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A CENTELHA DA VIDA

ERICH-MARIA REMARQUE

Obras publicadas na colecção "Clássicos do Século XX":

1 A Idade da Inocência, Edith WharLon


2 - Retrato do Artista Quando Jovem, ânes í@yce
3 - O Grande Gaisby, F. Scott Fitzgerald
4 -A Casa de Bernarda A Iba, Federico García Lorca
5 -O Amante de Lady Çhatterley, U@w~ce
6 - Gente de Dublin, Jame@Joyce
7 - Três Homens Num Bote, Jorome K. Jerome
8 -A Caça da Felicidade, Edith Wharton
9 - Filhos e A mames, D. H. La;k@ @ , 1 'f , ,
1O -A Confissão de Lúcio, Mário de SA-Carneiro
11 - 24 Horas da Vida de Uma Mulher, Stefan Zweig
12 -A Mãe, Máximo Gorki I Ethan Frome, Edith Wharton
14 Voo na Noite, Antoine de Saint-Exupéry
15 -O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry
16 - OLivro da Selva, Rudyard Kipling
17 - Sonetos, Florbela Espanca
18 - Mulheres Apaixonadas, D. H. Lawrence
19 -A Viagem, Virginia Woolf
2O - O Triunfó dos Porcos, George Orwell
21 - O Mundo Perdido, Arthur Conan Doyle
22 -A Serpente Emplumada, D. H. Lawrence
23 - Jovens Rebeldes, Edith Wharton
24 - O Agente Secreto, Joseph Conrad
25 - A Centelha da Vida, Erich-Maria Remarque

ERICH-MARIA REMARQUE
A CENTELHA DA VIDA

Publicações Europa-América

Título original: Der FLeben

Tradução de José Saramago Tradução portuguesa O de P. E. A.

Capa: estúdios P. E. A.,

@ 1997 The Estate of the late Mrs. Paulette Remarque

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Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLiCAÇõESEUROPA-AMÉRICA,LDA. Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL

Edição n.*: 1,53125/6799 Junho de 1997

Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra - Mem


Marfins

D~to legal a."; 11152O1O

A iizeinõi-ia de ininba iii7iã E!friede

Nascído na Vesfelía em 1898, na cidade de Osnabruck,


Erich-Maria Remarque tinha 16anos quando rebentou a primeira
guerra mundial. Mobilizado, cinco vezes.ferído, o seu lendário
pacifismo nasceu nas trincheiras.- "Ví o meu melhor amigo
deitado na lama, com uma enorne ferida no ventre. Esta imagem
marcou-me para sempre." Deste modo, a sua primeira obra.foi um
requisitório qe incomparável violência contra os horrores e a
estupidez da guerra. Conhece-se o sucesso, semprecedentes nos
anais do lívro, queNada de Novo na Frente Ocidental alcançou.
Esta obra, quefoi queimada em públicopelos nazis, atingiu oito
milhões de exemplares.

Ericb--Maria Remarque permaneceu fiel â vocação que anima o


seu primeiro romance. A Centelha da Vida pode ser considerado
a réplica para a segunda guerra mundial do que.foi para a
primeira Nada de Novo na Frente Ocidental. E assim como a
tllncbeirafoi o símbolo lamacento dagrande tragédia de
1914-1918, o campo de concentração é o universo fechado e
símplificado em que se agitam as espectrais personagens do seu
último romance.
Remarque passou nos Estados Unidos os anos da guerra. Não
conheceu, portanto, o horror dos campos de concentração. Mas
para escrever o seu: livro rodèu-se duma documentação imensa,
de tal maneira que nem um só dos factos relatados foi
inventado por ele. o campo de concentração que serve de quadro
A Centelha da Vida, é puramente imaginário; constitui, de
algum modo, um tipo ideal que reune as características de
campos que realmente existiram. Uma testemunha ocular só
poderia contar o que viveu; apenas no plano abstracto das
ideias e das teorias conservaria a liberdade criadora. Um
romance concentracionário não poderia sair se não duma
reconstituição histórica. Remarque combinou imaginariamente
elementos autênticos. Pode, pois, dízer-se sem paradoxo que o
seu livro é o mais concreto de todos os que dizem respeito aos
campos de concentração.

O campo deMellen ímagínado pelo autor é um campo de


concentração médio. O próprio horror é moderado, e está
relativamente na verdade o coiizandaizteNetibaitei-,
que,,@ccoiiipi-azein i-epetirqueoseu campó é um dos mais
buinanos de toda a Alemanha. Sabe-se, alids, que os últimos
meses de guerra - precisamente aqueles que o autor escolheit
para nos recoi-dai--.forain assínaladospor um cedo
aj@Ouxamento do terror nos campos. Os carrascos, fatígados, ou
dizimados

ERICH-MARIA REMARQUE

pelas sucessivas remessaspara afrente de batalha,


contentavam-se com métodos maísexpedítívosquea tortura.
Éafomeimpessoaleomnipotente que ocupa opilmeíro lugarno campo
deMellen.

Ericb--Maria Remarque não é nem um.filósqfo nem um teórico. O


seu livro desenrola-se integralmente noplano dosfactos mais
concretos. Não obstante, o próprio titulo anuncia a grande
lição que se desprende destaspáginas. E a daprecaridade do
valorbuinano. O espirito, fá-lo Remarque dizer à sua
personagem principal, não é uma luz intangível desprendida das
necessidades materiais, Quem quer que seja pode liquidá-lo,
separa tanto tiver tempo e ocasião. A bumanidade está
constantemente ameaçada, a possibilidade do seu
desaparecimento está semprepresente. Épreciso saIn@-Ia e
reconquis-
Ok4à em cada momento,..
E é esse, sem dúvida, o tema mais trágico deste livro, essa
centelha espiritual sempre prestes a apagar-se, morrendo e
renascendo em cada Pístante, protegida medrosamente por bomens
encurralados, obrigadossem cessara recorrerà
astúciaparapermanecerem homens.

esqueleto 5O9 ergueu lentamente a cabeça e abriu os olhos. Não


poderia dizer se desmaiara ou se, simplesmente, adormecera. De
resto, a diferença entre os dois estados não era grande; a
tome e o esgotamento há muito tempo já que haviam apagado as
fronteiras entre eles. Era o mesmo deslizar em profundidades
lamacentIS donde lhe parecia não poder arrancar-se nunca mais.

O 5O9 permaneceu agacliado uni momento e escutou.Tra um velho


hábito de campo. Nunca se sabia de que lado o perigo ia
precipitar-se, e, enquanto se permanecesse imóvel havia
probabilidades de passar despercebido ou de ser considerado
morto siniples lei da natureza que nem sequer um besoiro
ignora.

Nada ouviu de suspeito. Os serventes das metralhadoras


donwtavam nas suas torres. Mais longe reinava igualmente a
caínia. Com prudência, virou a cabeça e olhou para detrás de
si.

O campo de concentração de Mellen dormia, tranquilo, ao sol. A


vasta praça de chamada, a que os SS chaniavam com humorismo, o
dancing, estava quase deserta. Apenas quatro prisioneiros, de
mãos atadas atrás das costas, estavam suspensos dos fortes
postes que se erguiam à direita da porta de entrada.
Tinhani~nos atado suficientemente alto para que os pés não
tocassem no solo. Os ossos das espáduas saíam das
articulações. Por uma pequena janela, dois fogueiros do
crematório divertiam-se a bombardear os corpos com pequenos
pedaços de carvão, mas nenhum deles se movia já. Estavam
pendurados há meia hora e tinham desmaiado.

As barracas do campo de trabalho estavam desertas. As brigadas


exteriores não tinham ainda regressado. Alguns homens em
serviço de camarata atravessavam furtivamente as ruas. O SS
Scbarfue~Breuer estava sentado à esquerda do grande portão da
entrada, diante dos bunkem Mandara trazer uma mesa redonda e
unia cadeira de verga e preparava-se para beber unia chávena
de café. O verdadeiro café era raro nessa Primavera de 1945,
mas Bretier acabava de estrangular dois judeus que
emboloreciam há seis semanas no bunkereconsiderava que esta
acção filantrópica valia bem uma recompensa. O kapo da cozinha
acrescentara ao café um prato de bolos. Breuer comia devagar,
com um prazer consciencioso; apreciava muito, sobretudo,, as

ERICH-MARIA REMARQUE

passas de Corinto, sem grainhas, de que a massa estava


recheada. o judeu mais velho não fora muito divertido, mas o
mais novo mostrara ser mais resistente; debatera-se e
estertorara durante um bom pedaço. Bretier sorri,
sonhadoramente, ouvindo, dispersos pelo vento, os estribilhos
da orquestra do campo, que ensaiava atrás da horta. Tocava-se
a valsa RosasdoSul, de que o Oben;itirmbann ebi-erNeubauer
tanto .fu gostava.

O 5O9 estava estendido na outra extremidade do campo, perto de


uni grupo de barracas de tábuas que unia ved,ação de arame
farpado separava do grande campo de trabalho. Chaniavani-lhe o
pequeno campo. Era lá que se encontravam os prisioneiros já
demasiado fracos para poderem trabalhar. Mandavani-nos para
ali para morrereni. Embora quase todos morressem rapidamente,
as barracas estavam sempre sobrepovoadas porque, sem cessar,
chegavam novos prisioneiros antes que, os outros tivessem
morrido. Frequentemente, os moribundos acumulavam-se até nos
corredores ou eram arrastados para fora, para o seu último
suspiro, Mellen não tinha câmara de gás, do que bastante se
orgulhava o comandante. Com muito gosto declarava que em

Mellen se morria de morte natural. Oficialmente, o pequeno


campo era designado por secção de repouso, mas poucos eram os
presos que resistiam mais de uma ou duas semanas a este gênero
de repouso. Tal era, contudo, o caso dos prisioneiros da
barraca 22: com um resto de humor negro, denominavani-se a si
próprios os veteranos. O 5O9 fazia parte deste reduzido grupo.
Havia seis meses que fora transferido para o pequeno campo:
parecia-lhe uni milagre continuar vivo.

O crematório vomitava uma torrente de fumo negro, que o vento


achatava sobre o campo. As nuvens de fumo rasavam os tectos
das barracas, O ar estava cheio de uni odor gordo e adocicado,
que provocava vontade de vomitar. O 5O9, apesar dos seus dez
anos de campo, nunca pudera habituar-se a este cheiro. Os
restos de dois veteranos deviam estar a ser queimados: os do
relojoeirojan Sibeiski e do professor universitário Joel
Buchsl-)aum. Ambos haviam moi-rido na barraca
22 e tinham sido entregues para o crematório ao meio-dia. A
falar verdade, Bluchsbaum não fora entregue integralmente:
faltavani-lhe três dedos, dezassete dentes, as unhas dos pés e
uma parte do sexo. Perdera tudo isto no decorrer da
-reeducaçào" que devia fazer dele uni homem aproveitável. A
história do membro viril provocara muitas risadas nos serões
culturais dados na caserna dos SS. A ideia pai-tira do
Scha@ffiehwrGünter Steinbrenner, recém-chegado ao campo.
Simples corno todas as grandes invençóes - uina injecçà<) de
ácido clorídrico

/o

A CENTELHA DA VIDA

concentrado, nada mais. Com isto Steinbrenner conquistara a


consideração dos camaradas.

A tarde de Março estava agradável e o Sol já aquecia; mas o


5O9 tinha frio, embora tivesse acrescentado à sua própria
roupa peças de vestuário pertencentes a três outros - o casaco
de Joseph Bucher, a capa do adelo Lebenthal e o sweater
rasgado de Joel Buchsbauin, que a barraca conseguira salvar
antes de entregar o cadáver. Mas te, riam os mais quentes
agasalhos podido proteger do frio um homem de 1,78 in de
altura que não pesava mais de 35 quilos?

O 5O9 tinha direito a meia hora. Em seguida devia regressar à


barraca, restituir a roupa emprestada, ceder o seu próprio
casaco, e outro tomaria o seu lugar. Era este o ajuste dos
vetei-anos desde que o fro cessara. Alguns tinham renunciado.
Demasiado esgotados, após o sofrimento do inverno, não pediam
se não que os deixassem morrer em paz nas barracas, mas
Berger, o responsável pela camarata, exigira que todos os que
pudessem ainda arrastar---se aproveitassem uni pouco de ar
puro. O seguinte era Westliof, depois seria Bucher. Lebenthal
renunciara à sua vez: tinha algo mais importante a fazer.

O 5O9 virou-se de novo para o campo. Este fora construido@


sobre uma elevação e, por entre o arame farpado, via-se agora,
no fundo do vale, a cidade, banhada pela clara luz da
Primavera. Os canipanários dominavam a confusão dos telhados.
Era uma cidade antiga, cheia de igrejas e muralhas, de áleas
sombreadas e ruelas tortuosas. Ao norte, o bairro inoderno,
com as suas largas avenidas, a estação do caminho-de-ferro, as
casernas, as fábricas e as oficinas metalúrgicas, onde
trabalhavam secções de internados. Um rio, em que se
reflectiam, sonhadoramente, as pontes e as nuvens, descrevia
largos meandros.

O 5O9 deixou pender a cabeça. Não podia mantê-la erguida mais


de um momento. E pesado um crânio quando os músculos do
pescoço se transformaram em tendões filifornies - e, além
disso, à vista das chaminés que fumegavam no vale, ele tinha
ainda mais fo -me que de costume. Mais ainda que o estômago,
tinha fome o cérebro. O estômago, há muito tempo habituado,
experimentava apenas uma sensação de contínua angústia. A fome
cerebral era pior. Suscitava alucinações e não tinha descanso.
Durante as horas de sono alimentava-se de si própria. Nesse
Inverno haviam sido necessários três meses ao 5O9 para
conseguir livrar-se duma obsessão de batatas fritas. O cheiro
delas perseguia-o por toda a pai-te, até mesmo no fedor das
latrinas. Agora era o toucinho. Toucinho com ovos, num prato-

Deitou uni olhar ao relógio de níquel que pousara no chão, a


seu lado. Leberittial havia-lhe emprestado o precioso objecto,
que pertencia à barraca; o polaco Julius Silber, morto há
muito tempo, introduzira-o secretamente no campo anos antes.
@O 5O9'certificou-se de

11

ERICH-MARIA REMARQUE

que tinha ainda dez minutos. Decidiu, contudo, regressar sem


mais demora à barraca. Não queria adormecer de novo. Nunca se
está seguro de vir a acordar. Prudentemente, perscrutou mais
uma vez o caminho do campo, Nada viu que anunciasse perigo. A
falar verdade, também não o esperava. A sua prudência era mais
rotina de lebre velha do que verdadeiro 'niedo. Em virtude da
disenteria que ali reinava, o pequeno campo estava submetido a
um regime de quarentena de facto e os SS raramente entravam
nele. Além disso, a vigilância de todo o campo afrouxara
sofrivelmente nos últimos anos. Os efeitos da guerra eram cada
vez mais sensíveis, e unia parte dos SS, que até aí apenas
haviam manifestado o seu heroísmo torturando e assassinando

ioneiros sem defesa, tinham sido enviados para a frente da


bataNessa Primavera de 1945 somente um terço dos antigos
efectivos SS estava adstrito ao campo. Desde há muito tempo,
já que a administração do campo era assegurada quase
unícai-nente por presos. Cada barraca tinha um responsável de
bloco e vários responsáveis de camarata; as brigadas de
trabalho eram comandadas por kapos e chefes de fila; o
conjunto do campo, pelo responsável do campo. Todos eram
prisioneiros. Estavam colocados sob a fiscalização de chefes
de campo, de chefes de blocos e de chefes de brigadas, todos
85. A princípio, o campo apenas reunira presos políticos, mas
de ano para ano haviam afluído presos de direito comum, das
prisões sobrepovoadas da cidade e da província. As diferentes
categorias de presos distinguiam-se pela cor do triângulo de
pano que era cosido nos fatos de todos os prisioneiros, por
cima do número. O triângulo dos presos políticos era vermelho;
o dos de direito comum verde. Os judeus traziam ain um
segundo triângulo, este amarelo, que, sobrepondo-se ao
primeiro, formava uma estrela de David.

O 5O9 apanhou a capa de Lebenthal e o casaco de Joseph Bucher,


deitou-os para as costas e pôs,-se a rastejar para a barraca.
Sentia-se mais fatigado que de costume. Estava esgotado só por
se arrastar na terra. O chão começou a girar debaixo dele.
Parou, fechou os olhos e respirou profundamente para recobrar
as forças. Foi então que as sereias da cidade começaram a
uivar.

Primeiro, apenas duas. Alguns segundos mais tarde tinham-se


multiplicado, e bem depressa parecia que toda a cidade
gritava. O grito subia dos telhados e das ruas, dos
campanários e das fábricas; a cidade ali estava exposta ao
sol, nada se movia nela; pusera-se simplesmente a gritar, de
repente, como um grande animal paralisado que vê
aproximar---se a morte e não pode fugir; gritava com todas as
suas sereias, com todos os seus apitos, e o seu grito subia
nuni céu puro e desci-to.

O 5O9 achatara-se imediatamente contra o solo. Em caso de


alerta,

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A CENTELHA DA VIDA

toda a gente devia estar nas barracas. Poderia ter tentado


levantar-se e correr, mas sentia-se demasiado fraco para ir
suficientemente de. pressa, e, além disso, a barraca estava
longe; um guarda nervoso ou chegado há pouco tempo poderia
atirar sobre ele. Tão rápido quanto podia, rastejou para unia
pequena depressão de terreno, onde se acaçapou, com as roupas
emprestadas estendidas sobre si. Podia supor-se, assim, que
acabava de cair morto. A coisa era vulgar e não parecia
suspeita. De resto, o alei-ta não duraria muito tempo. Nestes
últimos meses a cidade tivera um todos os dias e nunca
acontecera nada. De todas as vezes os aviões tinham
prosseguido o seu caminho para Hanóver ou Berlim.

As sereias do campo entraram em acção. Um pouco mais tarde


ressoou o segundo sinal de alerta. O uivo engrossava e
diminuía. Parecia estar-se ouvindo gigantescos fonógrafos
enlouquecidos. Os aviões aproximavani-se da cidade. O 5O9
também conhecia isto e não se preocupava. O seu inimigo não
era aquele contra quem se erguia o grito da cidade. O seu
inimigo era o servente da metralhadora mais próxima, que ia
descobrir que ele não estava morto. Nada do que se passava
para lá dos arames farpados lhe dizia respeito.

Respirava a custo. Debaixo da capa o ar viciado


transformava-se num vapor húmido, cada vez mais espesso, que o
sufocava. Estava deitado no seu buraco como num túmulo, e
pouco a pouco apossava-se dele a sensação de estar realmente
num túmulo - de que nunca mais poderia levantar-se, de que era
o fim de tudo e de que ia ficar ali, morrer, vencido por esta
fraqueza última, contra a qual tanto tempo lutara. Quis
reagir, mas sem resultado; tornava-se mais forte a sensação
desta estranha expectativa, deste abandono que o invadia, que
se apossava mesmo do que lhe era exterior, como se, de
repente, a expectativa tivesse congelado todas as coisas -
como se a cidade esperasse, como se o ar esperasse, e a
própria luz esperasse também. Assim, no princípio de um
eclipse do Sol, quando todas as cores estão @Já embaciadas por
uni sopro de chumbo, se desprende o pressentimento longínquo
de um universo morto, sem sol - uma impressão de vazio, de
respiração reprimida na expectativa: a morte passará
OOmo antes ou parará desta vez? ',,@ , O choque não tinha sido
violento, mas fora inesperado. E partira dum lado que parecia
mais protegido do que qualquer outro. O 5O9 sentiu-o como uni
rude abalo no estômago, do mais profundo do solo. Ao mesmo
tempo, o uivo das sereias foi atravessado por uni silvo
@ffietãlico sobreagudo, que aumentava furiosamente. O 5O9 não
teria podido dizer se o abalo precedera ou seguira o silvo e a
explosão que o pontuou - o que ele sabia bem é que nem um nem
outro se tinhani ~zido nos alei-tas anteriores, e quando o
fenômeno se repetiu

13

ERICH-MARIA PEMARQUE
debaixo dele e sobre a sua cabeça, mais próximo e mais
violento, compreendeu o que se passava: pela primeira vez os
aviões não iriam mais longe. A cidade era bombardeada.
paulo
De novo o solo tremeu. O 5O9 tinha a impressão de que
poderosas matracas subterrâneas o martelavam,
Estava outra vez plenamente lúcido, dissipada como fumo a sua
fadiga mortal. Cada abalo do chão repercutia-se na sua cabeça.
Durante um momento mais, simulou estar morto - depois, quase
sem dar por isso, avançou unia das mãos com cuidado e afastou
a capa do rosto o suficiente para poder observar a cidade.

Nesse momento exacto a estação deslocou-se como uni brinquedo


e subiu lentamente nos ares. Era quase gracioso o movimento da
cúpula dourada que voava sobre as árvores do jardim e
desaparecia atrás delas. As explosões surdas pareciam não
fazer parte do espectãculo, que se desenrolava com excessiva
lentidão. As salvas da D. C@ A. perdiam-se no estrondo como os
latidos de unifox-tenierno ladrar profundo de uni molosso.
Mais um abalo violento, e uma das torres da igreja de Santa
Catarina começou a inclinar-se. Também ela ,desabou com
lentidão; na queda dividiu-se em vários pedaços. Tudo parecia
irreal, como se estivesse a ser filmado ao retardador.
1 . Colunas de funio subiam agora como cogumelos, entre as
casas.
O 5O9 continuava a não ter a impressão duma destruição séria;
invisíveis@ gigantes se divertiam no vale, e era tudo! Nos
bairros da cidade ainda intactos o fujno continuava a subir,
tranquilamente, das chaminés. O rio reflectia as nuvens como
antes, e os flocos da D. C. A. orlavam o céu, que parecia unia
inofensiva almofada cuja costura, cedendo por todos os lados,
tivesse deixado escapar punhados de penugem branca.

Uma bomba caiu muito longe da cidade, nos campos que se


estendiamaté ao campo de @ concentração. O 5O9 não tinha medo;
tudo isto era estranho ao estreito universo em que estava
encerrado. Medo tinha, sim, dos cigarros acesos aproximados
dos olhos ou dostestículos, das semanas no bunkerda fome, um
túmulo de pedra onde não se podia estar nem de pé nem deitado;
medo do cavalete sobre o qual quebram os rins, da sala de
tortura, na ala esquerda@ peito da entrada do campo; niedo de
Steinbrenner, de Breiaer, do chefe do campo We- 'ber - mas
inesmo todas estas ameaças se tinham já sofrivelmente
desvanecido desde que fora, relegado para o pequeno campo. Era
preciso ter a capacidade de esquecer depressa para ter a força
de continuar a viver. Além disso, o campo de Mellen
fatigára-se umpouco de, torturas- em dez anos; mesmo uni SS
afiado de fresco e cheio de ideais acaba por fatigar-se de
torturar esqueletos. Tinham pouca re@ sistência e não, reagiam
duma maneira satisfatória. Era necessária a

14

A CENTELHA DA VIDA

chegada de contingentes robustos e capazes de sofrer para que


o antigo patriotismo experimentasse um revigoramento de ardor.
Então, ouvia-se de novo, durante a noite, o longo grito
familiar e os SS manifestavam uni pouco mais de animação, como
depois dum bom assado de porco com batatas e couves lombardas.
Fora destes casos. excepcionais, os campos haviani~se até
tomado na Alemanha mais humanos no decurso dos anos de guerra.
Contentavani-se em asfixiar, espancar ou fuzilar, ou faziam
trabalhar os presos até ao esgotamento para,os acabarem em
seguida pela fome. Se, de tempos a tempos, algum era queimado
vivo nos fomos crematórios, era menos por intenção de117berada
que por indiferença provocada pela fadiga, e também porque
certos esqueletos tinham longos períodos de ii-nobilidade
completa. Aliás, isto não acontecia a não ser quando era
necessário dar rapidamente lugar a novos contingentes e quando
se procedia a liquidações maciças. Assim mesmo, não se abusava
em Mellen. da supressão das bocas inúteis pela fome; havia
sempre qualquer coisa para comer no pequeno campo, e certos
veteranos, como o 5O9, realizavam em cada dia o milagre de
continuarem vivos.

O bornhardeamento cessou bruscamente. S6 a D. C. A. continuava


a atirar. O 5O9 ergueu uni pouco a capa para poder ver a torre
mais i', próxima. A platafornia estava deserta. Olhou mais
longe, à direita, e à

esquerda. Os serventes dali tinham também desaparecido, Os,


@85 haviam descido todos para os pôr em segurança; tinham
excelentes "abrigos perto das casernas. O 5O9 afastou
completamente a capa e rastejou em direcção aos arames
farpados. Erguido sobre os cotovelos, @,,,mergulhava agora o
olhar no vale.

A cidade ardia por toda a parte. O que há pouco não parecia


i*naís que um jogo tornara-se unia realidade de fogo e
destruição. O ,fumo amarelo e negro arrastava-se nas ruas e
engolia as casas como Orn gigantesco polvo sulcado aqui e além
por bruscos jorros de,labare-
as. A estação vonÚtava uni formidável feixe de faiscas. A
torre aluída
4,a igreja & Santa Catarina começava também a arder. Lívidas
línguas

o corriani-lhe para o topo. Mas o Sol, impassível, estendia a


sua @,'$Iória luminosa sobre as coisas, corno se nada se
tivesse modificado, @O@era quase assustador ver este céu azul
e branco sempre sereno, estas orestas e colinas ao redor
repousarem na suave luz, como se apenas cidade tivesse caído
sob o golpe durna misteriosa condenação.

O 5O9 olhava a cidade. Esquecendo toda a prudência, olhava a


,,ci4ade. Não a conhecia se não através dos arames farpados e
jamais

até ela; mas, ao fim dos seus dez anos de cativeiro, tornara-
@@"-sç para ele mais do que unia simples cidade. Primeiro fora
a im .suportável da,liberdade perdida.

agem quase in @m'cada dia o seu olhar se pousara nela; vira a


sua vida descuidaOa

is

ERICH-MARIA REMARQUE

naquele dia em que, em consequência dum ti-atamento especíal


do chefe do campo, Weber, mal se podia arrastar; olhara as
suas igrejas e as suas casas suspenso da cruz, os braços quase
arrancados; olhara o rio sulcado de barcos brancos quando, com
os rins pisados, urinava sangue; todas estas imagens lhe
haviam queimado os olhos, e uma nova tortura se acitscentara a
todas as outras.

Depois pusera-se a odiá-la. O tempo passava e nada se


modificava nela, Que importava o que acontecia na colina? O
ftiino de cada lar continuava a subir no céu, apesar do fumo
dos fornos crematórios; os seus parques e terrenos de desporto
estavam cheios de alegre agitaçào, enquanto no dancíng do
campo seres encurralados tombavam agonizando; grupos de
estudantes em férias alcançavam, no Verão, alegremente, as
florestas em redor, quando as colunas de presos traziam das
pedreiras os seus feridos e os seus moi-tos; odiara a cidade,
pensando que ela o esquecera para sempre com os seus
conipanheiros.
Por fim, o próprio ódio desaparecera. A li ita por uma côdea
de pão prevalecera sobre qualquer outro pensamento, além de
que ele aprendera que o ódio e as recordações constituem um
perigo tão mortal como o sofrimento. O 5O9 sabia agora
reprimir a memória e a imaginação, não ter outro cuidado que
não fosse o da simples subsistência duma hora para a outra. A
cidade tornara-se-lhe indiferente, e a sua imagem imutável não
era mais do que o vago simbolo que lhe dava.a entender que a
sua sorte era também imutável.

Agora ela ardia. Ele sentiu os braços tremerem. Tentou


dominar-se, mas em vão; tremeu ainda mais. Parecia-lhe que
todas as suas molas se tinham subitamente afrouxado, que a sua
cabeça dolorosa estava vazia corno um tambor, que mãos
invisíveis faziam ressoar.

Fechou os olhos. Era preciso, era indispensável nada deixar


renascer dentro de si. À custa de mil angústias, pisara e
enterrara a esperança. Deixou deslizar os braços no chão e
cobriu o rosto com as mãos. A cidade nada era para si. Era
necessário que ela nada fosse para si. Em necessário
continuar, como antigamente, a oferecer ao Sol, com
indiferença, o pergaminho sujo, esticado à maneira de pele,
sobre o seu crânio; era preciso respirar, matar piolhos e não
pensar, como vinha fazendo há tanto tempo já.

Não podia mais. O tremor não cessava. Estendeu-se de costas.


Por cima do seu rosto estava agora o céu com as pequenas
nuvens da D. C. A. O vento esfiava-as e, rapidamente,
dissipava-as ao longe. Permaneceu uni momento nesta posição,
depressa teve de abandoná-la.
O céu transforiliava-se nuni abismo azul e branco dentro do
qual lhe parecia cair vertiginosamente. Virou-se e sentou-se.
Olhou o campo, olhou-o pela primeira vez corno se dele e
sperasse auxílio.

A CENTELHA DA VIDA

As barracas continuavam a dormir. ao sol, No dancing os quatro


condenados permaneciam suspensos das cruzes. O Scharfuebrer
Breuer desaparecera, mas o fumo do fomo crematório continuava
a subir, apenas menos espesso, ou porque neste momento
queimassem crianças, ou porque tivesse sido dada ordem para
cessar o trabalho.

O 5O9 obrigou-se a penetrar bem neste espectáculo. Era este o


seu universo. As bombas tinhani-no respeitado. Estava sempre
implacavelmente presente. Era o seu único senhor e nada do que
se passava para além dos arames farpados lhe dizia respeito.

Neste momento os canhões da D. C. A. calaram-se. Durante um


instante ele acreditou sair dum sonho. Virou-se dum salto.

Não sonhara, A cidade continuava ali, a arder. Por toda a


parte havia ruínas, e estas tinham um sentido para ele. já não
se podia di@y tinguir o que fora atingido; apenas se viam
chamas e fumo; mas que

importava? A cidade ardia, a cidade que parecia imutável,


imutável e Indestrutível como o campo.

Estremeceu. Pareceu-lhe, de repente, que de cada torre unia


me- .:tralhadora era assestada para ele. Rápido, olhou em
redor., Nada. As, torres continuavam vazias. Nas ruas também
não se via ninguêrn. Mas Isto não o acalmava; um medo furioso
o filara pela gola e o sacudia. Não queria morrer! Agora não!
Agora já, não! À pressa, apanhou a
1@: roupa e arrastou-se para a barraca. Embaraçou-se na capa
de Lebenthal; então, enrolou-a debaixo de si e prosseguiu o
seu caminho, gernendo e praguejando baixinho, excitado,
perdido, como se fugisse ,',tinda doutrá coisa além da morte.

Clé~ do Séc. XX 25 - 2

17

A barraca 22 colupunha-se de duas alas, estando cada uma delas


sob a direcção de um responsável de camarata. Era na segunda
secção da segunda ala que se alojavam os veteranos. Era essa a
parte i-naís estreita e húmida da barraca, o que pouco os
preocupava; só lhes interessava estarem alojados em conjunto.
Cada um ganhava com isso um acréscimo de resistência. A morte
era tão contagiosa como o tifo, e o indivíduo isolado,
queira-o ele ou não, sucumbe facilmente- a um desalento
mortal. Reunidos podiam defender-se melhor. Quando um preso
estava a ponto de abandonar-se, os camaradas ajudavam-no a
vencer o desfalecimento. Se os veteranos do pequeno campo
viviam mais tempo, não era porque comessem melhor; viviam
porque tinham sabido conservar um último fundo de resistência.

Havia nesta alti ira cento e trinta e quatro esqueletos no


canto dos veteranos. O local fora previsto para quarenta
presos. As camas eram de tábuas, sobrepostas quatro a quatro,
nuas ou cobertas de palha podre. Havia algumas coberturas
sujas, que eram objecto de encarniçadas batalhas quando o seu
proprietário morria. Cada um dos catres era partilhado por
três ou quatro presos, pelo menos. Era terrivelmente apertado,
mesmo para esqueletos, porque as espáduas e as ancas nada
perdem da sua largura. Ganhava-se um pouco de espaço dormindo
de lado, mas não era rara a noite em que se ouvia o choque
surdo de um adormecido caindo da cama. Muitos dormiam
acocorados e era uma sorte verem morrer os seus companheiros
de catre durante a noite. Arrastavam-nos para fora e podiam
então estender-se à vontade, pelo menos uma noite, enquanto
não chegavam novos presos.

Os veteranos tinham-se assegurado do canto esquerdo da porta.


Viviam ainda doze. Dois meses antes eram quarenta e quatro. O
Inverno fora mortífero. Todos sabiam que o fim estava próximo:
as rações continuavam a diminuir e, por vezes, passavani-se
uni ou dois dias sem nada que comer; então, os cadáveres
acuinulavani-se lá fora.

Um dos doze era doido e julgava-se cão-pastor. Não tinha


orelhas: haviam sido arrancadas quando o utilizavam no
adestramento dos cães SS. O mais jovem chaniava-se Karel; era
uni rapaz checoslovaco. Os pais estavam mortos; adubavam o
batatal dum honrado camponês de Westlage. Com efeito, as
cinzas provenientes dos fornos cremató-

18

A CENTELHA DA VIDA

s eram vendidas em sacos como adubo artificial. Eram ricas em


sforo e cálcio. Karel trazia o distintivo dos presos
políticos. Tinha anos.
O veterano mais idoso contava 72 anos. Era judeu e defendia
obsadamente a barba, que possuía para ele um valor religioso.
Apesar proibição dos SS, o velho tentara sempre deixá-la
crescer. Valerahe isto, quando estava no campo de trabalho,
ser regularmente atado cavalete e zurzido. No pequeno campo
tinha mais sorte. Os SS preopavam-se menos com o regulamento e
as inspecções eram mais ras; tinham demasiado medo das
piolhos, da disenteria, do tifo e da berculose. O polaco
Julitis Silber alcunhara o velho de Ahasver pore ele
atravessara quase uma dúzia de campos de concentração na
landa, na Polónia, na Áustria e na Alemanha. Silber morrera,
entanto, de tifo e florescia sob a forma duma moita de
primaveras rio
im do comandante Neubauer, a quem as cinzas dos mortos eram

cidas gratuitamente; no entanto, o nome de Ahasver ficara. No


eno campo o rosto do velho encarquilhara-se, mas a barba cera
e tornara-se a floresta natal de várias gerações de robustos
hos.
O responsável de camarata da secção chamara-se; noutros
tempos, Ephra*ini Berger. A sua presença era preciosa contra a
morte, que diava a barraca por todos os lados. Nesse Inverno
as talas que ele ra para os membros fracturados tinham salvo
mais de um eseleto, vítima do gelo. O hospital não admitia
nenhum preso do pe-

no campo: em reservado aos homens capazes de trabalhar e às


,onalidades importantes. Aliás, o gelo, nesse Inverno, fora
menos
1 so no grande campo; durante os dias maus tinham espalhado
ruas cinza proveniente do crematório. Não, decerto, em atenção
s prisioneiros, mas para conservar forças de trabalho
utilizáveis. Era

consideração de certo peso, desde que os campos tinham sido


grados na organização geral do trabalho. É verdade que, em
troca, diga tinha efeitos mortais mais rápidos do que antes.
Mas as prisões rias eram suficientemente numerosas para
compensar as perdas. ,,Berger era um dos raros presos
autorizados a sair do pequeno po. Havia várias semanas que o
faziam trabalhar no necrotério do atório. Os responsáveis da
camarata não eram, habitualmente, itos a uma tarefa, mas, como
os médicos se tomavam raros, tinham ffido a ele. Era uma
vantagem para a barraca; por intermédio do ,do hospital, que
Berger conhecia de longa data, podia com fre-

ia desviar uni pouco de lisol, de algodão, de aspirina e


outros tos para os esqueletos. Possuía também uma garrafa de
iodo, escondera debaixo da palha da sua cama. ontudo, o mais
importante dos veteranos ainda era Léo Leben-

19

ERICH-MARIA REMARQUE

dial. Ele comunicava secretamente com o grande campo e até,


dizia-se, com o exterior, o que lhe peri-nitia dedicar-se a
uni certo comércio. Ninguém sabia exactamente como ele agia.
Sabia-se apenas que duas prostitutas do Morcego, um
estabelecimento situado perto da cidade, faziam parte da sua
rede. Dizia-se mesmo que um SS participava do negócio; no
entanto, nada se sabia de seguro, e Lebenthal nada dizia.

Comerciava com tudo. Graças a ele, podiam obter-se pontas de


cigarro, uma rutabaga, por vezes batatas, detritos
provenientes das cozinhas, um osso, mais raramente um bocado
de pão. Nunca enganava ninguém; sei-via somente de
intermediário. A ideia de acumular às escondidas, só para si,
jamais'lhe ocorrera. Era o comércio que o

mantinha vivo, não a mercadoria.

O 5O9 transpôs a porta, rastejando. Os raios de sol que


tombavam obliquamente atrás dele iluminarani-lhe as orelhas.
Elas sobressaíram uni instante, amarelas como a cera, à
direita e à esquerda da massa sombria da cabeça.

- Eles bombardearam a cidade - disse, sufocado. Ninguém


respondeu. O 5O9 nada via ainda; fazia muito escuro na barraca
depois da luz exterior. Fechou os olhos e abriu-os de novo.

- Eles bombardearam a cidade - repetiu -, não ouvem? Silêncio


outra vez. O 5O9 via agora Ahasver próximo da porta. Estava
sentado no chão e acariciava o cão-pastor. O cão rosnava;
tinha medo 'Os seus olhos espantados brilhavam através dos
cabelos caídos sobre o rosto retalhado de cicatrizes.

- Um temporal - murmurava Ahasver apenas um


temporal. Paz, meu lobo, paz.

O 5O9 penetrou na barraca. Não compreendia esta indiferença.


- Onde está Berger? - perguntou.
- Nos fomos crematórios, corno sempre. Pôs a capa e o casaco
no chão,
- Ninguém quer sair? Olhou Westhof e Bucher. Eles não
respondiam. Por fim, Ahasver disse:

- Bem sabes que é proibido sair durante o alerta.


- O alerta acabou.
- Ainda não.
- Acabou, sim. Os aviões partiram. Bombardearam a cidade.
- Não te chegam as vezes que já disseste isso? - resmungou
alguém na sombra.

Ahasver levantou os olhos.


- Talvez para se vingarem eles fuzilem algumas dezenas de nós.
2O

A CENTELHA DA VIDA

Fuzilar? -Westhof tossicou. - Desde quando é que se fuzila


aqui?

O pastor-aleniào ladrou. Ahasver reteve-o.


- Na Holanda costumam fuzilar dez a vinte presos políticos
depois de cada bombardeaniento aéreo. Para que não alimenten-I
ilusões, izeni.

- Não estamos na Holanda.


- Bem sei. O que eu disse é que na Holanda se fuzila.
- Fuzilar. - Westhof soprou com desprezo. -Julgas-te soldado
ra teres semelhantes pretensões? Aqui é a forca, a morte por
espanfriento.
- Não querem calar o bico? - resmungou de novo a voz na mbra.
O 5O9 acocorou-se perto de Bucher e fechou os olhos.
Distinguia índa o fumo sobre a cidade em fogo e as explosões
surdas.

- Acreditam que teremos comida esta noite? - perguntou asver.


- Com mil diabos! - disse a voz na sombra. - Que pretendes is?
Há pouco querias que te fuzilassem, agora pedes comida.
- Um judeu deve esperar sempre.
- Esperar! Whestof riu, escarnecendo.
- Que tens tu mais para nos oferecer? - perguntou tranquilante
Ahasver. Westhof quis falar, mas rebentou bruscamente em
soluços. Havia ns dias que o mal das barracas não o largava.
O 5O9 abriu os olhos.
- Talvez não nos dêem nada esta noite, para nos castigarem por
sa do bombardeamento - disse.

Raios te partam mais o bombardeamento! - gritou a voz na bra,


- Calas--te ou não?

Algum de vocês tem por aí ainda alguma coisa que se coma? -

guntou Ahasver.

Meu Deus! A esta nova idiotice a voz na sonibra quase se


estrangulou. Ahasver

ligou importância.
- No campo de Theresienstadt, descobrimos um dia que cada uni
,nós tinha uni bocado de chocolate na algibeira sem o saber.
Iimo-lo escondido antes do internamento e esquecêramo--lo.
Ocol ate de leite que vinha dum distribuidor automático. Nas
caixas ia também o retrato de Hindemburgo.

E que mais? - rangeu a voz. - Uni passaporte, não? Não., mas o


chocolate alimentou-nos para dois dias,

21

ERICH-MARIA REMARQUE

- Quem é que grita? - perguntou o 5O9 a Bucher.


- Um dos que entraram ontem. Acabará por se cansar. Ahasver
apurou subitamente o ouvido.
- Acabou.
- O quê?
- Lá fora. Era o último sinal do fim do alerta. De repente
houve um grande silêncio. Depois ouviram-se passos.
- Escondam o cão-pastor - sussurrou Bucher. Ahasver empurrou o
demente para trás das camas.
- Deita-te. Quieto! Havia sido ensinado a obedecer docilmente.
Se os SS o tivessem encontrado, ter-lhe-iam imediatamente
aplicado a injecção reservada aosloucos.

Bucher regressou da porta.


- É Berger.

O Dr. Ephraini Berger era um homenzinho de ombros caídos, que


tinha a cabeça oval completamente calva. As lágrimas
corriam--lhe dos olhos inflamados.

- A cidade arde - disse, enquanto entrava.


O 5O9 endireitou-se.
- Que dizem eles por lá?
- Não sei.

