nada, Heff
Obersturmbanr@fúehrer. Dei uma queda há anos. Blank suava de
medo. Gotas grossas rolavani-lhe da testa para os olhos. O
olho esquerdo piscava menos que o direito. Do lado esquerdo
tinha uni olho de vidro. Receava que Neubauer interpretasse
mal a sua tremura nervosa. Engano semelhante custara-lhe caro
anos antes.
2O6
A CENTELHA DA VIDA
Teve mais faro que eu - disse. - Naquela altura não deu, Wvez,
bem conta disso, mas hoje teria perdido tudo, então estaria,
,ico está, com urna soma intacta guardada.
- Perfeitamente! Perfeitamente!
- Está pronto a concordar, não?
- Absolutamente, Hérr Obmturmbani@fuebrvr, absolutamente!
- Com muita humanidade.
- Muita, Herr Obenturmbannfuebrer, e estou-lhe infinitamente
grato.
2O7
ERICH-MARIA REMARQUE
atreveu a recusar.
2O8
XVI
últinio cadáver.
Berger endireitou-se.
- Esquecenio-nos de inscrever este.
C.CIÁ~Sél_XX25-14
2O9
ERICH-MÁRIA REMARQUE
- O quê?
- Esquecenio-nos de registar o falecimento deste preso.
- Estás doído? Tomámos nota de todos.
- Não é verdade, Berger fazia esforço para mostrar-se calmo.
- Falta um homem na lista.
- Meu Deus! - explodiu Dreyer. - Que mosca te mordeu? Que
significa isto?
21O
A CENTELHA DA VIDA
211
ERICH-MÁRIA REMARQUE
Esterco! Com um soco Dreyer repeliu Berger, que foi cair mais
adiante. Ao tentar levantar-se sentiu debaixo dos dedos os
dentes e os olhos de um cadáver. Saltou por cima dele sem
deixar de fitar Dreyer.
212
A CENTELHA DA VIDA
entortar os olhos.
213
ERICH-MARIA REMARQUE
- E se eu os denunciar?
- Que tem isso que ver com os anéis e os õculos de ouro?
Dreyer ergueu a cabeça e sorriu, fazendo uma careta.
- Vocês calcularam tudo bem, não? Berger calou-se.
- O preso que vocês querem esconder tem a intenção de se
evadir?
- Está pronto.
214
A CENTELRA DA VIDA
sim.
O ascensor desapareceu com a sua carga de cadáveres nus e
desceu vazio alguns minutos mais tarde.
Agora vou buscar os três homens lá de cima para que nos ajudem
- disse Dreyer. - Durante este tempo peri-nanecerás sozinho.
Compreendeste?
la ^e :ifastando.
Por nada. Mais cinco marcos por hoje. Dreyer quis morder o
lábio, mas o fuKinculo fez-se lembrar brus@ amente.
215
ERICH-MARIA REMARQUE
216
A CENTELHA DA VIDA
Sentarani-se, afastados,
- Ontem à noite, no bloco 6, pudernos ouvir as noticias da
r;ádío. Em inglês, Havia muitos parasitas, mas unia coisa é
certa. Berlim já está sob o fogo da artilharia russa,
217
ERICH-MARIA REMARQVE
- Berlira?
- Sim.
- E os americanos e os ingleses?
- A esse respeito nada de novo. Havia muitos parasitas e
tinhamos de ser prudentes. O Rur está cercado e eles estão
muito para cá do Reno, isso é certo.
218
A CENTELHA DA VIDA
idas na mesma. u
- E se os SS os convocam à porta ou à administração?
- Não vão...
- O quê?
- Não vão - repetiu GoIdstein. Vi-ti o, 5O9 endireitar-se
espantado.
GoIdstein levantou-se.
- Tenho de arranjar sítio para don-nír.
- Se não encontrares, dirige-te a Berger.
- Está bem.
219
ERICH-MARIA REMARQUE
22O
A CENTELHA DA VIDA
Mas ele não estava doente - disse o 5O9. Não, ficou-se assim
enquanto dormia. Queres que te ajude a tirá-lo? É inútil, eu
estava cá fora com ele. Queria apenas dizer a alguém. Sim. Foi
assim, 5O9-
221
XVH
222
A CENTEUM DA VIDA
223
ERICH-MARIA REMARQUE
224
A CENTELHA DA VIDA
225
ERICH-MARIA REMARQUE
226
A CENTELHA DA VIDA
ressa.