Como? Mas com certeza ouviste qualquer coisa! Não. - respondeu


Berger, com ar fatigado. - Deixaram de queimar os cadáveres
assim que foi dado o alerta.

- Porquê?
- Sei lá! Foi essa a ordem.
- E os SS? Viste-os?
- Não. Berger alcançou o fundo da barraca pelo espaço entre as
camas.
O 5O9 seguiu-o. Esperara Berger para falar com ele é
encontrava-o tão indiferente como os outros. Não compreendia.
- Tu não sais? - perguntou a Bucher.
- Não. Bucher tinha 25 anos e estava no campo há sete. Seu pai
fora redactor dum jornal sociál-democrata. Isto bastara para
que prendessem o filho. "Se ele sair daqui", pensou o 5O9,
"pode viver ainda quarenta anos. Quarenta ou cinquenta. Eu, em
compensação, tenho 5O anos. Restam, diante de inim, dez anos,
o máximo vinte". Tirou um bocado de madeira do bolso e pôs~se
a niastigá-lo. -Por que pensarei eu

nisto?", perguntou a si mesmo.

22

A CENTELHA DA VIDA

Berger regressou.
- 5O9, Lohmann quer falar-te. Lohmann jazia no fundo da
barraca, sobre uma prancha de baixo. Ele é que exigira este
lugar. Estava gravemente atacado de disenteria e não podia já
levantar-se. Pensava ele que assim, era mais decente. Não era
mais decente, mas toda a gente se habituara já. Quase todos,
mais ou menos, tinham diarreia. Lohmann sofria atrozmente.
Agonizava e, a cada cólica, pedia que o desculpasem. O seu
rosto estava tão rivido que dir-se-ia o de um negro esvaziado
de todo o sangue. Agiuva a mão: o 5O9 curvou-se para ele. As
pupilas do doente tinham uni brilho amarelado.

- Vês isto? - murmurou, escancarando a boca.


- O quê? - perguntou o 5O9, exali-tinando o palato azulgçio.
- Ao fundo, à direita, uma coroa de ouro. Lohmann virou a
cabeça na direcção da janela estreita. Um raio de ol incidia
nela e iluminava debilmente este canto da barraca com unia z
rosada.

- Sim - disse o 5O9, embora nada visse.


- Arranca-a.
- Hem?
- Arranca-a! - repetiu Lohmann com impaciência.
O 5O9 virou-se para Berger. Este abanou a cabeça.
- Mas ela está bem presa - disse o 5O9.
- Então, arranquem o dente. Ele está mal seguro, Berger pode
zê-lo. É o que faz constantemente no crematório. Os dois
consegui-

tirá-lo facilmente.
- Por que queres tu que to arranquem? As pálpebras de Lohmann
ergueram 1se e tombaram lentamente.

reciam as pálpebras de uma tartaruga. já não tinha pestanas.


- Sabem bern porquê. É ouro. Podem comprar comida com ele.

nthal fará a troca.


1O 5O9 não respondeu. A troca duma coroa de ouro era uma
empreárriscada. Os dentes e coroas de ouro eram registados à
chegada campo para depois serem arrancados e recolhidos no
crematório. 'os SS verificavam o desaparecimento dum dente ou
duma coroa ritos na lista, toda a barraca era considerada
responsável. Priva- <na de alimento até que ouro fosse
restituído. Se o descobrissem poder de um dos prisioneiros,
este era enforcado.

Arranquelii-ria! - gemia Lohmann. - É fácil. Com unia pinça.


arame seria suficiente.
- Não temos pinça.
- Então um arame, torçam uni arame a jeito.
- Também não temos arame.

23

ERICH-MARIA REMARQUE

Os olhos de Lohmann tornaram a fechar-se. Estava esgotado. Os


seus lábios agitavani-se, mas não se ouvia qualquer palavra.
No corpo imóvel e achatado só havia o estremecimento dos
lábios negros e

secos, ligeira palpitação de vida que o silêncio já


petrificava.

O 5O9 ergueu-se e olhou Berger. Lohmann não podia ver-lhes os

rostos, ocultos pelos catres superiores.

- Como está ele?


- Demasiado tarde. Não há nada a fazer.
O 5O9 baixou a cabeça. Tantas vezes vira já isto que se
tornara quase insensível. Um raio oblíquo caía sobre cinco
presos, agachados como magros macacos na prancha de cima.

- Demorará muito a esticar? - perguntou um deles, bocejando e


coçando o sovaco.

- Porquê?
- Ficaremos com a cama dele, Kaiser e eu.
- Não te incomodes, será tua.
O 5O9 examinou um instante o raio dourado, que parecia
estranho à atmosfera fétida. A pele do homem que acabara de
falar assemelhava-se à de um leopardo: estava coberta de
manchas negras. O prisioneiro pÔs--se a comer palha podre.
Algumas camas mais longe, dois homens discutiam; ouviam-se as
suas vozes agudas, as pancadas débeis que trocavam.

O 5O9 sentiu um ligeiro puxão na calça. Era Lohmann,


inclinou-se de novo para ele.

- Arranquem-na! - murinurava
O 5O9 sentou-se na borda do catre.
- Não poderíamos trocá@la. Seria demasiado perigoso. Ninguém
se arriscaria.

A boca de Lohmann tremia.


- É preciso que não vá para eles - articulou com dificuldade.
-

Para eles, não. Comprei-a por vinte cinco marcos, em 1929.


Para eles, não. Arranquein-na!

De súbito torceu-se, geniendo. A pele do rosto só em volta dos


olhos e da boca se contraiu; fora daí a dor não encontrava
nenhum músculo para manifestar-se.

Uni instante mais tarde a crispação desapareceu. Um suspiro


doloroso escapou-lhe do peito.

- Não te apoquentes - disse-lhe Berger. - Ainda temos alguma


água. Limpa-se isso; não tem importância.

Por um momento Lolimann ficou silencioso. -- Pronietani-me que


a arrancarão antes que eles venham buscar-me. Vocês poderão
fazê-lo. -

24

A CENTELHA DA VIDA

Está bem - disse o 5O9. - Ela não foi registada quando tu


cheaste?

- Não. Prometem? Está assente?


- Está prometido. Os olhos de Lohmann velarani-se. Parecia
mais calmo.
- Que foi isso há bocado lá fora?
- Uni bonibardeamento - disse Berger. - Bombardearam a dade
pela primeira vez. Aviões americanos.

- Oh!
- Sim - disse Berger numa voz grave e dura. - Eles
aproxiani-se. Vais ser vingado, Lohniann.

O 5O9 levantou bruscamente os olhos. Berger e 'stava de pé,


não lhe dia ver o rosto. Apenas lhe via as mãos. Elas
abriam-se e fecham-se como para apertar uma invisível
garganta, soltá-la, apertá-la novo, Lohmann já não se mexia.
Fechara os olhos e mal respirava. O 5O9 o sabia se ele ainda
pudera ouvir as palavras de Berger. Levantou-se. -já morreu? -
perguntou o prisioneiro do catre s@uperior, contirido a
coçar-se. Os outros quatro estavam acocorados perto dele

autómatos. Tinham os olhos vazios.


- Não.
O 5O9 voltou-se para Berger:
- Por que lhe disseste aquilo?
- Porquê? i,O rosto de Berger estremeceu.

- Porque... Não compreendes? A luz nimbava de rosa o seu


crânio oval. Dir-se-ia que dele se esca-

vapor na atmosfera espessa e enipestada. Os seus olhos brilha~


de lágrimas, mas eram causadas por aquela inflamação crónica.
9 era perfeitamente capaz de imaginar porque dissera Berger
ilo. Mas seria consolação para um nioribundo sabê-lo? Ou não

antes unia causa suplementar de desespero? Viu uma mosca sar


no olho cor de ardósia de uni dos autómatos. As pálpebras não

Jalvez seja, mesmo assim, unia consolaçã,o", pensou o


1 @ffi ('/:1 única consolação para uni homein que está próximo
da rk, -

Bei Igei \ oltou-se e afastou-se pelo estreito corredor da


barraca, %,iii<k) 1,,)r cima dos corpos estendidos no chão.
Parecia um niaii @iii:i\,,-sando um pântano. O 5O9 seguiu-o.
Beig(-i p.irou. O 5O9, de súbito, perdera o fôlego.

1'ii i(-!-editas, realmente?


1,1! 11 Lê?
25

ERICH-MÁRIA REMARQUE

O 5O9 não podia resolver-se a repetir a pergunta. As palavras


assustavam-no.

- No que disseste agora ao Lohmann. Berger olhou-o


- Não - disse.
- Não?
- Não, não acredito.
- Mas... então...
O 5O9 apoiou-se a um dos prumos da cama mais próxima.
- Por que disseste então aquilo?
- Por causa do Lohmann. Mas eu não acredito. Ninguém será
vingado, ninguém, ninguém, ninguém,.

- Mas a cidade? Mas a cidade arde!


- A cidade arde. Muitas cidades arderam já. Isso não significa
nada, absolutamente nada.

- No entanto, isso deve...


- Nada, absolutamente nada! - murmurava Berger violentamente,
com o furor dum homem que, tendo entrevisto unia esperança
incrível, imediatamente a enterrou.

O crânio esbranquiçado balançava-se e as lágrimas corriam das


órbitas avermelhadas.

- Unia cidadezita arde. Que temos nós com isso? Nada. Nada vai
mudar. Nada.

A voz de Ahasver subiu do chão:


- Eles vão fuzilar alguns.
- Calem-se! - gritaram da sombra. - Quando é que vocês calam
essas bocas sujas?

O 5O9 estava agachado contra a parede, no seu lugar habitual.


Por cima da sua cabeça havia uma das poucas janelas da
barraca. Era estreita, colocada muito alto mas um pouco de sol
brilhava nela nesse momento. A luz chegava até ao terceiro vão
das camas. Para além,a obscuridade era permanente.

Havia apenas um ano que a barraca fora erguida. O 5O9, que


fazia então palie do campo de trabalho, participara na sua
instalação. Era uma velha barraca proveniente dum campo de
concentração polaco que fora levantado. Viera desmontada, com
mais três, até à estação da cidade. Tinhani-nas carregado em
camiões para transportá-las para o campo. Cheiravam já a
percevejos, a medo, a porcaria e

a morte. Assim nascera o pequeno campo. Os primeiros presos,


incapazes de trabálhar que tinhan-i chegado do Oeste, foram
ali encerrados e abandonados a si mesmos. Quatro dias mais
tarde já fora

26

A CENTELHA DA VIDA

@ossível retirar cadáveres. Continuou-se depois a relegar para


ali os sos doentes, esgotados ou incapazes de qualquer
trabalho, e o peeno campo tornou-se uma instituição
permanente.
O Sol projectava um rectângulo luminoso no tabique à direita
da nela. Podiam decifrar-se inscrições semiapagadas. Eram
nomes e ulavras traçados a lápis ou gravados na madeira, por
meio dum prego Z U dum arame, pelos antigos prisioneiros da
Polónia ou da Alemanha

iental que tinham ocupado a barraca.


O 5O9 sabia de cor um bom número delas. Sabia que nesse

a ponta do rectângulo fazia sair da sombra um nome eno por um


traço profundo: Chaím Wb@f, 1941. Chaira Wolf crevera
provavelmente o seu nome antes de morrer e havia-o cado de um
sulco para que nenhum outro nome da sua família esse
juntar-se-lhe. Quisera dar à sua inscrição um carácter defini-

quisera ser e permanecer sozinho. Chaim Woy, 1941, depois o


uadro apertado daquele traço fundo, para que nenhum outro nome
udesse acrescentar-se àquele - última esconjuração da sorte
por um

i que esperava que os seus filhos fossem salvos. Mas por


debaixo, ados apertadamente a esta primeira inscrição, liam-se
dois outros

es: Ruben Wolf e MÔ4cbe Wo@r O primeiro, anguloso, desajei- ,


numa caligrafia de escolar, o segundo, caído, arredondado,
andonado, sem força. Uma outra mão escrevera à frente.- todos

dos. Por baixo, encimando um nó da madeira do tabique haviam


grado com um prego: Jos. Mejer. Ao lado: T d. R. F.K 1 e 2
Isto queria er Joseph Meyer, tenente da reserva, cruz de ferro
@ de LA e classes. Aparentemente, Meyer não pudera esquecer a
distinção. e pensamento devia ter envenenado os seus últimos
dias. Durante primeira guerra mundial estivera na frente; fora
promovido a oficial condecorado. Como judeu, tivera de fazer,
para o conseguir, duas zes mais do que outro. Mais tarde,
também porque era judeu, ti-

ni-no prendido e suprimido como uni percevejo. Convencera-se,


erto, de que os seus méritos de soldado tornavam a injustiça
de que vítima, mais insuportável do que para qualquer outro.
Engana-e. A sua morte foi por isso mais amarga. A injustiça
não estava nas tras que acrescentara ao nome. Elas apenas
juntavam uma ironia sdenhosa. o rectângulo luminoso deslizava
lentamente. Chaím, Ruben e ikcbe Wo!f'desapareciam de novo na
sombra. Em compensação, as novas inscrições entravam na zona
de luz. -Uma coi-npunha--se enas de duas letras: F. M. Aquele
que as traçara com um prego fora is sóbrio do que o tenente
Meyer. O seu próprio nome lhe tinha sido iferente; contudo,
não quisera desaparecer sem deixar um sinal da

27

ERICH-MARIA REMARQUE

sua passagem. Mas por baixo aparecia novamente um nome


completo. Lia-se, escrito a lápis: Tevje, Leibescb e os seus.
Ao lado, em caracteres menos vincados, as primeiras palavras
da oração judaica do Kaddi: "Yis gadal ... "

O 5O9 sabia que daí a alguns minutos a luz atingiria uma outra
inscriçào quase apagada: Escrevam a Leab Sand- Nova lorque ...
já não era possível decifrar o nome da rua. Havia em seguida:
paí ... e depois dum espaço apodrecido da madeira ... morto.
Procurem Léo. Léo devia ter desaparecido. Mas a inscrição de
nada serviria. Nem um sequer dos presos do campo pudera
prevenir Leah Sanders, de Nova Iorque. Ninguém saíra vivo
dali. O 5O9 olhava o tabique com um ar ausente.
O polaco Silber quando ali estivera, com os seus intestinos
sangrando, chamara@lhe o "Muro das Lamentaçóes". Também ele
conhecia de cor a maior parte das inscrições; ao princípio
chegava a fazer apostas sobre qual a primeira a ser atingida
pelo raio de sol. Morrera pouco depois, mas os nomes
continuaram todos os dias a acordar por alguns n-únutos para
unia vida espectral, para logo recaírem na obscuridade. No
Verão, quando o Sol subia mais alto no céu, apareciam outras
inscrições traçadas mais abaixo no tabique, e, no Inverno, o
rectângulo varria o alto da parede. Mas havia muitas, russas,
polacas, yddishes, que permaneciam eternamente invisíveis
porque a luz nunca as alcançava. A barraca fora levantada tão
rapidamente que os SS não tinham curado de mandar aplainar os
tabiques. Os presos ainda menos se importavam. Ninguém tentava
decifrar as inscrições das partes sombrias do tabique. Quem
teria tido a loucura de sacrificar um fósforo precioso para
aumentar o seu desespero?

O 5O9 desviou a cabeça: não era o momento de olhar. Sentia-se,


de súbito, esquisitamente só, como se os outros se tivessem
tomado estranhos para ele e não pudessem já compreendê-lo...
Hesitou ainda um instante; por fim, não pÔde resistir. Avançou
às apalpadelas para a porta e esgueirou-se para fora.
1

Como estava coberto apenas com os seus farrapos, sentiu


imediatamente frio. Cá fora endireitou-se e, apoiado à parede
da barraca, olhou a cidade. Sem saber bem porquê, não queria
rastejar como há pouco; queria estar de pé. Os serventes das
torres deste lado do campo ainda não tinham regressado. A
vigilância do pequeno campo nunca fora, de resto, rigorosa;
quem mal podia arrastar-se menos poderia evadir-se.

O 5O9 encontrava-se no ângulo direito da barraca. O campo


descrevia uma curva que correspondia à linha das cumeadas;
dali via-se, portanto, não só a cidade mas também as casernas
das tropas SS, que se erguiam do lado de fora dos arames
farpados, atrás dunia fiada de árvores ainda desguarnecidas de
folhas. Vários SS corriam dum lado

28

A CENTELHA bA VIDA

(,doutro. Outros formavam grupos agitados e olhavam a cidade.


Um ente automóvel cinzento subia rapidamente a encosta. Parou
em te da residência do comandante, situada um pouco à parte
das ernas. Neubauer esperava-o cá fora. Subiu logo e o carro
partiu a

a velocidade. O 5O9 sabia que o comandante tinha na cidade


unia onde a família habitava. Seguiu com atenção as manobras
do o. Absorto, não ouviu que alguém se aproximava com cuidado

caminho central ao longo das barracas. Era o responsável de da


barraca 22, Handke, um homem atarracado, que farejava por a
parte em passos macios. Trazia o triângulo verde dos presos de
to comum e fora condenado por assassinato. A maior parte do

era inofensivo, mas quando tinha uma crise, acontecia-lhe s


vezes estropiar as sua vítimas. Aproximou-se vagarosamente. O
5O9 poderia ainda ter tentado

o quando o viu o medo que inspirava satisfazia a ingénua


ar- .ncia de Handke mas não o fez. Não se mexeu. Que fazes
tu aí? Nada. Nada, hem? - Handke escarrou aos pés do 5O9. -
Sujo bichorita. Estás com uns lindos sonhos, herri? - As
sobrancelhas, louro-esbranquiçado, ergueram-se. - Não te
ponhas a imaginar as. Vocês, seus cães políticos, não sairão
daqui. Antes disso, páso todos pela chaminé. Escarrou outra
vez e foi-se embora. O 5O9 retivera a respiração. dke não
podia suportá-lo e, habitualmente, o 5O9 evitavá-O.

vez ficara. Observou-o até que ele desapareceu atrás das Ias.
A ameaça não o amedrontava. As ameaças eram o pão quotíno do
campo. Apenas pensava no que ela encobria. Tarribém ndke
sentira que alguma coisa mudara. Se assim não fosse, nada te-

ito, Talvez tivesse ouvido mesmo qualquer coisa entre os SS. O


oltou-se. Não era, pois, tão louco como isso. Olhou de novo a
cidade. O fumo acurnulava-se agora por cima dos hados. O sinal
agudo dos bombeiros subiu no ar. Detonações irrelares vinham,
parecia-lhe, da estação como se estivessem munições

plodir. No sopé da montanha o carro do comandante derrapou a


trar numa curva em grande velocidade. Então o rosto do 5O9
crisu-se. Um sorriso, como unia careta, forniou-se-lhe nos
lábios. Riu, , silenciosamente, nervosamente, não sabia quando
rira pela última z, não podia deixar de rir, ria sem nenhum
prazer, ria deitando em

r olhares assustados. Levantou, por fim, um punho débile riu


mais da, até que uma tosse violenta o dobrou para o chão.

29

Mercedes corria no vale. O ObersturmbannfuebrerNeubauer


sentava-se ao lado do motorista. Era uni homem pesado; tinha o
rosto balofo dos bebedores de cerveja. As luvas brancas que
calçavam as suas largas mãos brilhavam ao sol. Ao aperceber-se
disso, tirou-as, -Selma", pensava, "Freya. A casa. " Ninguém
atendera ao telefone.

- Depressa - dizia -, depressa, Alfred, acelera. A partir das


primeiras casas o cheiro do incêndio rodeou--os, tornando-se
mais espesso e acre à medida que avançavam. Encontraram a
primeira cratera na nova praça do mercado. A Caixa Económica
desmoronara-se e ardia. Uma brigada de bombeiros tentava
salvar as casas vizinhas. Mas os jactos de águas pareciam
demasiadamente delgados para serem eficazes. Da cratera
desprendia-se um forte cheiro de enxofre e de ácido. o
estômago de Neubauer contraiu-se.

- Segue pela Hakenstrasse, Alfred. Por aqui nunca mais


chegaremos.

O motorista fez a manobra. O carro descreveu uma larga curva e


meteu-se pelos bairros do sul. Casas rodeadas de pequenos
jardins dormitavam tranquilamente ao sol. O vento vinha do
norte e o ar estava puro. Mas, logo que atravessaram o rio, o
fumo reapareceu, adensando-se nas ruas como um nevoeiro de
Outono.

Neubauer repuxava o bigode, que usava curto, como o do Fübrer.


Antigamente erguia-o, retorcido como o de Guilherme II. "Esta
cãibra do estômago! Selma! Freya!" Todo o seu ventre, o peito,
tudo era estômago.

Foi necessário fazer ainda dois desvios. Da primeira vez foi


um armazém de móveis que tinha sido atingido por uma bomba. A
fachada da casa estava arrancada. Uma parte dos móveis ficara
na vitrina: os1outro$ ardiam na praça, em confusão, no meio da
caliça. Da segunda vez fora por causa da loja dum
cabeleireiro, cujos manequins de cera, di,spersos por toda a
parte, se derretiam grotescamente.

Por fim, o carro virou para a Leibigstrasse. Neubauer


debruçou--se para fora. A casa! O jardinzinho! Sobre a relva
as figurinhas de terra-cota e o cão baixote de porcelana
vermelha. Intactos! Nem um ladrilho faltava. A cãibra que lhe
torcia o estômago desatou-se. Neubauer

3O
A CENTELHA DA VIDA

os degraus e abriu a porta. "Que sorte!-, pensou "Unia sorte


de enda!" No fundo, era natural. Porquê justamente a ele?
Pendurou o capote no cabide de pontas de veado e entrou na
sala ,",,Jantar.

Selma! Freya! Onde estão? Silêncio. Abriu uma janela. No


jardim, atrás da casa, trabalhavam

prisioneiros russos. O aram-no num pi o re ance e pusee a


cavar activamente. Ei! Bolchevistas! .'Um dos russos parou.
Onde está a minha família? - perguntou Neubauer.
O homem respondeu qualquer coisa em russo. k, Não podes deixar
a tua língua de porco, idiota? Sabes alemão

que vá ensinar-to? russo olhava-c, fixamente. A senhora está


na cave - disse alguém atrás de Neubauer. kOe voltou-se. Era a
criada de quarto.

Na cave? Evidentemente. E você, onde estava? Na rua. Saí só há


um instante. estava diante da porta, o rosto um pouco corado,
os olhos bris, como se tivesse vindo duma boda. Dizem que já
há cem mortos - declarou - na estação, na fáde cobre, na
igreja. Silêncio! - gritou Neubauer. - Quem disse isso?
Pessoas, lá fora... Quem? - ele avancou um passo. - Manejos
antinaciomlistas!
4,ém disse isso? t,@,A rapariga recuou. J@@m- Na rua... eu
não... pessoas... toda a gente...

Traidores! Canalhas! - Neubauer esbravejava. Podia enfim, dar


'>b ao seu nervosismo. - Sujos! Porcos! Chorões!, E você? Que
fazia @, "W a? P-1 Eu? Nada.
2.--- Abandono do sei-viço, hem? Divulgação de mentiras e de
atroci- >es? Tiraremos isso a limpo! Tomar-se-ão providências!
Toinar-se- ?qui medidas dunia severidade teirivel! Em frente,
marche, para

zinhal w ávA rapariga fugiu. Neul-)auer resfolegou e fechou a


janela. "Nada de

sou. "E na cave que elas estão, evidentemente. Deveria tê-lo


en ado logo." @irou um charuto e acendeu-o. Alisou o dóloian,
arqueou o torso, u uni olhar ao espelho e desceu.
31

ERICH-MARIA REMARQUE

A mulher e a filha estavam apertadas uma contra a outra num


divã encostado à parede. Por cima delas pendia um retrato
colorido do Fü~.

A cave fora transformada em abrigo antes da guerra. Tinha


pilares de aço, uma cobertura de betào e paredes maciças. Fora
por razões de puro prestígio que Neubauer mandara executar
esses trabalhos, uma vez que o patriotismo exigia que se desse
o bom exemplo. Ninguém pensara seriamente de que a Alemanha
pudesse um dia ser bombardeada. A declaração do marechal
Goering de que quereria passar a chamar-se Meier no dia em que
os aviões inimigos chegassem à Alemanha, apesar da Luftwaffe,
era suficiente garantia para todo o bom alemão. Infelizmente,
acontecera coisa diferente. Um belo exemplo da-perfidia dos
plutocratas e dos judeus: fazereni-se passar por mais fracos
do que na realidade eram.

- Bruno! Selma Neubauer levantou-se, desfazendo-se em


lágrimas. Era loura e gorda e trazia um roupão de seda
francesa, de cor de salmão, com uma cercadura de renda.
Neubauer trouxera-lho de Paris, onde estivera de licença em
1941. As suas faces tremiam e a sua boca, pequena de mais, não
conseguia articular as palavras.

Acabou-se, Selma. Acalma-te. Acabou? Ela falava como se


mastigasse em seco.
- Por quanto... quanto tempo?
- Para sempre. Eles partiram. o ataque falhou. Não voltarão
mais. Selma Neubauer cingia o roupão sobre o peito.
- Quem o disse, Bruno? Donde o sabes tu?
- Abatemos, pelo menos, metade. Não se arriscarão mais.
- Como sabes?
- Sei. Desta vez apanharani-nos de -surpresa. Na próxima vez
estaremos prevenidos.

A mulher deixou de mastigar no vácuo. . É tudo? - perguntou


ela. - É tudo o que tens para nos dizer? Neubauer sabia que
não tinha nada a dizer.
- Isto não te chega? - perguntou com brusquidão. A mulher
fitou-o. Os seus olhos azui-claros estavam embaciados de
lágrimas.

- N@ão! - gritou de súbito. - Não me chega! Isso são baleias!


Não significam absolutamente nada! Que é que não nos disseram
ainda? Começaram por afinnar que éramos tão fortes que nunca
uni avião inimigo alcançaria a Alemanha e um belo dia ei-los
que chegam. Depois di;serani-n'o's que não voltariam mais
porque seriam todos abatidos nas fronteiras, e em vez disso
eles chegam dez vezes mais numerosos

32

A CENTELHA DA VIDA

s alertas sucedem-se sem descanso. Agora vieram procurar-nos


i, e tu fazes-te importante, declaras tranquilarnente que não
se ar-

arão outra vez, que nós os liquidaremos. Acharias razoável que


te ditassem?
- Selma! @Neubauer deitou um olhar involuntário para o retrato
do Fübrer.

is precipitou-se para a porta, para fechá-la.


- Com mil diabos, domina-te! Queres perder-nos a todos, não?
oideceste, para gritares dessa maneira? Estava perto dela. Por
cima das gordas espáduas de Selma o Fübrer

altivamente o campo de Berchtesgaden. Neubauer não estava e de


acreditar que ele ouvira ti-ido. Mas Selma não via o Fübrer.

Doida? - soluçava. - Quem é aqui o doido? Eu não. Tínhamos ida


maravilhosa antes da guerra, e agora? Agora? Queria saber m é
o doido aqui! eul:)auer agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a tão
rudemente que ,beça dela tombava para todos os lados e os
gritos cessaram. O èado desfez-se, alguns ganchos caíram, ela
sufocou e começou sir. Ele largou-a. Selma deixou-se cair no
divã.

E tu, que tens tu? - perguntou Neubauer à filha. Nada. A mamã


está muito impressionada, nada mais.@ Porquê? Nada se passou.
Nada se passou? - recomeçou a mulher. - Para ti, lá em cima,
há dúvida. Mas nós... aqui sozinhas! @- Basta! Com mil diabos!
Não grites tão alto. Pensas que trabalhei o um negro durante
quinze anos para que destruas tudo, num ento, com os teus
gritos? julgas que não há muitos que esperam me o meu posto?
4.- Era o nosso primeiro bombardeamento, papá - disse Freya,
qx,,Íl.i--lienle - Até aqui só tivemos alertas. A mamã acabará
por
O pi iiii(-iro? Sem dúvida, o primeiro. Deverianios
regozijár-nos
11,1WA lio- ier acontecido ainda, em vez de gritarmos tolices!

está nervosa, mas acabará por habituar-se. , -Acalmada filha


irritava Neubauer. -Queméque está nervoso? É preciso
sabermo-nos dominar. Que aconteceria isso?

A mesma coisa! mulher ria. Estava deitada no sofá, com as


pesadas pernas afasta-' inha nos pés umas pantufas de seda
cor-de-rosa. Achava a seda cor-de-rosa muito elegantes.
- Nervoso! Flabituarmo-nos! Tens uma grande lábia!

cos do Sé. XX 25-3

33

ERICH-MÁRIA REMARQUE

- Eu? Que queres dizer?


- O quê?
- A ti nada acontece.
- A ti nada pode acontecer, mas nós estamos apanhadas na
amiadilha.

- Isso é pura loucura. Estamos todos no mesmo ponto. Como


queres tu que nada me possa acontecer?

- Tu estás em segurança lá em cima no campo.


- O quê? - Neubauer atirou o charuto ao chão e pisou-o. - Nós
não temos abrigos como os vossos.

Era falso.
- Porque não têm necessidade deles. Estão fora da cidade.
- Como se isso importasse! Quando unia bomba cai, cai mesmo.
- O campo nunca será bombardeado.
- Sim? Grande novidade essa. Como soubeste tu isso? Os
americanos mandarani-te um boletim de informação? Ou
prevenirani-te pela rádio?

Neubauervoltou-se para a filha, esperando uma aprovação ao seu

gracejo. Mas Freya brincava silenciosamente com a franja do


pano que cobria a mesa de cabeceira do divã. Foi a mulher quem
respondeu:

- Eles não vão bombardear os seus próprios homens!


- Tolice! Não temos um americano sequer no campo! Nem um
inglês. Nada mais do que russos, polacos e a gentalha dos
Balcãs. E também traidores alemães, judeus, assassinos.

- Eles não vão bombardear russos, polacos nem judeus


--declarou Selma, obstinada.

Neubauer virou-se, irritado.


- Estás muito bem informada - disse com um furor contido. -

Mas eu vou dizer-te unia coisa. Eles não sabem que gênero de
campo é aquele, compreendes? Vêem apenas barracas que podem
perfeitamente tomar por barracas militares. Vêem casernas; as
nossas casernas SS. Vêem edificiosonde trabalham os nossos
presos. Para eles são fábricas, portanto objectivos militares.
Lá em cima é cem vezes mais perigoso do que aqui. É por isso
que eu não quis que habitassem lá. Aqui não há casernas nem
fábricas. Compreendeste, enfim?

- Não! Neubauer observou a mulher. Selma nunca procedera


assim. Ele perguntava a si mesmo o que motivara isto. O medo,
só por si, não explicava tudo, Neubauer sentiu-se, de súbito,
abandonado pela família, no momento exacto em que era mais
necessário ajudareni-se mutuamente. Virou-se, mal humorado,
para a filha.

- E tu, que pensas? Por que não abres a boca?

34

A CENTELHA DA VIDA

"Freya Neubauer levantou-se. Tinha 2O anos, um rosto um pouco


ido, a testa arqueada, e não se assemelhava nem ao pai nem à
mãe.
- Creio que a mamã se acalmou agora,
- O quê? Como é isso?
- Creio que ela se acalmou. Neubauer calou-se por uni
instante. Esperava que a mulher dise alguma coisa.

Bem - disse ele. Podemos subir? - perguntou Freya. Neubauer


deitou uni olhar desconfiado a Selma. Não tinha grande . nça.
Era preciso persuadi-Ia a não falar a ninguém. Mesmo à da de
quarto. A filha antecipou-se.
- Lá em cima isto irá melhor. Teremos ar. Me continuava
indeciso. "Está ali caída como uni saco de farinha", @ou. "Por
que não se decide ela a dizer qualquer coisa de razoável?"
Tenho de ir à administração às seis horas. Dietz convocou-nos.
s de estudar a situação. Não há perigo, papá. Tudo está em
ordem. Vamos preparar o

Vamos então. ,Neubauer decidira-se. Pelo menos, a filha não


perdera a cabeça. ia ">wai coin ela. Era da sua carne e do seu
sangue. Aproximou-se

-- \a[iiO% esquecer esta questão, Selma, hem? Sãocoisas que


acon- ...m \() Imido não têm importância. Ciffiava :i.
sorrindo friamente. --- 1 repetiu. Deti Ilit-
p,iiicadinhas nos gordos ombros.

agora e fazer o jantar. E tu vais preparar-nos qualr coi-%a


bo;i para fazer passar o medo, hem? 'l:i <oi-u,

->r(lou, com indiferença.


1,--lá belil @-iu que a crise passara. A filha tinha razão.
Selma não ia iii:ii-, !@,kiiL,,,jras. --- Al ]:i i @iç
"!i!,,Iualquer coisa boa, tudo, minha Selmazinha, é óptimo ]e
1(111! om uma cave segura, em lugar deviverem lá em cima,

daqueles vadios sujos. E, depois, eu passo várias ile-: 1>,>j


-,ciii.ina junto de vocês. Assim é que está bem. Temos de
s;igid:ii iiii,:ios outros. Façam um petisco para o jantar.
Confio em -ê@ l' Jk"p-i@, sirvam também unia garrafa de
espumante francês, I.,1 K,iii, \in&t temos bastantes, hem?
.pondeu a mulher -, ainda temos bastantes.

35

ERICH-MARIA REMARQUE

Uni último ponto - declarou a voz cortante do Gruppenfuehrer


Dietz. - Ouvi dizer que alguns dos senhores manifestaram a
intenção de enviar as famílias para os campos. Que há de
verdade nisto?

Ninguém respondeu.
- Não o consentirei. Nós, os oficiais SS, tenios o dever de
dar o

exemplo. Se as nossas famílias deixam a cidade antes que seja


dada ordem de evacuação geral, os comentários não faltarão. Os
nialedicentes aproveitarão o ensejo. Exijo, por consequência,
que nada deste gênero aconteça sem meu conhecimento.
Delgado e esbelto no seu uniforme bem talhado fitava o grupo
de oficiais. Cada um deles suportava-lhe o olhar com um ar
resoluto e inocente. Quase todos tinham pensado em afastar a
família, mas nem um olhar sequer traía este pensamento. Cada
uni dizia consigo mesmo que Dietz podia falar como falava. A
sua família não estava na cidade. Ele provinha do Saxe e a sua
única preocupação era assemelhar-se a um oficial da Guarda
Prussíana. Assim era fácil. Executa-se sempre com a maior
coragem o que nada custa.

- Meus senhores, concluí - acrescentou Dietz. - E lembrem-se:


as nossas últimas armas secretas estão sendo produzidas, desde
já, em grande escala. As V1 nada são ainda, por maior que seja
a sua eficácia. Londres está em cinzas. A Inglaterra é
bombardeada sem descanso, os arranha-céus de Nova lorque estão
arrasados. Ocupamos os principais portos franceses. O avanço
do exército de invasão choca com as piores dificuldades. A
contra-ofensiva vai atirar o inimigo ao mar. Ela é iminente.
Reunimos reservas consideráveis, Quanto às nossas novas
armas... não posso dizer-lhes mais, rnas sei, de fonte segura,
que a vitória será nossa dentro de três meses. Basta aguentar.

Estendeu o braço.
- Ao trabalho! HeilHífler!
- Heil HítIer! - gritaram os oficiais. Neubauer deixou a
administração. "Ele nada disse da Rússia", pensou. "Nem do
Reno. Do Muro do Oeste, que foi arronibado, nada também.
Aguentar. Ele pode falar. Nada possui. É um fanático. Vê-se
bem que não tem uma loja perto da estação. Não é accionista do
Diário deMellen. Não tem um palmo de terra. Eu tenho tudo
isto. E se me pulverizam o que tenho, que me darão em troca?"

Forniou-se rapidamente um ajuntamento. O largo da


administração estava negro de gente. instalava-se um microfone
no patamar da escadaria. Dietz ia falar. Do alto da fachada,
os rostos de pedra de Caflos Magno e de Henrique, o Leão,
inclinavam para a multidão um sorriso impassível. Neubauer
subiu para o seu Mercedes,

- Para a Herniann Goeringstrasse, Alfred.


O imóvel de Neubauer estava situado na esquina da
Goefingstrasse

36

A CENTELHA DA VIDA
Friedrichsallee. Era uni grande edificio, do qual o
rés-do-chão :>cupado por unia loja de confecções e os dois
andares superio-

r escritórios. ubauer desceu do carro e deu a volta ao prédio.


Se não tivessem o duas vitrinas, tudo estaria intacto.
Levantou os olhos para os rios; o fumo da estação rodeava-os,
mas nada ardia. Talvez sse também ali alguns vidros pai-tidos,
mas seria tudo. emorou-se um instante. "Duzentos mil marcos",
pensou. A casa pelo menos isto e talvez valesse mais. Pagara-a
por cinco mil ,os. Em 1933 pertencia ao judeu Max Blank. Este
exigira, primeiro, mil marcos, geniendo que por esse preço já
perdia bastante e que baixaria. Depois de quinze dias de campo
de concentração cedepor cinco mil marcos. "E ainda fui
honesto", pensou Neubauer. eria tê-la tido de graça, Blank
ter-nia-ia dado de presente depois .assar pelas mãos dos SS.
Dei-lhe cinco mil marcos. Em bom dio. Não a pronto, claro;
estava longe de ter aquela importância. paguei quando os
primeiros prazos se venceram. Blank estava de

o. Uma venda em boa e devida forma. Livremente consentida.


escritura no notário. Se Max Blank dera, no campo, de
concentrauma queda desastrosa que lhe custou uni olho, um
braço partido tusões, fora por mera pouca sorte. Os que têm os
pés chatos caem

nte". Neubauer nada vira, nem, aliás, lá estava, Não dera


qualordem. Mandara pôr Blank ao abrigo para que alguns SS
dernazelosos não lhe fizessem mal. Quanto ao resto, era da
conta de r. oltou-se. Por que diabo ia pensar nesta velha
história? Que é que ocupava? Há muito tempo que estava
esquecida. Era preciso Se não tivesse comprado a casa, outro
membro do Partido a aria a si. Por menos dinheiro. Por nada
até. Ele agira legalmente. rido a lei. O próprio Fübrerdissera
que os seus fiéis deviam ser mpensados. E que era esta
bagatela que lhe calhara a ele, muer, em comparaçao com o que
haviam apanhado os grandes? .ng, por exemplo, ou Springer, o
Gauleiter, esse antigo porteiro otel que se tomara milionário?
Neubauer nada roubara. Conten-

e em comprar barato. Estava defendido. Tinha os recibos. Tudo


registado oficialmente. ma labareda derramou-se na estação.
Depois foi uma série de exes. Provavelmente um vagão de
munições. Reflexos vermelhos rreran-i a casa. Dir-se-ia que
ela suava sangue. "Tolice", pensou auer. "Realmente estou um
pouco nervoso. Os notários judeus @e foram buscar lá acima
estão esquecidos há muito tempo." Subiu o carro. Ali, tão
perto da estação, admiravelmente bem situada

37

ERICH-MÁRIA REMARQUE

para o comércio mas perigosa como diabo em caso de


bombardeamento, havia motivo para estar um pouco nervoso.

- Para a Grossenstrasse, Alfred.


O imóvel do Didi@o de Mellen estava absolutamente intacto.
Neubauer soubera-o já pelo telefone. Lançava-se uma edição
especial. Os primeiros exemplares eram disputados. Neubauer
via os fardos desaparecerem. Cada exemplar rendia-lhe um
pfenníg. Novos vendedores chegavam com outros pacotes e
desapareciam em bicicleta. Uma edição especial representava um
lucro suplementar. Cada vendedor levava, pelo,menos, duzentos
exemplares. Neubauer contou dezassete vendedores. Logo, trinta
e quatro marcos ganhos. O bombardearnento tinha, pelo menos,
este lado bom. Com isto poderia pagar uma parte das vitrinas
destruídas. Tolice... elas estavam no seguro. Sim, se o seguro
pagasse. Se o seguro pudesse pagar com todos estes prejuízos.
O_seguro pagaria! Pelo menos a ele, Neubauer. Os trinta e
quatro marcos eram lucro puro.

Comprou um jornal. Um breve apelo de Dietz aparecia já.


Trabalho rápido. Depois, a notícia de que dois aviões tinham
sido abatidos sobre a cidade, a metade dos outros sobre
Minden, Osnabruck e Hanôver. Um artigo de GoebbeIs sobre a
desumana'barbaria destes bombardeamentos de pacíficas cidades
alemãs. Algumas frases lapidares do Fübrer. A juventude
Hitleriana partira em busca de aviadores que tinham saltado de
pára-quedas. Neubauer atirou fora o jornal e entrou numa
tabacaria.

- Três Guardas Alemãs - pediu.