Mesmo assim, não compreendo por que é que esta gente é enViada
para tão longe.
Mas, enfim, por que é que esta gentalha não foi abandonada no,
227
ERICH-MARIA REMARQUE
228
A CENTELRA DA VIDA
Ouça. Sei como vamos fazer sair estes homens. Adivinhe lá! Com
229
ERICH-MARIA REMARQUE
- Onde, os meteram?
- Amontoados no crematório. Com a falta que temos de carvão!
Como se não tivéssemos bastantes mortos aqui!
- O cheiro de quê?
- O cheiro da comida. Ou se a virem.
- Acha que se mandarmos trazer um caldeirão?... Sim. As
promessas não fazem efeito nestes homens. É preciso que eles
cheirem ou vejam.
Neubauer concordou.
- É possível. Ainda temos alguns caldeírôes transportáveis.
Mande buscar um. Um ou dois. Com café. A sopa já está pronta?
23O
A CENTFLHA DA VIDA
Café! Café!
O kapo conseguira livrar a concha.
- Ordem! - gritou. - Cada um por sua vez! Ponhan-i--se uns
atrás
outros!
erioso.
- Agora façam recuar devagar o caldeirão - ordenou Weber.
Impossíve). A multidão rodeava a carreta por todos os lados.
Um :,dos guardas, estupefacto, tombou lentamente de lado. A
matilha acahava de fazer-lhe perder o equilibrio. Debateu-se
corno um nadador ,,etii dificuldade e desapareceu por
completo.
Formar! - gritou Weber. Os guardas e a Poricia do campo
acorrerani.
ERICR-MARIA REMARQUE
232
A C6NTELHA DA VIPA
233
ERICH-MARIA REMARQUE
- Ora essa! Como podiam ter feito isso? Weber inclinou-se para
a fechadura. Estava arrancada da madeira carunchosa do
tabique.
- Não quero saber. Faça o que lhe digo. Weber rodou sobre os
calcanhares e afástou-se atrás- dos três presos, que tinham
abandonado toda a resistência.
234
A CENTELHA DA VIDA
236
A CENTELHA DA VIDA
radas, como uma pantomima onde eles não tivessem qual- @papel
a desempenhar. Fechem a porta! - gritou Berger.
237
ERICH-MARIA REMARQUE
238
A CENTEWA DA VIPA
239
ERICH-MARIA REMARQUE
Alguém se aproximava.
- Cuidado - murmurou Berger. - Entra. Lewinsky, esconde-te!
Fechou a porta atrás dele.
- Não há perigo - disse Lewinsky. - É uni isolado, Há já unia
- Sim. Sai!
- Que há? Lewinsky sorriu lentamente. O seu rosto, molhado
pelo nevoeiro, alegrava-se.
24O
A CENTELHA DA VIDA
saído hoje! Foi por causa das possíveis evasões com a ajuda do
iro, Assim, os nossos melhores elementos puderam intervir. Vai
er, provavelmente, unia chamada dentro de pouco tempo. Vem.
stra-me onde podemos esconder as nossas coisas.
G. OWIcos do Sé£. XX 25 - 16
241
ERICH-MARIA REMARQUE
de Handke, que um kapo dos nossos lhe tinha tirado logo depois
de morrer.
242
A CENTELHA DA VIDA
Deíxa-nie tranquilo.
243
ERICH-MARIA REMARQUE
Levantou a mão e abriu os olhos. -Acredita em mim. Quando eu
tiver necessidade de alguma coisa, direi. Agora, nada. Nada,
Acredita, é só do estômago.
- Nossas de quem?
244
A CENTELHA DA VIDA
Aqui não, com certeza. A maior parte deles nem sequer podem
245
ERICH-MARIA REMARQUE
247
A CENTELHA DA VIDA
entes, corno lágrimas vindas não sabia donde. Quem tinha ainda
lárimas para chorar? Todas elas estavam queimadas, secas desde
há
ERICH-MARIA REMARQUE
248
249
ERICH-MARIA REMARQUE
Dois SS acorreram.