O lojista apresentou-lhe a caixa. Neubauer serviu-se ao acaso.
Os charutos eram maus. Verdadeiras folhas de árvore. Tinha de
melhor qualidade em casa. Importados de Paris e da Holanda. Se
pedia Guarda Alemã, era porque a loja lhe pertencia. Antes da
subida do Partido ao poder pertencera a uma sociedade de
comerciantes judeus. Caíra então nas mãos do
SturmfuebrerFreiberg, que a conservou até 1936. Uma mina de
ouro. Neubauer cortou, com uma dentada, a ponta dum Guarda
Alemã. Fora por culpa sua que Freiberg se entregara a
murmuraçoes altamente injuriosas para o Führer?Denunciando-o,
não fizera mais do que o seu dever, de membro fiel do Partido.
Pouco depois, Freiberg desapareceu e Neubauer comprou o
negócio à viúva. Prestala-lhe, com isso, um verdadeiro serviço
de amigo. Tinha-a aconselhado vivamente a vender. Segundo
certas informações que lhe haviam chegado, os bens de Freiberg
iam ser requisitados. Ora é mais fácil esconder dinheiro do
que uma loja. Ela niostrou-se reconhecida e vendeu. Pela
quarta parte do valor, naturalmente. Neubauer explicara-lhe
que, de momento, não podia pagar mais, e era necessário
resolver a questão depressa. Ela compreendeu bem. A requisição
nunca se

38

A CENTELHA DA VIDA

eubauer explicou-lhe também porquê. Fizera intervir as suas es


em favor dela. Desta maneira, ela pudera conservar o di- .
Quanto a ele, agira honestamente. Com o dever não se discute m
de que a loja poderia perfeitamente ter sido requisitada. Sem
que a viúva teria sido incapaz de mantê-la. Tê-la-iani expulso
nos dinheiro. ubauer tirou o charuto da boca. Não fumegava.
Unia verdadeira .a. Contudo, as pessoas compravam. Lançavam-se
sobre tudo e podia fumar-se. Era pena que fosse racionado.
Poder-se-ia er dez vezes mais. Deitou um último olhar à loja.
Tivera sorte. partido, Escarrou. Sentira, de repente, uni
gosto desagradável na
O charuto, sem dúvida. Ou o quê, então? Escapara de boa. so?
Por que diabo ia ele pensar em todas essas velhas histórias? u
o charuto fora, enquanto subia para o carro, e deu os outros
ao motorista.

Toma, Alfred, aqui tens unia boa coisa para esta noite. E
agora mar. pomar era o orgulho de Neubauer. Era um vasto
terreno à saída

de, ocupando os legumes e as árvores frutíferas a maior parte;


ainda um jardim e um pátio com criação. Vários prisioneiros

a quem se podia à vontade exigir o máximo de trabalho, avam


tudo em boa ordem. Nada custavam. Eles próprios é que riam
pagar a Neubauer. Em vez de se cansarem doze ou quinze

na fábrica, encontravam ali ar puro e um trabalho fácil.


crepúsculo caía sobre o pomar. O céu estava'claro e a Lua
erguiaa crista das macieiras. A terra revolvida soltava um
cheiro intenso. olo brotavam os primeiros legumes e as árvores
frutíferas já

os seus botões pegajosos e inchados. Unia pequena


cerejeiraapão, que passara o Inverno na estufa, estava já
coberta por unia elina branca e rósea de pétalas timidas. s
russos trabalhavam na vertente oposta do terreno. Neubauer Via
us dorsos negros e curvados e o vulto do homem que os vigiava,
do duma espingarda, cuja baioneta, apontava para o céu. O
regunto exigia um guarda, mas os russos não poderiam fugir.
Onde com o seu uniforme e sem conhecerem a lingua? Dum grande
de papel tiravam cinza do fomo crematório e espalhavam-na nos
s. Ocupavam-se dos canteiros de espargos e de morangos, de
4cubauer era pai ticularniente guloso. Nunca comia quanto
dese-
O saco continha a cinza de sessenta pessoas, doze das quais
ças. a obscuridade fresca e azulada brilhavam as primaveras e
os @iros narcisos, plantados ao longo do muro sul e protegidos
por s de vidro. Neul-)auer baixou-se e fez deslizar uma delas.
Os nar-

39

ERICH-MÁRIA REMARQUE

cisos não deitavam cheiro, mas o ar enibalsamava-se do perfume


da violeta. Havia violetas invisíveis no crepúsculo.

Respirou profundamente. Era o seu pomar. Pagara-o ele mesmo. À


moda antiga, honestamente. Por preço elevado. Não, o tirara a
ninguém. Aqui, sim, estava no seu lugar. No lugar onde tinha o
direito de se tomar hun 'iano, depois de servir duramente a
pátria e acautelar o futuro da família. Profundamente
satisfeito, olhou em redor. Viu o ca-

ramanchão coberto de madressilvas e de roseiras de trepar, a


sebe de buxo, a gruta artificial, viu as moitas de lilazes,
aspirou o ar ainda uni pouco áspero, mas em que já se sentia a
Primavera, passou uma mão enternecida pelos revestimentos de
palha que protegiam os troncos dos pessegueiros e das
pereiras, cujas espadeiras se dispunham em

andares ao longo do muro, e abriu, finalmente, a porta da


pequena casa que abrigava a criação. _ Não foi para as
galinhas, agachadas nos poleiros como velhas comadres, que se
dirigiu, nem para os leitões, que dormiani na palha; foi para
os coelhos.
Eram dois angorás brancos e cinzentos de longo e sedoso pêlo.
Dormiam. Quando acendeu a luz eléctrica, começaram a agitar-se
docemente, Meteu um dedo pela rede para cocar-lhes brandamente
o pêlo. Não havia no mundo nada mais macio. Tirou dum cesto
algumas folhas de couve e rodelas de beterraba e introduziu-as
nas gaiolas. Os coelhos aproximarani-se e puseram-se a roer
delicadamente, lentamente, com o seu pequeno focinho
cor-de-rosa.

- Mucki - murmurou -, vem aqui, Mucki...


O calor dos animais envolvia-o num vago torpor, como um sono
longinquo. O cheiro animal fazia pensar numa inocência
esquecida. Era um pequeno mundo fechado, animado dunia vida
quase vegetativa, muito longe das bombas, das intrigas e da
luta pela existência -

um mundo de folhas de couve, de beterrabas, de pêlos que


crescem e se tosquiam, de animaizinhos que nascem. Neubauer
vendia o leite, mas ali jamais se matava uni animal.

- Mucki - murmurou outra vez. Uni grande macho branco


tomou-lhe delicadamente uma folha da mão. Os seus olhos
rosados brilhavam como claras safiras. Neubauer coçou-lhe a
nuca. As botas rangeram quando se baixou. "Que tinha dito
Selma então? Em segurança? Vocês estão em segurança no campo
de concentração? Quem é que estava em segurança? Quando
estivera ele realmente no campo?"

Empurrou ainda unia folha decouve através das malhas de rede.


"Doze anos", pensou. "Antes da subida do Partido ao Poder eu
era um empregado dos correios e, telégrafos, com duzentos
marcos por mês.

4O

A CENTELHA DA VIDA

isto não podia viver nem morrer. Agora, que tenho alguma
coisa, estou para perder tudo." bservou os olhos rosados do
coelho. Tudo correra bem hoje. O bardeaniento devia ter sido
consequência dum erro. São coisas acontecem com tripulações um
pouco jovens. A cidade não tinha rtância militar; a não ser
assim, já a teriam tentado destruir. bauer sentiu-se
tranquilizado. "Mucki ... ", disse, e pensou: "Em rança? Sim,
com certeza. Quem quereria arruinar-se no últirrio

nto?"
41

IV

aldita cambada de porcos! Repetir a chamada! As brigadas de _M


trabalho do grande campo, imobilizadas em sentido, estavarn
alinhadas dez a dez para a charnada por bloco. A noite caía já
e os presos, nos seus fatos riscados, tinham, na penumbra, o
aspecto dum imenso rebanho de zebras esgotadas de fadiga.

A chamada durava já há mais de uma hora, mas ainda não se


tinha chegado à conta. A causa estava no bombardeamento. As
brigadas que trabalhavam na fábrica de cobre tinham sofrido
perdas. Um bomba explodira na secção e causara um certo número
de mortos e feridos. Por outro lado, os SS encarregados da
vigilância tinham, nos primeiros momentos de pânico, para
evitar evasões, aberto fogo contra os presos que procuravam
abrigar-se. Daí resultara uma meia dúzia de vítimas
suplementares.

Depois do bombardeamento os presos puserani-se à procura dos


seus mortos, ou do que deles restava, no meio dos escombros e
dos niontões de entulho. Isso era fundamental para a chamada.
Por pouca que fosse a importância que os SS davam à vida dum
prisioneiro e por maior que fosse a indiferença com que a
tratavam, era preciso que todos os presos, mortos ou vivos, se
encontrassem na chamada. A burocracia estendia-se até aos
cadáveres.

As brigadas tinham trazido, cuidadosamente, tudo o que haviam


podido encontrar. Uns transportavam um braço, outros pernas
ou, ainda, uma cabeça arrancada. As poucas padiolas que tinha
sido possível reunir foram utilizadas pelos feridos que haviam
perdido um membro ou cujo ventre fora retalhado. Os outros
feridos tinhani-se arrastado, melhor ou pior, auxiliados pelos
camaradas. Não se puderam fazer muitos pensos, porque de quase
nada se dispunha para isso. Com arames e barbantes
jugularam-se a custo as hemorragias. Sobre as padiolas, os
feridos no ventre retinham as entranhas com as próprias mãos.

O cortejo regressara laboriosamente ao campo. Dois feridos que


tinham morrido no caminho foram conduzidos quase de rastos.
Daqui resultara um incidente donde o Schaifuebrer Steinbrenner
saiu sofrivelmente ridicularizado. À entrada do campo, a
orquestra tocara, como de costume, a marcha Fre~cus Rex. A
ordem de passo de pa-
42

A CENTELHA DA VIDA

.tessoara e as brigadas desfilaram diante do chefe de campo


SS, r, e do seu estado-maior, em passo de ganso, a cabeça
virada 'à direita. Os feridos graves, nas suas padiolas,
tinham também vi- 'a cabeça para a direita, tentando, na sua
agonia, uma espécie de o de sentido. 56 os mortos não tinham
saudado. Foi então que renner descobriu, sustentado por dois
camaradas, um homem ixara pender a cabeça para o chão. Não
reparou que os pés dele stavam pela terra; precipitou-se no
meio das fileiras e assestou ado, entre os olhos, uma
coronhada com o revólver. Steinbrenjovem e cheio de ardor; na
sua precipitação supusera que o tinha simplesmente perdido os
sentidos. O choque projectou ça para trás e o maxilar descaiu;
dir-se-ia que a boca sangrenta um último esforço grotesco para
abocar a coronha do revólver. ,riram a bom rir. Steinbrenner
estava furioso; sentira que acabava

er uma parte da consideração que a cura de ácido clorídrico


1 Buchsbaum lhe valera. Prometeu a si mesmo resgatar-se na a
ocasião. regresso da fábrica fora demorado e era já mais tarde
do que o

e quando a chamada começou. Os mortos e os feridos estavam,


sempre, dispostos segundo uma ordem rigorosamente militar,
iras, perto dos grupos de blocos a que pertenciam. Os feridos
não foram transportados ao hospital, nem mesmo pensados. A da
antes de tudo.

Vamos! Repetir! Se desta vez não der o número certo, serão


ajua encontrá-lo! ber, o chefe de campo SS, estava
escarranchado numa cadeira deira que lhe tinham trazido para o
local da chamada. Tinha 35 era de altura média e muito forte.
o rosto, largo e bronzeado, uma cicatriz profunda, que descia
da comissura direita dos lábios ava o queixo. Era a recordação
duma escaramuça de cervejaria membros da Bandeíra do Reích, em
1929. Com os cotovelos dos no espaldar da cadeira, olhava com
tédio os presos, no meio uais SS, responsáveis de blocos e
kapos exasperados corriam em os sentidos, distribuindo
injúrias e pancadas. s responsáveis dos blocos suavam sangue e
água e faziam reçar uma vez mais a contagem. As vozes
elevavam-se monótonas. Uni, dois, três... um os cadáveres
despedaçados que atrapalhavam tudo. Os s tinham reunido o
melhor possível as cabeças, os braços e os os, mas não se
pudera encontrar tudo. Por mais que se fizesse, am dois
homens.

43

ERICH-MARJA REMARQUE

As brigadas disputavam na sombra os restos humanos; sobretudo


as cabeças, bem entendido. Cada bloco queria apresentar-se tão
completo quanto possível, para evitar os castigos severos que
puniam os desaparecimentos. Havia já brigas por causa de
qualquer resto sangrento quando ressoou a ordem "Firmes!". Na
precipitação, os responsáveis de bloco nada tinham podido
reorganizar; o resultado é que faltavam dois corpos. A
bom]-,)a despedaçara-os provavelmente em pequenos bocados e
estes tinham voado por cima das paredes ou juncavam os
telhados da fábrica.

O Rappoi-tfueb;-er apresentou-se a Weber.


- Agora só falta um homem e meio. Os russos tinham três pernas
para um só homem e os polacos um braço a mais.

Weber bocejou.
- Mande fazer a chamada nominal, para saber quem falta. Um
movimento quase imperceptível percorreu as filas dos
prisioneiros. A chamada por nomes significava uma espera
suplementar de, pelo menos, uma ou duas horas - com os russos
e os polacos, que não compreendiam o alemão, havia erros
constantes.

A chamada recomeçou. Elevavam~se vozes; ouviani--se então


pragas e pancadas. Os SS batiam furiosamente porque iam perder
duas horas de liberdade. Os kapos e os responsáveis dos blocos
batiam por medo. Aqui e além tombavam homens, e sob os feridos
alargavani-se lentamente poças de sangue negro. Os seus rostos
de cera diminuíam na sombra e brilhavam com um reflexo de
agonia.'Levantavam uni olhar resignado para os camaradas que,
imobilizados, mãos sobre a costura das calças, não podiam
socorrer aqueles que se esvaíam em sangue. Esta floresta de
pernas zebradas era, para muitos, a última visão deste mundo.

A Lua elevou-se por detrás do fomo crematório. O ar estava


pesado; a Lua rodeava-se dum largo halo. Por um momento,
escondeu-se atrás da chaminé, nimbando~a dum pálido reflexo,
como se nos fornos tivessem queimado espíritos e deles se
escapassem labaredas sem calor. Subindo sempre, ela tornou-se
lentamente visível, e a curta chaminé asseinelhou-se então à
goela dum morteiro escarrando uma bola incandescente em pleno
céu.

O prisioneiro Goldstein encontrava-se na primeira fila dos


homens do bloco 13. Era o último da extrema esquerda e a seus
pés jaziam os feridos e os mortos do bloco. Um dos feridos era
o seu amigo Scheller. Era o homem mais próximo dele. GoIdstein
observava a furto que a mancha negra sob a perna triturada de
Scheller aumentava a unia velocidade subitamente acelerada. O
penso de urgência desfizera-se e

44

A CENTELHA DA VIDA

Iler perdia todo o seu sangue. Gold,stein tocou com o cotovelo


no izinho Muenzer e deixou-se resvalar para o lado, como se
peros sentidos, de maneira a cair, em parte sobre Scheller. '
que ele fazia não era isento de perigo. O chefe de bloco SS
peras filas de prisioneiros como uni cão-pastor enraivecido.
Com ntapé numa têmpora teria podido liquidar GoIdstein. Os
prisios mais próximos observavam, imóveis, o que se passava.
chefe de bloco encontrava-se, nesse momento, na outra extrede
da fileira com o responsável do bloco. Este comunicava-lhe uer
coisa. Também ele compreendera a manobra de Goldstein tava
reter o Schaj@úebrer durante alguns instantes.
1ldstein procurava, debaixo de si, às apalpadelas, o barbante
que a perna de Scheller fora garrotada. Sentia junto do rosto
o san-

a carne palpitante. Deixa isso - murmurou Scheller. ldstein


encontrou, por fim, o nó que escorregara e desatou-o.

e jorrou mais forte. De qualquer maneira, com a perna neste@


estado, eles vão

a injecção - murinurou Scheller.


1

perna apenas estava ligada ao corpo por um ou dois tendóes e


- farrapos de pele. A queda de Gold,stein deslocara-a,
Encontra~ agora bizarramente oblíqua, o pé revirado, como se
tivesse unia

articulação. As mãos de Goldstein estavam ensopadas em e.


Apertou o nó, mas o barbante escorregou outra vez. Schefler
ceu. Deixa isso... oldstein foi obrigado a desfazer de novo o
nó. ntia debaixo dos dedos esquírolas ósseas. O seu estômago
teve náusea. Dominou-se e rebuscou novamente na carne viscosa.
u o garrote, subiu e teve de imobilizar-se. Muenzer acabava de
ter no pé. Era unia advertência. As pragas do chefe de bloco
SS imavam~se. Mais um desses porcalhões! Que se passa agora?
Ele caiu, chefe. responsável do bloco acorrera. De pé, carcaça
podre! - gritou ele a Goldstein, atirando--lhe um pé às
costelas. golpe fora muito menos violento do que parecera. O
responsável oco travara-o no último momento. Bateu mais.
Evitava, assim, chefe de bloco se encarregasse disso.
Gold,4teiri não se mexeu. gue de Scheller inundava-lhe o
rosto, Está bem, deixa-o!

45

ERICH-MARIA REMARQUE

O chefe de bloco afastou~se.


- Meu Deus, quando é que isto acabará?
O responsável do bloco seguiu-o. Goldstein esperou um mo-

mento. Depois agarrou a mãos ambas a perna de Scheller,


apertou o

laço, atou-o e fez girar a cavilha de madeira, que saltara. O


sangue parou de jorrar'e passou a correr apenas gota a gota.
GoIdstein afastou as mãos com cuidado. O garrote resistia. ,

A chamada terininara. Concluíra-se que faltavam três quartos


de um russo e a metade superior do preso Sibolski, da barraca
5, o que não era perfeitamente exacto. Os braços de Sibolski
tinham sido en~ contrados. É certo que fora a barraca 17 que
se apoderara deles e que os fizera passar pelos restos de
Binswanger, de quem nada pudera ser encontrado. Em
compensação, dois homens da barraca 5 tinham-se apoderado da
metade inferior do russo e apresentarani-na como

tendo pertencido a Sibolski, já que as pernas eram sempre


difíceis de identificar. Por felicidade, dispunha-se ainda de
alguns restos, que puderam ser atribuídos ao
homeni-e-um-quarto desaparecido. Tornava-se, deste modo,
evidente que nenhum dos presos fugira, aproveita,ndo o
bombardeamento. Mas todos podiam muito bem ter de ficar na
praça de chamada até de manhã para, em seguida, descerem à
fábrica para continuarem as pesquisas - algumas semanas antes
o campo ficara de pé durante dois dias a fio até que fosse
encontrado o corpo dum preso que se enforcara nas pocilgas.

Weber permanecia impassível na cadeira, com o queixo pousado


nas mãos cruzadas. Quase não se mexera desde o princípio.
Levantou-se devagar e fez estalar as articulações.

- Os homens devem estar entorpecidos. Têm necessidade dum


pouco de movimento. Exercício no chão! As ordens soaram.

- Mãos à nuca! Flexào dos joelhos! Atenção para o salto de rã!


Em frente, saltar!

As longas filas obedecerani. Saltavam lentarnente, de joelhos


dobrados. Entretanto, a Lua elevara-se no céu e brilhava com
mais intensidade. Unia pai-te da praça de chamada estava
iluminada. O resto do terreno mergulhava na sombra projectada
pelos edifícios. Os contornos do crematório, da porta e mesmo
da força desenhavani-se nitidamente no solo.

- Saltar recuando! As filas mergulharam de novo na zona


obscura. Alguns homens caíram. Os SS, os kapos e os
responsáveis de bloco levantavani-nos a

46

A CENTELHA DA VIDA

pés. Os gritos eram quase abafados pelo raspar de inumeráveis

Em frente! À retaguarda! Em frente! À retaguarda! Descansar!


ora começav o exercício no solo propriamente dito. Consistia,
ps prisioneiros, em atirarem-se ao chão, rastejarem, levantae,
atirareni-se outra vez, rastejarem de novo. Desta maneira,
@ani, dolorosamente, conhecimento com a terra do dancíng. Ao
dum momento o terreno não era mais do que uni fervilhar de
zebradas, onde dificilmente se teriam reconhecido seres hus.
Eles protegiam os feridos o melhor que podiam, mas isso, na

tação e no niedo, nem sempre era possível. fim de um quarto de


hora Weber deu ordem para cessar o .o. A verdade é que este
simples quarto de hora fizera estragos os presos esgotados. O
chão estava juncado de corpos no limite

S. inhar por blocos! homens reunírani-se penosamente e


levantaram do chão os

am tombado. Aqueles que ainda podiam manter-se de pé ni-se aos


seus camaradas. Os outros foram arrumados entre os

z-se silêncio sobre o campo. Weber avançou. Foi no vosso


próprio interesse que fizeram este exercício. Saora como se
hão-de proteger em caso de ataque aéreo.

s SS riram. Weber lançou-lhes um olhar e continuou: Aprenderam


hoje à vossa custa com que desumano inimigo nos

s. A Alemanha, que sempre quis a paz, foi vitima dum ataque


O inimigo, batido em todas as frentes, recorreu, no seu
desesao último nicio: desprezando as leis internacionais da
guerra, rdeia pacíficas cidades alemãs abertas. Destrói
igrejas e hosAssassina inulheres e crianças sem defesa. Nada
mais se podia

de feras desumanas. A resposta não tardará. As brigadas do


farão, a partir de amanhã, um esforço suplementar. Partida uma
is cedo para os trabalhos de desentulho, Até nova ordeni, não
descanso ao domingo. Os judeus não terão pão durante dois
radeçani-no aos incendiários inhinigos. r calou-se. O campo
não se mexia. Ouviu-se subir o roin- @otente de um carro que
se aproximava. Cantem - ordenou Weber. - Detascbland.
Deutscbland über

.blocos hesitaram uni instante, surpreendidos. Nestes últimos


poucas vezes fora dada ordem de cantar - e sempre se tratava
óes populares. Era quase sempre durante a aplicação de casti-

47

-Soprw11P ',,Ojod ap ',eluazui-,) ajad r aql-iiiA ap-


'OqIvurei Op saAcile'ulaisplog atil-noi!.í2 i-c,)oq e
rli3D -

janbImb nopuodsoi joli,)q3S

11,L -@,.iríueiiu os a13 oilaltuojua O,jvq osotuaL -


-noitittijnttí - sríiausp sozip nL -

-notluiAjp-e osopujix)iwas soillo so @>tll-uíA çuiti 'rTzip


alo anb o.i,)pu2ojdttjo@) ripod opu uT;)Isplog -Qs-tticíxQtti
jall@)q3S Qp soi(-1p1 So Op OU OPPISODUOCAUlS,.)
UTaISPIO9 op OIÇOJ O'O1@ @) ON

M Jol SOUTUA o,-eu aç" 'odui-e@) ap ajaq3 o opu,eqlo'.iauj@>Ax


nosuDd'"-ep7eu ap ueja:m;;duas ovuiaqQX@, @juxO" 'OssT WW
J,@)A anb usio,) utunSpe tuassoAil srJAulud sr, anb tu,.)9
'aiucDoAoid uíuoji riun tuw a @>ijoj sicK -sosaid
so,)iuouil-emiquT4 turpej o owoj OprlU-C,) EJ,? OM OUTI1 O
'Plap L'TJUZ)l@)SUOJ J;?1 TUIeTAap SS soíidoid so
onb'tUleAriu,,)tuijadxa e soiino sollnui anb'wa um uí uas
u'uloip-ed

q .1 uns eu 'jajj;@>q-)S anb ap '.iz>zuanK iod


@upuqjTljrd uja Pla anb ap'o:>iun o rio o-eu anb Dp oussoiduii
r 'ojjq@is ap 'oAala or5u117exa m4um4so um is tua jiqns nllUaS
JOUJaAN, 'W-eAI31U7C3 sosaid so 'omj juiqlo a(i ... nossrd os
onb op siodQp'sízpu soiu-e@) sou -e5uuUuo@) iurqual oçu r(
z,.)Alul -

-OmO o noD,;id jaujaAX @yajjv -íaqtz puvIq3sima 'pupIq_vima o


anbjOd -

-jouiag, niiad;)j - @;@nb o -

-o@q7cq STrw imuiu5oww sos-,.jd so

-aliou r upoi inbu oru aS -oidi3uild o


opsop Tua:)Quio3ou _"Odu.j7u@)z)p opun2os o nT@@iu
o rurmod anô -

-OsaÍqj OlirIU1 turquil OEU sosaid so anbgp tuaiv -IvuIj op


o1!zo@@aj o turAwim anb-seprAola sulou s-e ip'@upr turTpod oru
SoZOA SC z) OlIE OPU!SPUTop OPE@5a1UO3 UJEIACH 'a]U'epJO3SIp a
optú@cajqos oio3 iiinu n@>jjotti ripolaui v @@?nb o -

-r5aqrz) r jaxatu mos 'jawaA\ oqu -jZIA nas o ujrd 'siodop


o,)nod 'jazu;)t-iK noiun2j,9d - @.@nbjOd -

'IUaRS,';)AOIU as su3oq su sepoi anb @> jrpuosso o 'U-l-eT5Ulj


SrJAUlud sie w-eiqr-.; oEu anb so Ou:-iuujTffl@as soi@no so
-.imuuj e os--sod'Çj o3olq op'jazuanK

iso@>.íod ap eprquiu3 'soTii-eA -

SOU73 OPEJU-C3.loS ap ti73xi.-4p'!zuu u:)od,.) V


Joliajur,lumpru OUTI1 OQOpu7e o s-eN -soprinjjol SOP SOl!A@ SO
SODI.@fT solua3r wo,) juiqurditio3r 7cjrd mapio uíuiquil
sosaid so -speiodio3 so@5

'masmim

A CENTELHA DA VIDA
@,YNõ- te darão a injecção - gritou Goldstein à maneira de as
últimas notas. -Temos o kapo enfermeiro, ele gra-

il (e interrompeu-se. O comandante do campo aparecera. We-


'2!N" i, '-'WOZ@- O Seu relatório.

um pequeno sermão e apliquei-lhes uma hora de suplementar.

estava distraído. Fungou e levantou os olhos para o céu. Iw.


que esses porcos vão voltar esta noite? riu.

as

últimas notícias da rádio, abatemos nove décimos @@u(4 não


achou graça. Janibém este nada tem a perder", -É um pequeno
Dietz, um antigo moço de herdade, nada

se já acabou - declarou, de súbito, mal humo-

em direcção às barracas, levando os seus os seus feridos. O


rosto de Scheller estava emaciado como @(#,Werner, Muenzere
GoIdsteino levantaram. Pro-

não passaria dessa noite. Durante o exercício no chão nariz.


Os choques da marchaprovocaram a hemorragia.

o sangue formava unia mancha escura sobre

para a rua que conduzia à sua barraca. O vento que su- _,7
4#,iMca. aumentara e bateu-lhes de frente quando dobraram a

Trazia consigo o fumo da cidade sinistrada.

dos prisioneiro

-se. s transformaram (A o, o cheiro? - perguntou Werner ao


cabo de um instante. W

levantou a cabeça.

MrM(As, tinha nos lábios o gosto adocicado do sangue. Cuspiu e

@,@i aspirar o furno pela boca. ##T4- confirmou.

Quase parece que também arde aqui. Sim. ZoNN- ver-se agora o
funio. Subia do vale, enchia as ruas como um
Ifz;-w*iAís e depressa se espalhou entre as barracas. Durante
uni

Werner.,achou estranho e quase incompreensível que o

."#T# -T4 tivesse sido retido pelos arames farpados - como se


o

"I TnW11V+1,*] IR

49

ERICH-MARIA REMARQUE

campo estivesse agora menos defendido, menos. inacessivel do


que antes.

Desceram a rua, avançando através do fumo. Os seus pa~s


tinham. mais finneza e caminhavam de ombros erguidos,
Cond,44ram Scheller com cuidado. GoIdstein curvou-se para ele,
'.

- Cheira! Cheira tu, também! - pronunciou baixinho, con@o u,ma


súplica desesperada, para o rosto emaciado.

Mas Scheller perdera os sentidos há muito tempo.

5O

ma obscuridade fétida enchia a barraca. Há muito tempo já que


não tinham luz à noite.
5O9 - murmurou Berger -, Loffinann quer falar-te. É o fim?
Ainda não.
O 5O9 avançou às apalpadedas pelo estreito corredor pai a o
rectân-

baço da janela que dominava o catre de tábuas de Lohi-nann. u


um leve rumor.

Berger está aí também? - perguntou Lohmann. Não. Vai buscá-lo.


Para quê? Vai buscá~lo.
O 5O9 voltou, apalpando na escuridão. Ouvirani-se pragas.
Esmacorpos estendidos no corredor. Urna mandíbula fechou-se
sobre
tornozelo. Bateu numa cabeça desconhecida até que os dentes
descerraram. @Alguns minutos mais tarde regressou com Berger.
- Aqui estamos. Que queres tu agora?
- Toma. Lohmann estendeu o braço.

O quê? - perguntou o 5O9. Estende a tua mão sob a minha. Bem


aberta. Atenção.
O 5O9 sentiu o magro punho de Lohmann, seco como uma pele de
rto, abrir-se lentamente. Unia coisa pequena e pesada caiu-lhe
na
O.
- Apanhaste-o?

Sim. Que é isto? E ... ? Sim - murmurou Lohniann -, o meu


dente.
O quê? - Berger apro,ximou-se.. - Quem fez isto? Loffinann
pôs-se a rir. Era uni riso quase silencioso, descarnado.
- Eu.
-Tu? Como? A satisfação do moribundo era vigível. Estava cheio
duni orgulho ntil.

51

ERICH-MARIA REMARQUE

Um prego... duas horas. Uni pequeno prego de ferro. Achei-o e


descarnei o dente com ele.

- Onde está o prego? Lohmann apalpou à sua volta e deu


qualquer coisa a Berger. Berger levantou o prego para a janela
e depois apalpou-o.

- Sujo e ferrugento. Isso sangrou? Lohmann riu outra vez.


- Berger - disse -, eu posso bem pennitir-me o risco, duma
infecção.

Espera ai. Berger rebuscou nos bolsos.


- Alguém tem uni fósforo? > Os
fósforos eram preciosos.

Eu não tenho - respondeu o 5O9. Aí vai - disse alguém da cama


do meio. Berger riscou o fósforo, que se inflamou. Berger e o
5O9 tinham fechado os olhos para não serem deslumbrados.
Ganhay~ assim alguns segundos de visão.

Abre a boca - disse Berger. Lohmann olhou-o fixamente.


- Não sejam ridículos - murmurou vendam o ourô-
- Abre a -boca. Qualquer coisa que podia ser tomada por um 5O~
Pamou no rosto de Lohmann.

- Deixa-me tranquilo. Estou contente por tê-los vistof,aos


dois pela última vez à luz.

- Vou pôr aí uni pouco de iodo. vou buscar o frasMI. Berger


deu o fósforo ao 5O9 e afastou-se, apalpando nadUecção da sua
cama.

-.Apaguem! - chiou alguém. -.Cala o bico! - respondeu o homem


que dera o f~.1,
- Apaguem! - repetiu a voz. - Querem que as &,-ntibelas ws
abatam a todos?

O 5O9 colocara~se de maneira que o seu corpo, cutvadç>'@~, a


frente, se interpusesse entre a parede e o fósforo.
Oprisioneiro da cama do meio tinha aplicado a sua coberta
contra a janela;_e o 5O9 mantínha o casaco aberto por cima da
pequena chama: O5 ~ de Lohmann estavam claros, demasiado
claros. O 5O9 olhoua@ potira do fó foro que não tinha ainda
ardido, depois fitou Lohwann e4>ensou que o conhecia há dez
anos. Sabia que o via vivo pela últimavez,-Demasiadas vezes
vira rostos como o seu para não o saber. --- .

Sentiu a ipordedura da chama, mas aguentou o fiWoro a"

52

A CENTELHA DA VIDA

to mais. Ouviu Berger, queregressava. Depois a obscuridade


bruscamente como se ele tivesse cegado. Tens ainda outro
fósforo? - perguntou ao homem da cama do

oma. homem deu-lhe uni. o último. último", pensou o 5O9.


"Quinze segundos de luz. Quinze ses de luz para os quarenta e
cinco anos que ainda se chamam nn, Os últimos segundos." O
pequeno circulo trémulo for-se outra vez. ?-@-Apagueni, com
mil raios! Façam-no largar o fósforo!

"O 5O9 baixou a luz. Berger estava perto dele, com o frasco de
iodo mão. -Abre aVarou. Por sua vez, via agora, nitidamente, o
rosto de Liohmann. Era

do ter ido buscar o iodo. Aliás, fora só para fazer alguma


coisa

ido buscar o frasco. Meteu-o lentamente na algibeíra.


Lohobservava-o, tranquilo, sem bater as pálpebras. O 5O9
desviou os. Abriu a mão e olhou o pequeno bloco de ouro que
brilhava. is olhou de novo Lohmann, A chama queimava-lhe os
dedos. sombra abateu-se sobre o seu braço. A luz desapareceu.
- Boa noite, Lohmann - disse o 5O9.
- Volto já - disse Berger.
- Deixa, deixa - murmurou Lohmann. - Agora é fácil.
- Talvez encontrenios ainda alguns fósforos. Lohmann não
respondeu.

O 5O9 sentia na mão a coroa de ouro, pesada e dura.

Vamos lá para fora - disse ele a Berger, - Estaremos melhor


sozinhos para conversar.

Alcançaram a porta e acocoraram-se do lado da barraca abrigado


vento. Estava escuro. A cidade estava carnufiada e apagados
quase todos os incêndios. Apenas a torre da igreja de Santa
Catarina ardia ainda como um archote gigantesco. Era muito
antiga e toda de traves secas, Como as niangueiras dos
bombeiros eram impotentes para apagar o Incêndio,
deixavarti-na. arder,

Que vamos faze1@? - perguntou o 5O9. Berger esfregou os olhos


avernielhados,
- Se a coroa foi lançada no registo da barraca, estarnos
perdidos. Vão investigar e enforcar alguns, de nós, A começar
por mim.

ERICH-MARIA REMARQUE

Ele disse que a coroa não está registada. Quando Veio para cá
ainda isso não existia, Há sete anos que ele está no campo.
Nessa altura arrancavam os dentes de ouro, tuas não os
registavam. Mais tarde é que começaram a fazê-lo,

- Tens a certeza?
O 5O9 encolheu os ombros. Calarani-sé por um instante.
- É claro que podemos dizer a verdade e entregar o dente. Ou
tor-

nar a pô-lo na boca dele quando morrer - declarou, enfim, o


5O9, A sua mão cerrou-se sobre o pequeno bloco de metal.
- É isso que tu queres? Berger abanou a cabeça. Este ouro
significava a vida por alguns dias. Ambos sabiam bem que,
agora que o tinham, não o entregariam.

- Não podia ele mesmo ter arrancado este dente e vendê-lo já


há anos?

- Achas que os SS irão nisso?


- Não. Sobretudo se descobrem a chaga recente na boca.,
- Isso é o menos. Se ele se aguentar ainda um bocado, a chaga
fechará. Além disso, é uni molar do fundo. A verificação é
mais dificil, sobretudo quando o cadáver se torna rígido. Se
ele morrer esta noite, amanhã de manhã estará inteiriçado. Se
morrer amanhã,de manhã, teremos de conservá-lo aqui algumas
horas. Isto há-de, uxarchar@, Poderemos proceder de maneira
que Handke não se aperceba de nada na chamada da manhã.

O 5O9 olhou Berger.


- Temos de arriscar o golpe. Precisamos de dinheiro.,
Sobretudo agora.

- Sim. Aliás, agora já não podemos escolher. Quemvai'vender o


dente?

- Lebenthal. É o único que pode encarregar-se disso. A porta


da barraca abriu-se atrás deles. Alguns hon~ puxaram um corpo
pelos braços e pelas pernas para fora da, bàrrac@k.e
arrastaram-no para unia massa sombria perto da rua. Era ali
que seacumulavam os corpos dos presos que morriam depois da
chamad2.

Já é o Lohiliann? Não. Não são dos nossos. São muçulmanos.,,


Os homens que tinham abandonado o cadáver regres@aram à,
barraca cainhaleando.

- Algum deles terã notado que tínhanios o dente?


perguntou Berger.

- julgo que não. São quase todos muçulmanos oeste


canto. Quando muito, talvez aquele que nos deu os fósforos,

- Ele disse alguma coisa?

54

A CENTELHA DA VIDA
Não. Ainda não. Mas é possível que venha a pedir a sua parte.
Isso não tem importância. A questão está em saber se ele não
mais vantajoso denuncíar~nos. k@O 5O9 reflectiu. Sabia que
havia pessoas capazes de tudo por um

çO de pão.

Não tinha aspecto disso -respondeu por fim, - A ser assim, que
nos teria dado os fósforos?

Não tem nada a ver unia coisa coma outra. Devemos ser pruntes.
Se não, seremos ambos liquidados. E Lebenthal connosco.
O 5O9 sabia-o bem. Vira enforcar homens por menos.

É preciso observá-lo, - declarou. - Pelo menos enquanto -iann


não for queimado e Lebenthal não tiver vendido o dente. is
tarde não lhe serviria de nada.

Volto para dentro. Talvez já possa saber alguma coisa. Está


bem. Eu fico aqui à espera de Léo. Ele deve estar ainda no o
de trabalho. Berger levantou-se e dirigiu-se para a barraca. O
5O9 e ele não te-

hesitado em arriscar a vida se isso pudesse servir no que quer


que sse para salvar a de Lohmann. Mas nada havia a fazer. Por
isso é que lavam do seu camarada como de uma coisa. Anos e
anos de campo

iu-nos levado a este estado.


O 5O9 agachou-se ao abrigo das latrinas, Era um bom lugar,
@'p!nguém reparava nele. O pequeno campo tinha apenas uma
latrina, £,onium a todas as barracas... Estava crigida no
limite dos dois campos
1 @'è J uma fila ininterrupta de esqueletos arrastavam-se para
lá sem ces- '.sar gernendo, para regressarem em seguida às
barracas. Quase todos tin@am diarreia ou coisa pior, Aqui e
além jaziam,corpos esgotados es perando que as forças
voltassem outra vez para prosseguirem o seu ,,caminho. A
vedação de arame farpado que separava os dois campos
f,,@eorria à direita e à esquerda das latrinas.

O 5O9 instalara-se de maneira a poder observar a entrada que


fora preparada no arame farpado. Era destinada aos chefes de
blocos SS, aos responsáveis de blocos, aos homens encarregados
de transportar os víveres e aos camiões que abasteciam os
fomos crematórios, Da barraca 22 só Berger tinha o direito de
servir-se dela quando ia para o crematório. Para todos os
outros havia interdição folinal. O polaco Silber denominara-a
a porta dos rebentados, porque os prisioneiros relegados para
o pequeno campo só a atravessavam com os pés para diante. As
sentinelas tinham ordem para fazer fogo sobre qualquer
esqueleto que tentasse penetrar no grande campo. Quase ninguém
se

55

ERICH-MARIA REMARQUE

arriscava. Também não vinha ninguém do grande campo, além


daqueles a quem o sei-viço chamava ao pequeno campo.

Seria pouco dizer que este era mantido de quarentena: os


outros prisioneiros tinham-no, de certo modo, condenado e
consideravam-no simplesmente uma espécie de cemitério onde os
mortos erravam ainda uni pouco antes de desaparecerem.

O 5O9 podia distinguir, através dos arames, uma parte das ruas
do grande campo, que fervilhavam de prisioneiros aproveitand
'o o resto do seu tempo de repouso. Via-os falarem uns com
os outros, formareni pequenos grupos, irem e virem nas ruas.
E, se bem que, em suma, se não tratasse se não de uma outra
parte do campo de concentração, parecia-lhe que um abismo o
separava deles como duma pátria perdida, onde eram conhecidas
ainda, apesar de tudo, a vida e a fratemidade. Ouvia atrás de
si os passos moles dos presos que se arrastavam para as
latrinas e não precisava de virar a cabeça para ver os
seusolhos sem vida. Era a custo que ainda falavam - por vezes
estertoravani, ou então havia entre eles discussões fatigadas;
já não pensavam. O calão do campo denominava-os de muçulmanos
por causa da resignação total com que se abandonavam à sua
sorte. Os seus movimentos eram de autómatos sem vontade; tudo
se extinguira neles, a não ser alguinas funções orgânicas;
eram mortos-vivos que caíam como moscas durante o frio.
Povoavam o pequeno camp<>. Estavam despedaçados, perdidos,
nada já podia salvá-los - nem mesmo a liberdade.

O 5O9 sentiu a frescura da noite penetrá-lo até aos ossos. Os


murmúrios e os gemidos ergulan-i--se atrás dele como uma maré
cinzenta que ameaçava submergi-lo. Era a perpétua tentação do
desespero e do abandono, contra a qual os veteranos lutavam
com todas as suas forças. O 5O9 teve um movimento involuntário
e virou a cabeça para sentir que vivia ainda e que fruta de
toda a sua vontade. Depois ouviu o toque de recolher no campo
de trabalho. Cada uma das barracas dali tinha latrinas
interiores e era fechada durante toda a noite. Os grupos
dispersarani-se nas ruas. Os homens desapareceram. Em menos de
uni minuto tudo ficou deserto, e nada mais restou além do
lamentável cortejo do pequeno campo - esquecido pelos
camaradas para lá dos arames farpados, proscrito, isolado, um
último ilhéu de trémula vida no país da morte certa.

Lebenthal não veio pela porta. O 5O9 viu-o, de subito,


atravessar a praça diante dele. Devia ter entrado por qualquer
parte atrás das latrinas. Ninguém sabia como ele se arranjava.
Era bem capaz de ter utilizado a braçadeira dum chefe de
secção ou mesmo dum kapo.

- Léo! Lebenflial estacou.

56

A CENTELHA DA VIDA

- Que há? Cuidado! Ainda há SS lá em baixo. Vem por aqui,


dessa. Alcançaram as barracas.

Arranjaste alguma coisa? - perguntou o 5O9. - Para comer, ro.


Lebenthal encolheu os ombros.

Para comer, claro! - repetiu de mau humor. - Por quem me


9tomas tu? Serei eu kapo de cozinha?

- Não.
- Então? Que queres tu que eu te dê?
- Nada. Apenas te perguntei se tinhas arranjado alguma coisa
para çomer.

Lebenthal parou,

Para comer - disse, com amargura. - Tu sabes que os judeus


stão privados de pão durante dois dias em todo o campo? Ordem
de .,Wel->er.

O 5O9 olhou-o.

É verdade? Não inventei--o agora mesmo. Tenho sempre ideias


destas! Sou .tão espirituoso!
- Meu Deus! Vai haver mortos!
- Sim, em massa. E querias tu saber agora se eu achei alguma
coisa para comer!
Acalma-te, Leo. Senta-te aqui ao pé de mirri, E uma espiga!
Precisaniente agora, que ternos, mais do que nunca,
necessidade de comer!

- Ah, sim? É por minha causa, se calhar, hem? Lebenthal


comecou a tremer. Tremia sempre que se perturbava -

e a comoção dominava-o facilmente. Isto não significava para


ele mais que, para outro, o tamborilar com os dedos numa mesa.
Era a fome perpétua. Ela diminuía e exagerava todas as
emoções. A apatia e a

histeria nunca andavam longe unia da outra no campo de,


concentração.

- Fiz o que pude - gemia Lebenthal numa voz sobreaguda e


próxima das lágrimas. - Arranjei tudo, arrisquei tudo, previ
tudo, e tu vens dizer-nie agora que precisamos...

A voz i-norreu-lhe de súbito num gargarejo ininteligível.


Dír~se-ia que um dos alto-falantes do campo acabava de cair.
Lebenthal. explorava o chão com as duas mãos. Não tinha já a
sua expressão de caveira ultrajada; não era mais do que unia
testa, 'um nariz, olhos de batráquíco, tudo isto dominando
uma trouxa de carne mole com um buraco ao meio. Encontrou, por
fim, a dentadura e meteu~a na boca,

57

ERICH-MARIA REMARQUE

depois de a limpar ao casaco. O alto-falante estava outra vez


pendurado e a voz reapareceu, sobreaguda e indignada.

O 5O9 deixava-o falar sem o ouvir. Leberiffial deu conta disso


e calou-se.

- já fornos privados de pão e por mais de dois dias - disse,


finalmente, com calma. - Por que fazer hoje tão grande
questão?

O 5O9 fitou-o por uni inomento. Depois, @ mostrando a cidade e


a igreja em chamas:

- Olha, é aquilo, não é?


- O quê?
- Lá em baixo. Que está escrito no Antigo Testamento?
- Que queres tu ao Antigo Testamento?
- Não havia qualquer coisa deste género com Moisés? Unia
coluna de fogo que dirigia o povo para fora do cativeiro?

Lebenthal franziu as sobrancelhas.

1Urna nuvem de fumo durante o dia e uma coluna de fogo durante


a noite - recitou ele numa voz firme. - É isto que queres
dizer?

- Sim. E não era uni sinal de Deus?


- De Jeová.
- Sim, de Jeová. E aquilo no vale, sabes o que é? Esperou um
instante.
- É alguma coisa de semelhante - disse finalmente. É
a esperança, Léo, a esperança para todos nós. Mas que têm
vocês para não quererem compreender?

Lebenthal não respondeu. Dobrara-se sobre si mesmo, coni os


olhos fitos na cidade. O 5O9 deixou-se cair ao lado dele.
Enfim, conseguira falar! "Mal se pode pronunciar", pensou,
"quase nos mata, é urna palavra de tal maneira terrivel! Fugi
dela, cautelosamente, durante anos; ter-me-ia devorado se a
deixasse subir; mas ei-la que volta, ninguém se atreve ainda a
medir-lhe todo o sentido, mas ela está aqui, e não há se não
uma alternativa; ou ela me esmagará, ou, então, há--de
realizar-se.@

- Léo - disse -, o que se passa lá em baixo significa que


também aqui haverá um fim,

Lebenthal sacudiu-se.
- Se eles perderem a guerra - murmurou. - Só nessa condição.
Mas quem sabe?

Instintivamente, deitou um olhar amendrontado em volta de si.


Durante os primeiros anos o campo estivera bastante bem
informado acerca do desenrolar da guerra. Mas, mais tarde,
quando as vitórias se tornaram raras, Neubauer proibira a
entrada de jornais e a difx-isào das notícias pela rádio do
campo. Depois os boatos mais extravagantes tinham circulado
pelas barracas, e, finalmente, ninguém

58

A CENTELHA DA VIDA
ia já a que se ater. A guerra corria inal, sabia-se; irias a
revolução ije muitos esperavam havia anos nunca viera.

- Léo - disse o 5O9 -, eles vão perder. É o fim. Se o que se


pas- 'pou lá em baixo tivesse acontecido no primeiro ano de
guerra, nada ria significado. Mas depois de cinco anos de luta
é a prova de que

ão prestes a ganhar. deitou um novo olhar circi-iiar. Por que


falas nisso?
O 5O9 conhecia a superstição das barracas. O que era exprimido
perdia por isso mesmo a sua certeza e a sua força - e unia
esperança enganada representava sempre uma pesada perda de
energia. Dai ,provinha também a prudência dos outros.

Falo - disse - porque é preciso falar agora. O momento chegou.


O que sucedeu nos ajudará agora a resistir. Desta vez já não é
unia fase para garatujar nas latrinas. isto não pode durar
muito tempo, É preciso que nós.---

calou-se.

O quê? - perguntou Lebenthal. Nem o 5O9 sabia bem o quê.


-Safarmo--nos", pensou. "Safármo~nos e ainda outra coisa."

É uma corrida - disse por fim. - Uma corrida, Léo, corri...


-Com a morte-, pensou. Mas não pronunciou a palavra. Pez uni
gesto na direcção das casernas dos SS.

- Corri aqueles. Não temos o direito de perder. A meta está à


vista, Léo.

Ag@rrou Lebenthal pelo braço.


- E preciso que utilizenios tudo...
- Que podemos nós utilizar?
O 5O9 sentiu a cabeça esvaziar-se-lhe, como se tivesse bebido.
Perdera o hábito de pensar tanto e de tanto falar.

Olha, tenho aqui urna coisa - disse, tirando do bolso a coroa


de ouro. - Isto vem de Lohn-iann. É provável que não esteja
registada. Pode-se vendê-la?

Lebenthal sopesou o bloco de ouro. Não manifestava qualquer


surpresa.

- Perigoso. 56 é possível com alguém que possa sair do campo


ou entrar em contacto com o exterior.
- Pouco importa corno. Que poderemos nós tirar disso? Temos de
nos despachar. 1

- Isso não pode ir assim tão depressa. E preciso dedo. Exige


reflexâo, se não arriscanio-nos a ir parar à forca, ou então o
dente vai-se embora sem nos deixar uni tostão.

-Não podes arranjar isso esta noite?

59

ERICH-MARIA REMARQUE

Lebenthal deixou cair a mão que segurava o dente.


- 5O9 - disse -, tu ainda ontem eras unia pessoa sensata.
- Ontem foi há muito tempo. Uni estrondo violento veio da
cidade, logo seguido de um claro badalar de sino. O fogo roera
o madeiramento do campanário e o sino acabava de tombar.

Lebenthal achatara-se contra o chão.


- Que foi á(@uilo? - perguntou.
- Uni sinaÈ
O 5O9 teve uni sorriso que parecia uma careta.
- O sinal, Leo, de que ontem foi já há muito tempo.
- Era um sino. Como era possível que a igreja tivesse ainda
uni

sino? Por que não o mandaram para a fundição?

- Sei lá. Talvez o tivessem esquecido. Mas que pensas tu desta


noite? Precisamos de qualquer coisa, durante os dias sem pão.

Lebenthal abanou a cabeça.


- Hoje é impossível - disse. - Estanios em quinta-feira. É o
dia de festa da caserna SS.

- Ah! Então as gajas vêm esta noite?! Lebendial ergueu os


olhos.
- Tu sabes isso? Quem to disse?
- Pouco importa. Eu sei, Berger sabe, Bucher sabe e Ahasver
sabe.
- Quem mais?
- Mais ninguém.
- Com que então, vocês sabem! Não notei que me observavam.
Tenho de tomar mais precauções. Bem, É realmente esta noite.
- Léo - disse o 5O9 -, experimenta vender o dente esta noite.
É o mais importante. Eu posso encarregar-me do que há a fazer
aqui. Dá-me o dinheiro, eu me arranjarei. Não é complicado.

- Sabes como se faz?


- Sei. Tenho de meter-ine na vala. Lebendial reflectiu.
- Há um kapo que vigia a coluna de camiões - disse - e que vai
à cidade amanhã. Posso experimentar. Talvez ele morda no isco.
No fundo, é-iiie indiferente. Talvez eu venha a tempo de
tratar disto aqui.

Estendeu o dente ao 5O9.


- Que queres tu que eu faça disso? - perguntou este,
espantado.
- Leva-o tu.

Lebendial abanou a cabeça com desprezo.

Aí está o que tu percebes de comércio. Imaginas que


conseguiria alguma coisa depois de ele ter caído nas patas
de,,uni desses ca-

6O

A CENTELHA DA VIDA

lheiros? A coisa faz-se doutra maneira. Se tudo correr bem,


virei uscá-lo. Entretanto, guarda-o. E presta atenção.

O 5O9 estava deitado numa depressão do terreno, próximo dos


ara--nies farpados, mais perto do que era permitido. A vedação
fazia ali um

igia, sobretudo ,,I,ngulo e o canto era dificilmente visível


das torres de v de noite e durante o nevoeiro. Os veteranos
tinham-no notado há muito tempo já, mas só há algumas semanas
Lebenthal pudera aproveitar-se da circunstância.

O sector estava abrangido num raio de uns cem metros em volta


do campo, declarado zona proibida, e nele só se podia penetrar
com autorização especial dos SS. Uma larga faixa de terreno
tinha sido intei-ramente limpa de vegetação e podia ser
varrida pelas metralhadoras das torres.

Lebenthal, que parecia possuir um,sexto, sentido para tudo o


que dissesse respeito à comida, observara que, há alguns
meses, o largo caminho que ladeava por breve espaço o pequeno
campo era utilizado por duas raparigas todas as quinta-feiras
à noite, Dirigiam-se elas ao Morcego, um cabaret ruidoso
situado perto da cidade, onde eram o ornamento dos serões
culturais SS. Os SS.tinharw-1hes, ca- @valheirescamente,
permitido atravessar a zona interdita, o que lhes evitava um
desvio de quase duas horas. Tomava-se a precaução- de cortar,
durante o curto espaço de tempo de que precisavani@ a corrente
naquele lado do pequeno campo. A administração ignorava tudo.
Os SS agiam por sua própria conta no relaxamento geral dos
últimos meses. Eles nada arriscavam; nenhum preso do pequeno
campo estava em condições de se evadir.

Uma das prostitutas, num acesso de generosidade, tinha um dia


atirado um bocado de pão por cima dos arames farpados, numa
altura em que Lebenthal se encontrava perto. Algumas palavras
trocadas na obscuridade e a oferta de pagamento tinham bastado
- as raparigas traziam agora, frequentemente, alguma coisa.
Atiravam-na por cima dos arames, fingindo que ajustavam a liga
ou que esvaziavam os sapatos da areia. O campo estava numa
obscuridade completa e as sentinelas que tinham a seu cargo a
vigilância deste lado do campo dormiam; mas, mesmo que fosse
dado alarme, ninguém faria fogo sobre as raparigas e todos os
sinais teriam desaparecido antes que alguém viesse.

O 5O9 ouviu, proveniente da cidade, o ruído surdo que


anunciava que a torre acabava de desabar definitivamente, Um
jacto de fogo estendeu-se no céu. Depois foram os longínquos
sinais dos bombeiros.

Não sabia há quanto tempo esperava; a noção do tempo perdera


toda a importância no campo. Mas, de repente, através da
obscundade

61

ERICH-MARIA REMARQUE

inquieta, ouviu vozes e logo a seguir passos ligeiros que


vinham da esquerda. Deitou uni olhar para trás de si; o campo
estava muito escuro; os próprios muçulmanos que se arrastavam
para as latrinas não se viam. Em compensação, ouviu uma das
sentinelas gritar qualquer coisa às raparigas.

- Vou ser rendido à rneia-noite. Encontramo-nos depois, hem?


- De acordo, Arthur, Os passos aproxiniavani-se, Passou ainda
um momento antes que o 5O9 pudesse distinguir vagamente os
vultos das raparigas recortando-se contra o céu. Observou as
torres de vigia, Nada podia ver das sentinelas e estas também
não o viam, por consequência. Comecou a assobiar baixinho. As
raparigas pararam.

- Onde estás tu? - murmurou urna delas.


O 5O9 levantou uni braço e fez-lhes um sinal.
- Ah, lá está! Tens o dínheiro?
- Sim. Que trazem vocês ail?
- Primeiro a massa,--,Três mareos.
O dinheiro estava num saquinho atado na ponta de uma longa
vara que Lebenthal fizera deslizar até ao caminho, por baixo
dos arames. Uma das raparigas baixou-se, tirou o dinheiro e
contou--o rapidamente, Depois disse:

- Atenção agora, tu! Ambas tiraram do casaco batatas e


lançaram---nas por cima dos arames. O 5O9 esforçava-se por
colhê-las na capa de Lebenthal.

- E agora o pão - disse a mais gorda das duas.


O 5O9 viu as fatias de pão voarem. Apanhou-as rapidamente.
- E não há mais nada. As raparigas dispunham-se a prosseguir o
caminho. O 5O9 assobiou.

- Que há? - perguntou a gorda, inclinando-se para a frente.


- Vocês poderão trazer mais?
- Na semana que vem.
- Não, quando voltarern da caserna. Eles dão--lhes o que vocês
querem, não é?

-Tu és o mesmo do costume?- perguntou a gorda, perscrutando a


obscuridade.

- Bem sabes que eles se parecem todos uns com os outros,


Fritzi
- disse a outra.

- Posso esperar aqui - murmurou o 5O9, - Ainda tenho dínheiro.

- Quanto?
- Três.
- Tem os de ir, Frítzi! - disse a outra rapariga.

62

A CENTELHA DA VIDA

Elas andavam de um lado para o outro, para que as sentinelas


não ebessem que tinham parado,
- Posso esperar toda a noite. Cinco marcos.
- Tu és novo, hein? - perguntou FritzL - Onde está o outro?
orto?

- Doente. Foi ele quem me mandou. Cinco marcos. Talvez mais,


- Vamos, Frítzí, não podemos ficar aqui muito tempo.
- Está bem veremos. Podes ficar aí, tanto se me faz. As duas
raparigas afastaran-i-se. O 5O9 ouvia o rumor dos seus tidos.
Regressou ao campo arrastando a capa de;Lebenthal e
estendeu-se no chão, extenuado. Tinha a impressão de que
transpirava, mas a pele mantinha-se inteiramente seca.

Ao voltar-se viu Lebenthal.


- Isso pegou? - perguntou Léo.
- Sita. Aqui estão as batatas; o pão, ali. Lebenthal
agachou-se.

Sanguessugas! É quase o preço que teria pago aqui. Um marco e


cinquenta teria bastado à vontade. Por três marcos d@,,veúamo&
ter salsichas com isto. Ora aqui está o resultado de não ser
eu a fazer as :'coisas.

O 5O9 não ouvia.

Vamos repartir, Lêo - disse, Foram para detrás das barracas e


dispuseram no chão o pão e as batatas.

- Tenho necessidade das batatas para vendê-las amanhã - disse


Lebenthal.

- Não. Agora devemos guardar tudo paranós. Lebenthal levantou


os olhos.
- Ah, sim? E quem é que me dará dinheiro para a @próxinia vez@
- Ainda tens.
- Estás bem informado. Puserani-se de gatas, frente a frente,
como cães que vão lutar.
- Elas voltarão esta noite com mercadorla - disse o 5O9. -
Coisas que tu poderás trocar mais facilmente. Disse-lhes que
ainda tínhamos cinco marcos.

- Ouve - disse Lebentixal. Depois encolheu os ombros. - Se


tens dinheiro, faz tu o negócio.

O 5O9 olhava--o fixamente. Por fini, Lebenthal desviou os


olhos e deixou-se escorregar sobre os cotovelos.
- Tu levas-me ti-ido - gemeu docemente. - Onde queres tu
chegar? Que ideia é essa de quereres, de repente, metet-te em
tudo?

O 5O9 lutava contra o desejo de enfiar urna batata na boca,


depois outra, todas, depressa, antes que o fizessern parar.

63

ERICH-MARIA REMARQUE

Em que pensas tu? - continuava Lebenthal. - Comer tudo e


gastar o dinheiro como idiotas. Como queres tu que o
arranjemos?

As batatas... O 5O9 cheirava-as. O pão... As suas mãos iam, de


súbito, escapar ao domínio da vontade. O estômago não era mais
do que um grito esfomeado. Comer! Comer! Engolir! Depressa!
Depressa!

- Temos o dente de ouro - disse a custo, desviando a cara. -

Ou já esqueceste? Vamos com certeza tirar alguma. coisa dele.

- Não se pode fazer grande coisa hoje. preciso tempo. Nada é


garantido. Só se pode contar hoje com o que se tem na
algibeira.

"Não terá ele fonie?", pensava o 5O9. "Para que está ele a
falar? Isto não lhe atormenta o estômago?".

- Léo - disse com a boca pastosa -, pensa em Lohmann. Quando


estivermos com ele, então será demasiado tarde. Cada dia,
agora, é preciso. já não temos necessidade de prever para
daqui a meses.

Do lado do campo das mulheres ouviu-se um grito agudo e


penetrante, como o de um pássaro assustado. Lá em baixo uni
muçulmano, de pé sobre unia perna, erguia os braços ao céu. Um
outro vulto esforçava-se por retê~lo. Dir-se-ia que os dois
homens dançavam no horízonte@um grotesco bailado. Um instante
mais tarde tombaram os dois no chão como uma árvore seca e o
gritou cessou.

O 5O9 virou~se de novo. para Lebenthal.


- Quando estivermos como aqueles, não haverá mais nada a fazer
-disse. - Estaremos perdidos para sempre. É preciso
defendermo-nos, Léo.

- Defendermo~nos? Como? -Defendermo-nos - repetiu o 5O9 mais


calmo. A crise passara. Voltara a estar lúcido. O cheiro do
pão deixara de cegá-lo. Aproximou-se do ouvido de Lebenthal,

- Para depois - disse num sopro. - Para nos vingarmos...


Lebenthal atirou-se para trás.
- Eu não quero saber disso!
O 5O9 sorriu debilmente.
- Não vale a pena. Basta que te arranjes de maneira que
possamos comer, .Lebenthal ficou calado uni momento. Depois
mergulhou a mão na algibeira, contou moedas com os olhos mesmo
em cima delas e deu-as ao 5O9,

- Torna, aqui tens três marcos. Os últimos. Estás contente


agora?
O 5O9 recebeu o dinheiro sem responder. Lebenthal dividiu o
pão e as Katatas,
- Doze porções. É pouco corno diabo. Pôs-se a contar.

64

A CENTELHA DA VIDA

Onze, Lohmann já não quer nada. Não tem necessidade de da.


- Está bem, onze.
- Vai levar isto a Berger, Léo. Eles esperam.
- Sim, aqui tens a tua parte. Ficas aqui até que as raparigas
passem?
- Fico.
- Tens tempo. Elas nunca voltam antes da uma ou das duas
horas.
- Não tem importância, eu fico aqui. Lel-)enthal encolheu os
ombros.

tw Se nàc> trouxeren ais do que há bocado, não te vale a


pena esperafes. Por este preço é o mesmo que nos entendermos
com o @gratide campo. Sanguessugas!

- Sim, Léo. Tentarei arranjar uni pouco mais.

O 5O9 deslizou outra vez para debaixo da capa. Tinha frici,


Conservava na mão as batatas e o bocado de pão. Meteu o pão no
bolso. -Não como nada esta noite", pensou. -Esperarei até
amanhhã de manhã. Se chegar até lá, então ... ". Não sabia o
que se passaria se conseguisse aguentar até de manhã. Algurwa
coisa de importante. Tentou descobrir o quê. Impossível. Tinha
ainda as batatas na mão. Uma grande e outra pequena. Era de
mais. A batata pequena foi-se duma dentada; a maiof
inastigou-a lentamente. Não previra que a fome, depois disto,
ia tornar-se mais intolerável ainda. Deveria esperá-lo. Era
sempre assim, mas nunca conseguia acreditar que assim fosse.
Lambeu os dedos, depois cravou os dentes na mão para que ela
não fosse ao bolso tirar o pão. "Não quero devorar o pão
iniediatamente, como da outra vez", pensou. "Esperarei até
amanhã. Esta noite venci Lebenthal. Ficou meio convencido. Não
queria, mas deu-me três fnarcos. Não sou um homem acabado.
Tenho uni resto de vontade. Se eu aguentar até arrianhã sen,
comer o pão (ele tinha a impressão de que sobre a sua cabeça
choviam grossas gotas negras), então (estendeu o punho para a
igreja em chamas, achou finalmente as palavras), então é
porque não sou uni animal, um muçulmano, uma simples máquina
de mastigar.
O que é preciso (uma nova fraqueza o invadiu), o que é preciso
(outra vez o desejo viera), eu disse a Lebentlial há pouco,
mas então não tinha eu este pão na algibeira, é fácil falar,
mas resistir... , o que é preciso é voltar a ser uni ser
humano, recomeçar.-

G. Clássicos cioSéc. XX 25 - 5

65

vi

cubauer estava no seu gabinete. Tinha na sua frente o major


Wiese, uni homenzinho simíesco, coberto de sardas, com uni
bigode arruivado e em franja.

Ncubauer estava de mau humor. Encontrava-se num daqueles dias


em que tudo parecia conjum-se contra ele. As notícias do
jornal eram mais do que circunspectas; em casa, Selma tinha
silêncios cheios de subentendidos; Freya atravessava as salas
em silêncio, com os olhos aven-nelhados; dois advogados tinham
resàndido os seus arrendamentos do prédio - e eis que chegava
agora este sinistro medicastro, com as suas pretensões.

- Quantos homens pretende? - perguntou bruscamente.


- Por agora bastarão seis. Fisicamente muito em baixo. Wiese
não fazia parte do pessoal do campo. Possuía unia pequena
clínica peito da cidade e tinha a ambição de ser um homem de
ciência. Fazia, como muitos médicos, experiências em homens
vivos, e por várias vezes o campo pusera prisioneiros à sua
disposição. Como estava em boas relações com o antigo
Gauleiter da província, ninguém se preocupava em saber o que
ele fazia com os presos, Os cadáveres eram sempre regularmente
entregues no cremat6rio; nada mais se exigia.

- E tem necessidade desses homens para experiências clínicas?


- Sim. Faço investigações para o Exército. De momento,
secretas, claro.

Wiese sorria. Debaixo do bigode viani-se-lhe os dentes


extremamente grandes.

- Sim.? Secretas? Neubauer resmungou. Não podia suportar estes


homens que afluíam das universidades. Invadiam todos os
domínios e anteptinhani-se aos velhos combatentes,

- Terá quantos quiser. Agrada-nos sempre que os nossos homens


sirvam ainda para alguma coisa, A única coisa de que
necessitamos para isso é de uma ordem de transferência.

- Unia ordem de transferência? Wiese levantou para ele tini


olhar sitirpreendido.

66

A CENTELHA DA VIDA

Evidentemente. Unia ordem dos meus superiores em como ses


homens devem ser-lhe entregues.

Mas como? Não compreendo... Neuhauer dissimulou a sua


satisfação, Esperava a surpresa de lese,

Na verdade, não conipreendo - repetiu o major. - Até agora


nunca me pediram nada desse género.

Neubauer bem o sabia. Wiese pudera dispensar-se da ordem


óficial porque conhecia o Gauleiter. Mas, depois,o Gauleiter
fora enviado para a frente, em seguida a um caso escuro.
Excelente ocasião para Neubauer levantar dificuldades ao
major.

- É urria simples formalidade - declarou com ar jovial. - Se o


Exército pedir essa transferência, os homens serão entregues
sem mais embaraços.
Wiese não pensava em tal. O Exército não fora mais do que um
pretexto. Ncubauer, aliás, sabia~o perfeitamente. Wiese
repuxava nervosamente o bigode.

- Não percebo nada, Até agora sempre tive homens sem a menor
dificuldade.

- Para experiências? Graças a mim?


- Graças às autoridades do campo,
- Deve haver aí engano. Ncubauer pegou no telefone.
- Preciso de ficar com o coração tranquilo, Neubauer não tinha
necessidade de telefonar; o seu coração estava sempre
tranquilo. Fez algumas perguntas e desligou o telefone.

- É exactamente o que eu pensava, doutor. Até agora pediu


homens para pequenos trabalhos e foram~lhe concedidos. É uma
coisa que o nosso serviço de trabalhos exteriores faz sem
qualquer formalidade. Diariamente, enviamo-los às dúzias para
oficinas. Os homens continuam sob a autoridade do campo. No
que lhe diz respeito, o caso é completamente diferente. Pede
homens para experiências clínicas. Isso constitui uma
deslocação. Estes homens vão deixar o campo oficialinente.
Para tanto, preciso de um ordem.

Wiese abanou a cabeça.


- Vem a dar na mesma - declaroi i, mai humorado, - Os homens
4úe me enviavam eram sempre utilizados em experiências
clínicas.

- Não devo tornar conhecimento dessa informação. Neiabauer


enteirou-se na poltrona.
- Apenas sei o que está nos seus relatórios. E julgo que é
preferível ficarmos por ai. Com certeza não teai interesse em
chamar a atenção das autoridades para o engano cornetido.

Wíese calou-se um instante. Compreendeu que se comprometera.

67

ERICH-MARIA REMARQUE

Teria obtido esses homens se os tivesse pedido para pequenos


trabalhos?

- Com certeza, o nosso sei-viço de trabalhos exteriores não


está aí para outra coisa.
- Muito bem. Nesse caso, peço seis homens para pequenos
trabalhos.

- Mas vejamos, doutor!... Neul)auer triunfava do seu


adversário e fingia-se assombrado.
- Confesso que não vejo o que significa tão brusca mudança! Há
pouco queria homens fisicamente tão em baixo quanto possível;
agora pede-nos para pequenos trabalhos. É contraditório! Aqui,
quando um. homem está físicartiente muito em baixo, nem sequer
já pode passajar meias, acredite! O nosso campo de trabalho e
de regeneração está subinetido, a unia disciplina prussiana,
bem sabe...

Wiese engoliu a saliva, levantou-se bruscarnente e agarrou no


quépi. Neubauer levantou~se, por sua vez. Era suficiente ter
exasperado Wiese. Não queria fazer dele uni inimigo
irreconciliável, Nunca se sabia o que o futuro traria. Talvez
o antigo Gatileiter voltasse uni

dia à superficie.

- Tenho outra proposta a fazer-lhe, doutor - declarou. Wiese


voltou-se. Estava pálido. As sardas destacavani-se fortemente
na tez amarelada.

- Que diz?
- Se tem unia necessidade tão urgente desses homens, podia
pedir voluntários. Evitaremos assim todas as formalidades. Se
um, preso quer sacrificar-se pela ciência, nós nada temos a
objectar. Não é absolutaniente regular, mas eu tomo isso à
minha conta, sobretudo se se tratar das bocas inúteis do
pequeno campo. Os homens assinarão unia declaração e pronto.

Wiese não respondeu logo.


- Nestas condições, nem mesmo terá de pagar pelo trabalho
assegurado - acrescentou Nleubauer, cordialmente. -
oficialmente, os homens perrnanecern no campo. Como vê, faço o
que posso.

Wiese continuava desconfiado,


- Não sei porque, de repente, me levanta tantas@ dificuldades?
Eu Silvo o país.

-Todos nós o servimos, e, de resto, eu não levanto


dificuldades. Mas é o regulamento. A uni gênio cientifico como
o senhor isto pode parecer inútil; para nós é inetade da nossa
vida.

Terei, portanto, seis voluntârios? Seis ou mais, se eles


quiserem. Vou pôr o nosso primeiro chefe de campo à sua
disposição;, ele o levará ao pequeno campo. O Sturin-
,ffiehrer Weber. Uni homem de mérito,

68

A CENTELHA DA VIDA

- Muito bem. Obrigado.


- Não agradeça; foi para mini um prazer < Wiese saiu.
Ncubauer pegou no telefone e deu as suas instruçóes @a Weber.

Deixem-no chafurdar sozinho! Ordens, nenhumas! Voluntários

-nim, pode ele arranjar unia rouquidão. Se ninguém ,:e nada


mais. Por i quiser ir, nada podemos fazer.

Desligou, sorrindo, o mau hurrior desaparecera. Estava


satisfeito por ter mostrado a uni desses pedantes que também
tinha alguma coisa a dizer. A ideia dos voluntários era uni
achado. Wiese ver-se-la 'aflito para caçar um só. O pr6prio
médico do campo, que também prestimia de investigador, era
obrigado a correr atrás das suas vitimas quando precisava de
homens para as suas experiências. Netibauer riu e prometeu a
si niesmo indagar mais tarde o desfecho do caso.

- Pode-se ver a ferida? - perguntou Lebenthal.


- Mal - respondeu Betger, - Em todo o caso, não os SS. Era o
penúltimo niolar. O maxilar está Úgido, agora.

Tinhain estendido o cadáver de Lohmann diante da barraca. A


chamada da manhã @á fora feita. Esperava-se o carro dó
crematório.

Ahasver estava ao lado do 5O9. Os seus lábios mexi:@,m-se.


- Para este não tens necessidade de recitar o kaddiscb, velho
-

declarou o 5O9. - Ele era protestante.

Ahasver levantou os olhos.


- Isto não pode fazer-lhe mal - disse tranquilamente, e
recome-
çou a resmungar.

Bucher chegou. Atrás dele, Karel, o rapaz checosicívaco. As


suas

pernas eram niagras corno ponteiros e o rosto, não maior do


que uni punho, era dominado por um crânio desproporcionado.
Cambaleava.

- Vai-te embora, Kafel. Faz muito frio aqui para ti - disse o


5O9. A criança abanou a cabeça e aproximou-se. O 5O9 sabia por
que é que ele queria ficar. Lol-in-iann dera-lhe
frequentemente um pouco do seu pão. E era o enterro de Lohmann
que se realizava diante da barraca, e era a partida para o
cemitério, eram os coroas e as flores de perfume amargo, eram
as orações e as lágrimas, era tudo o que podiarn fazer por
ele: ficar ali, fitar o corpo corn os olhos secos, ao sol ela
manhã.

- Ai veni o carro - disse Berger, No p£incípio, os cadáveres


do campo eram transsportados por honiens. Quando se tornaram
iiyais numerosos, recorreu~se a kulia carroça puxada por uni
cavalo cinzento, Depois, morto o cavalo, repusera-se ao
serviço uivi velho camião, adaptado como os dos

ERICH-MARIA. REMARQUE

esquartejadores de gado. Todas as manhãs ia ele de barraca em


barraca para levar os mortos.

- Há carregadores?
- Não.
- Então, temos de o carregar nós. vão procurar Westhof e
Meyer.
- Os sapatos! - murmurou, de súbito, Leben~, muito agitado.
- Com mil raios! Esquecemo-4os. Ainda podem servir.
- Sim, mas é preciso que ele tenha qualquer coisa nos pés.
- Ainda está na barraca o par de sapatos esfarrapados de
Buchsbauin. Vou buscá-los.

- Ponham-se à minha volta - disse o 5O9. - Depressa! De


maneira que não vejam.

Ajoelhou-se junto de Lohmann. Os outros dispuseram-se em volta


dele, de modo a escondê@4o das sentinelas da torre mais
próxima do camião que acabava de parar diante da barraca 17.
Tirou facilmente os sapatos; tínhani-se tornado demasiado
grandes, Os pés de Lohmann estavam reduzidos aos ossos.

- Onde estâo os outros? Depressa, Léo!


- Toma. Lebenthal, que saía da barraca, trazia os sapatos
rasgados debaixo do casaco. Meteu-se entre os camaradas e
deixou cair os sapatos diante do 5O9. Este deu-lhe os sapatos
de Lohmann. Lebenthal introduziu-os debaixo do casaco,
bastante acima para segurá-los sob os sovacos, O 5O9 calçou a
Lohmann os velhos sapatos de Buchsbaum e levantou-se,
cambaleando. O carro acabava de parar diante da barraca 18.

- Quem vem ao volante?


- O pffiprio kapo, 5"hschneider. Lebenthal regressou.
- Como foi possível esquecermo-nos! As solas ainda estão boas,
- Podemos vendê-4os? - perguntou o 5O9.
- Trocá-los.
- Bem,
O camião aproximava-se. Lohmann jazia ao sol. A sua boca
estava deformada por um esgar e um dos olhos brilhava como um
botáo de osso verde. Ninguém falava. Todos o olhavam. Ele
estava infinitamente longe.

Os cadáveres das secções B e C estavam carregados.


- Vamos! - gritou Strohschneider. - Talvez queiram um sermão?!
Mandem os rebentados!

- Venham - disse, Berger. A secção D, nesse dia, só tinha


quatro cadáveres. Ainda se encontrou lugar para os três
primeiros. Agora o camião estava cheio. Os

7O

A CENTELHA DA VIDA

ranos já não sabiam onde meter Lohmann. Os outros cadáveres


ávam amontoados uns sobre os outros. A maior parte deles,
rígidos.
- Por cima! - gritou Strohschneider. - Querem que lhes
empreste as minhas pernas? Subam alguns para o camião,
madraços! É o 'ünico trabalho que ainda se lhes pede: rebentar
e carregar!

Eles não conseguiam carregar Lohmann de baixo.

Bucher! WesthoP. Venham! - gritou o 5O9. Deitaram o cadáver no


chão. Lebenthal, o 5O9, Ahasver e Berger ajudaram Bucher e
Westhof a subir para o camião. Bucher já estava quase em cima
quando escorregou e perdeu o equiIII)rio. Procurou um ponto de
apoio, mas o cadáver a que se aferrou não estava ainda rígido.
Cedeu e seguiu Bucher na queda, escorregando para o chão com
urna passividade que incomodava. Dir-se-ia que só tinha
articulações.

- Meu Deus! - gritou Strohschneider. - Para que serve este


esterco?

- Depressa, Bucher, outra vez! - murmurou Berger. Içaram


novamente Bucher, ofegando. Desta vez ele conseguiu permanecer
no cimo.

- Primeiro o outro, ainda está mole, pode-se empurrar. Era o


corpo duma mulher. Era mais pesada do que os habituais
cadáveres do campo. Ainda tinha os lábios. Não fora de fome
que mor@ rera. Tinha seios, e não odres de pele vazia. Não
vinha da secção das mulheres contigua ao pequeno campo;
estaria mais magra se viesse de lá. Devia pertencer ao campo
de troca de judeus munidos de documentos sul-americanos. Ainda
havia lá famífias inteiras.

Strohschrieider descera do assento e olhava a mulher.


- Vocês arregalam o olho, hem, seus bodes velhos! Sacudiu-o um
riso enorme, provocado pelo seu próprio gracejo. Como kapo da
brigada do crematório não tinha de conduzir o camião; se o
fazia, era para estar dentro do carro. Era um antigo motorista
e nunca perdia uma ocasião de guiar. Nunca estava de mau
humor.

Reunidos oito, conseguiram, enfim içar o cadáver mole. Tremiam


de esgotamento. Depois levantaram Lohmann, a quem
Stfohschneider saudou com um jacto de suco de tabaco. Depois
da mulher, Lohmann era muito leve.

- Segurem-no bem - murmurou Berger. - Prendam-lhe um braço ao


dum outro.

Conseguiram introduzir um dos braços de Loffinann entre duas


tábuas dos taipais laterais. O braço pendia para fora, mas a
corrente transversal passava por baixo da axila do cadáver.

-.lã está - disse Bucher, deixando-se cair.


- Então, acabou, gafanhotos?

71
ERICH-MARJA REMARQUE

Strolischneider riu as gargalhadas. A azáfama dos dez


esqueletos tinha-o feito pensar eni enormes gafanhotos que
arrastavam 11111 outro gafanhoto rígido,

- Gafanhotos! - repetiu, olhando os veteranos. Ninguém riu.


Ofegantes, olhavam a traseira do camião, donde os pés dos
mortos eniergiani. Muitos pés, Entre eles, uns pés de criança
calçados de sapatos brancos sujos.

- Então, cavalheiros da confraria do tifo, de quem é a vez? -


pergutitou Strohschneider içando-se para o assento.

Ninguém respondeu. O bom hunior de Strohschneider


desapareceu,

- Cagões - resmungou. - E mesmo para isso estão deiríasiado


embrutecidos!

Pisou o pedal de arranque raívosainente. O motor crepitou como


urna metralhadora, os esqueletos saltaram para o lado.
Strohschneider, risonho, fez a curva.

Eles desapareceram numa nuvem azul, Lebenthal tossiu.


- Porco de estrume! - praguejou.
O 5O9 deixou-se ficar no ffinio.
- Talvez seja bom contra os piolhos - disse,
O carro descia para o crematório, aos solavancos pela estrada
irregular. o braço de Lohmann, que saía do camião, parecia
fazer sinais de adeus.

O 5O9 seguia-o com os olhos. Apalpou a coroa de ouro na


algibeira, Tivera por um momento, a impressão de que ela devia
tef desaparecido com Lohmann. Lebentl-ial continuava a tossir.
O 5O9 voltou-se. Tinha também sentido no bolso o bocado de pão
da véspera. Não o comera ainda. Apalpou-o. A consolação
pareceu-lhe irrisória,

- E os sapatos, Léo? Valem alguma coisa?- perguntou. Berger


dírígia-se ao crematório quando viu Weber e Wiese. Voltou para
trás, manquejando.

- Aí vem Weber! Com Handke e uni civil! Creio que é o Dr.


Cobaia! Cuidado!

A comoção apoderou-se das barracas, Os oficiaissuperíores, SS


quase nunca vinham ao pequeno campo. Todos sabiam que para
isso era preciso que tivessem uma razão especial.

- O cão-pastor, Ahasver! - gritou o 5O9. - Esconde-o.


- Talvez não. Há um civil com eles,
- Achas que vão inspeccionar as barracas?
- Ainda estão longe? - perguntou Ahasver. - Há tempo ainda?
- Sim, mas depressa!
O cão-pastor deitou-sç docilmente e, enquanto Ahasver o
acariciava, o 5O9 atou-lhe os pes e as mãos para o inipedir,
de sair. Era unia

72

A CENTELHA 9A VIDA

,;cgisa que eles nunca faziam, mas esta visita não era
lia@itual e valia inais não correr o risco, Ahasver açaíniou-o
de tal maneira que, podendo embora respirar, ele não pudesse
ladrar, Depois em-

para o canto mais sonibrio. Fica aí! Ahasver levantou a mão.


- Paz! Deitado!
O cão--pastor tentou levantar-se.
- Deitado! Tem juízo! Fica ai!
O demente deíxou-se cair.
- Toda a gente fora! - gritou Handke. Os esqueletos saíram,
empurrandQ@-se uns aos outros, e puseram-se em fila. Os que
não podiam andar eram ajudados ou transportados e estendidos
no chão.

Era uni miserável rebanho de homens sen-jimortos, desfalecidos


e

esfaíniados. Weber voltou-se para Wiese.

- Era isto o que queria? As narinas de Wiese palpitaram como


se sentissem o odor de um assado.

- Magníficos espécimes!- murmurou, Pôs os óculos e


inspeccionou as fileiras com ar benevolente.
- Está a fazer a sua escolha? - p,--rguntou Weber. Wiese
tossicou,
- De facto, sim, mas não se falou em pedir volunUrios?
- É como queira - respondeu Weber. - São precisos seis
voluntãrios para pequenos trabalhos!
Ninguém se mexeu. Weber começou a fazer-se vermelho. Os
responsáveis de bloco repetiram a ordem e puserani-se a
empurrar homens para a frente. Weber, que marchava ao longo
das fileiras com tédio, descobriu, de súbito, Ahasver, o
último da barraca 22.

- Tu! O barbudo! - gritou, - Sai da fileira. Não sabes que


isso é proibido? Responsável do bloco! Que fazes? Para que
serves tu então? Sai da fileira!

Ahasver avançou. _ Demasiado velho - murmurou Wiese, retendo


Weber. - Não vamos tão depressa. Creio que temos de proceder
doutra maneira... Meus senhores - declarou numa voz doce , , o
vosso lugar é no hospital. Todos. Na enfermaria do campo já
não há lugar, Por mim, posso alojar seis de vocês. Precisant
de carne, de sopa, de fortificantes. Os seis mais necessitados
que se apresentem,

Ninguém se apresentou. Ninguém tio campo tinha confiança,em


semelhantes histórias. Além disso> os veteraríos,tinham
reconhecido Wiese. Sabiam que ele @ã levara homens e que
nenhum deles voltara.

73

ERICH-MARIA REMARQUE

Ainda comem em demasia, hem? - resmungou Weber. - Veremos


Isso! Que se apresentem seis homens e mais depressa que até
agora!

Um esqueleto da secção B avançou titubeando.


- Bem -'disse Wiese. -Tu és razoável, meu amigo. Irás
regalar-te.

Um outro se seguiu, depois um terceiro.


- Vamos, mais três! - gritou Weber, nervoso. Considerava esta
história dos voluntários uma fantasia ridícula de Neubauer.
Bastaria dar ordens à repartição, e os seis homens seriam
entregues, sem mais nada. Os seus lábios começaram a tremer.

- Eu fico, pessoalmente, por fiador: boa alimentação, carne,


chocolate, sopas fortes... Doutor, estes animais não
compreendem quando se lhes fala desta maneira.