- Que quer isto dizer? Que ideia foi esta?
25O
A CENTELHA DA VIDA
Bruno - disse Selma Neubauer numa voz calma -, não sejas pido.
Reflecte um pouco. Reflecte antes que os outros comecem
reflectir. É a nossa única possibilidade. Vende tudo o que
puderes. nosso terreno, o pomar, a casa, tudo, com perda ou
ganho, pouco Porta.
- E o dinheiro? Que vai acontecer ao dinheiro? Netibauer
abanava a cabeça com obstinação.
251
ERICH-MARIA REMARQUE
252
A CENTELHA DA VIDA
criada saiu. E por que não vos farão a mesma coisa que vocês
aos outros? uem? Os judeus? @abauer rebentou a rir. Imaginava
Blank a torturar Weber. Os judeus? Sentir-se-ão muito felizes
se os deixarem tranquilos. Não são os judeus. Os ingleses e os
americanos. bauer teve um novo acesso de hilaridade. Esses
ainda menos! Não querem saber disso! As medidas de pointerna,
tal como a organização dos nossos campos de concen-
- Não num avião roubado, mas podíamos ter feito algumas vians
durante as férias e levar o dinheiro e as jóias. Duas, três,
quatro
253
ERICH-MARIA REMARQUE
Se urna só das tuas palavras fosse divulgada, serias fuzilada
imediatamente.
- Porquê?
- Não é para sempre. Provisoriamente. Se tudo correr bem, em
254
A CENTELHA PA VIDA
mos. Unia ordem é urna ordem, toda a gente sabe isto. gou-se.
-brerordena, nós obedecemos. O F~erassume a responde completa
das ordens que dá. Repetiu-o bastantes vezes.
255
ERICH-MARIA REMARQUE
256
A CENTELHA DA VIDA
menos de ti.
Nenhum dos outros notou o duelo que esta troca de palavras en-
@ros dois homens encobria. -Como nós somos
pueris!", pensou o 5O9. om o pretexto de que há uma eternidade
fomos adversários políos, nenhuni dos dois quer hoje dever
seja o que for ao outro. Eu ínto uma satisfação estúpída por
ver Werner procurar reffigio aqui e
257
O. C~Cos do Séc. XX 25 - 17
ERICH-MARIA R~RQUE
E por quem eram vocês? Por alguma coisa que soa hoje duma
maneira bastante pomposa e cómica. Pela humanidade, a
tolerância e os direitos do indivíduo. É engraçado, hem?
258
A CENTELHA DA VIDA,
259
ERICH-MARIA REMARQUE
Rosen estremeceu.
- Viram como os SS os puxaram pelos pés, de debaixo da cama?
Lebenthal olhou-o com desprezo.
- Nunca viste nada pior na tua vida?
- vi.
- Um dia, encontrava-me eu num grande matadouro - contou
Ahasver. - Tinha lá ido para o sacrifício sagrado. Era em
Chicago. Por vezes, os aniniais suspeitavam do que se ia
passar. Cheirava-lhes a
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XX
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ERICU-MARIA REMARQUE
Depois escutou,
- Há realmente tro... Interrompeu-se de súbito. A si-ia
atitude mudou bruscamente. Escutava agora com todo o corpo.
- É a artilharia,
- Hem?
- É o fogo da artilharia, não é o trovão. - Todos os homens se
olhavam.
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- Espera.
O 5O9 Inclinou-se para Goidstein. Desabotoou-lhe o casaco e
desapertou-lhe o cinto das calças. Quando se endireitou,
Berger estava ao lado dele. Bucher fora preveni-lo.
- Ouvido o quê?
O 5O9 passou o braço por cima dos ombros estreitos de Berger.
- Ephraim - disse docemente -, eu creio que será agora. Berger
levantou os olhos. O 5O9 sentiu de repente uma grande
dificuldade em falar.
- Estarão a aproximar-se?