- -Carne? - disse o esqueleto Wassja, como se estivesse


hipnotizado.
- Certamente, meu amigo. Todos os dias, todos os dias terás
carne.

Wassja mastigava sonhadoramente. O 5O9 deu-lhe uma cotovelada


para o fazer voltar à realidade. O movimento fora quase
imperceptível, mas não escapou â Weber.

- Porco! Atirou-lhe um pontapé ao ventre. O choque não foi


muito violento. No espírito de Weber tratava-se mais de uma
chamada à ordem do que de uma punição. No entanto, o 5O9
tombou imediatamente,

- De pé, simulador! - Isso não, isso não - mun-nurou Wiese,


retendo-o. - Preciso deles em bom estado.

Inclinou-se para o 5O9 e cornecou a apalpá-lo. Ao cabo dum


instante o 5O9 reabriu os olhos. Não olhou Wiese, mas sim
Weber.

Wiese endireitou-se.
- E preciso que vás para o hospital, meu amigo, ocupar-se-ão
lá de ti.

- Eu não estou ferido - gemeu o 5O9, pondo--se de pé a custo.


Wiese sorriu.
- Como médico sou melhor juiz do que tu. Voltou-se para Weber.
- Com este mais novo faria a conta. Indicava Bucher, que era o
vizinho do 5O9-
- Em frente, marche! Bucher veio colocar-se ao lado do 5O9 e
dos outros. Graças ao vazio feito assim, nas fileiras, Weber
distinguiu o rapazito checo, Karel.

- Tem ali meia porção. Quere-o como contrapeso?

74

A CENTELHA DA VIDA

Obrigado. Convên-i--nie adultos. Estes bastam, muito obrigado.


Bem., dentro de um quarto de hora apresentem-se na
administração. Responsável do bloco, tome nota dos números. E
lavem-se, cambada de porcos!

Estavam petrificados. Todos se calavam. Sabiam o que os


esperava. Apenas Wassja estava radiante. A fome
iiiibecüizara-o: acreditava nas promesas de Wiese.
Os três prirrieiros tinham os olhos fitos no vácuo; teriam
obedecido sem hesitar a não importa que ordem, mesmo que os
tivessem mandado lançar-se sobre os arames electrificados.
Ahasver jazia por terra, geniendo. Após a partida de Weber e
Wiese, Handke havia-o desancado com uni cacete.

- Joseph! Unia voz débil chamava do campo das mulheres. Bucher


não se movia. Berger empurrou-o com o cotovelo.

- É Ruth Holland.
O campo das mulheres erguia-se à esquerda do pequeno campo, de
que estava separado por urna fila, dupla de arames não
electrificados. Compunha-se apenas de duas pequenas barracas,
instaladas no decurso da guerra, quando as prisões maciças
tinham começado. Antes disso não havia mulheres no campo.

Dois anos antes, Bucher, durante algumas semanas, efectuara


ali trabalhos de marcenaria. Fora assim que encontrara Ruth
Holland. Puderam voltar a ver-se e a falar-se às escondidas.
Depois, Bucher fora incluído noutra brigada. Só quando ele foi
relegado para o pequeno campo é que tornaram a ver-se.
Frequentemente, à noite ou por tempo de nevoeiro, tinham
podido trocar algumas palavras.

Ruth Holland estava de pé, atrás dos arames. O vento


cingia-lhe o vestido listado contra as suas magras pernas. Ela
chamou outra vez:

- Joseph! Bucher ergueu a cabeça.


- Afasta-te dos arames! Eles podem ver-te!
- Ouvi ti ido. Não vás! Ela abanava a cabeça. Os seus cabelos
eram curtos e grisalhos.
- Tu não! Fica aqui! Não vás! Fica aqui, Joseph! - Bucher
deitou uni olhar impotente ao 5O9.

- Nós voltaremos - respondeu, por ele, o 5O9.


- Eu sei que ele não voltará. E tu tambéni sabes. - Ela
agarrou-se aos arames.

- Nunca se volta.
- Afasta-te, Ruth! Ele olhou para as torres de vigia.
- É perigoso estar aí!

75

ERICH-MARIA REMARQUE
Ele não voltará, vocês bem o sabem, todos!
O 5O9 não respondeu. Nada tinha a responder. Estava aturdido,
insensível. Não sentia mais nada, nem por si nem

pelos outros. Sabia que tudo estava perdido, mas não o


conseguia imaginar exactamente. Apenas sentia que nada sentia.

- Ele não voltará - repetiu Ruth Holland -, ele não deve ir.
Bucher baixava os olhos. Estava por de mais impressionado para
poder responder.

- É preciso que ele não vá - repetia Ruth. Era como unia


litania monótona, sem emoção, já para além de toda a emoção.

- Deve ir outro no lugar dele. Ele é muito novo. Ninguém dizia


palavra. Todos sabiam que Bucher tinha de ir. Handke tomara
nota dos números. E quem iria no lugar dele?

Olhavam-se em silêncio. Os que deviam ir e os que ficariam.


Olhavam-se. Teria sido mais suportável que o raio tombasse e
fulminasse Bucher e o 5O9. O que era intolerável neste último
instante era esta pergunta muda e enganosa: "Porquê eu, porquê
justamente eu?", e esta exclamação de alívio: "Graças a Deus,
escapefl-

Ahasver levantou-se lentatriente. Olhou um momento com ar


estúpido. Depois, ao voltar-lhe a lembrança dos
acontecimentos, murmurou qualquer coisa.

Berger vQItou-se.
- Foi por minha culpa! - gritou, de súbito, o velho. - Fui eu,
a minha barba, foi dela que veio todo o mal! Sem isso, ele
teria ficado, oh!

Começou aos repelões à barba, com as duas mãos. As lágrimas


corriam-lhe pela cara abaixo. Estava demasiado fraco para
conseguir

arrancar os pêlos. Sentado no chão, sacudia a cabeça dum lado


para o outro.

- Vai para a barraca! - disse Berger duramente. Ahasver


fitou-o, depois deixou-se cair para a frente, aos gritos.
- Temos de ir - disse o 5O9.
- Onde está o dente? - perguntou o Lebenthal.
O 5O9 meteu a mão na algibeira e estendeu-o a Lebenthal.
- Toma. Lebenthal agarrou-o, tremendo.
- O teu Deus - articulou, com um vago movimento para a cidade
e para a igreja queimada. - Os teus sinais! A tua coluna de
fogo!

O 5O9 meteu o; itra vez a mão no bolso. Ao tirar o dente


sentira o bocado de pão. De que servira não o comer?
Estendeu-o a Lebenthal.

- Come-o tu! - disse Lebenthal com desespero.


- Eu? já não vale a pena. Um muçulmano que tinha visto o pão
acorreu, canibaleando, com

76

A CENTELHA DA VIDA

a boca escancarada, e agarrou-se ao braço do 5O9. Este repeliu


e pôs o pão na mão de Karei, que observava toda a cena em
silêncio. O muçulmano atirou-se a Karel, O rapaz disparou~lhe
tranquilamente @''urn pontapé nas tíbias. O muçulmano
cambaleou e foi arrastado pelos outros. Kárei olhou o 5O9,

- Eles vão gasear-vos? - perguntou gravemente,


- Devias saber já que não há câmara de gás aqui - disse
Berger, de mau modo.

Era também o que nos diziam em Birkenau. Quando davam uma


toalha e diziam que era preciso tomar banho, era para o gás.

Berger empurrou-o.
- Vai-te einbora e come o teu pão, se não tiram-to.
- Não te preocupes, eu acautelo-me. Karei atulhou a boca de
pão. Fizera estas perguntas como quem se informa sobre o
destino duma viagem, sem pensar em mal. Crescera no campo de
concentração e nada mais conhecia.

- Venharn - disse o 5O9. Ruth Holland começou a chorar. As


suas mãos pendiam dos arames como garras de ave. Gemia,
mostrando os dentes. As lágrimas tinham secado.

- Venham - reetiu o 5O9. Passeou o olhar pelos que ficavam. A


maior parte tinha já regressado, indiferente, às barracas.
Apenas restavam os veteranos e alguns outros. O 5O9 teve, de
súbito, a impressão de ter ainda a dizer~lhes qualquer coisa
de extrema importância, qualquer coisa de que tudo dependia.
Concentrou todas as suas forças, mas não conseguiu traduzir em
palavras o que queria dizer.

- Não esqueçam - disse simplesmente. Ninguém respondeu.


Compreendeu que esqueceriam: tinha assistido já a tantos
espectáculos semelhantes! Bucher talvez não esquecesse; era
jovem bastante. Mas tanibém ele tinha de ir,

Puseram-se a caminho, Não se tinham lavado. Fora uma zombaria


de Weber. O campo não tinha água suficiente. Avançavam sem
olhar à sua volta. Passaram a porta do arame farpado. A
"porta, dos rebentados". Wassja dava estalos com a língua. Os
três novos caminhavain como autómatos. Passarani diante das
primeiras barracas do campo de trabalho. As brigadas tinham já
pai-tido há muito tempo. As barracas estavam desertas e
miseráveis, mas ao 5O9 parecerani-lhe as coisas mais
apetecíveis cio mundo. Eram lugares seguros, escondidos, onde
se vivia. Ele desejaria arrastar~se para elas, acocorar-se lá,
fugir desta marcha inipiedosa para a morte. "Dois meses mais",
pensou, obscuramente. "Talvez duas semanas apenas. E tudo fora
inútil, tudo,-

- Camarada - disse, de repente, alguém perto dele.

77

ERICH-MARIA REMARQUE

Era diante da barraca 13. O homem erguia-se na soleira da


porta. Uma barba hirsuta enegrecia-lhe o rosto.

- Não esqueçam - murmurou. Não conhecia este homem.


- Não esqueceremos - respondeu o homem. - Para onde vão? Os
homens que haviam ficado no campo de trabalho tinham visto
Weber e Wiese. Sabiam que isto devia significar alguma coisa.

O 5O9 parou. Olhava o homem. Sentia voltar-lhe a lucidez.


Lembrou-se daquela coisa importante que tinha ainda a dizer,
que não devia perder-se.

- Não esqueçam - murmurou com voz intensa. - Nunca! Nunca!


- Nunca! - repetiu o homem com voz fimie. - Para onde vos
mandam?

- Para o hospital, como cobaias. Não esqueçam. Como te chamas?


--Lewinsky, Stanislas.
- Não esqueças, Lewinsky - disse o 5O9. (Tinha a impressão de
que as suas palavras possuíam mais força acompanhadas de um
norne.) - Lewinsky, não esqueças.

- Não esquecerei. A mão de Lewinsky pousou sobre o ombro do


5O9. O contacto penetrou nele completamente. Olhou Lewinsky
unia última vez. O rosto deste não se assemelhava aos dos
homens do pequeno campo.
O 5O9 sentiu que ele compreendera. Afastou-se.

Bucher esperava-o. juntarani-se ao grupo dos outros quatro,


que tinham ganho um certo avanço.

I- Carne - murmurava Wassja. - Sopa e carne...

O escritório cheirava a pontas de cigarro frias e a couro


húmido.
O responsável do escritório preparara os papéis. Olhava os
seis ho-

mens com indiferença.

- Assinem aqui.
O 5O9 olhou para a mesa. Não compreendia por que tinha de
assinar. Aos prisioneiros dão-se ordens - e é tudo. Sentiu
então que o observavam. Era um dos escriturários, sentado
atrás do kapo. Tinha unia cabeleira dum vernielho-flainejante.
Quando se apercebeu de que o 5O9 reparara nele, abanou
imperceptivelmente a cabeça e baixou logo os olhos para a
secretária.

Weber entrou. Toda a gente se imobilizou em sentido.


- Descansar! - ordenou, agarrando os papéis espalhados na
mesa. - Ainda não está pronto? Vamos, depressa, assinem!

- Eu não sei escrever - disse Wassja, que era o primeiro.


- Então, faz três cruzes.

78

A CENTELHA DA VIDA

Wassja fez três cruzes.


- O seguinte! Os três voluntários aproximarani-se um de cada
vez. O 5O9 fazia um doloroso esforço para concentrar a
atenção. Parecia-lhe que devia haver em qualquer parte uma
saída possível, Deitou um olhar ao escriturário; ele tinha os
olhos obstinadamente baixos.
- Tu agora - resmungou Weber. - Então? Estás a sonhar?
O 5O9 agarrou o papel. Tinha os olhos confusos. As poucas
linhas dactilografadas dançavam diante de si.

- Ainda precisa de ler, vejam!... Weber deu-lhe um soco.


- Assina, nojento!
O 5O9 tinha lido o bastante. Lera: "O abaixo assinado
declara-se voluntár@o ... Deixou cair a folha na mesa. Era a
última e desesperada probabilidade. Era o que o escriturário
lhe queria dar a entender,

- Então, cabra velha! Queres que te segure a mão?


- Não me declaro voluntário - pronunciou o 5O9.
O responsável do escritório olhou-o bruscamente, Os
escriturários levantaram a cabeça e voltaram a mergulhar
imediatame@itç- no trabalho. Houve um instante de silêncio
total.

- O quê? - perguntou depois Weber, incrédulo.,


O 5O9 tomou fôlego.
- Não me declaro voluntário.
- Recusas-te a assinar?
- sim. Weber passou a língua pelos lábios.
- Então, recusas-te a assinar?... Agarrou a mão direita do
5O9, torceu-lha e dobrou-lhe o braço para as costas. O 5O9
curvou~se em dois para o chão. Wel-)er, continuando a
torcer-lhe o pulso, fê-lo baloiçar para a frente e subiu-lhe
para as costas.

O 5O9 soltou uni grito e não se moveu mais, Weber puxou-o pela
gola e pô-lo de pé. Imediatamente, o 5O9 tombou.

- Enfezado! - rosnou Weber. Depois abriu a porta,


- Kleinerti Michel! Tireni-nie isto daqui e acordem-no! Eu vou
já. Eles arrastaram o 5O9.
- Agora tu - disse Weber a Bucher. - Assina! Bucher trernia.
Não queria tremer, mas era mais forte do que ele. Estava
sozinho agora. O 5O9 já não estava ali. Tudo desabava dentro
de si, Tinha de proceder rapidamente como o 5O9, se não seria
dernasiar-lo tarde e obedeceria como uni autómato.

79

ERICH-MARIA REMARQUE

Também não assino - balbuciou, Weber riu.


- Olhem-me para isto! Mais uni, Parece que voltámos aos belos
dias do princípio!

Bucher mal sentiu a pancada. Afundou-se em trevas cheias de


estalidos. Quando voltou a si, viu Weber curvado sobre o seu
rosto. "O
5O9", pensou confusamente, "o 5O9 tem mais vinte anos do que
eu. Fizerani lhe o mesmo. Tenho de aguentar!" Sentiu uni
arrancamento, uma dilaceração ardente nas espáduas, não ouvíu
o seu próprio grito, afundou-se novamente.

Quando voltou a si, pela segunda vez, estava deitado, todo


encharcado, sobre tini chão de ciniento, perto do 5O9. A voz
de Weber chegou-lhe como um zumbido.

- Eu poderia assinar em vosso lugar e estaria tudo acabado;


mas não o Íárei! Esperarei o tempo necessário para liquidar a
vossa obstínação. Vocês assinarão, Hão-de suplicar-me de
joelhos que vos deixe assinar, se ainda forem capazes,

O 5O9 via a cabeça de Weber enquadrar-se sombriamente na


janela. Parecia enorme contra o céu azul. Esta cabeça era a
morte e o céu que a rodeava era a vida, a vida não importa
onde, não importa como, píolhenta, zurzida de pancadas,
ensanguentada, a vida apesar detudo... Isto durou o tempo de
um relâmpago, depois a insensibilidade reapossou-se dele, os
nervos enfraqueceram, e nada mais houve além duni surdo ruído.
"Para quê lutar (assim pensou qualquer coisa de vago em si
quando recobrou os sentidos)? Que diferença há entre morrer
aqui debaixo de pancadas e assinar e ser liquidado por unia
injecção, mais rapidamente, menos dolorosamente?", mas logo
ouviu uma voz perto de si, a sua própria voz, que parecia
dialogar consigo inesIllo:

- Não, não assinarei, mesmo que eles me matem à pancada! Weber


riu às gargalhadas.
- Ali, isso querias tu, carcaça! Para que isto acabasse, hem?
Entre nós isto leva semanas! Ainda -agora começou!

Levantou a chibata. O golpe atingiu o 5O9 à altura dos olhos.


Estes estavam demasiadamente enterrados nas órbitas para serem
tocados. Uni segundo golpe ahateu-se sobre os lábios, que
estalaram como uni pergaminho seco. Algumas pancadas no crânio
com o punho de nietal fizeiani-no perder os sentidos outra
vez.

Weher afastou-se e caiu sobre Bucher. Bucher tentou


proteger-se, mas os seus movimentos eram lentos de mais. Um
golpe abateu-se sobre a cana do nariz. Ele curvou-se em dois.
Weber atirou-lhe uni pontapé entre as pernas. Bucher soltou
uni grito. Sentiu ainda algumas vezes o punho de iiieW
inartelar-lhe a nuca e deslizou nas trevas.

8O

A CENTELHA DA VIDA

Ouvia vozes confusas, mas não se moveu. Enquanto parecesse


desmaiado, não lhe bateriam. As vozes passavam-lhe por cima.
Não tentava escutá-las, mas elas aproximaram-se e
febentaram-lhe nos ouvidos e no cérebro.

- Estou desolado, doutor, mas se os homens não querem


declarar-se voluntários--- Bem vê, \Veber fez tudo o que podia
para convencê-los.

Neubauer estava radiante. A sua expectativa fora satisfeita


para além de toda a esperança.

- Foi o senhor que ordenou isto? - perguntou ele a Wiese.


- Claro que não. Bucher tentou lançar um olhar prudente, mas
já não era capaz de dominar as pálpebras. Elas batiam como.as
duma boneca mecânica. Viu Neubauer e Wiese. Depois o 5O9, que
tinha também os olhos abertos. Weber não estava ali.

- Claro que não... como homem de ciência.,


- Como homem de ciência - interrompeu Neubauer,- o senhor tem
necessidade destes homens para, as suas experiências, não é
verdade?

- É uni assunto cientifico. As nossas experiências salvam a


vida de dezenas de milhares de homens. É um razão que lhe
escapa, talvez.

- Não, mas o que lhe escapa a si é a importância que n6s


ligamos às questões de disciplina. Uma importância
primordial... ,

- Cada uni tem as suas preocupações - declarou Wiese


orgulhosamente.

- Decerto, decerto. Estou desolado por não lhe poder ser mais
útil. Mas nós nunca forçamos os nosssos protegidos, e os
nossos homens parecem sentir repugnância em deixar o campo.
Voltou-se para o 5O9 e para Bucher.
- Então vocês preferem ficar no campo? o 5O9 mexeu os lábios.
- O quê? - perguntou Netibauer com dureza,
- Sim - disse o 5O9.
- E tu, lá?
- Eu tarribém - murmurou Bucher.
- Vê, doutor? Neuhauer sorria.
- Os nossos honiens dào-,se bem aqui, Não há nada a fazer.
Wiese não sorria.

G. C~ do Séc. XX 25 - 6

81

ERICH-MÁRIA REMARQUE

Imbecis - disse com desprezo -, desta vez era mesmo verdade,


apenas queríamos fazer experiências de alimentação.

Neubauer expeliu, soprando, o fumo do charuto.


- Tanto melhor. A insubordinação será duplamente punida. Se,
contudo, quiser tentar ainda encontrar outros voluntários, o
campo está à sua disposição.

- Obrigado - disse Wiese secamente. Ncubauer fechou a porta


atrás de si e penetrou na,cela, A nuvem azul e penetrante do
charuto rodeava-o. Quando a cheirou, o 5O9 sentiu, de súbito,
uni furioso desejo de fumar. Era uma necessidade estranha,
independente de si mesmo, que acabava de firmar-se~lhe nos
pulmões. Inconscientemente fez unia mspíração e, enquanto
observava Neubauer, sentiu o fumo invadi-lo. A princípio não
compreendeu por que Bucher e ele não tin 'ham sido
mandados com Wiese. Depois achou a explicação. Só podia ser
uma. Tendo recusado obedecer a uni oficial SS, iam ser punidos
no campo, A punição era fácil de prever - por recusa em
obedecer a um kapo já tinham sido enforcados presos. Errara
não assinando, sentiu~o de repente, Wiese ter-lhe~ia dado
ainda, talvez, uma probabilidade de salvação. Agora estavam
perdidos. Um arrependimento dilacerante invadiu-o.
Triturava-lhe o estômago, ínstalava-se-lhe atrás das órbitas,
confundindo-se inexplicavelmente com aquele louco desejo de
fumar.

Neubauer decifrou o número que o 5O9 trazia no peito. Era um


número bastante baixo.

Há quanto tempo estás aqui? - perguntou. Dez anos, Hérr


Obenturmbannfuebrer. Dez anos. Neubauer nunca pensara que
houvesse ainda presos do princípio., "No fundo é uma prova da
minha benignidade", pensou. "Não há, com certeza, muitos
campos em que se encontrem presos tão antigos." Chupou o
charuto. Isto, podia mesmo vir a ter uma certa utilidade.
Nunca se sabia o que podia acontecer.

Wéber entrou. Neubauer tirou o charuto da boca e teve um


soluço. Comera morcela e ovos mexidos, dois dos seus pratos
preferidos.

- SturmfuebrerWeber - disse -, eu não dei ordem para se fazer


isto.

Weber olhou-o. Esperava umgracejo. O gracejo não veio.


- Serão enforcados esta noite, durante a chamada - respondeu
por fim.

Neubauer soluçou outra vez


- Não foram estas as ininhas ordens - repetiu. - E, antes de
mais, por que se encarregou disto?

NVeber não respondeu logo. Não compreendia por que gastava


Ncubauer palavras com semelhantes bagatelas.

A CENTELHA DA VIDA

Há bastantes homens para este gênero de trabalho - disse


Neubauer.

Nestes últimos tempos Wéber tomara uma certa independência.


Não era mau lembrar~lhe quem dava ordens ali.

- Que é que o levou a isto? Perdeu a cabeça?


- Não. Neubauer voltou-se outra vez para o 5O9 e Bucher.
Enforcá-los, dissera Weber. Em princípio, tinha razão. Mas
para quê enforcá-los? O dia decorrera mais favoravelmente do
que ele supusera primeiro. Além disso, seria excelente mostrar
a Weber, uma vez por todas, que nem tudo se devia passar,
necessariamente, como ele entendia.

- Não houve propriamente recusa à obediência - declarou. -

Eu tinha pedido alistamentos voluntários. Aplicará a estes


homens dois dias de bunkei@ nada mais. Nada mais, Weber,
ouviu? Exijo que as minhas ordens sejam respeitadas.
- Bem. Ncubauer saiu. Ia consciente da sua superioridade e
cheio de satisfação. Weber viu-o afastar-se com desprezo.
"Perdeu a cabeça., pensou. "Quem é que perde a cabeça aqui?
Quem é o fraco? Dois dias de bunker@ Voltou-se de mau humor.
Um raio de sol caí@i no rosto turnefacto do 5O9. Weber
observou--o de muito perto.

- Mas eu conheco--te!... Onde te encontrei eu já?


- Não sei, Herr Sturmfuebrer.
O 5O9 sabia--@o perfeitamente. Esperava que Wéber não se
recor~ dasse.

- já te vi, seguraniente, em qualquer parte. Acabarei por


lembrar-me. Que ferimentos são esses que tem na cara?

- Caí, HerrSturmfuebrer.
O 5O9 respirou. Os velhos hábitos não estavam perdidos,, Era
-um gracejo que remontava aos primeiros tempos dos campos de
concentração. Ninguém deveria jamais convir em que fora
espancado.,

Weber olhou-o outra vez,


- Eu já vi este focinho em qualquer parte - murmurou. Depois
abriu a porta.
- Levern~nie isto para o bunko*, Dois dias. Voltou-se de novo
para o 5O9 e Bucher.
- E não vão imaginar que escapam, meus cordeirinhos!
Euacabarei por vos apanhar@

Arrastaram-nos para fora, Com a dor, o fechou os olhos,


Depois sentiu o ar puro. Reabriu os olhos, O céu, imenso e
azul; Virou a cabeça para Bticher e olhou--o. Desta vez, pelo
menos, estavam salvos. Custava a acreditar.

uando, dois dias mais tarde, o Scba~rer mandou abrir as Q


portas do bunker, os dois homens caíram-lhe aos pés. Du~ rante
as últimas trinta horas tinham oscilado entre um estado de
consciência crepuscular e a noite completa. No primeiro dia
ainda tinham trocado sinais, batendo na parede. divisória;
depois toda a

comunicação cessara,

Leyaram-nos. jaziam agora no dancing, ao lado do muro que


cercava o crematório. Centenas de homens os viam, mas nem uni
tentava um movimento na direcção deles. Todos fingiam não os
ver. Unia vez que nenhuma ordem fora dada a seu respeito, era
como se não existissem, Quem quer que se tivesse aproximado
deles teria sido enviado para o bunker.

Duas horas mais tarde, os últimos mortos do dia foram levados


ao crematório.

- Que se faz destes? - perguntou, com ar fatigado, o SS de,


serviço. - Metemo-4os no fomo com os outras?

- Eles saíram do bunker:


- Esticaram?
- Parece que sim.
O SS viu a nião do 5O9 fechar~ lentamente, depois abrir-se,
- De todo ainda não - disse., ,Doíam-4he os rins. A última
noite que passara com Fritzi no Morcego fora uma prova rude.
Fechou os olhos. Ganhara a Hoffinann. A Hoffniaan e a Wilma.
Uma garrafa de Hennes3y, Famoso conhaque. Mas agora estava
estoirado.

- Pergunta no bunker ou na administração o que devemos fazer


- disse a uni dos maqueiros.

O homem regressou daí a momentos acompanhado pelo escriturário


dos cabelos ruivos.

- Estes homens foram soltos do bunker- explicou apressadamente


o ruivo. - Devem ser mandados para o pequeno campo. já o
deviam ter sido ao meio---dia. Ordem da Koniniandantur.

- Então, leveni--nos.
O SS examinou a sua lista com ar esgotado.
- Tenho trinta e oito mortos.

84

A CENTELHA DA VIDA

Contou os cadáveres alinhados diante da entrada,


- Trinta e oito. Está certo. Mas tireni-me daqui estes dois,
se não ainda vai haver trapalhada,

Quatro homens! - gritou o kapo do crematório. - Levem-nos para


o pequeno campo.

Apresentaram-se quatro homens.


- Por aqui! - murmurou o escriturário dos cabelos vermelhos. -
Depressa! Afastem-nos dos outros. Por aqui! ,
- Eles já não duram muito tempo - disse um dos carregadores.
- Cala a boca! Vamos! Levantaram o 5O9 e Bucher, O
escriturário inclinou-se sobre eles para os auscultar.

- Não estão mortos. Vão buscar padiolas! Depressa! Deitou um


olhar circular. Receava que Weher aparecesse. Ele
lembrar-se-ia de tudo e mandaria enforcar os dois.

Perrnaneceu junto deles até que os doís bomens tivessem


regressado com as padiolas. Tratava-se de pranchas
grosseiramente reunidas, sobre as quais eram habitualmente
transportados os cadáveres.

- Ponhan-r-nos ai em cima! Depre-%a!


O espaço livre que rodeava a porta de entrada e o crematório,
era sempre perigoso. Nas paragens vagueavam sem cessar SS e o
ScbarfuebrerBreuer não estava longe. Ele não gostava,que
saíssem do--- bunker prisioneiros vivos. Unia vez que os
tinham tirado do bunher; a ordem de Netibauer fora executada,
e os homens voltavam a ser presas fáceis. Estavam à mercê de
todos os caprichos, sem falar de Weber, que teria pensado que
a sua honra exigia que eles fossem, liquidados se soubesse que
contiriu-avan-i vivos.

- É idiota - disse um dos carregadores, de mau humor., -Agora


temos que transportá-los para o pequeno campo e amanhã será
preciso, com certeza, trazê-los para aqui. Não duram mais de
unias horas. @1

- Isso diz-te respeito, imbecil?


O ruivo pôs-se bruscamente a esbravejar,
- Levanta-me isso! Em frente! Não há aqui quem seja sensato?
- Sim, eu - disse uni preso bastante idoso, levantando a
padiola do 5O9. - Que lhes aconteceu? Alguma coisa de
exiraordinário?

- São dois homens da barraca 22.


O escriturário deitou um olhar em torno de si e aproximou-se
do niaqueiro.

- Estes são os dois homens que há dois dias se recusaram a


as,sinar o alistamento voluntário,

Qual alistamento?

ERICH-MARIA REMARQUE
- A declaração para o Dr. Cobaia, Ele levou os outros quatro.
- Hem? E não os vão enforcar?
- Não.
O escriturário deu alguns passos ainda ao lado da padiola.
- É preciso levá-los para a barraca, é a ordem. Despacheni-se
an-

tes que haja contra-ordem.

- Ali, bem! já percebi!


O carregador fez uni movimento tão rápido para diante que a
padiola foi bater nos joelhos do carregador da frente.

- Que se passa? - perguntou este, furioso. --w- Endoideceste,


não?
- Não. Despachenio-nos em levar estes, depois te direi porquê.
O escrituir4rio deíxou-os afastarem-se. Os dois ho mens
marchavam agora com rapidez e em silêncio, até que passaram os
edifícios da administração. O Sol descia. O 5O9 e Bucher
tinham ficado no bunkei-inêío dia mais além do previsto. Por
nada deste mundo Breucr teria renunciado a este suplemento,

O carregador da frente voltou a cabeça.


- Então? Que têm estes dois de extraordinário?
- Faziam parte dos seis homens que weber fez sair do pequeno
campo na sexta-fe".

- Que lhes fizeram? Dir~se-ia que os moeram com pancadas.


- Foi isso mesmo. Porque se recusaram a ir com o major que
estava lá. Laboratório experimental - disse o ruivo. - Não
levou poucos já.

O carregador da frente assobiou.

Caramba! E eles ainda estão vivos? É como vês!


O primeiro abanou a cabeça.
- E agora tiram-nos do bunkeO> E não são enforcados? Que se
está a passar? Nunca vi tal caisa.

Atingiram as primeiras barracas. Era um domingo. As brigadas


de trabalho tinham trabalhado todo o dia e acabavam justamente
de chegar. As ruas estavam cheias de prisioneiros. A notícia
espalhou-se logo.

Sabia-se no campo o motivo por que os seis homens tinham sido


levados. Sabia-se igualmente que o 5O9 e Bucher se encontravam
no bunker. A notícia, vinda da administraçào, espalhara@-sc
rapidamente para logo ser esquecida. Ninguém esp crava
vê-]os regressar vivos, E ei-los,que reapareciam. Mesmo
aqueles que não estavam ao corrente do que se passara podiam
ver peifeitaniente que, se os devolviam ao pequeno campo, não
era porque eles não servissem - se assim fosse, não os teriam
posto naquele estado.

t?6

A CENTELHA DA VIDA

Espera - disse alguém ao carregador da retaguarda -, vou


ajudar-te. Assim irá melhor,
1 Agarrou num dos varais. Um outro prisioneiro saiu do
ajuntamento e segurou no segundo varal da frente. A padiola
era agora transpormda por quatro homens. Não era necessária
tanta força; o 5O9 e Bucher não eram pesados; mas os presos
queriam fazer qualquer coisa por eles e, de momento, nada
mais, podiam fazer. Levavam a padiola como se ela fosse de
vidro. Corno se tivesse asas, a notícia precedia--os: os dois
homens que tinham recusado obedecer voltavam vivos. Dois
homens do pequeno campo. Dois homens das barracas muçulmanas.
Era inaudito. Ninguém sabia que tudo isto se explicava por um
capricho de Ncubauer - e, de resto, que iniportava? O que
contava é que eles se tinham revoltado e regressavam vivos.

LewInsky esperava diante da barraca 13 rnuito antes que a


padiola se aproximasse,
1

É mesmo verdade? - perguntou do mais longe, que pôde, Com


certeza. São eles ou não são? Lewinsky aproximou~se e
curvou-se sobre a padíola.
- Parece... sim... sim, é exactamente aquele com quem falei.
Os outros estão mortos?

- Só havia estes dois no bunker. O escriturário diz que os


outros marcharam, estes não. Recusaram.

Lewinsky endireitou-se lentamente. Viu Gol~in, perto de si.


- Eles recusaram. Terias acreditado nisto?
- Da parte dos prisioneiros do pequeno campo, não.
- Não é isso o que quero dizer. Quero dizer, que os tenham
deixado voltar vivos?

Goldstein e Lewinsky olharam-se, Muenzer velo juntar-se a


eles.
- Dir-se-ia que os irmãozinhos do Império Milenáriopõem água
no seu vinho - disse,

- O quê? Muenzer acabava de dizer o que ele próprio e


Goidstein pensavam em silêncio.

Por que dizes iss6? Foi o próprio velho quem deu a ordem -
disse Muenzer, - Weber queria edorcá-los.

- Quem to disse?
- Foi o escriturário ruivo quem contou, Ouviu dizer. Lewinsky
permaneceu silencioso um momento; depois vOltou~se para uni
homenzinho grisalho:

- Vai procurar Werner - murmurou. - Vai dizer-lhe isto.


Diz-lhe tambéni que aquele que nos pediu. que não
esquecêssemos voltou vivo.

87

ERICH-MARIA REMARQUE

O homem anuiu e desapareceu, i-ente à parede da barraca.


Entretanto os maqueíros prosseguiam o seu caminho. Os presos
apertavam-se às portas das barracas. Alguns aprox,~*vam--se
receosamente e deitavam um olhar para os dois corpos. Um dos
braços do 5O9 esoorregou e ficou pendendo no vazio. Logo dois
homens se precípitaram e o colocaram com cuidado na padiola,

Lewinsky e GoIdsteín seguiam o cortejo com os olhos,


- Da parte de dois cadáveres vivos representa uma cem coragem
revoltareni-se pura e simplesmente - disse GoIdstein. - Nunca
o teria esperado de uni dos homens da secção dos rebentados.

- Nera eu. Lewinsky continuava com os olhos fitos no pequeno


grupo que se afastava.

- É preciso que eles vivam - disse então. - É preciso que eles


não rebentem. Compreendes porquê?

- sim, se eles rebentarem, amanhã tudo estará esquecido, Se


não... 1

-Se não, serão para o campo a prova viva de que qualquer coisa
mudou", pensou Lewinsky. Mas não exprimiu o seu pensamento.
- Temos necessidade disto - disse. - Sobretudo agora. Ajudará
a aguentar.

Goidsteín concordou. Os carregadores prosseguiam o seu caminho


para o pequeno campo. Um crepúsculo selvagem purpureava o céu.
As barracas da direita estavam banhadas pela luz; as da
esquerda perdíam-se já numa sombra azulada, Os rostos que se
apertavam às janelas e portas do lado sombrio estavam, como de
costume, lívidos e sem vida, mas os que se encontravam do lado
iluminado apareciam coloridos como se uma brusca irrupção de
vida secreta os tivesse invadido de repente, Os carregadores
avançavam em plena luz. O sol tombava sobre os corpos cobertos
de sangue e sujidade - e, de súbito, já não se tratava sim~
plesmente de dois prisioneiros espancados que eram conduzidos
à sua barraca. Era, muito mais do que isso, o trágico e
triunfal cortejo de dois her6is que tinham resistido, mas que
respiravam ainda, que não estavam vencidos.

Berger desvelav2-se em volta deles. Lebentl-yaí arranjara sopa


de rutabagz. Tinham bebido um pouco de água e adormecido
depois, semi-inconscientes. Saindo vaganiente@ do seu torpor,
o 5O9 sentiu qualquer coisa quente na mão. Era como uma
lembrança fugidia, receosa. Muito longe, um pouco de calor...
Abnuos olhos.

O cão--pastor lambia~lhe a mão.

88

A CENTELHA DA VIDA

Água - murmurou o 5O9Berger acabava de pincelar-lhe com lodo


as articulações em carne viva. Ergueu os olhos, foi buscar a
lata da sopa e levou-a aos lábios do 5O9.

- Toma, bebe isto.


O 5O9 bebeu, Depois perguntou a custo:
- Que aconteceu a Bucher?
- Está deitado ao teu lado.
O 5O9 quis ainda fazer outra pergunta.
- Ele está vivo - disse Bercher. - Sossega. Para a chamada foi
necessário transportá-los para o dancíng. Alinharam-nos perto
dos doentes que não podiam andar, no chão, em, frente das
barracas. Estava já escuro, aias a noite era clara.

O chefe de bloco Bolte fez a chamada. Perscrutou o rosto do


5O9 e de Bucher, como se examinasse insectos esmagados.
- Estão ambos mortos - declarou. - Que fazem eles aqui com os
doentes?

- Eles não estão mortos, Herr Scbarfuebrer,


- Ainda não - explicou o responsável de bloco, Handke.
- Então será para amanhã. Passarão pela chaminé, Podem apostas
a cabeça.

Bolte fez a chamada à pressa. Tinha dinheiro no bolso,e estava


com pressa de encetar uma partida de cartas,

- Destroçar! - gritaram os responsáveis de bloco. - Os homens


da cozinha, era frente!

Os veteranos levaram o 5O9 e Bucher com mil cuidados. Handke


notou-o e troçou,

- Eles são de porcelana, bem? Ninguém lhe respondeu. Deu ainda


alguns passos para um lado e para o outro e depois retirou-se,
por sua vez.

- Porco! - resmungou Westhof, escarrando. ---Ign6b11 porco!


Berger observou-o com atenção. Há algum tempo já que Westhof
atravessava uma nova crise. Andava. inquieto, ruminava
constantemente obscuras ameaças, falava sozinho e provocava
toda a gente,

- Não faças tanto barulho: todos nós sabemos o que é o


HandkeWesthof fitou-o com um ar de obstinação.
- Uni prisioneiro corno nós- Fazer sentelhantes
titalandrices..;
- Toda a gente o sabe, e há-os às dúzias bem piores do que
ele.
O poder não modera os costunies, devias saber isso há muito
tempo. Bom, agora ajuda-nos um bocadinho.

Tinharri artan@ado duas pranchas para Q 5O9 e Bucher. Seis


honiens deviam agora dormir no chão. Uni deles era Karel, o
rapaz:checosiovaco. Ele ajudou à instalação dos dois doentes,

89

ERICH-MARIA REMARQUE

- O Schaifuebrer não percebe nada disto - disse ele a Berger.


- Hem?
- Eles não passarão pela chaminé. Não anianhâ, em todo o caso.
Podia apostar-se à vontade,

Berger observou--o. o rosto miúdo reflectia uma gravidade


profunda. Passar pela- chaminé era a expressão consagrada no
campo para a reinessa ao fomo creinatório.

- Ouve ]-)em, Karel - disse-lhe Berger. -1 56 quando se está


seguro de perder é que se deve apostar com os S5, e mesmo
nesse caso vale mais não o fazer.

- Eles não passarão pela chaminé. Amanhã não, com certeza.


Aqueles ali, sim. ,

Karel apontava com o dedo três niuçulmanos deitados no soalho.


Berger olhou--c, de novo.
- Tens razão - disse. Karel anuiu sem orgulho.

No dia seguinte à noite eles podiam falar. Os seus rostos


estavam tão emagrecidos que os inchaços se reduziam a pouca
coisa. Estavam cobertos de nódoas azuis e negras, nias os seus
olhos abriam-se e os lábios apenas estavam golpeados.

- Não mexam os lábios quando falarem - disse-lhes Berger. Nada


mais fácil. Sabiam faz"o depois de alguns anos de campo. Todos
os presos sabiam falar sem contrair um só músculo do rosto.

Após a sopa, bateram, de súbito, à porta. Todos os corações se


apertaram. Viriam buscar os dois feridos?

Bateram outra vez, com cuidado, dunia maneira quase


imperceptível.

- 5O9, Bucher - murmurou Ahasver. - Finjani-se mortos.


- Abre, Léo - disse, baixinho, o 5O9. - Não são os SS, Não é
assim que eles vêni.

As pancadas cessaram, Alguns segundos mais tarde unia sombra


desenhou~se na pálida claridade da janela. Unia mão agítou-se.

- Abre, Léo - disse o 5O9, - É alguém do campo de trabalho.


Lebenthal abriu a porta,- unia sombra deslizou para o interior
da barraca.

- Lewinsky - disse a sombra. - Stanísias. Quem está acordado?


- Todos. Aqui estou, Lewinsky tacteou na direcção de Berger,
que acabara de falar.
- Onde? Tenho niedo de pisar alguni.
- Não te mexas. Berger avançou para ele.

9O

ERICH-MARIA, REMARQUE

- Sim.
- E voci@s nAo?
- N6s, nAo, Lewinsky inclinou-se para o 5O9,
- Nunca teriamos acreditado que voo@s o conseguiriarn.
- Nem eu - disse o 5O9.
- Ndo quero, dizer somente que aguentassem. Quero dizer
tamhern q@ie nada vos viesse a acontecer de pior,

- E isso o que eu penso.


- Deixa-os tranquilos - disse Berger. - Eles estAo niuito
fracos. Pot que queres tu saber isso tudo, tAo exactamente?

Lewinsky ergueu-se na sornbra.


- E mais importante do que julgas... Tenho de it. Voltarei em
breve. Trarei mais qualquer coisa. Tenho ainda de falar com
voc8s.

- Bom. 'Incia aqui durante a noite?


- kA inspecr,6es com frequL
- Para qu@? - perguntou Berger. - Para contar os mottos?
- Bem. NAo hl, portanto, inspecV6es.
- Lewinsky! - murmurou o 5O9.
- Diz.
- Voltarls em breve?
- Certamente.
- Ouve...
O 5O9 procurava as palavras com emoCAo.
- N6s. estamos ainda ... Ainda nAo estamos acabados... Ainda
setvinios para aiguma coisa ...

- E para isso mesmo que voltarei. Nio 6 pot caridade, podes


crer-me.

- Bem, assim esti bern, assim tu voltarls, com certeza.


- Com certeza.
- Nao nos esque@am,
- JA mo disseste uma vez e rido os esqueci. Foi pot isso que
vim. E C@ pot isso que voltarei.

Lewinsky avancou, tacteando, para a saida. Lebenthal fechou a


porta atrAs dele,

- Mais devagarl - disse Lewinsky atrAs da porta. - Esquecia


ainda outra coisa. Torna...

- Se conseguires saber donde vem o aq(icar... - disse


Lebenthal;
- Niao sei. Verenios. Lewinsky continuava a falar numa voz
sufocada e entrecortada. -Toma, agarra isto. Chegou hoje.
Leiani... Meteu,na indo de Lehenthal um papel dobrado em
quatro e desapareccu na sornbra. Lebenthal fechou a porta.

92

A CENTELHA DA VIDA

A@ficar! - disse Ahasver.- Deixa-me tocar nurn bocado. Apenas


tocar... nada mais...

- Ainda M dgua? - perguntou Berger.


- Torna. Lebenthal estendia-lhe uma tigela. Berger agarrou
dois bocados de acCicar e p6s-se a deffetd-los. Depois
arrastou-se-at6 ao 5O9 e Bucher.

- Bebarn isto. Devagar. Um. gole de cada vez a cada um.


- Quem esti a comer ai? - perguntou algui@,m.
- Ningu6m. Quern queres tu que coma? - Ouco beber.
- EstAs a sonhar, Ammers - disse Berger.
- Ndo estou a sonhar. Quero, a minha parte! Voces estdo a
com8-la! Quero a minha parte!

- Espera at(! amanhd de manha.


- AmanhA de ii-lanhd estard tudo comido. k sempre a mesma
coisa. Sou sempre eu quern menos tem. Sou sempre eu...

Ammers p6s-se a solu@ar. Ningu6m fez caso. Ele estava doente M


a1guns dias e julgava-se sempre lesado.

ks apalpadelas, Lebenthal aproximou--se do 5O9.


1 Aquelas perguntas acerca, do aq(tcar M bocado
corneo;ou ele com uma voz constrangida. - NAo era para
comerciar que eu perguntava. Queria simplesmente arranjar
rnais para voces...

Sim. Ainda tenho o dente. Nlo o vendi airida. Preferi esperar.


Vou fazer o neg6cio depressa.
- EstA bem, Uo. Que 6 que Lewinsky te deu ainda A porta?
- Um bocado de papel. Nio 6 dinheiro, Lebenthal apalpava na.
obscuridade,
- Parece papel de jornal.
- Urn recorte de jornal?
- Parece, sim...
- O que? - perguntou Berger. - Tu tens um bocado de jornal?
- W o que 6 - disse o 5O9. Lebenthal arrastou-se para a porta
e abriu-a.

t mesmo... um bocado de jornal todo rasgado. Podes ler? Agora?


Quando queres tu que seja? - perguntou Berger. Lebenthal
levantou o papel.
- Est! muito escuro.
- Abre mais a porta. Vai 14 fora. HA luar, Lebenthal abriu a
porta e acocorou-se no vdo. Exp6s o papel A luz incerta e
hesitante. Estudou-o durante muito tempo.

93

ERICH-MARIA REMARQUE

--Creio que 6 um comunicado de guerra _ disse depois.


- U - murmurou o 5O9. - Mas li@, de que estAs, espera?
- Ningu6m terd um f6sforo? - perguntou Berger.
- Remagen... - decifrou Lebenthal. - Sobre o Reno...
- O qu8?
- Os americanos estdo em Remagen, atravessaram Reno!
- Hem! Tu leste bem? O Reno? Tens a certeza de que ndo se
trata doutro rio? Dum rio frano@s?

- Ndo. O Reno, Remagen, os americanos.


- Ndo digas asneiras! Le bem! L@ convenientemente, por amor de
Deus!

E isto mesnio - disse Lebenthal - t isto. Vejo nitidamente


agora. @ Eles atravessaram o Reno? O Reno? SerA possivel? Mas
entAo estio na Alemanha! Continua a ler! L& L&

Todos falavam ao mesmo, tempo. O 5O9 ndo sentia os libios


racharem.

- O Reno! Mas como passaram eles o Reno? Com avi6es? Ern


barcos? Como? De p@lra-quedas? U, 1.6o! ,-Umaponte,
soletrouLebenthal.-Atravessaramumaponte... a ponte estd sob O
fogo, da artilharia alernA.
- Uma ponte? - perguntou Berger, incr6dulo.
- Sim, uma ponte perto de Remagen.
- Uma ponte - repetiu o 5O9. - Uma ponte sobre o Reno? Entdo
f6i o ex&rcito de terra... Continua, L6o! HA mais, com
certeza.

- NAo posso ler as letras pequenas.


- Ningu6m tem f6sforos? - perguntou Berger exasperado.
- Toma - disse uma voz na sornbra. - Dois.
- Entra, Lko. Formavam um grupo perto da porta.
- A@6car - gemia Ammers. - Eu sei que voo6s ti@m a@fjcar. Eu
ouvi. Quero a minha parte.

- Dd um bocado, a esse animal, Berger - munnurou o 5O9,


furioso.

- Ndo! Berger procurava a lixa da caixa dos f6sforos.


- Ponharn as coberturas e os casacos contra as janelas.
Mete-te num canto debaixo duma cobertura. Uo, depressa!

Riscou o f6sforo. Lebenthal p6s-se a ler tdo depressa quanto


podia. Eram as f6rmulas habituais. A ponte nao tinha valor
estrat(!gico. Os americanos estavam sob um. fogo infernal e
encurralados contra a margem que acabavam de atingir. Uni
conselho de guerra esperava as

tropas que ndo tinham feito saltar a ponte...

94

A CENTELHA DA VIDA

O f6sforo apagou-se.
- A ponte ndo f6i destruida - disse o 5O9. - Eles
atravessaram. uma ponte intacta. Sabern c, que isto quer
dizer?

- Devem ter ficado surpreendidos.


- Isto quer dizer que a muralha do ocidente f6i rota - disse
Berger, liesitante, como se julgasse estax sonliando. - A
muralha do ocidente rota! Eles passaram!

Foi, corn certeza, o ex6rcito de terra, e ndo um grupo de


pAra-quedistas. Os pira-quedistas teriam saltado para cd do
Ren'o.

- Meu Deus, e n6s que nada sabiamos! N6s que pensdvamos que os
alem5es conservavam ainda unia parte da Franga!

L& outra vez, L6o, i@ preciso que fiquenios; absolutaniente


certos. De quando 6 o coniunicado? Tern data?

Berger acendeu o segundo f6sforo.


- Apaguem! - gritou aigu6m; mas Lebenthal ji estava a ler.
- De quando? - interrompeu o 5O9. Lebenthal procurava.
- De 11 de Mar@o de 1945,
- 11 de Mar4@o de 1945. E a quantos; estamos; hoje? Ningu6ni
sabia exactamente se se estava ainda no firn de Marco ou jd no
principio de Abril. Tinharn perdido o sentido cronol6gico no
pequeno campo. Sabiam, no entanto, que o dia 11 de Mav;o fora
ji hA algum tempo.

- Deixa-me ver, depressa! - disse o 5O9. Insensivel A dor, ele


arrastava-se para o canto da barraca onde estava erguida a
cobertura. Lebenthal afastou-se par-a o deixar aproximar.
Inclinado para o papel, o 5O9 esforc .,ava-se por ler. A fraca
luz do f6sforo que se apagava s6 iluminava o titulo.

- Acende urn cigarro, Berger, depressa! Berger obedeceu.


- Que vens, tu fazer aqui? - perguntou, enquanto lhe nietia o
cigarro na boca. O f6sforo apagou-se por completo.

- DA-me o papel - disse o 5O9 a Lebenthal. Lebenthal deu-lho.


O 5O9 dobrou-o cuidadosamente e introduziu-o na camisa.
Sentia-o contra a pele. Depois puxou uma fumai@a do cigarro. -
Toma, dA-os aos outros.

- Queni 6 que estd a furnar ai? - perguntou o homern que dera


os f6sforos.

- Cliegard a tua vez. Uma furnai;a cada uni.

fumar - chorou Animers -, quero ar


- Ndo quero
,6car.
O 5O9 regressou ao catre corn a ajuda de Berger e de
Lebenthal.

95

ERICH-MARIA REMARQUE

Berger - murmurou ele ao fim durn momento -, acreditas agora?


- sial.
- Eu tinha razdo, portanto, acerca da cidade e do
bombardeamento.

Sim. Tu tamb6m, L6o? Sim. N6s sairemos daqui! Temos de said


Falaremos amarld - disse Berger.- Agora dorme.
O 5O9 deixou-se recair no catre. Sentia uma vertigem. -Foi
talvez., pensou, -esta fuma@a do cigarro.. O 1pequeno ponto
vermelho, protegido por mAos em concha, dava a volta 1
barraca.

- Toma - disse Berger. - Bebe mais um pouco de dgua aqucarada.

O 5O9 bebeu.
- Conservem os outros hocados, rido os deffetam. Poderemos
trocl-los por viveres. Slo mais importantes os viveres;
autiMticos.

- Voces ainda va-m cigarros - reclamou aigu6m. - Mern-nos.


- Nio temos mais - respondeu Berger.
- Sim! Voc8s ti6m outros! Vamos, entreguetn-nos!
- O que f6i trazido 16 para os dois homens do bunker.

Deixeni---se de hist6rias! t para todos. Toma culdado, Berger


- murmurou o 5O9. - Agarra nurn cacete. Temos de trocar estes
cigarros por Viveres. Cuidado tu tamb6m, lhol

- Estou prevenido. Os veteranos fizeram bloco. Os homens


avangavam, tacteando na obscuridade, caiam, praguejando,
batiam ao acaso e gritavam. Aqueles que estavam deitados
entrararn por sua vez na contenda.

Berger esperou urn momento. Um ruldo de passos precipitados,


de corpos escorregando no chdo, um empuffdo geral, gemidos;
depois... nada mais...

- NAo deviamos ter come@ado a funiar - disse Lebenthal.


- Evidentemente. Esconderam os outros cigarros?

HA que tempos... Deveriamos taml*m ter economizado o primeiro.


Mas em, ocasi6es destas...
O 5O9 sentiu-se de sfibito completamente esgotado.
- Bucher - perguntou, contudo, ainda -, tu ouviste taml-.,6m?
- Sim.
O 5O9 sentiu a vertigern acentuar-se. -Para cA do Reno.,
pensou, e sentiu o furno do cigarro nos pulm6es. Lembrava-se
de que sentira,
96

A CENTELHA DA VIDA

pouco tempo antes, a mesma sensação, mas quando? O fumo, o


desejo louco de fumar, o suplício. Neubauer, sim, e ele
próprio jazendo no

chão encharcado. Parecia-lhe que fora há muito tempo, e o medo


reapareceu por uni só instante, para logo se desvanecer,
porque ou-

tro fumo se erguia agora, o fumo da cidade atravessando os


arames farpados, o fumo da cidade, o fumo do Reno - e, de
súbito, pareceu-lhe que repousava num prado brumoso que se
inclinava, que se inclinava, e tudo se tomava muito sereno e
pela primeira vez a noite caía e ele não tinha medo.

97 G. ~cos do Séc. XX 25 - 7

VM

ÍN4

s latrinas estavam repletas de esqueletos vivos. Outros


formavam uma longa fila e gritavam aos ocupantes que se
despachassem. Alguns, atacados de cólicas, torciam-se de dor,
no chão. Muitos tinham-se agachado receosamente ao longo das
paredes e alivIavam-@-se quando já não podiam aguentar. Um
homem, de pé sobre unia só perna, como unia cegonha, o outro
joelho erguido, apoiava-se com uma das mãos à parede, o olhar
fixo no vácuo, a boca aberta. Permaneceu tini momento nesta
posição, depois caiu morto. A coisa era frequente: esqueletos
que mal podiam arrastar-se punham-se de pé, laboriosamente, e
matitinhara-se assim alguns instantes, com os olhos perdidos;
depois tombavam mortos - como se a sua última vontade fosse
segurar-se de pé uma última vez, como homens.

Lebenthal passou com cuidado por cima do esqueleto morto e


dirigiu-se para a entrada, levantando imediatamente um coro de
protestos agudos por parte dos prisioneiros que julgavam que
ele queria escapar-se para dentro. Seguravani---no pelo fato,
punhos magros abatian-@--se sobre ele. Nenhum ousava sair da
fila, certo de que não poderia depois reocupar o lugar.
Contudo, os esqueletos acabaram por deitar Lebenthal ao chão e
espezinhá-lo.

Ele safou-se sem grande mal; os esqueletos eram demasiado


fracos,

Levantou-se. Não quisera trapacear. Andava à procura de


Bethke, da brigada de transporte. Tinham-lhe dito que Bethke
se encontrava por ali. Esperou uni momento à entrada das
latrinas, a uma distância prudente da fila que o apupava.
Bethke seria uni cliente provável para o dente do Lohmann.

Não o viu chegar. Aliás, Lebendial perguntava a si mesmo que


viria ele fazer àquele miscro lugar. Havia aqui,
evidentemente, uni certo tráfico, mas urna personagem como
Bethke tinha melhores ocasiões.

Lebenthal acabou por se cansar e dirigiu-se para o lavabo. Era


unia barraca de pequenas dimensões que ladeava as latrinas e
que abrigava longas pias de cimento, por sobre as quais
corriam canos de água furados por pequenos buracos. Cachos de
prisioneiros aí se empurravam, a maior, parte para beber ou
para recolher água em latas de conserva. Nunca havia bastante
água para que verdadeiramente pudessem

98

A CENTELHA DA VIDA

lavar-se e, despindo-se, corriam o risco de que lhes roubassem


os fatos.

O lavabo era uni lugar de encontro propício a um mercado negro


já mais importante. Nas cercanias das latrinas trocavam-se,
quando muito côdeas de pão, cascas ou pontas de cigarros. Em
compensação, o lavabo reunia já pequenos capitalistas, o que
se explicava pelo facto de os homens do campo de trabalho
terem ai acesso.

Lebenflial abriu caminho lentamente.


- Que tens tu para oferecer? - perguntou um. Léo deitou uni
olhar ao homem que o fizera parar. Era um preso andrajoso que
tinha apenas um olho.

- Nada.
- Eu tenho cenouras.
- Não me interessa, No lavabo, Lebenthal tomava
iniediataniente uma afoiteza que es-. tava longe de ter na
barraca 22.

- @rápula!
- Es tu! Lebenthal conhecia mais de uni vendedor. Estaria, sem
dúvida, interessado nas cenouras se não tivesse víndopor causa
de Bethke. Propuseram-lhe ainda couve fermentada, um osso e
algumas batatas por preços exorbitantes; recusou e prosseguiu
a sua busca. Num dos cantos mais afastados da barraca notou um
rapaz de traços efeminados cujo aspecto diferia extrernamente
do dos outros prisioneiros. Comia avidamente qualquer coisa
duma lata de conserva e Lebenffial notou que não se tratava
apenas duma sopa aguada; por vezes, ele,parava para mastigar
dernoradamente. De pé, perto dele, Lebenthal descobriu uni
preso duns 4O anos, visivelmente bem alimentado e que não
parecia estar no seu lugar ali. Pertencia, sem dúvida alguma,
à aristocracia do campo. A sua face gorda e o crânio alvo
brilhavam e a sua mão deslizava lentarriente pelas costas do
rapaz. Este não tinha os cabelos rentes; estava cuidadosamente
penteado, de risca ao lado, E estava limpo.

Lebenthal deu meia volta. Ia dirigir-se decididamente ao


prisioneiro que lhe oferecera as cenouras quando viu, de
súbito, Bethke entrar e abrir caminho, brutalmente, na dkecção
do rapaz, Lebenthal foi ao seu encontro, nias Bethke repetiu-o
e colocou-se diante do rapaz.

- Então é aqui que te escondes, ininha marafona? Desta vez


apanhei---te!

O rapaz olhava-o sem falar e continuava a comer à pressa@


- Coni um cozinheiro depenado - acrescentou Bethke coni ódio.
O cozinheiro-não dava a menor atenção a Bethke.

99

ERICH-MARIA REMARQUE

Come, Luizinho - disse ele ao rapaz. - Se ainda tens fome, é


só dizeres.

Bethke tornou-se vermelho. O seu punho abateu-se sobre a lata


de conserva, cujo,conteúdo salpicou largamente o rosto de
Luís. Unia batata esborrachou-se no chão. Dois esqueletos
precipitaram-se para ela e puserani-sea disputá-la ferozmente.
Bethke afastou-os.
- O que eu te dou não te chega? - perguntou. Coni as duas
mãos, Luís apertava a lata de conserva contra o peito.
O seu olhar amedrontado ia e vinha de Bethke ao homem da
cozinha.

Parece que não - declarou este dírígindo-se a Bethke. - Não


faças caso - disse ele a Luís. - Come tranquilaniente. Se
ainda tiveres fome, dou-te mais. Eu não te bato.

Pareceu, por um instante, que Bethke ia atirar-se ao homem da


cozinha, mas não se arriscou a tal. Ignorava até que ponto ia
a protecçàQ de que o outro gozava. Era coisa capital no campo.
Se o seu rival dispunha do favor dos kapos da cozinha, uma
rixa com ele podia ter as piores consequências para Bethke. A
cozinha tinha uma pode~ rosa influência e era notório que o
responsável de campo e mais de uni SS eram seus devedores.
Além disso, o próprio kapo de Bethke desconfiava dele. Bethke
sabia que não havia grande coisa a esperar dali. Não o tinha
engr~o bastante. Es"@ gênero de intriga dominava toda a vida
do carripo. Bethke arriscava-se a perder, pura e simplesmente,
o seu lugar e a voltar a ser um simples preso se cometesse
imprudências. Acabavam-se então os frutuosos negócios no
exterior do campo durante os transportes para a estação e para
o depósito.

- Que quer isto dizer? - perguntou, mais calmo, ao homem da


cozinha.

- Importa-te? Bethke engoliu a saliva,


- Sim, importa-me! - Virou-se para o rapaz. @ Não te arranjei
um fato?

Luis apressara-se a comer enquanto Bethke e o calvo discutiam.


Deixou cair no chão a lata de conserva, abriu caminho entre os
dois homens num movimento brusco e alcançou rapidarnente a
saída. já vários esqueletos disputavam ferozmente a lata para
lamber-lhe o fundo.

- Podes voltar - gritou o homem da cozinha. - Comigo nunca te


faltará nada!

Riu, Bethke tentara reter o rapaz, mas tropeçara nos


esqueletos. Recuperou o equilíbrio, praguejando, e
esmagou-lhes os dedos, Uni deles pôs,-se a chiar como um rato,
enquanto o seu vizinho fugia com a lata.

O homem da cozinha passou diante de Bethke assobiando, com


1OO

A CENTELHA DA VIDA

ar descuidado, a vaisa Rosas do Sul. Tinha a barriga grande,


estava muito bem alimentado. O seu gordo traseiro ondulava a
cada passo. Quase todos os presos da cozinha comiam quanto
queriam.. Bethke cuspiu à sua passageni. Teve, contudo, a
prudência de atingir apenas Lebenthal, que avançava para ele.

Cá estás ti) - disse-lhe grosseiramente. - Quem te disse que


eu estava aqui?

Lebenthal não respondeu. Viera para negociar, o momento não


era para explicações inúteis. Tinha em vista dois clientes
possilveis para o dente de Lohmann: Bethke e uni chefe de
secção das brigadas exteríores. Este últirno era todo devotado
a unia certa Matilde que trabalhava na inesma fábrica que ele
e com quem estava apenas de tempos a tempos, à custa de
dispendiosos sacrificios. Ela pesava quase cem quilos, m:as
ele achava-a divinamente bela; neste universo de fome perpétua
a corpulência era um critério de beleza. Oferecera a Lebenthal
alguns quilos de batatas e urna libra de banha. Lebenthal
recusara e felicitava-se por isso. Compreendera logo todo o
partido que podia tirar da cena a que acabara de assistir e
esperava mais agorado apaixonado Bethke. O amor anormal,
pensava, tem mais abnegação do que amor normal. Depois do que
vira, aumentara imediatamente as suas exigências.

- Tens o dente contigo? - perguntou Bethkc.


- Não. Estavarri cá fora.
- Não compro se não o que vejo.
- Urna coroa é unia coroa. Um molar. É de ouro pesado e de
confiança, de antes da guerra.

- Deixa-te de histórias. Tenho de o ver; se não nada, feito.


Lebenthal sabia que Bethke, que era muito mais forte do que
ele, lhe teria, pura e simplesmente, tirado o dente se lho
tivesse mostrado. Se quisesse depois queixar-se, só
conseguiria fazer-se enforcar.

--- Então tanto pior - disse tranquílamente. - Há outros que


são menos exigentes.

- Outros? Farsante! Onde estão eles?


- Conheço--os. Há uni instante havia um aqui mesmo.
- Sim? Senipre queria vê-lo! Bethke deitou um olhar de
desprezo em torno de si. Sabia que o dente só tinha valor para
alguém que tivesse contactos com o exterior.

-Viste o meu cliente ainda não há tini minuto disse


Lebenthal. Era mentira. Bethke acusou o toque.
- Quem? O honiem da cozinha? Lel-)enthal encolheu os ombros.

1O1

ERICH-MARIA REMARQUE

Alguma coisa me havia de ter trazido aqui. Há talvez alguém


que quer oferecer uni presente e que procura arranjar
dinheiro. O ouro é muito procurado lá fora. Ele tem bastantes
víveres para fazer o negócio.

- Mentiroso! - gritou Bethke, encolerizado. - Reí dos


mentirosos!

Lebenthal ergueu as pesadas cortinas das suas pálpebras e


deixou--as cair.

- Qualquer coisa que não se encontre no campo - prosseguiu,


impassível. - Seda, por exemplo,

Bethke sufocava.
- Quanto? - rosnou,
- Setenta e cinco - declarou Lebenthal com firmeza. - Um preço
de amigo.

Pensara primeiro em pedir trinta. Beth.ke olhou---o.


- Sabes que com unia só palavra te mandaria para a forca?
- Claro. Se tivesses provas. E que ganharias tu com isso?
Nada. A verdade é que tu queres este dente. Uma vez que assim
é, falemos a sério.

Bethke calou-se um momento. Lebenthal não respondeu.

Dinheiro, não - disse em seguida. - Viveres. Uma lebre - disse


Bethke -, uma lebre morta. Esmagada por um carro. Que dizes
tu?

- Que é que se parece com uma lebre? Uni cão ou um gato?


- Uma lebre, digo--te eu. Fui eu mesmo que a esmaguei.
- Uni cão ou uni gato? Olharam-se um instante. Lebenthal não
pestanejou.
- Uni cão - disse Bethke.
- Um cão-lobo?
- Um cào-lobo! E por que não uni elefante? Meio tamanho. Como
tini te~r. E gordo.

Lebenthal mantinha-se impenetrável. Um cão significava carne.


Uma fortuna inesperada-

- Não podemos cozê-lo - disse. - Não podemos mesmo cortá-lo.


Não temos nada do que é preciso.

Bethke animou-se. Sabia que, no donúnio alimentar, não estava


em corídições de rivalizar junto de Luís ou com o homem da
cozinha. Era preciso, portanto, arranjar qualquer coisa fora
do campo. Umas cuecas de rayon, pensou. Faria efeito e a si
próprio daria prazer.

Está bem, eu vou inandá-lo cozer - disse, Mesmo assim, é


dificil. Precisamos dunia faca.

1O2

A CENTELHA DA VIDA

- Uma faca? Para quê a faca?


- Não temos faca na barraca. Ternos de cortar o cão. O homeni
da cozinha tinha-me prometido...

- Bem, bem - interrompeu Bethke com inipaciência,. As cuecas


seriam azuis. ou cor de malva. Havia uma loja perto do
depósito que as devia ter. O kapo deixá-lo-la ir lá, Quanto ao
dente, vendê-Ao--ia ao dentista que morava ao lado.

- De acordo quanto à faca. Mas agora basta. Lebenthal viu que,


de inomento, não tiraria grande coisa mais.
- E, bem entendido, um bocado de pão. Con-i a carne tem de
ser. Quando?

- Amanhã à noite, Quando estiver escuro. Atras das latrinas.


Traz o dente. Se não...

- O ",ier é novo?
- Sei lá! Tu és doido? Assim, assim! Porquê?
- Se não é preciso cozê-lo durante mais tempo. Bethke parecia
querer saltar---lhe à cara,
- E que mais queres ainda? Molho de cogumelos, cavíar?
- Pão.
- Quem falou em pão?
- O homem da cozinha.
- Cala a boca! Veremos. Bethke tinha, de súbito, pressa de
acabar. Queria> sem mais demora, fazer brilhar o seu presente
aos olhos de Luís. O homem da cozinha podia fartá-lo à
vontade. Quando ele tivesse as cuecas de reserva, disporia dum
arguniento decisivo. Luís era garrido. Não seria dificil,
roubar uma faca. O pão não apresentava dificuldade séria. E o
t~ era apenas um baixote.

- Então, até amanhã à noite - disse. - Espera-me atrás das


latrinas.

Lebenthal afastou-se. Não se atrevia ainda a acreditar na sua


felicidade. Uma lebre, eis o que diria na barraca. Não que um
cão tivesse assustado quem quer que fosse, mas um pouco de
exagero fazia parte das alegrias do negócio. E, além disso,
ele gostava inuito de Lohmann
- portanto era preciso que o seu dente tivesse sido trocado
por qualquer coisa de extraordinário. A faca podia ser,
depois, facilmente vendida no carripo. Daria dinheiro fresco
para novos negócios@

O negócio estava feito. A noite estava brumosa e brancos


farrapos corriam através do campo. Lebenthal regressava
furtivamente na noite. Trazia escondidos no casaco o cão e o
pão. Uni pouco antes de chegar à barraca notou uina sombra que
marchava, titubeando, no

1O3

ERICII-MÀRIA REMARQUE

meio do caminho, Descobriu logo que não se tratava de uni


prisioneiro; os prisioneiros não andavam ~im. Uni instante
mais tarde reconheceu o responsável de bloco da barraca 22.
Handke parecia lutar contra o balanço dum navio. Lebenthal
compreendeu, imediatamente o que isto significava. Handke
tinha a sua conta. Duma inaneixa ou doutra devia ter arranjado
álcool. Era demasiado tarde para o evitar e alcançar a barraca
sem ser visto. Lebêndial deslizou, pois, docemente, para trás
da parede e agachou-se na sombra. Westhof foi o primeiro que
Handke encontrou,

- Eí, lã! Tu! - gritou. Westhof parou.


- Que fazes cá fora?
- Vou às latrinas.
- Tu é que és unia latrina! Vern aqui! Westhof` aproximou-se.
Apenas vagamente via na brunia o rosto de Handke.

- Como te chamas?
- Westhof. Handke cambaleou.
- Tu não te chamas Westhof, tu és um grande safado de judeu.
Como te chamas?

- Não sou judeu.


- Hem?
O punho de Handke atingiu Westhof em pleno rosto.

De que bloco és? Vinte e dois. Só faltava isto! Do meu próprio


bloco! Canalha! Qual dormitório? Doni)itõrio D. Deitado!
Westhof não se atirou ao chão. Fez frente a Handke, que
avançou para ele. Viu@-lhe, de súbito, o rosto e quis fugir,
mas um pontapé nas canelas atingiu-o. Corno responsável de
bloco, Handke andava conveníenteniente a"le-ntado e era muito
mais forte do que qualquer dos presos do pequeno campo.
Westhof tombou. Ha:ndke pôs-lhe uni pé no peito.

- No chão@ porco judeu! Westhof estendeu-se ao comprido, no


solo.
- Camarata D, toda a gente fora! - gritou Handke, Os
esqueletos saíram uns após outros. Sabiam o que ia passar-se.
Um deles ia ser castigado. Era sempre desta maneira que
acabavam as

bebedeiras de Handke.

Toda a gente está aí? articulou. - Responsável! Toda a


gente - respondeu docilinente Berger.

1O4

A CENTELHA DA VIDA

Handke inspeccionava as fileiras através da


Qbscurldadebrumosa. Brucher e o 5O9 estavam no seu lugar,
Começavam a levantar-se e a andar penosamente. Faltava
Ahasver. Ficara na barraca com o cão-pastor, Se Handke perg
untasse por ele, Berger dectará-la-ia morto. Mas Hancike
estava bêbado e, mesmo em jejum, conhecia mal os seus homens.
Não se aventurava de vontade nas barracas, por causa da
disenteria e do tifo.

- Se há ainda outros que queiram recusar-se a obedecer--A sua


voz tornava-se pastosa.
- Estercos! judeus de esterco! Ninguém respondeu.
- Firmes! Conto seres ci-vi-li-za--dos.--Iii@ic)bilizaraiii-se
em sentido, Handke observou---os um momento, virou-lhes as
costas depois e começou a martelar, à sapatada, Westhof, que
se esforçava por proteger a cabeça com os dois braços.
O silêncio apenas era perturbado pelos choques surdos que
abalavam o corpo do prisioneiro. O 5O9 sentia a emoção
apoderar---se de Bucher, que se encontrava perto dele.
Agarrou-lhe o pulso e segurou-o com toda a força, A mão de
Bucher tremia. O 5O9 apertou mais. Handke continuava a bater
às cegas. Por fim, cansou-se e, para encerrar a sessão, saltou
várias vezes a pés juntos sóbre as costas de Westhof. Este já
não se mexia. Handke voltou-se para os prisioneiros. A cara
btilhava-lhe de suor.
i, ''

- Aos judeus - disse - é preciso esmagá-los como piolhos...


Que são vocés?

Apontava um dedo pouco firme para os esqueletos.


- judeus - respondeu o 5O9Handke acenou com a cabeça e ficou
um instante absorvido na conteniplação do solo. Depois deu
meia volta e partiu na direcção dos arames que separavam as
barracas das mulheres, Ouviram--no soprar ruidosamente. Era um
antigo tip6grafo condenado por atentado aos costumes; desde há
um ano que era responsãvel de bloco. Regressou ao fim de
alguns ininutos e meteu-se pela rua do campo, num passo
pesado, sem mais se pfeocLipat com os prisioneiros,

Berger e Karel viraram Westhof. Estava desmaiado.


- Ter-lhe---á fracturado as costelas? - perguntou Bucher.
- Foi na cabeça que ele bateu - respondeu Karel. - Eu vi.
- Levamo-lo para a barraca?
1.
- Não - disse Be£ger -, deixemo-lo aqui. Por enquanto sempre
está aqui melhor que tia barraca, onde já não há lugar, Ainda
aqui há água?

Trouxerani uma lata cheia de água. Berger abriu o casaco de


Westl-iof.

ERICH-MARIA REMARQUE

Não valeria mais, mesmo assim, levá-lo lã para dentro? -


perguntou Bucher. - O malandro pode voltar.
- Não voltará. Eu conheço-o... já, teve a sua crise. -
Lebendial apareceu à esquina da barraca.

- Está morto? - perguntou.


- Não, ainda não.
- Ele pisou-o - disse Berger. - Habitualmente contenta-se em
bater, Deve ter bebido mais scbiiaps que de costume.

Lebenthal bateu no casaco.


- Tenho aqui que comer - disse.
- Mais baixo, se não toda a barraca vai ouvir. Que é que tu
desencantaste?

- Carne. Troquei-a pelo dente.


- Carne?
- Sim. Multa. E pão, Não falou em lebre. já não tinha coragem
para tal. Olhou a massa sombria perto da qual Berger se
ajoelhara.

- Talvez ele ainda possacomer - disse. - A carne está cozida.

O nevoeiro adensara-se. Burcher caminhava ao longo da dupla


fila de arame farpado que separava o pequeno campo das
barracas das mulheres.

- Ruth - murmurou -, Ruth! Unia sombra aproximou-se. Apesar


dos seus esforços, não conseguiu reconhecer o vulto.

- Ruth - murmurou outra vez. - És tu?


- Sim.

Vês-me? sim. Tenho comida. Vêsa, minha mão? sim, sim. É carne.
Aí vai. Atenção. Atirou o pequeno bocado de carne por cima das
du 'as filas de arame, Era metade da porção que lhe
coubera. Ouviu-a cair do outro lado. A sombra curvou-se e
começou a procurar no chão.

- À esquerda! À tua esquerda! murmurou Bucher. - Deve


estar aí a uni metro de ti. Encontraste?

- Não.
- À esquerda. mais um metro. E carne cozida. Procura bem,
Ruth! A sombra parou. -Já achaste?

Sim.

1O6
A CENTELHA DA VIDA

Bem. Então come já. É bom.? Sim. Tens mais? A pergunta


surpreendeu Bucher.
- Não, tive a minha parte.
- Tu tens mais! Atira! Bucher aproximou-se de tal inanelia do
arame que sentiu as pontas penetrarem-lhe na pele, O arame
interior do campo não estava electrificado.

- Tu não és Ruth! És tu, Ruth?


- Sim, sou eu. Atira-me mais carne! Ele teve, de súbito, a
certeza de que ela não era Ruth. Ruth não teria falado assim.
O nevoeiro, a emoção, a sombra e estas, palavras pronunciadas
a meia voz tinham-no enganado,

- Tu não és Ruth, Diz-me, como me chamo eu?


- Chiu! Baixinho! Atira!
- Como me chamo eu? A sombra não respondeu.
- A carne é para Ruth! Para Riu th! murmurava Bucher. -
Dá-lha. Ouves? Dá-lha!

Sim, sim. Tu tens mais? Não, dã~lha! É para ela, não é para
ti, é para ela! Com certezaDá-lha, se não... se não eu...
Parou, Que podia ele fazer? Sabia bem que a sombra devorara o
bocado de carne há muito tempo. Desesperado, deixou--se cair
no chão corno se tivesse sido atingido por uma pancada
invisível.

- Besta imunda, o que eu desejava é que essa carne te fizesse


rebentar!

Era de mais. Um bocado de carne ao fun de tantos meses, e


perdê-lo de uma maneira tão idiota! Ele soluçava sem lágrimas,

A alguns metros a sombra continuava a sussurrar:


- Dá-me mais e tu verás... mostro-te... isto! Pareceu-lhe que
ela arregaçava a sala. O nevoeiro deforroava os seus
movimentos, que pareciam a dança grotesca duma cabra humana,

- Porca, oxalá rebentes! Que idiota eu fui, que idiota!


Devería ter feito mais perguntasantes de atirar a carne, ou
esperar que o nevoeiro se dissipasse; mas, neste caso, talvez
ele próprio acabasse por comer a carne@ Quisera dá-Ia a Ruth o
mais cedo possível. O nevoeiro parecera-lhe unia boa
oportunidade. E agora... ele gemia e batia com os punhos
cerrados no chão, Um bocado de carne era um bocado de vida,
Tê-la~ia von-útado de desespero,

1O7

ERICH-MÁRIA REMARQUE

A frescura da noite acordou-o. Encaminhou-se para a barraca.


Diante da porta tropeçou nuni corpo. ]@epc,is viu o 5O9.

- Quem está ali? - perguntou. - E WesthoP


- Sim.
- Ele está morto?
- Sim. Bucher olhou de perto, o rosto do cadáver. Estava
húmido do nevoeiro e as pancadas de Handke tinham deixado
nele manchas sombrias, olhando este rosto pensou no bocado de
carne perdida e

pareceu-lhe, de súbito, que as duas coisas estavam


estreitamente ligadas.

- Meu Deus! - disse. - Por que não o ajudámos nós?


O 5O9 ergueu os olhos para ele.
- Tu és doido? Que queres dizer?
- Talvez tivéssemos podido. Por que não?,Outros o fizeram.
O 5O9 não dizia nada, Bucher deixou-se cair peito dele. -- Nós
salmo--nos . bem com Weber - disse.
O 5O9 via passar os farrapos de brunia. Com que então isto
recomeçava, o falso heroismo, essa velha miséria! O jovem
Bucher descobrira que pela primeira vez em muitos anos um
pobre gesto de revolta não dera muito mau resultado - e,
alguns dias mais tarde, a imaginação pusera-se a trabalhar
para deformar tudo e fazer esquecer os perigos.

-julgas que por ter-mos escapado do próprio chefe de campo a

coisa se passaria de igual modo com uni simples responsável de


bloco a cair de bêbado?

- Sim. Por que não?


- E que deverianios nós ter feito?
- Não sei. Qualquer coisa. Mas não deixar matar Westhof desta
maneira,

- Deveríamos,ter caído em cima de Handke, seis ou oito de nós?


É o que queres dizer?

- Não, isso não serviria de nada. Ele é mais forte do que nós.
- Então, que!deveríaiiios ter feito? Falar-lhe? Pedír-lhe que
fosse um pouco razoável?

Bucher não respondeu. Sabia que também isto de nada teria ser-

vido. O 5O9 observou~o uni momento.

- Ouve bem - disse pGr fim. - Com Weber nidi tínhamos a


perder. Recusámos assinar e em seguida tivemos unia sorte
ínexplicãvel. ,Se hoíe tivéssemos tentado fosse o >qtje fosse
contra Handke, ele teria abatido mais uni ou dois e teria
denunciado a barraca por sublevação. Berger e alguns outros
teriam sido enforcados. Westhof, sem dúvída. Tu tarribém,
provavelmente. E, para começar, mais nada que comer

A CENTELHA DA VIDA

durante alguns dias. Resultado: algumas dúzias de mortos


suplementares. Não é isto?

Bucher hesitou.
- Talvez - disse depois.
- Tens outra coisa a propor? Bucher reflectiu uni momento. -
Não.
- Nem eu. Westhof estava com a crise. ComoHandke, aliás. Se
ele tivesse dito tudo o que Handke queria, ter-se--ia safado
com algumas pancadas apenas. Era uni tipo valente. Poderia vir
a ser útil. Mas era um pouco doido.

O 5O9 virou-se para Bucher. A sua voz estava cheia de


amargura. -julgas que és o único aqui a pensar nele?
- Não.
- Talvez ele tivesse reprimido a língua e vivesse ainda se nós
dois não tivéssemos escapado a Weber. Foi talvez isso que o
tomou ímprudente. já pensaste nisto?

- Não. Pensas assim, tu? Bucher fixava o 5O9.


- É bem pos "iel. Vi homens melhores que ele ptaticar asneiras
maiores que aquela. E quanto methores eram maiores eram as
asneiras que praticavam quando se julgavam, obrigados-a
mostrar coragem. Sinistra literatura! Tu conheces Wagner, da
barraca21?

sim. É uma ruina. Mas foi uni homem e tinha coragem. Excessiva
coragem' ^ Defendia-se. Durante dois anos fez as delícias dos
SS. Weber quase lhe tinha amor, Um dia acabou--se.,Para
sempre. E porquê? Poderia vir a ser útil. Mas ele não podia
dominar a sua coragem.

Houve muitos como ele. Restam poucos hoje. E ainda menos são
os que não foram definitivamente inutilizados. Foit por isso
que te segurei esta noite, quando Haftdke espezinhava,
Westhof. Foi @ por 1= que eu respondi quando ele nos perguntou
o que éramos,. Compreendeste agora?

- Tu pensas que Westhof...


- Pouco importa, ele está niorto agora. Bucher catou-se. Via o
5O9 mais distintamente. O nevoeiro díssipara-se uni pouco e,
em certos pontos, deixava escapar um raio de lua. O 5O9
endireitou-se. As hemorragias tinham-lhe marcado o wsto de
malhas negras, azuis e verdes. Bucher lembrow-se de velhas
hístórias que ouvira acerca dele e de Weher. Devia ter sido
ele um dos homens de quem falavam,

- Ouve - disse o 5O9 -, ouve-me bem. É unia fórmula de romance


completamente idiota essa que diz que não se pode destruir

1O9

ERICH-MARIA REMARQUE

o espírito, Vi homens; de valor tornareni~se animais uivantes.


Quase não há resistência que não se possa quebrar: basta para
isso ter tempo e ocasião. É precisamente o que eles têm lá em
baixo. - Fez um gesto na direcção das casernas SS, - Eles
sabem-no bem e procuram constantemente suplantá-la. A respeito
de resistência, o que conta é o resultado, e não o
comportamento que se teve. A coragem inútil é o mais certo dos
suicídios e a nossa fraca resistência é tudo o que nos resta.
Devemos escondê-la bem para que eles a não descubram e só
fazer uso dela em caso desesperado, como fizemos com Weber. Se
não... , Um raio de luar caía agora sobre o corpo de Westhof,
iluminando-lhe debilrnente o rosto e a nuca.

- É preciso que alguns de nós se aguentem até ao fim -


murmurou o 5O9@ - Para mais tarde. Nada disto deve ter sido
inútil. Alguns que não estejam liquidados.

Deitou--se, esgotado. Pensar fatigava-o tanto como correr. A


maior parte do tempo, a fome e a fraqueza impediam. de pensar,
mas por vezes também o pensamento corria com uma estranha
facilidade, tudo parecia duma inteligibilidade anormal e,
durante uni curto momento, via-se muito longe, até que o
nevoeiro da fadiga tudo recobria de novo.
-Alguns que não estejam liquidados e que não queiram esquecer.
Olhou Bucher. "Ele tem menos vinte anos do que eu", pensou.
"Ainda pode fazer muita coisa. Ainda não está liquidado. E eu?
O tempo", pensou, de súbito, com desespero. "O tempo roía,
roía. Começar-s,r,-á somente a descobrir isso quando tudo
estiver acabado. Só quando se quiser recomecar a vida lá fora
se saberá se ainda se presta para alguma coisa, Estes dez anos
de campo contam a dobrar. Quem terá ainda força bastante?
Porque muita será necessária."