- Sim. Parece que o ribombar é mais nítido. Os homens da
secção de sapataria trabalhavam em silêncio. Os kapos faziam
respeitar a interdição de falar. Os guardas SS estavam
presentes. Os trinchetes fendiam o couro, cortavam as partes
apodrecidas, mas tinham, em muitas mãos, um sentido diferente
do de simples ferramentas: eram possíveis armas. De vez em
quando um olhar levantava-se para os kapospara os SS, para os
revólveres e metralhadoras que ainda na véspera não tinham
visto. Mas, apesar da vi~ gilância dos guardas, a secção
permaneceu ao corrente do que se passava durante o dia
inteiro. Todos os homens sabiam, há muito tempo, falar sem
mover os lábios, e de cada vez que um cesto cheio de peças de
couro era levado por dois homens, estes, que tinham
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- Continuem!
O SS, maidisposto, olhava o morto.
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- Não tens nada que falar! Ainda somos nós quem manda aqui!
Está percebido, hem?
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Hem? Que dizes tu? Aproxima-te, patife) tife parecia ser a sua
expressão favorita. Muenzer avançou e
O quê? Patife! Que tens tu com isso? Por quem queres que ele
levado? Nós temos... nterrompeu-se. A objecção de Muenzef não
parecia destituida de damento. O morto deveria, normalmente,
ser transportado por SS;
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- Não foi uni erro. Foi unia necessidade. Não podiam fazer
outra coisa. O desarmamento e a paz eram a falência para eles.
E é igualniente o que vos espera,
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Cléssicos do Séc. X X 25 - 18
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- O quê?
- Prefiro não dizer. O 5O9 disse que não era verdade enquanto
não o reconhecêssemos interiormente. Cornecei por não
compreender o que ele queria dizer. Agora sei. Eu não sou um
cobarde e tu não és unia prostituta. Tudo o que nos fizeram
nada significa se não nos reconhecermos nisso.
- Eu reconheço-me.
- Deixarás de reconhecer-te quando sairmos.
- Será pior ainda.
- Não. Se assim fosse, só muito poucos de nós poderiam
continuar a viver. Humilharam-nos, mas, no fundo, não somos
nós que estamos humilhados, são aqueles que o fizeram.
Era mais nova do que ele, mas sentia-se mais velha alguns
anos. As recordaçóes pesavam-lhe como chumbo. Não acreditava
numa palavra sequer do que ele aguardava com tanta confiança,
e, contudo, havia dentro de si uma última esperança e a ela se
agarrava.
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A viúva. não contava, por assim dizer. Alguns anos antes fora
iva que queria salvar o marido do campo de concentração, O ela
não teria feito para isso! O marido niorrera havia já muito @
o que ela ignorava, evidentemente. Noite encantadora! Mais
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fora por sua culpa, com certeza! Ah, que desgraça! Olhou em
redor. Que fazia ainda ali? Tentar encontrá-la? Nessa maldita
aldeia? Devia estar ainda a caminho. Podia levar muito tempo
antes de chegar.
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r.
- Que significa isto? - perguntou o responsável do bloco.
- Ele não está aqui - disse Berger sem se mexer. - É quanto
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emos roupa bastante para esta gente mudar? As coisas sujas ser
queimadas, não? Não é forçoso. Podem ser desinfectadas. Há
bastante roupa no . Receb emos remessas maciças de Belsen. Bém
- disse Neubauer, aliviado. - Nesse caso, mande proce- @lia
distribuição de blusas e calças em bom estado, ou de outros e
que disponhamos, assim como de cristais de carbonato de
1ra desinfecção. Isto terá logo um aspecto diferente. Tome
nota. primeiro responsável de bloco, um prisioneiro
corpulento,
1docilmente. Velar porque tudo seja mantido num estado de
rigorosa limpeza u Neubauer. Rigorosa limpeza - repetiu o
responsável de bloco.
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endial interveio, eb
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sitava.
1mais não falar antes de tempo, isso traz azar. não traz azar
agora - respondeu o 5O9 vivamente. - Evilar durante anos
porque tal coisa ter-nos-ia corroído. Mas Preciso falar. Numa
noite como esta que outra coisa podemos imenterno-nos de todas
as nossas esperanças. Vamos, que quando saíres, Sulzbacher?
,,-,Não sei onde está a minha mulher. Ela estava em
Dusseldórfia. 'rfia está destluída. 'Se ela ainda está em
Dusseldõrfia, está em segurança. Dusselestá ocupada pelos
ingleses. A rádio reconheceia-o há muito
E foi por isso que ele te mandou prender? Sim. Era sifilítico.