- Quando sairmos daqui - disse -, as pessoas não vão cair de


joelhos diante de nós, Quererão esquecer tudo e tudo repelir
para o passado. Nós, com o resto. E muitos de nós quererão
esquecer também.

- Eu não esquecerei - disse sombriamente Bucher. - Nem isto


nem nada.

- Bem. A vaga de esgotamento ia submergi--lo. O 5O9 fechou os


olhos e reabritt--os logo. Havia ainda qualquer coisa que era
preciso dizer imediatamente antes que se escapasse. Bucher
precisava de o saber. Talvez ele viesse a ser o, único a sair
dali. Era importante que ele o soubesse.

-- Handke não é nazi - disse com esforço. - É uni prisioneiro


como nós. IÀvre, nunca teria talvez morto uni homem. Se o faz
aqui,

]]o

A CENTELHA DA VIDA

e porque o pode fazer. Ele sabe que de nada serviria


queixarmo-nos, Está coberto. Nàc) tem responsabilidades. É
esta a questão- o poder sem responsabilidade, excessivo poder
em aiaos que para ele não têm capacidade; excessivo poder seja
em que Lnàos for, compreendes?

- Sim - disse Bucher.


O 5O9 acenou com a cabeça.
- Isto e outra coisa ainda@ a cousciência que morre, a
preguiça do coração, o medo, eis a nossa miséria; não tenho
pensado noutra coisa hoje.

O esgotamento assemelhava-se agora a uma nuvem negra que se


aproximava sussurrando, O 5O9 tirou do boisc, uni bocado de
pão.

- Toma isto, eu não preciso. Tive a minha parte da carne.


Dá--o a Ruth.

Bucher olhava-o sem se mexer.


- Ouvi tudo há pouco - disse o 5O9 com a voz de um homem, que
se afunda, - Dá-lhe isto... é-

A cabeça pendeu-lhe para a frente, mas ele Jevantou~a urna


áltima vez e a sua face sangrenta pôs-se de repente a sorrir.

--- É tão importante... dar qualquer coisa, Bucher agarrou o


pão e dírigiu-se para a vedação de arame farpado que separava
os dois campos, A bruma flutuava agora à altura de um homem.
Mais abaixo o ar estava limpo. Os muçulmanos que se
encanúnhavam para as latrinas assemelhavam-se a fantasmas sem
cabeça. Ao fim dum certo tempo, Ruth aproximou~se. Também ela
estava decapitada,

- Baixa-te - murmurou Bucher. Ambos estavam agachados no solo.


Bucher atírou-lhe o bocado 'de pão. Pergi intava a si
mesmo se lhe diria que trouxera carne antes, Não o fez.

- Ruth - disse -, eu creio que nós sairemos daqui. Ela nào


pôde responder. Tinha a boca cheia de pão. Abria muito os
olhos e fitava--o.

- Agora quase tenho a certeza - disse Bticher@ Não sabia


porque tinha a certeza. O 5O9 e o que ele lhe dissera tinham
parte nisso, Voltou-se,. O 5O9 adormecera profundamente. A
cabeça descansava perto da de Westhof. Os dois rostos estavam
cobertos de sangue e Bucher mal podia distinguir qual dos dois
respirava.

Não o acordou. Sabia que de há dois dias para cá ele ficava


fora para esperar Lcwinsky. A noite não estava demasiado
fresca; contudo, Bucher tirou o casaco a Westhof e a dois
outros moi tos para cobrir com eleso5O9.

111

IX

segundo bonibardeamento deu-se dois dias mais tarde. As se-:


reias puseram~se a uivar às 8 horas da noite. Logo a seguir
caíram as primeiras bombas, Caíam em chuva cerrada como
granizo, mas as explosões mal cobriam o ribombar da D. C. A.
Foi só para o fim que explodiram as bonibas de grande calibre.
. O,fornaldeMellen não fez sair a edição especial. Ardia.. Os
rolos de papel crepitaram no céu negro; depois todo o
edifício desabou lentamente.

-Cem mil marcos", pensou Ncubauer. Cein mil marcos que me


pertencem e que ardem. Cem mil marcos. Nunca teria acreditado
que tanto dinheiro pudesse arder tão fácilínente. Porcos! Se
eu soubesse, teria colocado o meu dinheiro em minas. Mas as
minas tambéni ardem. Também elas são bombardeadas. Não são
mais seguras que o resto. Parece que o Rur está destruido. já
nada está seguro!..

O seu uniforme estava cinzento da cinza do papel. Os olhos,


avermelhados pelo fumo e pelas lágrimas. A tabacaria defronte,
que lhe pertencia igualmente, não era mais do que um montão de
ruínas. Ainda ontem unia mina de ouro, hoje um monte de
cinzas. Trinta mil marcos. Talvez quarenta mil. Muito dinheiro
se podia perder numa noite! O Partido? Cada um pensava apenas
em si mesmo. O seguro? Abriria falência se pagasse tudo o que
fora destruído nessa noite. Além disso, ele segurara, tudo por
uni valor muito baixo. Urna economia desastrosa. Sem contar
que os prejuízos de guerra não seriam, sem dúvida,
reembolsados. Depois da vitória toda a gente seria amplamente
indemnizada, assegurava-se. Depois da vitória o inimigo
pagaria tudo. Estava-se emboni caminho para isso! Podia-se
continuar à espera. E, agora, para que recomecar a
reconstruir? Sabia--se por acaso o que arderia amanhâ?

Ele!examínava as paredes calcinadas da loja. Cinco mil


charutos Guarda Alémà tinham ardido com o resto. Bem. Tanto
pior. Mas então para que tinha de denunciado o
sturn?ffichrerFreiberg? Por dever? Ao diabo o dever! O seu
dever ali estava, ardera... Ao todo, cento e trinta mil
marcos. Mais uni incêndio como este, algumas bonibas na loja
de Max Blank, algumas outras no pomar, unia ou duas na casa
- e isso seria talvez amanhã mestrio -, e teria voltado ao
ponto de

112

A CENTELHA DA VIDA

partida. E nem Isso sequer! Estaria mais velho, em piores


condições! Porque qualquer coisa o invadiu silenciosamente,
qualquer coisa que sempre o espreitara de qualquer parte, em
todos os cantos, uma ameaça sempre repelida, perseguida,
imobilizada enquanto os seus bens estiveram intactos, a
dúvida, o medo que, até ai, sempre niantívera dominado por um
medo contrário e mais forte - eis que os sinístros presságios
tinham de súbito despedaçado a sua jaula, pousavam nas ruínas
da tabacaria, povoavam o entulho do jornal, escarnecíam-the no
rosto e anicaçavam-lhe o futuro com as garras, Neubauer sentiu
a sua nuca, vermelha e gorda, cobrir-se de suor; recuou,
desamparado, não queria ver mais nada, não queria confessar a
si mesmo
* que, no entanto, sabia: a guerra já não podia ser ganha. -
Não - disse ele em voz alta. - Não, não e não... deve haver...
* FÚhre@,.. uni milagre... apesar de tudo... é evidente.

Deitou uni olhar em redor. Ninguém. Nem mesmo para apagar o


incêndio.

Selma Neubauer acabou por se calar. Tinha o rosto inchado, o


roupão de seda francesa estava molhado de lágrimas, as suas
gordas mãos temiam.

- Eles não voltarão esta noite - dizia Neubauer sem convicção.


- Toda a cidade está já em chamas, Que podiam eles bombardear
ainda?

- A tua casa, a tua loja, a tua horta. Tudo isto está intacto
ainda, não está?

Neubauer dominou a cólera e o medo súbito de que a mulher


tivesse razão.

Tolice! Eles não vão voltar expressamente para isso. Mas há


outras casas, outras lojas, outras fábricas. Há ainda bastante
de tudo isto.

- Selma... Ela interrompeu-o:


- Podes dizer o que quiseres' mas eu vou lá para cima!
O rosto tornou a avermelhar-se-lhe,
- Vou ter contigo ao campo, inesmo que tenha de dormir com os
presos! Não fico na cidade! Isto é uma ratoeira! Não quero
moTrer! Para ti é indiferente, claro, porque estás em
segurança, longe das bombas! Como sempre! Nós podemosheín
suportar tudo! Sempre foste assim!

Neuhauer olhou-a com ar de dignidade ofendida, -Nunca fui como


dizes. E tu sabe-lo perfeitamente! Basta olhares para os teus
sapatos! Os teus vestidos! Os tetis roupões! Tudo verti de
Paris! E quem é que te trouxe tudo isso? Eu! E as rendas@? É o
que se

G. Cl~ew do Séc. X% 25 - 8

113

ERICH-MARIA REMARQUE

encontra de mais fino na Bélgica! Fui eu que as comprei para


ti. O teu casaco e a tua cobertura de peles! Mandei vir tudo
de Varsóvia para ti. Olha para a despensa! A tua casa! Pensei
em tudo para ti!

- Só esqueceste unia coisa. Um caixão. Ainda podes


arranjar-nic, à pressa. Amanhã os caixões não se venderão
baratos na cidade. Eles devem, de resto, estar a tomar-se
raros em toda a Alemanha. Mas tu podes realmente mandar
fabricá-los no campo. Tens homens bastantes para isso.

- Então é dessa maneira que me agradeces? É esse o teu


reconhecimento pelo que eu -arrisquei? É assim?

Selma não o ouvia.


- Não quero ser queimada em vida! Não quero ser despedaçada!
Virou-se para a filha:
- Freya! Estás a ouvir o teu pai! O pai que te deu a vida!
Tudo o que lhe pedimos é que nos deixe passar a noite no
campo. Nada mais. Salvar a nossa vida. E ele não quer. Por
causa do Partido. Que diria Dietz? Que diz ele das bombas? Por
que é que o Partido não faz nada?
O Partido...

- Silêncio, Selma!
- Silêncio, Selma! Ouves, Freya? Silêncio! Teremos de nos
calar! Morrer em silêncio! Silêncio é tudo o que ele tem a
dizer!

- Cinquenta mil pessoas estão na mesma situação - disse


Neubauer, com um ar cansado. - Todas.

- Não me interessa. A tuas cinquenta mil pessoas hão-de


importar-se muito comigo no dia em que eu estoirar! Guarda as
tuas estatísticas para os discursos no Partido.
Meu Deus! Deus! Onde está ele? Vocês expulsaram-no. Não me
venhas falar em Deus!

"Por que não lhe dou eu unia hofetada?", pensava Neubauer.


-Por que me sinto eu, de súbito, tão fatigado? Eu deveria
dar-lhe uma bofetada. Impor a minha autoridade! Mostrar
energia! Cento e trinta mil marcos perdidos! E ainda por cima
esta fêmea chorona! E preciso pulso, meu Deus! Sim! É preciso
sair disto! Mas sair de quê? Ir para onde?"

Deixou-se cair numa cadeira. Ignorava que esta era unia


admirãvel poltrona das manufacturas dos gobelins do século
xviii e que provinha do mobiliário da condessa Lambert - aos
seus@ olhos era simplesmente uma cadeira que dava um ar de
riqueza. Fora por isso que a

comprara, poucos anos antes, com algumas outras peças, a um


coronel que regressara de Paris.

- Traz-nie uma garrafa de cerveja, Freya.


- Traz-lhe uma garrafa de champanhe Freya! Ele pode beber bem

114

A CENTELHA DA VIDA

antes de dar a cambalhota final. Bum, bum, buni! Façamos


saltar as rolhas! É preciso beber pela vitória!

- Basta, Selma! A filha foi à cozinha. A mulher endireitou-se.


- Então, sim ou não? Vamos ter contigo esta noite ou não?
Neubauer olhava as botas. Estavam cobertas de cinza, Cento e
trinta mil marcos de cinza.

- Haveria ditos se fizéssemos isso subitamente esta noite. Não


que seja proibido, mas a verdade é que nunca o fizemosantes.
Diriam que eu me aproveito das vantagens que tenho sobre
aqueles que são obrigados a ficar aqui. Aliás, de momento é
mais perigoso lá em cima do que cá. O campo vai ser o próximo
objectivo bombardeado. Temos fábricas importantes lá.

Havia alguma verdade nestes argumentos, mas o motivo principal


que Neubauer tinha para recusar estava no seu desejo de ficar
sozinho. Era lá em cima que tinha a sua vida privada, como ele
próprio dizia. Os seus jornais, o seu conhaque e, de tempos a
tempos, uma mulher que pesava menos trinta quilos que Seh-na,
alguém que o escutava quando ele falava e que admirava nele o
pensador, o homem e o cavalheiro de sentimentos delicados. Era
um prazer inocente, bem necessário para repousar depois da
luta pela existência.

- Deixa-os falar! - declarou Selma. - Antes de mais nada,


deves preocupar-te com a tua família.

- Voltaremos a falar nisso. Tenho de ir agora à sede do


Partido. Tenho de saber que providências vão ser tomadas aqui.
Talvez já tenham sido tomadas disposições para evacuar os
civis para as aldeias. Foi com certeza o que se fez para os
sinistrados, mas talvez vocês possam partir também.

- Não há talvez! Se tu me deixas na cidade, ponho-nie a correr


por toda a parte gritando, gritando...

Freya trouxe a cerveja, que não estava fresca. Neubauer


provou--a, mas dominou-se e levantou-se para sair.

- Sim ou não? - perguntou Selma.


- Volto já. Depois falaremos. Preciso, antes de mais nada, de
saber as ordens.

- Sim ou não? Neubauer notou que Freya, atrás da mãe, lhe


fazia sinal para aceitar provisoriamente.

- Pronto, está bem - disse bruscamente, Selma Neubauer abriu a


boca. Toda a sua exaltação a abandonou subitamente. Como uma
tripa rebentada, escorreg ou para a frente sobre o sofá
que acompanhava a poltrona século xvfií. Não era mais, agora,
que Lima niassa de carne mole sacudida pelos soluços.

115

E~-MÁRIA REMARQUE

Não quero morrer... não quero... com todas as nossas lindas


coisas... não quero.---

Os pastores e as pastoras da tapeçaria dos gobelins baixavam


os olhos sobre o cabelos em desordem, com o sorriso, irónico e
sereno do século XVIII.

Ncubauer olhava-a, enjoado. Era fácil gritar e choramingar,


mas quem se importava com o que se passava nele? Tinha de
engolir tudo, mostrar confiança, ser como um rochedo na
tempestade. Cento e trinta mil marcos. Ela não fizera sequer
uma pergunta a este respeito.

- Deixo-ta - disse secamente a Freya, retirando-se. No jardim,


atrás da casa, os dois prisioneiros russos continuavam a
trabalhar, apesar da obscuridade. Neul:>auer assim o decidira
alguns dias antes. Fazia questão de que uni certo canteiro
fosse cavado o mais cedo possível para nele plantar túlipas.
Túlipas, manjeronas, um pouco@ de salsa, cerefólio e outras
plantas aromáticas. Gostava muito de verduras finas na salada
e nos molhos. Havia disto somente alguns dias antes, uma
eternidade já, Agora podiam plantar-se charutos queimados e os
tipos fundidos da tipografia.

Quando os prisioneiros viram chegar Neubauer, curvaram-se


sobre as enchadas.

- Por que estão vocês a fazer olhos de pasmo? Toda a sua


cólera recalcada se expandia agora livremente. O mais velho
dos dois respondeu qualquer coisa em russo.

- Olhos de pasmo, disse eu! E tu continuas, porco bolchevista?


E insolentes, ainda por cima! Estás contente por os bens duma
honesta burguesia serem destruidos, hern?

O russo não respondeu.


- Vamos, trabalhem, madraços! Os russos não percebiam nada.
Olhavaiu-no, esforçando-se por compreender onde queria ele
chegar. Neubauer tomou balanço e atirou a um dos dois um
pontapé ao ventre. O homem caiu e pôs--se lentamente de pé,
auxiliando-se com a enxada, que conservou em seguida na mão.
Neubauer viu-lhe os olhos e notou que as duas rnàos apertavam
com força o cabo da enxada. Sentiu o medo contrair-lhe o
estômago e puxou do revólver.

- Canalha! Tu queres resistir, hem? Assentou-lhe uma coronhada


entre os olhos. O homem tombou e não se levantou mais.
Neuhauer respirava ruidosamente.

- Pod 'cria ter-te abatido! - ofegava. - Resistir-me! Queria


levantar a enxada para me agredir! Fuzilar! Sou deniasíado
humano, aí estã. Outro tê~lo-í@à abatido.

Virou~se para o soldado de serviço que se mantinha imobilizado


em sentido, a alguns passos.

116
A CENTEWA DA VIDA

- Outro tê-lo-ia abatido. Viste como ele ia levantar a enxada?


- Perfeitarnente, Hérr Obersturmbaniifuebrer!
- Muito bem. Despeja-lhe um regador de água na cabeça.
Neubauer observou o segundo russo. Ele trabalhava curvado
sobre a enxada. No jardim vizinho um cão ladrava furiosamente.
Roupa batia corri o vento. Neubauer sentiu a boca seca. As
suas mãos tremiam. -Que é isto?", pensou. "Medo? Eu não tenho
medo. Eu, não, Não, diante destes russos cretinos. Então,
porquê? Que teilho eu? Não tenho nada. Sou demasíadamente
brando, e é tudo. Weber teria morto lentamente o homenzinho.
Dietz tê-lo-ia abatido ali mesmo. Eu não fiz nada. Sou um
sentimental; ai é que está o meu erro. É daí que vem todo o
mal. Também sou excessivarnente brando com Selma."

O carro esperava lá fora. Neubauer empertigou-se,


- À nova sede do Partido, Alfred. As ruas estão tivres@
- Sim, se dermos a volta à cidade.
- Está bem, damos então a volta.
O carro arrancou. Neubauer observou o rosto do motorista,
-Aconteceu-te alguma coisa, Alfred.
- Minha mãe foi unia das vitimas. Neubauer sacudíu-se,
importunado. Só faltava isto! Cento e trinta mil marcos, a
gritaria de Selam, e agora tinha de apresentar condolêncías!

- Tens toda a minha simpatia, Alfred - disse com sobriedade


militar, para acabar mais depressa. - Os malandrost Assassinam
mulheres e crianças!

- Nós também os bombardeámos. Alfred tinha os olhos fitos na


estrada.
- E fomos os primeiros. Eu estive lá. Em Varsóvia, Roterdã<),
Coventry. Foi antes do meu férimento e de ter sido mandado
para aqui.

Neubauer olhava-o estupefacto. Mas que se passava hoje?


Primeiro Selma, depois o motorista! Tudo estava então
confundido?

- Em diferente, Alfred, completamente diferente. Era


estrategicamente indispensável. Aqui trata-se de assassinato
puro e simples.

Alfred não respondeu. Pensava em sua iiiàe, em Varsóvia, em


Roterdào, em Coventry e no gordo marechal do ar alemão, e
cortou para unia rua lateral.
- Não deves dizer essas coisas, Alfred. É quase traição! A tua
dor, evidentemente, desculpa-te, mas não deves dizer isso.
Façamos de conta que nada ouvi. Ordens são ordens; a nossa
consciência não exige mais. O remorso é antinacional. As
ideias erradas também. o Ftíbrer sabe o que faz.
Obedecernos-lhe, e pronto. Ele lhes fará pa- gar todos os seus
criii@ies no domicílio! E com juro ainda por ciaya! Com as
nossas armas secretas! Nós os al-a t,@@renios!Jâ estanios a
bombardear

117

ERICH-MÁRIA REMARQUE

a Inglaterra, de noite e dia com as nossas Vi. Vamos reduzir


toda a ilha a cinzas com as novas invenções de que dispomos.
No último momento! E,a América também! Eles pagarão! Eles
pagarão a dobrar e a triplícar! - repetia Ncubauer, e,
dizendo-o, recobrava confiança e

começava quase a acreditar no que dizia.

Tirou um charuto do estojo e cortou-lhe a ponta com uma


dentada. Teria desejado continuar a falar. Sentia, de repente,
uma grande necessídade de falar, mas calou-se quando viu os
lábios cerrados de Alfred. "Queni é que se interessa por
iiiiiii?", pensou. "Cada um apenas se preocupa com as suas
próprias questões. Devia ir à minha horta, fora da cidade. Os
meus coelhos, meigos e macios, e os seus olhos rosados que
brilham na somhm," Ainda criança, já arnava os coelhos. O pai
proibira-lhe que os criasse. Agora tinha--os, os seus coelhos,
com aquele cheiro bom de feno, de pêlos e de folhas frescas. O
cheiro do seu esconderijo preferido de rap;@r. Sonhos
esquecidos. Havia dias em que sé sentia terrivelmente só.
Cento e trinta mil marcos. Em criança nunca possuíra mais de
setenta e cinco ffiennígs. Dois dias mais tarde tínham-lhos
roubado.

As, chamas perseguiam-se e devoravam-se umas às outras. Era a


cidade velha que ardia como um montão de fósforos. Quase todas
as casas eram de madeira. Até o rio, reflectindo as chamas,
parecia arder.

Os veteranos ainda capazes de se deslocar forinavam um grupo


sombrio diante da barraca. Podiam ver, na sombra avermelhada,
que as torres de vigia continuavam vazias. O céu estava
coberto e as nuvens cinzentas tinhani reflexos de plumagens
exóticas. As chamas dançavam até nos olhos dos mortos que se
amontoavam atrás do grupo.

Uni ruído de passos leves despertou a atenção do 5O9. O rosto


de Lewinsky apareceu diante dele. O 5O9 respirou profundamente
e levantou-se. Esperava este momento desde que podia
arrastar-se outra vez. Poderia ter ficado sentado, mas fazia
questão de mostrar a

Lewínsky que não estava estropiado e que podia andar,

- Está tudo novamente em ordeni? - perguntou Lewinsky.


- Decerto. É preciso mais do que isto para nos deitar abaixo.
Lewinsky acenou a cabeça.
- Podenios conservar aí em qualquer parte? Deram a volta à
pilha de cadáveres. Lewinsky deitou um rápido olhar em volta.

- As sentinelas ainda não voltaram?


- Para o que há aqui que vigiar... Ninguém se evade!
- É o que eu pensava. E de noite, há inspecções?

118

A CENTELHA DA VIDA

- Quase nunca.
- E de dia? Os SS entram muitas vezes nas barracas?

Raramente. Têm niedo dos piolhos, da disenteria e do tifo, E o


vosso chefe de bloco? Só vem para a chamada. Fora disso não se
ocupa de nós. Como se chama ele? Bolte. SebarfuebrerBc>lte,
Lewinsky acenou outra vez com a cabeça.
- Os responsáveis de bloco não dormem nas barracas, não é? Há
apenas os responsáveis de camarata. Como é o vosso?

Falaste-lhe no outro dia, Berger. Não podia calhar-nos melhor.


É o médico que trabalha actualmente no crematório? Sim. Tu
estás bem informado. Fez-se o que era preciso. Quem é o vosso
responsável de bloco? Handke, um verde, Ainda há pouco tempo,
matou um dos nossos a pontapé.

- Severo?
- Não, um bruto. Mas não sabe grande coisa de nós. Também tem
medo de apanhar qualquer doença. Só conhece poucos de nós. Os
rostos mudam muito depressa. Quanto ao chefe de bloco, ainda
sabe menos. A única inspecção possivel é exercida pelos
responsáveis de camarata. Portanto, temos as mãos livres, É
isto o q ue querias saber?

- Sim, é isso o que eu queria saber. Compreerideste-me.


Lewínsky olhava com espanto o triângulo vermelho no casaco do
5O9. Não esperava encontrá-lo.

- Comunista - perguntou.
O 5O9 abanou a cabeça.
- Socialista?
- Não.
- Então o quê? É preciso que tenhas sido alguma coisa.
O 5O9 olhou-o no rosto. As suas órbitas estavam ainda marcada6
pelas hemorragias, o que lhe tornava os olhos ainda mais
claros. Pa~ recíam quase transparentes sob os reflexos
vermelhos e dír-se-ia não fazeTem parte do rosto devastado e
negro.

- Uma migalha de humanidade, se quiseres.


- O quê?
- Assim mesmo. Um nada.
O rosto de Lewínsky manifestou surpresa,
- Ah, estou vendo, -um idealísta - disse com uni cambiante de
desdéni indulgente. - No fim de contas, é-nie indiferente,
desde que se possa contar com vocês.

- Podem contar. Com todos os do nosso grupo, os que estão


sentados além. Os veteranos.

119

ERICH-AfARIA REMARQUE

- E os outros?
- São todos seguros também. Os muçulmanos. Tão seguros como
mortos. Apenas lutam ainda por alguma coisa para comer e por
unia cama para morrer. Nem sequer para trair teriam força.

Lewinsky olhou o 5O9.


- Nesse caso poderíamos esconder durante algum tempo uni
hoilicili entre vocês? Passaria despercebido? Durante alguns
dias, pelo menos?

- Sim, com a condição de não ser muito gordo. Lewínsky não se


deteve com a ironia, Aproxímou--se uni passo.
- Há qualquer coisa no ar entre nós. Nalgumas barracas os
responsáveis de bloco vermelhos foram substituídos por verdes.
Fala-se de partidas por noite e nevoeiro. Sabes o que isto
significa?

- Sei. Partidas para campos de exterminação.


- Exactamente. Fala-se também de liquidações maciças. Foram
homens que vieram de outros campos que trouxeram a notícia.
Temos, portanto, de nos manter preparados. organizar a nossa
defesa. Por alguma coisa os SS levantam o campo. Até aqui não
tínhamos pensado em vocês.

- Pensavam que nós esticávamos aqui como peixes na erva.


- Sim, mas não agora. Podem ser úteis. Podem ajudar-nos a
fazer desaparecer durante algum tempo pessoas importantes, se
entre nós as coisas começarem a aquecer;

- O hospital já não é seguro também? Lewinsky olhou-o de novo.


- Também sabes isso?
- Sim, também sei.
- Fizeste parte do movimento antigamente?
- Que te importa isso agora?
- O depósito já não é o mesmo que dantes - continuou Lewinsky
noutro tom. -Alguns dos nossos ainda lá estão, mas há algum
tempo que a fiscalização se tornou mais rigorosa.

- Em que deram as secções de tifo e paratifo?


- Existem ainda, mas não bastam. Precisamos de outros meios de
esconder homens. Nas nossas próprias barracas só poderá ser
por alguns dias. Temos de contar durante a noite com
ins'pecçoes SS iniprevistas.

- Conipreendo - disse o 5O9. - Precisam de uni local como


este, em que as mudanças são sempre rápidas e desordenadas e
as inspecçóes raras. -ii que possamos ter confiança
num certo nú-

-Justamente. E ei mero de homens responsáveis pelo que se


passa.

- Encontrarão isso entre nós.

12O

A CENTELHA DA VIDA

"Estou a falar do pequeno campo como se tratasse dunia


pastelaria de primeira classe., pensou o 5O9.
Que queriam vocês de Berger? Era por causa das suas funções
rio crematório. Não temos, ninguém lá. Ele poderia manter-nos
ao corrente.

- Com certeza. Ele arranca os dentes e assina as certidões de


óbito, ou qualquer coisa assini. Está lá há dois meses. O
antigo i-nédico--pl'eso foi embarcado aquando da última
mudança de toda a brigada do creinaffirio, numa partida por
noíte e ne~ro, Em seguida houve um dentista que morreu pouco
depois. Foi então que vieram buscar Berger,

Lewinsky acenou com a cabeça.


- Poi tanto, ele tem ainda para dois ou três meses, Basta-nos
para começar.

- Sim, é bastante,
O 5O9 ergueu para o interiocutor o seu rosto azul e verde.
Sabia que os homens incumbidos do serviço do crernatório eram
substituídos todos os quatro ou cinco meses para serem
enviados para um campo de exterminaçào, onde passavam à câmara
de gás, Era o meio mais simpies de se deserribaraçarem de
testemunhas que sabiam derriasiado. Por consequência, Berger
tinha ainda, quanto muito, três meses para viver. Mas três
meses era muito tempo. Muitas coisas se podiam passar num
futuro próximo. Sobretudo corri a ajuda <@o campo de trabalho.

- E que podemos nós esperar de vocês, Lewinsky?


- A mesma coisa.
- Para nós isso não é tão importante, Actualmente não temos
ninguém a esconder. Do que precisamos é de comer. De comer.

Lewinsky ficou calado uni momento.


- Não podemos alimentar toda a vossa barraca - disse, depois.
- Bem sabes.

- Não se trata disso. Não somos, mais de unia dúzia. Os


muçulmanos estão perdidos de qualquer maneira,

- Nós próprios estamos muito longe de ter o estritamente


necessário. Se assim não fosse, vocês não veriam, todos o&
dias, chegarem aqui hornens do nosso campo.

- Beni, sei. Também não lhes peço que nos fartem de comida.
Trata-se somente, para nós, de não moiref de fome,

- O que conseguinios pôr de lado é para aqueles a quem


escondemos e para os quais não há ração prevista. Mas faremos
por vocês o que pudermos. É suficiente isto?

O 5O9 pensou que era suficiente e que equivalia, em suma, a


nada. Unia promessa - mas ele nada podia pedir enquanto a sua
barraca não prestasse uni serviço efectivo.

121

ERICH-MÁRIA REMARQUE

É suficiente - disse. Bem. Agora tenho de falar com Berger.


Ele pode fazer a ligação, uma vez que tem o direito de entrar
no nosso campo. É o que há de mais simples. Tu te encarregarás
de pôr os outros ao corrente. É con-

veniente que sejam no menor número possível os que, no que me


diz respeito, saibam com que contar. Que não haja nunca mais
de um assegurando a ligação entre um grupo e outro. E um outro
homem para o substituir, se necessário for. Conheces esta
velha regra, não é verdade?

- Conheço-a, sim - respondeu o 5O9.

Lewinsky afastou-se, rastejando na sombra avermelhada em


direcção às latrinas e à saída. O 5O9 regressou às
apalpadelas. Sentia-se de repente esgotado. Tinha a
li-npressão de ter falado e de se ter concentrado durante dias
inteiros. Um nevoeiro flutuava dentro da sua cabeça. Em baixo,
a cidade aparecia esbraseada como unia gigantesca fornalha.
Chegou junto de Berger.

- Ephraim - disse-lhe -, creio que sairemos daqui. Ahasver


chegou, tacteando.

- Sim, velho. Estão decididos a ajudar-nos. Se nós os


ajudarmos.
- Se nós ajudarmos?
- Sim - disse o 5O9, endireitando-se. A sua cabeça voltava a
estar lúcida.

- Se os ajudarmos. Nada em troca de nada. Havia na sua voz


como que um orgulho pueril. Não lhes faziam esmolas; eles
davam qualquer coisa em troca. Ainda serviam para alguma
coisa. Estavam tão fracos que, na sua miséria física, um vento
um pouco mais forte os teria derrubado, mas esta miséria
estava agora longe para eles.
- Estamossalvos - disse o 5O9. - Retomámos contacto com o
exterior. A quarentena quebrou-se.

Era quase corno se tivesse dito: já não estamos condenados a


morrer, resta-nos uma pequena probabilidade. Era toda a imensa
diferença que separa a esperança do desespero.

- Devemos pensar constantemente nela - disse-, devemos


alimentar-nos desta esperança como de pão e carne. O fim
aproxima-se, é evidente, Antigamente a esperança ter-nos-ia
morto. Era demasiado longínqua, as decepções demasiado
numerosas. Acabou-se. A esperança está aqui agora. Ela nos
ajuda a viver. Ela nos alimenta os cérebros. É como se fosse
carne.

122

A CENTELHA DA VIDA

Trouxe notícias... ele? Uni recorte de jornal ou outra coisa


qualquer?

- Não. Tudo está proibido. Mas eles construíram uni aparelho


de rádio clandestino. Com bocados de ferro e peças roubadas.
Dentro de alguns dias funcionará. É possível que eles o
escondam aqui. Nessa altura saberemos o que se passa.

O 5O9 tirou dois bocados de pão da algíbeira que Lewinsky lhe


deixara. Deu-os a Berger.

- Toma, Ephraiiii. Reparte-os. Ele trará outros. Cada um teve


a sua parte. Mastigavam devagar. No fundo do vale a cidade
continuava a arder. Atrás deles erguia-se a pilha de
cadáveres. O pequeno grupo apertava-se e mastigava o seu pão,
e o pão não tinha o inesmo gosto que de costume. Era uma
estranha comunhão que os distinguia dos que dormiam nesse
momento na barraca. Tinham retomado a luta. Tinham encontrado
aliados. Tinham um objectivo. Os seus olhares erravam pelos
campos e pelas montanhas, pela cidade e pelas trevas, e nenhum
deles via o arame farpado nem

as torres de vigia.

123
N

eubauer tornou a pegar no papel que acabara de atirar sobre a


mesa. "Para, estes tipos nunca há dificuldades", pensou.
Tratava-se duma dessas instruções elásticas de que se pode
fazer o que se quiser - absolutamente inofensivá à primeira
leitura, mas cheia de subentendidos, Era preciso elaborar a
lista de todos os prisioneiros políticos uni tanto importantes
- se ainda restassem alguns no campo, acrescentava-se
cautelosamente. Era aqui que se mostrava a ponta da cauda.
Meias palavras chegavam para compreender. Depois disto, a
conferência dessa manhã com Dietz fora supérflua. Dietz podia
perfeitaniente dispensar-se de cerimónias. "Liquide tudo o que
seja perigoso", declarara, "não podemos, nestes tempos
difíceis permitir-nos conservar atrás de nós inimigos
declarados do país e ainda por cima alimentá-los." Falar é
sempre fácil. Mas é preciso depois que alguém se encarregue da
execução, e isso passa a ser outra história. Para este gênero
de serviço devem-se ter sempre ordens escritas muito precisas.
Dietz nada dera por escrito - e estas malditas instruções não
continham nenhuma ordem expressa; deixavam ao executante plena
e inteira responsabilidade.

Néubauer afastou a folha de papel e tirou um charuto. Os


charutos começavam também a tomar-se raros. Ainda tinha quatro
caixas, depois só restavam os Guardas Alemãs, e mesmo destes
não restava grande coisa. Ardera tudo. Deveria ter tomado mais
precauções quando era ainda tempo - mas quem previa o que
viria a suceder?

Weber entrou. Após uma curta hesitação, Netibauer empurrou


para ele a caixa de charutos.

- Tire - disse com falsa cordialidade. - Tornararri-se


raríssinios. São verdadeiros Partagas.

- Obrigado, só fumo cigarros.


- Ah, é verdade! Esqueço-nie sempre, Nesse caso, funie tini
dos seus pregos de caixão.

Weber reteve um sorriso de troça. O velho devia estar


atrapalhado: mostrava-se generoso. Tirou do bolso um
cigarreira chata de ouro e bateu, com pequenas pancadas, a
ponta de um cigarro. A cigarreira pertencera, em 1933, a Aron
Weizeni)lut, conselheiro de justiça. Uni feliz acaso quisera
que as iniciais fossem as mesmas: Anton Weher. Era
124

A CENTELHA DA VIDA

a única rapina que se permitira de há anos para cá. Tinha


necessidades modestas e possuir interessava-o pouco.

- Acabo de receber novas instruçóes - disse Neubauer. - Tome,


leia isto!

Weber pegou na folha. Leu devagar e atentamente. Neubauer


começava a impacientar-se.

- A continuação não interessa - disse. - O que conta é a


passagem acerca dos prisioneiros políticos. Quantos nos
restam, pouco mais ou menos?

Weber atirou o papel para cima da secretária. Ele escorregou


na superfície polida e esbarrou contra uni pequeno vaso de
violetas.

- De momento, não posso dizer com exactidão. Provavelmente,


inetade dos presos, Talvez um pouco mais, talvez um pouco
menos. São os que trazem o triângulo vermelho. Sem contar os
estrangeiros, bem entendido. A outra metade compõe-se de
direito comum com uni bom número de pederastas, de
hebraizantes e outros.

Neubauer levantou bruscamente os olhos. Perguntava a si mesmo


se Weber estaria simulando não compreender. O rosto de Weber
na~-'deixava transparecer.

- Não é isso o que eu quero dizer. Nem todos os presos de


triângulo vermelho são políticos. Em todo o caso, não no
sentido em que estas instruções o entendem.

- Claro que não. O triângulo vermelho é apenas uma


classificação bastante vaga. Designa os judeus, os'católicos,
os democratas, os socialistas, os comunistas, etc., etc.

Neubauer sabia-o bem. Na verdade, Weber não tinha necessidade


de lho lembrar, a ele que comandava o campo há dez anos. De
novo teve a sensação de que o seu chefe de campo zombava dele.

- E quanto aos presos verdadeiramente políticos? - perguntou


imperturbável.
A maior parte são comunistas. É possível certíficar~nos, não é
verdade? É bastante fácil. Basta consultar os processos. À
pane esses, temos ainda presos políticos importantes? Posso
mandar verificar. É provável que haja alguns jornalistas,
sociais-democratas e democratas.

Neubauer expeliu uma baforada do seu Pailagas. Era estranho


como uni charuto tinha o poder de lhe restituir a calma e o
optimismo!

- Bem - disse cordialmente. - Comecemos por verificar tudo


isso. Mande fazer as listas. Em qualquer altura podemos depois
fixar o número de homens a assinalar. Não acha?

- Decerto.
- Aliás, nada nos apressa. Temos bem uns quinze dias diante de

125

ERICH-MARIA REMARQUE

nós@ É um prazo suficientemente confortável para tomar algumas


providências, não é assim?

- Decerto.
- E depois sempre se poderá antedatar tal ou tal
acontecimento. Dos que se darão de qualquer modo, quero eu
dizer. Também não é necessário tomar nota dos nomes dos
prisioneiros que serão, num

prazo curto, inscritos no número dos mortos. Seria um trabalho


inútil que, além do mais, nos valeria novos pedidos de
informação.

Decerto. Não teremos um número demasiado grande de presos


deste género? Quer dizer, bastante grande para que isso se
tome notado?

- É desnecessário termos muitos - declarou tranquilamente


Weber. . Sabia o que Neubauer queria dizer e Neubauer sabia
que ele compreendera.

- Discretamente, bem entendido. É preciso arranjar as coisas


tão discretamente quanto possível. Posso entregar-lhe o
assunto.

Levantou-se, introduzindo com cuidado na ponta do charuto a


ponta de um clip que acabara de endireitar. Há pouco devia ter
cortado um tanto à pressa a extremidade do charuto e ele não
fumegava. Nunca se deviam cortar bons charutos com os dentes:
devia-se, sim, furá-los sempre com cuidado, ou então cortá-los
com um canivete bem afiado.

- Como vai o trabalho? Ainda há bastantes máquinas a


funcionar?
- A fundição não está, praticamente, em condições de
trabalhar, por causa das bombas. Mas empregamos os homens nos
trabalhos de desentulho. As outras brigadas trabalham quase
todas conio dantes.

- No desentulho? Boa ideia.


O charuto voltava a fumegar.
- Dietz falou-me nisso esta manhã. É preciso desimpedir as
ruas, desocupar as casas parcialmente destruídas; a cidade tem
necessidade de centenas de trabalhadores. É um caso de força
maior e nós dispomos da mão-de-obra mais barata que é possível
encontrar. Dietz está de acordo,,@ Eu também. Não há qualquer
inconveniente, não é verdade?

- Não. Neubauer çolocara-se diante da janela, os olhos fitos


lá fora.
- Há também unia nota acerca do abastecimento. Vai ser preciso
economizar os víveres. Como vamos fazer?

- Diminuir as rações - respondeu weber simplesmente.


- Só é possível até certo ponto. Quando os homens morrem de
fome,não trabalham.

126

A CENTELHA DA VIDA

Podeni-se fazer economias com o pequeno catupo. Os mortos não


comem.

Neubauer aprovou.
- Ainda assim. Conhece o meu principio: ser sempre humano, na
medida do possível. É claro que quando não é possível...
Ordenssão ordens.

Fumavam ambos à janela neste momento. Discutiam, calma e


gravemente como dois honestos marchantes num niatadouro. Lá
fora trabalhavam prisioneiros nos canteiros que cercavam a
casa do comandante.

- Vou mandar plantar ali uma cercadura de íris e de narcisos -

disse Neubauer. - Amarelo e azul, duas cores que se harmonizam


muito bem.

- Sim - respondeu Weber sem entusiasmo. Neubauer soltou urna


gargalhada.
- Não está muito interessado, hem?
- Não muito, realmente. Por mim, prefiro o jogo da
laranjinha-.
- Também não está mal. Neubauer observou os presos ainda uni
momento,
- Que faz a orquestra do campo? Esses a~ais levam uma vida, de
porcos na engorda?

- Tocam a cada entrada e a cada saída do çampo e, duas vezes


por semana, de tarde.

- As brigadas de trabalho, à tarde, não podem beneficiar


disso. Ordene, portanto, que à noite na chamada haja ainda
unha hora de música. É excelente para o moral. Sobretudo se
formos obrigados a diminuir as rações.

Darei as ordens precisas. Deste modo, tratámos de todas as


questões e vejo que me compreendeu.

Neubauer voltou à secretária. Abriu unia gaveta e tirou um


pequeno estojo.

-Tenho aqui unia pequena surpresa para si, Wel->er. Chegou


hQie. Pensei que isto lhe daria prazer.

Weber abriu o estojo. Apareceu a,cruz de mérito militar.