E o médico especialista? Mandou-o fuzilar. Quanto a mim, pude
fazê-lo acreditar que o sabia o que ele tinha e quesupunha
tratar-se de inflamações devis a consequências da última
guelra. Apesar disso, por maior pruncia, mandou-nie prender.
- Que contas fazer se ele ainda estiver vivo quando saíres?
Berger reflectiu.
- Não sei, francamente.
- Eu matava-o! - declarou Meyerhof.
- Para ser preso outra vez? - disse Lebenthal, - E para ser
conenado a dez ou vinte anos por homicídio?
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- Capas? No Verão?
- Há capas de Verão. Poderei também fazer fatos completos. E
capas para a chuva, naturalmente.
- Cala-te, Léo!
- E tu, Berger, que vais fazer? Berger passou a mão pelos
olhos inflamados.
- Entrarei como aprendiz numa farmácia. Vamos a ver se poderei
fazer alguma coisa desse género. Por que operar... com estas
mãos? Ao fim de tanto tempo...
Rosen hesitou.
- Talvez tenha cedido a unia pressão. Que podia ela fazer? Fui
eu o primeiro a aconselhá-la.
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as. Pôde roubar pão e cenouras. Tudo o que se cozia era nzos,
Nada a fazer a esse respeito. Tomem, aqui está um pão e
algumas cenouras cruas, Não é grande coisa, mas nós não
tivemos mais, rger - disse o 5O9 -, faz a distribuição. ve
meia fatia de pão e uma cenoura para cada prisioneiro. ,Comam
devagar. Mastiguem até que nada fique na boca.
insky tinha razão. Rosen bem o sabia. Queria dizer que fora
esta noite estranha, em que tinham falado do futuro para era
fome, que lhe surgiraaquela ideia, e que esta não tinha sennão
em função desse futuro. Mas renunciou à explicação.'era cada
de mais e não tinha grande importância. Eles estão a virar a
casaca - contou Lewinsky, numa voz rouca ada. - Os verdes
fazem o mesmo. Nós deixamo-los fazer. Os os responsáveis de
bloco, os responsáveis de camarata. Mais se fará a escolha. E
também dois SS. E o médico do hospital, por cima.
O porco! - disse Bucher. Sabemos o que ele vale, mas pode
ser-nos útil. Transmite-nos ticias, Esta noite chegou uina
ordem de deportação, Heni? - exclarnararti Berger e o 5O9 ao
mesmo tempo, Deportação. Devem ser colocados dois mil homens,
Querem fazer evacuar o campo? Querem dois mil homens.
Provisoriamente. A deportação. Aqui está o que receávamos -
disse Berger. Acalmeta-se, O escriturário ruivo está atento.
Se elaborarem lista, vocês não serão incluídos. Temos amigos
em toda a parte ra. Além disso, parece que Neiihauer hesita.
Ainda não transmitiu
~Cos do Sk. XX 25 - 19
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Lewinsky levantou-se.
- Vem - disse para Berger. - Foi para te levar que eu vim.
- Para onde?
- Para o hospital. Vamos esconder-te por um dia ou dois. Temos
um sítio perto da secção tifo. Nem um nazi se arrisca lá. Está
tudo pronto.
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- Extraí-lo donde?
- Dos mortos,
- Quem te ensinou isso,Karel? - perguntou Ahasver depois dum
silêncio.
- Foi Blatzek.
- Qual Blatzek?
- Blatzek do campo de Bruenn. Ele disse que era preferivel
isso a niorrer. Os mortos estão niortos, disse ele, e de
qualquer maneira hão-de queiniá-los. Ensinou-me muitas.
coisas. Mostrou-nie como se
olhos. Tinham o Exército, que não estava ainda nas màos dos
assassinos. Podiam ter modificado tudo num dia. Mas deixaram
andar. É por isso que Deus os fustiga agora. Unia vida é unia
vida, seja ela a mais miserável,
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ia ainda na mesa uni prato com migalhas -de bolos e uma chá-
,de café vazia ao lado de alguns livros. Romances de aventuras
May. As suas preocupações literárias não iam mais longe, além
edição fora do mercado sobre a vida amorosa e obscena de
'dançarina.
t ireitou-se, bocejando. Tinha uni gosto fétido na boca.
Apurou ido uni instante. As células do bunkerestavam
silenciosas. Ninousava gemer. Breuer ensinara bem a sua gente.
clinou-se para tirar uma garrafa de conhaque de debaixo da e
alcançar um copo na mesa. Encheu-o e esvaziou-o. Depois tou
outra vez. A janela estava fechada; no entanto, julgou ouvir
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Bebeu um golo.
- Queres ainda um cigarro? - perguntou de repente. Luebbe
olhou-o.
- Sim - disse. Breuer colocou-lhe uni cigarro nos lábios
sangrentos.
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Toma!
deu uni cigarro e serviu-se de uni por sua vez. bos fumavam em
silêncio. Luebbe sabia que estava perdido. rava o ouvido na
direcção da janela. Breuer esvaziou o copo. Depousou o cigarro
e agarrou o martelo. @,- Maldito sejas! - murmurou Luebbe. ,O
cigarro não lhe caiu da boca, ficou colado ao lábio superior,
O cio caiu várias vezes sobre Luebbe que deslizou devagar para
o
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Nessa noite caíra uma chuva cerrada e tépida durante uma hora,
e alguns charcos se tinham formado no campo de concentração. O
5O9, agachado perto de uni deles, viu-se reflectido por acaso.
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ni?
O 5O9 baixou outra vez os olhos para a superfície clara -Os
meus os", pensou. Inclinou-se para a frente para os ver de
mais perto,
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uni. Se realmente eles querem defender o campo, seremos
bombardeados.
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Era uni sinal para nós, é mais que certo! Se não fosse isso,
que
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- Sim.
- Se ele não conseguir nada, temos de desembaraçar-nos
sozinhos.
às massas?
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Lebenthal arrotou.
- Que ruído delicioso - disse, com recolhimento. - Senhor!
Quando arrotei eu pela última vez?
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rava reter mais tempo do que o outro aquele rápido olhar para
uarda. tros presos puseram-se a ii-nitã-los. Aqueles que o
podiam fazer
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XICIV
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s centenas.
hospitais?
O professor Swoboda, de Bruenn, prísioneiro da secção checa,
mpreendeu o que se passava. Tinha diante de si um autómato
esgoo de fadiga que continuava a trabalhar maquinalmente.
- Tem de ir dormir agora - disse em voz mais forte. Os olhos
avermelhados de Berger piscaram.
- Sim, sim - respondeu, enquanto se inclinava novamente para
iii corpo coberto de queiniaduras.
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- Chocolate?
- Pois então, os camaradas têm ti-ido o que querem. Chocolate,
manteiga e sabe Deus mais o quê!
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C. Clássicos do Séc. XX 25 - 21
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riram a sua própria pele. Por mais lívida e manchada que essse
ainda, parecia-lhes duma brancura miraculosa. Deram-lhes fatos
linipos. Apalparatu-nos e examinarani-nos por to tempo antes
de os vestirem. Depois conduzirani-nos à cama-
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- Deixa-o, Léo.
- Oh, deixo-o, sim.
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- Não o perderemos.
Não. Então, por quee partem? Ahasver teve,um gesto vago. -já
ficámos aqui muito tempo. Estava envolvido numa velha peliça
cinzento-escura com unia espécie de gola de cocheiro que lhe c
aía até aos cotovelos. Era um @@'@@,~nte de Lebenthal, cuja
loja já estava aberta. Pertencera a um
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ento. amos atravessar pelo meio dos campos. Achas que se pode?
Creio que nos podemos permitir muitas coisas. E, além disso,
;@,emos de nos exercitar a vencer o medo. Sentiram a erva
debaixo dos pés. Durante anos não tinham cQnheo se não a terra
batida do campo de concentração.
Agora à direita.
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Não era uma casa o que nós víamos. Tanto melhor não termos
sabido que estava em, ruínas. Tinham acreditado que se
agarrariam à vida enquanto a casa perIpanecesse intacta,
Tinhani-se agarrado a esta ilusão, a esta fachada ,que
mascarava escombros. Esta ironia era também uma consolação.
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Pf lT
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O U@! do
Perd d