Neubauer ficou surpreendido por ver Weber corar. Esperava tudo
menos isto.

- Aqui está o diploma que a acompanha. Há muito tempo que esta


recompensa lhe deveria ter sido dada. De certa maneira, também
nós estamos na frente de batalha. E talvez mesmo mais do que
isso,

Estendeu a mão a Wel->er.


- Atravessamos um período difícil. É preciso aguentar. Weber
saiu. Neubauer abanou a cabeça. A cartada do mérito militar
resultara ainda melhor do que esperava. Cada uni tinha a sua
127

ERICH-MARIA REMARQUE

fraqueza. Permaneceu durante um momento absorto na


contempla@ão do mapa geográfico colorido colocado na parede
oposta ao retrato de Hitler. As bandeirinhas de que estava
eriçado já não correspondiam à situação militar actual. A sua
linha invadia ainda profundaniente o território russo.
Ncubauer deixara--as no mesmo sitio, na supersticiosa
esperança de que talvez o seu traçado voltasse a ser actual.
Suspirou, aproxiniou-se da secretária e, erguendo o pequeno
vaso de violetas, aspirou~lhes profundamente o aroma
adocicado, Uma ideia confusa lhe veio ao espírito. "É assim
que nós somos", pensou, quase comovido. "Nas nossas ali-nas há
lugar para tudo. Uma disciplina de ferro, quando as
circunstâncias históricas o exigem, e, ao

mesmo tempo, a mais profunda sensibilidade. Assim, o


Fübrerania as crianças. Goering é amigo dos animais.. Aspirou
de novo o ramalhete. Acabava de perder cento e trinta mil
marcos e já recuperara a serenidade. Impossível abatê-lo! O
seu gosto do belo estava intacto. A ideia da orquestra do
campo fora excelente. Selma e Freya viriam ter com ele nessa
noite e ficariam com uma excelente impressão. Sentou-se à
máquina de escrever e dactilografou, com os seus grossos
indicadores, a ordem para a orquestra. A nota destinava-se aos
seus d~iers pessoais. Acrescentou-lhe a ordem de dispensa do
trabalho para os presos demasiadamente fracos. Não era esse
precisamente o efeito visado, mas era assim que ele queria
entendê-lo. O que Weber fazia só a ele dizia respeito, Ele
faria o que fosse necessário, a cruz de mérito militar chegava
no momento oportuno. Os dossien pessoais de Neubauer
regurgitavam de provas da sua benignidade e da, sua
solicitude. Também lá estavam, bem entendido, os documentos
mais esmagadores contra os seus superiores e os seus camaradas
de Partido. Para quem anda embarcado todas as precauções são
poucas.

Neubauer fechou com satisfação o dossier azul e levantou o


telefone. O seu notário dera-lhe uni excelente conselho:
comprar terrenos bombardeados que estavam sendo oferecidos por
preços baixos. Aliás, passava-se o mesmo com os terrenos que
permaneciam ainda intactos. Podia assim indeninizar-se das
suas próprias perdas. Mesmo depois de cem bombardeamentos os
terrenos conservavam o seu valor. 86 tinha de aproveitar o
pânico do momento.

A brigada de desentulho regressava da fábrica de cobre.


Trabalhara encarniçadamente durante doze horas. Urna parte do
grande vestibulo desmoronara-se e várias oficinas tinham sido
severaniente atingidas. Apenas se dispunha de algumas pás e
enxadas, e a maior parte dos prisioneiros tiveram de trabalhar
com as mãos nuas. Tinham as mãos dilaceradas e em sangue.
Todos estavain esgotados de fadiga e

128

A CENTELHA DA VIDA

nioffiara de fome, Ao nieio-dia tínhani-lhes dado unia sopa


-aguada onde nadavam ervas desconhecidas. Era uma generosa
atenção da direcção da fábrica. A única vantagem que a sopa
tinha era estar quente. Em compensação, os engenheiros e os
capatazes da fábrica tinhani-nos feito correr como animais.
Eram civis, mas a maior parte deles não valiam muito mais do
que os SS.

Lewinsky iiwchava no meio da coluna. A seu lado, VIIly Werner.


Tinham conseguido, no momento da divisão em brigadas, fazer
parte do mesmo grupo. Não se fizera a chamada individual por
números; tinham-se limitado, a pedir um grupo de quatrocentos
homens. Desentulhar era uni trabalho penoso para o qual poucos
presos se tinham apresentado voluntariamente. Deste niodo,
fora fácil a Lewínsky e a Werner fazerem parte do grupo.
Tinham para i~ excelentes razões e não era a primeira vez que
o faziam.

Os quatrocentos homens marchavam devagar. Levavam com eles


dez-asseis presos que tinham desmaíado durante o trabalho.
Doze deles haviarri recuperado os sentidos e podiam andar,
desde que fossem amparados; os outros quatro eram transpomdos,
dois sobre uma padiola tosca e os autros dois suspensos pelos
pés e pelas mãos. 'O caminho de regresso era longo; os presos
eram obrigados a fazer uni largo desvio para evitar passar
p@Io centro da cidade. Os SS não queriam dá-tos como
espectáculo à população; além disso, não convinha também que
eles vissem a extensão das destruições.

Aproximavani-se dum pequeno bosque de bétulas. A luz da tarde


provocava reflexos sedosos-nos troncos das árvores. Os guardas
S 5 e os kapos distribuiram---se ao longo da coluna. Os SS
tinham as espingardas meío.apontadas, prontós a disparar. Os
prisioneiros avançavam, coxeando. Pelos ramos chilreavam
pássaros, Uma brisa príniaveril acariciava as ramagens. Os
vaiados estavam semeados de campainhas e primaveras. Uni
riacho murmurava, mas os homens nada viam e nada ouviam.
Depois apareceram outra vez os campos e os prados e os guardas
reagruparam-sè.

Lewinsky caminhava iiiesl@no ao lado de Werner. Estava


inquieto.
- Onde o puseste? - perguntou sem mexer os lábios. Werner
apertou levemente o braço contra as costelas.
- Quem o encontrou?
- Münzer, no Inesino sítio.
- É a mesma marca? Werner acenou com a cabeça.
- Temos as peças todas agora?
- Sim. Münzer vai poder montá-las no campo,
- Encontrei um punhado de cartuchos. Não pude verse servem.
Tive de guardá-los logo. Oxalá sirvam!

G. CL"")S do Sér_ XX 25 - 9

129

ERICH-MÁRIA REMARQUE

- Pe qualquer maneira, poderemosservir-nos deles.


- A parte isso, alguém achou mais coisas?
- Münzer também tem peças de revólver.
- Estavam no mesmo sítio que ontem?
- Sim.
- Alguém as escondeu ali,
- Evidentemente, alguém cá de fora.
- Um operário.
- Sim, é a terceira vez que lá encontramos coisas. Não pode
ser

por acaso.

- Terá sido algum dos nossos que trabalhe na fábrica de


munições?

- Não. Eles não vieram por aqui. Se assim fosse, já o


saberíamos. Deve ser alguém de fora.

Havia muito tempo que o movimento de resistência do campo


tentava arranjar armas. Esperava um ataque desesperado dos SS
e não queria encontrar-se completamente desarmado. Fora quase
impossível estabelecer contacto com o exterior; mas, depois
dos , bombardeamentos, a brigada dos serviços de desentulho
descobrira, de repente, em certos locais, armas e peças soltas
dissimuladas debaixo dos escombros. Deveriam ter sido ali
postas por operários, para que os presos se apoderassem delas
graças à confusão dos bombardeamentos. Eram estes achados que
explicavam que, de uni dia para o outro, muitos mais
voluntários se tivessem apresentado para o trabalho de
desentulho. Todos eles eram homens de confiança.

Os presos passavam perto dum prado que uma vedaçào de arame


farpado cercava. Duas vacas ruivas e brancas aproximavam-se do
ara-

me, resfolegando. Unia delas pos-se a mugir. Os seus grandes


olhos pacíficos brilhavam docemente. Poucos prisioneiros
olharaín para o lado dela. A fome ter-se-ia tomado ainda mais
insuportável.

- Achas que esta noite nos revistarão antes da ordem de


destroçar?
- Porquê? Não o fizeram ontem. A nossa brigada não foi para o

lado da fábrica de munições. Geralmente, só revistam os que


vêm da fábrica de mu 'nições.

- Nunca se sabe. Talvez tenhamos de atirar tudo fora. Werner


levantou os olhos para o céu, ilurninado de rosa, azul e ouro.

-já estará bastante escuro quando chegarnios. Veremos o que se


vai passar. Embrulhaste as munições?

- Sim, embrulhei-as num trapo.


- Está bem. Se houver perigo, passa-as para tris de,
ti, para Goldbtein. Ele passará a Münzer e este a Remine. Uni
deles atirará fora o embrulho. Se tivermos o azar de haver SS
de todos os lados, deixa

13O

A CENTELHA DA VIDA

cair o embrulho no meio do grupo. Não o atires para o lado.


Assim como te digo, eles não saberão quera foi. Espero que a
brigada de desbravamento chegará ao mesmo tempo que nós. Se
nos revistarem, fingirão ter percebido mal uma ordem,
avançarão, e o enibrulho será apanhado.
A estrada obliquava e apontava, em seguida; direita à cidade.
De um lado e outro havia hortas com caramanchões e canteiros
de flores, onde trabalhavam homens em mangas de camisa. A
maior parte deles nem sequer levantavam a cabeça à passagem
dos prisioneiros. Conheciam-nos há muito. O odor da terra
remexida flutuava no ar. Um galo cantava. Placas de direcção
erguiani-se aqui e além: Atenção. Curva
- HÓIzfélde 2 7 q u iló m etros. _ Que é aquilo lá em baixo?
- perguntou, de súbito, Werner. -

Será a brigada da floresta?

Ao longe via-se uma massa sombria de homens avançando pela


estrada, A distância era demasiada para que fosse possível
identificá-los.

- É possível - disse Lewinsky. - Tornarani-nos a dianteira.


Talvez os consigamos alcançar mesmo assim.

Voltou-se. Atrás dele, Goidstein, sustido por doís carnaradas,


avançava cambaleando.

- Deixem - disse Lewinsky aos dois homens que ajudavam o


ferido -, nós levamo-lo agora. Antes de chegarmos ao campo
trocamos outra vez.

Segurou Goldstein de um lado e Werner colocou-se do outro.


- É este maldito coração - gemia Goidstein. - Quarenta anos e
já com o coração em niarmelada. É estúpido!

- Por que vieste connosco? - perguntou Lewinsky. - Devias ter


ficado. Ter-te-iam mandado para, a secção de sapataria.

Uni sorriso como um esgar desenhou--se na cara acinzentada de


Goldstein.

- Quis saber como era isto fora do campo. O ar puro. Foi uma
asneira.

- Tu vais repousar - disse, Werner. - Não tenhas inedo, de te


apoiares em nós. Podemos bem contigo.

O céu perdia as suas últimas cores- e tornava-se


uniforniemente cinzento. Uma sombra azulada caía das colinas,

- Ouçam - murinurou Goidstein -, metam nos meus bolsos tudo o


que trazem. Se houver inspecção, vocês serão revistados e
talvez as padiolas o sejam também. A nós, aos que mal se podem
arrastar, deixar-no,%-ào em paz. Considerani-nos já
liquidados.

- Se eles fizerem unia inspecção, revistarão toda a gente -


disse Werner.

FR/CH-MARIA REMARQUE

Não revistarão os que desmaiarem. Metam tudo nas minhas


algibeiras.

Werner trocou um olhar com Lewinsky.


- Não, te preocupes, Goldstein - disse. - Havemos de arranjar
maneira.

- Não, dêem-i-ne tudo. Calaram-se ambos.


- Para mim não tem grande importância ser apanhado ou não.
Para vocês é diferente.

- Não digas asneiras.


- Oh, isto não tem nada que ver com a abnegação e os belos
sentimentos - disse GoIdstein, com um sorriso doloroso. -
Simplesmente, é mais prático. De qualquer maneira, já não
durarei muito tempo.

1 - Veremos -respondeu Werner. -Ainda temos quase uma hora de


caminhada. Antes de chegarmos ao campo voltarás para o teu
lugar. Se acontecer qualquer coisa, passar-te-ào o material.
Passa-o imediatamente a Münzer. A Münzer, ouviste?

- Sim. Unia mulher de bicicleta passou por eles. Era gorda e


usava óculos. Sobre o guiador levava uma caixa de cartão.

Lewinsky olhou a estrada diante da coluna.


- Aquilo não é a brigada da floresta.
O grupo sombrio estava muito mais perto agora. Não caminhava
na direcção do campo de concentração, mas sim ao encontro dos
prisioneiros.

- Serão novos que chegam ou uma coluna que vai partir? -


perguntou alguém atrás de Lewínsky.

- Nem urna coisa nem, outra. Não há 85 para os vigiar. E não


vão na direcção do campo. São civis.
- Civis?
- Vê-se bem, Trazern chapéus. E há mulheres e crianças também,
muitas crianças.

Agora viam-se distintamente. As duas colunas aproximavani-se


ra-

pidamente unia da outra.

- Encostem à direita! -- gritaram os SS. - Para a vala a fila


da direita! Vamos!

Os guardas corriani ao longo das fileiras.


- Para a direita! Encostem à direita! Desimpeçam o lado
esquerdo da estrada! Se algum se afastar, morre!

- São sinistrados - disse Werner, rapidamente a meia voz.


Gente da cidade. Refugiados.

Refúgiados?

132

A CENTELHA DA VIDA

- Sim, refugiados - repetiu Werner.


- Deves ter razão. Lewinsky setnicertou os olhos,
- São refugiados, efectivamente. Mas desta vez refugiados
alemães.

A notícia espalhou-se logo por toda a coluna. Refugiados!


Refugiados alemães! Era inacreditável, mas verdadeiro. Depois
de terem, durante anos, alcançado a vitória após vitória por
toda a Europa, expulsando diante deles as populaçóes, e!-los
que fugiam agora dentro do seu próprio país!

Eram. mulheres, crianças e velhos, carregados de pacotes e


malas. Alguns empurravam carrinhos abarrotados de embrulhos.
Formavam uni cortejo irregular e desalentado.

As duas colunas estavam agora quase,juntas. Fez-se de repente


um grande silêncio. Só o ruído dos passos na estrada se ouvia.
Sem uma palavra, os prisioneiros niudaram, de súbito, de
atitude, Não tinha havido sequer unia troca de olhares e,
contudo, dir~se-ia que urna orden-i silenciosa percorrera as
fileiras destes homens arruinados, famintos, esgotados. Uma
centelha acendera-lhes o sangue, acordara-lhes os pensamentos,
reunira-lhes toda a energia dos seus músculos e dos seus
nervos. O cortejo, que até aí caminhara aos tropeções,
começou, verdadeiramente a marchar. Os pés já não se
arrastavam na poeira, as cabeças erguerani-se, os rostos
endureceram e em todos os olhos hoijve uni relâmpago de vida.
@

- Deixem-me - disse Goidstein.


- Tu és doido?
- Não, é só o tempo de eles passarem. Largarani-no. Ele
cambaleou, cerrou o dentes e firmou-se nas pernas. Lewinsky e
Werner apertavam-no tanto quanto possível com os ombros, mas
puderam deíxà-4o andar, Ele caminhava estreitamente apertado
entre os dois homens, mas, sem. auxílio, com a cabeça atirada
para trás a respiração ofegante, caminhava sozinho.

O tropeçar dos prisioneiros transformani-se numa espécie de


passo regular. Havia entre eles uma secção de franceses e de
belgas e um pequeno grupo de polacos. Também eles niarchavam
com passo firme.

As duas colunas juntarani-se. Os alemães dirigiam-se para as


aldeias próximas, Destruída a estação e interrompido o tráfego
ferroviário, tinham de se deslocar a pé. Alguns civis com a
braçadeira SA conduziam a coluna. As mulheres não podiam mais.
As crianças choravani. Os homens olhavam a direito diante de
si.

- Foi assim que nós deixámos Varsóvia - murmurou o polaco


atrás de Lewínsky.

133

ERICH-MÂRIA REMARQUE

- E nós Liège - respondeu um belga.


- E nós Paris.
- Para nós foi pior, muito pior, Ilinhamo--los à perna. Mal se
poderia dizer que experimentavam uma sensação de desforra.
Falavam sem ódio. Por toda a parte, as mulheres e as crianças
eram as mesmas, e eram quase sempre os inocentes que sofriam
enão os culpados.

Nesta multidão extenuada, quantos não teriam nunca feito ou

conscientemente desejado qualquer coisa que justificasse a sua


sorte? Não foi isso, pois, o que os prisioneiros sentiram. Foi
algo diferente, que ultrapassava largamente a esfera
individual, que só numa reduzida parte respeitava à cidade, à
região ou mesmo â nação. Foi, sim, o sentimento vago de uma
justiça formidável e impessoal que os

empolgou quando as colunas se cruzaram. Um crime histórico


fora cometido impunemente; as leis da humanidade tinham sido
violadas e quase espezínhadas, haviam cuspido sobre a lei da
vida, tinham--na esbofeteado, abatido à queima-roupa. A
violência em a lei, o assassínio proveitoso, por toda a parte
o terror reinava, e eis que, de súbito, com a respiração
opressa, quatrocentas vitimas de arbitrariedade acabavam de
ter a revelação de que esta acabara, de que uma voz falara, de
que a roda do tempo andava agora para trás. Sentiam que não
era apenas a salvação das nações ou dos povos que estava em
causa, mas sim as próprias leis da vida. Muitos nomes a
designavam - um dos mais antigos era Deus, o mais simples era
Homem.

A coluna dos refugiados ultrapassara já a dos prisioneiros.


Por um momento dir-se-ia que eram osrefugiacios que estavam
prisioneiros e que os prisioneiros estavam livres, Duas
carroças puxadas a cavalos e cheias de embrulhos fechavam a
marcha... Os SS percorriam nervosamente a coluna dos
prisioneiros, à procura dunia palavra, dum sinal. Nada se
passou. A coluna prosseguiu o seu caminho em silêncio e logo
os pés rêcomeçaram a arrastar-se, a fadiga voltou, Goldstein
foi obrigado a apoiar~se outra vez nos ombros de Lewinsky e de
Werner; e, contudo, quando a barreira vermelha e negra do
campo e o portão metálico ornado pela velha divisa prussiana:
"A cada um que Ibe é devido-, foram visíveis, os prisioneiros,
pari quem estas palavras tinham sido, durante anos, dunia
ironia trágica, lerani-nas com outros olhos.

A orquestra do campo esperava à entrada, tocando a marcha


FredeticusRex Atrás da orquestra estavam reunidos alguns SS e
o segundo chefe de campo. Os prisioneiros começararn a marchar
a passo certo.

- Olhar à direita, à direita! A brigada da floresta ainda não


tinha chegado. -- Descansar! Contar! Contarani-se. Lewinsky e
Werner observavam o segundo chefe de

134

A CENTELHA DA VIDA
campo, que se balançava ora sobre urna perna, ora sobre a
outra. Gritou:

- Para a inspecção dos fatos, primeiro grupo, três passos em


frente!

Com mil cuidados, as peças embrulhada@ nos trapos foram


passadas para Goldstein. Lewinsky sentiu, de repente,
invadi-lo um suor frio.

O ScbarfuebrerSS Steinbrenner, que se mantiriha, atento como


uni cào-pastor, viu em qualquer parte um movimento suspeito.
Abriu caminho, a soco, até Goldstein. Werner apertava os
lábios. Se as, peças aào estavam já nas mãos de Münzer ou de
Renime, tudo estava perdido.

Antes que Steinbrenner se aproximasse dele, Goidstein tombou.


Steínbrenner deu-lhe um pontapé nas costelas.@

- De pé, porco! Goidstein fez uma tentativa. Conseguiu pôr-se


de joelhos, endireitou-se, gemendo, e, de súbito, tornou a
cair, dei~ espuma pela boca.

Steinbrenner viu-lhe o rosto terroso;os olhos revinidos,


Deu-lhe outro pontapé, perguntando a si mesmo se lhe chegaria
um ffisforo aceso ao nariz para lhe restituir as forças, Mas
leti@brou-se de que, recentemente, se ridicularizara aos olhos
dos seus camaradas esbofeteando uni cadáver; convinha que
semelhante fiasco se não repetísse. Recuou, rosnando.

- O quê? - perguntou. o segundo chefe de campo, com ar


contraríado, ao chefe da brigada. - Não são estes os homens
que vêm da fábrica de munições?

- Não. Esta é a brigada do desentulho.


- Ah, bem! Onde estão os outros?
- Estão agora a chegar - disse o 85 Oberscb4rfuebrer que tinha
dirigido a brigada.

- Bem. Faça limpar o terreno. Não há necessidade de revistar


estes animais. Mande destroçar e depressa!

- O primeiro grupo, três passos à retaguarda! - comandou o


OberscbarfÚebrci@ - Brigada firmei A esquerda, à èsquerda!

Goldstein levantou-se. Vacilava, mas conseguiu ficar no grupo.


- Atiraste fora? - perguntou Werrier quase num sopro quando a
cabeça de GoIdstein. se achou suficientemente perto da sua.

- Não.
O rosto de Werrier descontraiu-se.
- Com certeza?
- sim.

135

£RICH-MARIA REMARQUE

Entraram no campo. os 55 já não $e@ ocupavam deles. A coluna


da fábrica de niunições que chegava foi cuidadosamente
revistada.

- Quem lem as peças? - perguntou Werner.,= Renime?


- Eu. Dirigiram-se para a chamada,

Que teria acontecido se não tivesses podido levantar-te? -


perguritou Lewinsky. - Como poderiamos recuperar as peças sem
que ninguém notasse?

Eu levantar-me-ia. --Como? Goldstein sorriu.


- Noutros tempos desejei ser actor.
- Simulaste tudo?

Nem tudo. Só o fim. A espuma na boca também? Isso é infantil.


Ainda assim devias ter passado as peças. Por que não o
fizeste? Para que. as conservaste?

-já o disse. @- Atenção, os SS - murmurou Werner. Puseram-se


em sentido.

136

Anova coluna de prisioneiros chegou à' tarde. Cerca de qui-

nhentos homens arrastaram-se até ao cimo da colina do campo de


concentração. Havia entre eles menos inválidos do que se podia
esperar. Quem quer que fraquejasse nó caminho era
imediatamente abatido.

As formalidades da entrada prolongarartí-se. @Os,S5 da cõluna


tentaram fazer admitir irregularmente algumas dezenasde mortos
cujos nomes se tinham esquecido de riscarçnas listas: Mas a
burocracia do campo não se deixou iludir. Exigiu que cada
preso lhe fosse apresentado individualmente, morto ou vivo, ie
não admitiu no campo se não aqueles que transpunham vivos a
entrada. Foi então que se pmduziu um incidente que teve o
mérito de alegrar os $$. £xxquanto a coluna esperava diante do
portão do campo, "alguns presos, tombaram, esgotados. Os seus
camaradas tentaram tmspo4-los consigo, mas, tendo os SS
ordenado o passo de, corrida, foi necessátio,,abandonar um
certo número de inválidos à sua sorte. Foi as"i que os úít@mos
duzentos metros de estrada ficaram juncados, de mais de vinte
presos. Gemiam, estertoravam, ou então ouviam7pos piar
docemente corno pássaros feridos. Outros, demasiadamente
fracos para Fritar, se"erguiani-se, arregalando os olhos
dilatados pelo medo. Sabiam o que os esperava se ficassem ali.
Tinham, visto, no dec,ursQ da, viagem, centenas de camaradas
serem abatidos coqi uma bala na nuca.

Os SS compreenderam imediatamente o partido que podiam tirar


da situação.

- Vejam como eles suplicam que os çleixeni entrar no c ampo!


-

exclamou Steinbrenner.

- Vamos, vamos, a correr! - gritaram os SS que conduziam a


coluna.

Ospresos tentaram arrastar-se. -Eunia corrida


detartalugas-rejubílou Steirib.renner, -Aposto no careca do
meio! :

O calvo arrastava-se, com os braços e as pernas largamente


afas tados sobre o asfalto, rastejando cQmo unia rã cansada.
Ultra assou

p uni outro preso que se esforçava, infatigavelmente> por


caminharlde gatas, mas que pouco conseguia avançar porque os
braços cediam

137

ERICH-MARIA REMARQUE

sempre debaixo de si. Todos esticavam o pescoço duma maneira


estranha - ao mesmo tempo hipnotizados pelo portão salvador e
apurando o ouvido, angustiados, aos primeiros tiros de
revólver que soariam atrás deles.

- Anda! Anda, careca! Os SS abriam atas. De súbito, duas


detonações secas ressoaram

alguns metros atrás. Era um Scbarfuehrer SS da coluna que


acabava de fazer fogo. Sorrindo, metia a arma no coldre. Tinha
disparado para o ar.

Mas agora os presos estavam possuídos de pânico. Supunham que


os dois últimos do grupo acabavam de ser abatidos. A cornoção
dificultava-lhes ainda mais o andamento. Um deles parou.
Estendeu os braços para diante e juntou as mãos. Os lábios
tremiani-lhe e na testa fotinavani-se-4he grossas gotas de
suor. Um outro estendeu-se no chão, calmo e resignado, o rosto
escondido entre as mãos. Esperava a morte sem se mover.
1 -

- Ainda têm sessenta segundos! - gritou Steinbrenner. - Ainda


um, minuto! Daqui a um minuto fecham-se as portas do Paraíso.
Aqueles que não -tiverem entrado ficarão cá fora.

Olhou o relógio de pulso e empurrou o portão como se o fosse


fechar. Os insectos humanos responderam-lhe com um coro de
gemidos. O scbarfuebrerSS da coluna disparou outra vez. Os
braços e as pernas agítarani-se mais ainda. S6 o homem que
escondia o rosto nas mãos continuava a não se mexer:
renunciara à luta.

- Hurra! - gritou Steinbrenner. - O meu careca ganhou. Deu ao


prisioneiro um pontapé nas nádegas para o encorajar. Depressa
alguns prisioneiros atravessaram, por sua vez, o portão, mas
mais de metade continuava ainda fora.

- Ainda trinta segundos! - gritou Steinbrenner, com unia voz


de locutor desportivo.

Os movimentos tornaram-se convulsivos. Dois homens rolaram de


costas. Incapazes de se virar, mexiam os braços e as pernas
-como se nadassem. Um deles começou a soluçar numa voz
@sobreaguda. . - Aquele guincha como um rato - comentou
Steinbrenner, com os olhos fixos no relógio. - Ainda quinze
segundos!

Uma nova detonação ressoou. Desta vez o SS não disparara para


o ar. O homem que escondera a cabeça nas mãos teve um
sobressalto. Depois alongou-se como se quisesse achatar-se
contra o solo. Unia poça de sangue rodeou-lhe logo a cabeça
como unia auréola sombria.
O preso que rezava fez um último esforço para erguer-se.
Apoiou-se num joelho, mas escorregou logo para o lado,
ficando, por fim, de costas. Fechava os olhos num esgar e
movia os braços e as pernas

138

A CENTELHA DA VIDA

como um recém-nascido no berço. Cada uni dos seus seus


esforços provocava o riso dos SS.

- Como vais tu despachar aquele, Robert? - perguntou um dos SS


ao kba!ffiebrer que abatera o primeiro preso. - Por detrás, à
altura do peito, ou mesmo no nariz?

Robert, com ar pensativo, deu a volta ao homem que continuava


a gesticular. Permaneceu um momento atrás dele, como se
hesitasse, depois disparou-lhe de través uma bala na têmpora.
O preso empinou-se, bateu três vezes pesadamente com uni pé no
chão e caiu de borco. Lentamente, dobrou unia perna,
estendeu-a outra vez, dobrou-a de novo, estendeu-a...

- Falhaste este, Robert.


- Não - respondeu Robert calmamente, sem olhar o autor da
critica. - São os últimos reflexos.

- Acabou-se! - declarou Steinbrenner. - O prazo findou! Vamos


fechar!

O guarda começou, com efeito, a fechar as portas devagar.


Gritos de medo ergueram-se.

- Não empurrem, meus senhores, se fazem favor' - gritou


Steinbrenner, de olhos brilhantes, - Cada um por sua vez,
peço,4he! E ainda dirão que não somos amados aqui!

Três homens jaziam ainda na estrada, a alguns metros uns dos


outros. Robert liquidou os dois primeiros tranquilamente, com
uma bala na nuca, mas o terceiro não cessava de o seguir com
os'olhos, Estava meio sentado, e quando Róbert o contornava
ele rodava len~ tamente corno se o seu olhar pudesse deter o
tiro. Robert tentou duas vezes aproximar-se dele por detrás;
mas sempre o rosto do outro conseguia voltar-se o suficiente
para enfrentâ-lo. Por fim o SS encolheu os ombros.
- Seja como quiseres - disse, e disparou-lhe a arma em pleno
rosto. Depois meteu-a no coldre.

- Com este perfaz justamente quarenta.


- Tu liquidaste quarenta? - perguntou Steinbrenner. Robert
acenou afinnativamente.

Sim, só neste transporte. Caramba! Tu és alguém! Steinbrenner


olhava-o cheio de admiração e de inveja, como se ele fosse uma
espécie de campeão desportivo. Robert apenas tinha mais alguns
anos do que ele.

- A isto é que se chama ter classe! Um Oben,;cba@fÚehrer mais


velho chegou precípítadamente.
- Vocês, com este tiroteio! - esbravejou. - Vai ser agora urna

139

ERICH-MARIA REMARQUE

firioa história por causa dos papéis dos homens liquidados.


Até parece que viemos entregar príncipes, de tal maneira aqui
são iniplicativos.

Duas horas depois do começo das formalidades de admissão no


campo já trinta e seis homens tinham toni.bado. Quatro estavam
mortos. A coluna não tivera água desde manhã. Dois presos do
bloco 6 tinham tentado levar, às escondidas, um balde enquanto
os Ss estavam ocupados noutro ponto. Foram apanhados e agora
estavam pendurados, com os braços deslocados, nas cruzes que
se erguiam perto do crematório.

As inscrições continuavam. Duas horas mais tarde, sete mortos


e mais de cinquenta homens jaziam no chão. A partir das 6
horas o ritmo acelerou-se; havia doze mortos e mais de oitenta
prostrados. Às 7 horas cento e vinte corpos juncavam o solo e
nada já permitia distinguir os mortos dos vivos. Aqueles que
tinham desmaiado não se moviam mais do que os mortos.

Às 8 horas o registo dos homens que ainda podiam manter-se de


pé estava terminado. A noite caíra e o céu estava cheio de
pequenos flocos prateados. As brigadas de trabalho começavam a
chegar. Tinham-nas obrigado a fazer horas suplementares para
que a admissão dos recém-chegados estivesse concluída quando
entrassem. A brigada de desentulho encontrara armas novamente.
Era a quinta vez e sempre no mesmo sítio. Desta vez havia um
bilhete com as armas: Pemamos em vocês. Sabiam já há muito
tempo que eram operários da fábrica de munições que colocavam
ali as armas, à noite, para eles.

- Olha para esta confusão - munilurou Werner. -, Vamos


conseguir ainda passar desta vez.

Lewinsky apertava um embrulho chato debaixo do sovaco.


- Que pena que não tenhamos mais para passar! Isto não durará
mais, de dois dias. Depois os trabalhos de desentulho
acabarão.

- Deixem passar! - ordenou Weber. - A chamada será feita mais


tarde.

- Por que diabo não temos nós um canhão para passar esta
noite? murmurou Goldstein. - Que boa ocasião! Dirigirani-se
para as barracas.
- Os novos para a sala de desinfecção! - gritou Weber. - Aqui,
o tifo e a sarna nãoentram! Onde está o kapo elo vestuário?

O @apo apresentou-se.
- E preciso desinfectar e dispiolhar as roupas destes homens -

disse Weber. - Há roupas bastames para a troca?

- Às suas ordens, Heii.Stz4i-lnfziebrer. No zuês passado


recebemos; roupas para dois mil homens.

14O

A CENTELHA DA VIDA

É verdade. Weber lembrava-se agora. AS roupas eram


provenientes de Auschwítz. Os campos de exteniiinaçào
forneciam abundantemente todos os outros campos,

- Vamos! Toda a gente para as tinas! A ordem ressoou.


- Dispam-sel Para o banho! Os fardatuentos e a roupa interior
atrás! Os objectos pessoais à frente!

Uma hesitação percorreu as fileiras. Talvez fosse realmente


para o banho que os enviavam, mas talvez fosse também para a
câmara de gás. Os presos dos campos de externiinação eram
enviados nus às câtnaras de gás com o pretexto de desinfecção.
Demasiadamente tarde descobriram que os ralos dos duches
despejavam não água mas gás asfixiante.
- Que vamos fazer? - murmurou o preso Suizbaicher ao. seu
vizinho Rosen. - Fingili-tos que desmaiamos?

Começaram a despir-se. Sabiam que era preciso, em


poucos segundos, tornar unia decisão de que dependiam as suas
vidas; se se encontravara num campo de exterminaçào com câmara
de gás, valia mais simular um desmaio. Ganhavam-se assitil
alguns minutos, pois os prisioneiros desmaiados raramente eram
logo arrastados para a camaia de gás. Podiam até escapar da
dificuldade por este meio; por vezes sala-se vivo mesmo de uni
campo de exterminação. Mas se não houvesse câmara de gás, o
desmaio seria perigoso; corria-se o risco de ser imediatamente
liquidado com 1uma,injecção.

Rosen observou, durante um momento, os presos que jaziam sem


darem acordo de si. Notou que ninguém tentava reanimá-lo.
Concluiu daí que não se tratava provavelmente de câmara de
gás, se a houvesse, procurariam meter-lhe dentro o maior
número possível de presos.

- Não - murmuroki -, ainda não é desta vez. As fileiras dos


prisioneiros, ainda há pouco sombrias, tinhan-@-se tornado de
uni banco-sujo, Os prisioneiros estavam nus.

Toda a coluna passara por uma tina imensa cheia de uma forte
salmoura desinfectante. No vestiário atiraram-lhes fatos
desínfectados. Depois reunirani-nos para a charnada.

Vestíam-se à pressa, Sentíam-se, por assim dizer, felizes. Não


os tinham enviado para um campo de exteinúnação- Como era
natural, os fatos não ficavam bem. Stilzl-)acher recebera
roupas de baLko feti-iininas com fitas corL-de--rosa; Rosen, a
Sobrepeliz de um eclesiástico. Todas estas roupas tinham
pertencido a moitos. A so(-)repeííz tinha um buraco de bata;
uina nódoa de sangue tingia ainda o rebordo do ras-

141

ERICH-MARIA REMARQUE

gão. Apenas superficialmente estavam lavadas. Alguns homens


experimentavara tamancos de madeira grosseiramente talhados,
que provinham de uni campo holandês extinto, Instrumentos de
tortura para pés que a marcha ferira.

A distribuição pelos blocos ia começar. Foi então que as


sereias da cidade entraram emacção. Toda a gente olhou para o
chefe de campo.

- Continuem! - gritou Weber através do uivar das sereias. Os


SS e os kapos corriam nervosamente por toda a parte. As
fileiras dos prisioneiros estavam Imóveis; apenas os rostos se
levantavam para o céu e brilhavam palidamente ao luar.

- Os olhos no chão! - gritou Weber. Os SS e os kapos


percorriam as fileiras, repetindo a ordem. De vez em quando,
eles próprios levantavam a cabeça. As suas vozes perdiam-se no
barulho. Os cacetes entraram em acção.

De mãos nas algíbeiras, Weber passeava tranquilamente.


Renunciara a dar ordens, Neubauer chegou, apressado.

- Que se passa, Weber? Por que não estão os homens já nas


barracas?

- A distribuição ainda não esta feita - respondeu Weber


fleumaticamente.

- Isso não tem importância! Não podem estar aqui. Neste espaço
livre vão tomá-los por soldados.

O uivo das sereias tomou-se mais grave.


- É tarde de mais - disse Weber. - Se eles se movem, ainda se

tornarão mais visíveis,

Observava Neubauer sem se mexer. Neiibauer notou-o; sabia que


Weber estava à espera de o ver correr,para o abrigo. Vexado,
deixou-se ficar também.

- Que estupidez mandareni-nos estes animais - resmungou. -

Mandam-nos fazer uma escolha nos nossos próprios homens e


atiram- ~nos para cima com uma coluna completal É idiota! Por
que não os mandam para um campo de exterminação?

- Talvez os campos de exterminaçào estejam todos


demasiadamente a leste.

Neubauer levantou os olhos.


- Que quer dizer?
- Perto de mais da frente. É preciso deixar os
caminhos~de-fei-ro e as estradas disponíveis para outros fins,
Neubauer sentiu de novo o medo contraír"lhe o estômago. -Sem
dúvida - disse, para se tranquilizar a si mesmo. - Para que as
tropas possam dirigir-se para a frente,

Wei->er não respondeu, Neubauer observava-o de i-nau humor.

142

A CENTELHA í>A VIDA

Mande deitar os homens - disse. - Terão inenos o aspecto de um


destacamento militar.

- As suas ordens. Weber avançou com indolência alguns passos.

Deitar! - ordenou. Deitar! - repetiram os SS. Num só


movimento, as fileiras estenderam-se no chão. Weber voltou.
Neubauerqueria dirigir-se a casa, trias qualquer coisa lhe
desagradava na atitude de Weber. Ficou. "Ora @aqui está o que
é a ingratidão huiiiana", pensou. "Mal se lhe deu a medalha de
mérito militar, aí o temos cheio de insolência. Que grande
coisa! Que tem ele também a perder? Essa miserável
quinquilharia no seu estúpido peito de herói? Nada mais tem,
este tarimbeiro!.

Não houve bombardeamento. Ao fim de certo tempo ouviran-k--se


os sinais de fim do alerta. Neubauer voltou-se.

- O menos possível de luz! E despache'essa distribuição pelas


barracas. Na obscuridade não poderá ver nada Os
responsáveis dos blocos poderão acabar amanhã, com a
colaboração da administração.

- Às suas ordens. Neubauer ficou ainda observando a,parüda da


coluna. Os homens levantavam-se com dificuldade. Alguns que
tinham adormecido eram sacudidos energicamente pelosseus
ca~adas. Outros ficavam no chão, esgotados de mais para
poderen-t caminhar,

- Os mortos para o crematório. Os desmaiados que sejam levados


pe!os outros.

- As suas ordens. A coluna reconstituiu-se e começou


4,mover-se na direcção das barracas.

- Bruno! Bruno! Neubauer teve uni sobressalto. Selma, corria


do lado do portão, pela praça. Parecia semilouca. @1

- Bruno! Onde estás? Aconteceu alguma coisa?... Ao vê-lo,


calou-se de súbito, A filha seguia-a.
- Que fazera aqui? - perguntou Neubauer, furioso, mas , em voz
baixa, porque Weber se encontrava justamente ao lado. - Como
puderam entrar?

- A sentinela conhece-nos! Como tu não voltavas, julguei que


tinha acontecido alguma coisa. Oh, estes homens!

Selma olhava em redor como se saísse dum sonho.


- Eu não lhes tinha dito que ficassem no meu gabinete? -
perguntou Neubauer, sempre em voz I.)aí3ca. - Nãoas tinha
proibido de virem aqui?

143

ERICH-M ARIA REMARQUE

Papá - disse Freya -, a maniã estava louca de medo. Aquela


enorme sereia, tão perto de nós...

A coluna obliquou na rua principal e passou perto dos três


Neubauer.

- Que é isto? - murmurou Selma.


- Isto? Não é nada! Uma coluna que chegou: hoje.
- Mas...
- Não há mas nem meio mas! Que vieram fazer aqui? Saiam!
Neubauer empurrava a,mulher e a filha diante de si.
- Vamos! Desapareçam!
- Que cara;eles têm! Selma não desfitava os rostos que
desfilavam num raio de luar.
- E então? São presos! Traidores! Que cara queres que eles
tenham? De quem vive dos rendimentos, não?

E aqueles que são transportados, ali! Basta! - resmungou


Neubauer. - Só faltava isto! Lamúrias por causa dos presos!
Estes homens chegaram agora. Não temos culpa. Pelo contrário!
Eles vêm para aqui para recobrar forças. Não é verdade, Weber?

- Exactamente. Hen* Obersturmbannfuebrer! Weber lançou a Freya


um olhar ligeiramente divertido e afastou-se.

- Agora que já sabem o que queriam saber, desapareçam! É


proibida a permanência aqui! Isto não é nenhum jardim
zoológico!

Continuava a empurrar as mulheres. Tinha medo de que Selma


acabasse por dizer alguma coisa de perigoso. Era preciso
acautelar-se com tudo e todos. Não podia confiar em ninguém,
nem mesmo em Webér. Que pouca sorte Selma e Freya terem
chegado mesmo na altura em que a coluna ali estava!
Esquecera-se de lhes dizer que ficassem na cidade. É certo que
Selma não teria lá ficado, com certeza, durante o alerta. Por
que diabo se tomará ela tão nervosa? Bastante razoável de
costume, mal ouvia o grito duma sereia tomava-se impossível
contê-la.

- A sentinela vai entender-se comigo! Deixá-las entrar desta


maneira! Era o que faltava! Por este andar, qualquer pessoa
acaba por vir ver o que se passa aqui.

Freya virou-se bruscamente para ele.


- Poucos desejariam cá ficar! Neubauer ficou sem
respiração.'Que se passava? Freya! A sua car-

ne e o seu sangue! Ela não pen sara no que dissera- Não era
possíVel! Ela falara sem intenção. Riu nervosamente.

- Isso não direi eu. Os homens desta coluna suplicaram que os


deixassem aqui. Suplicaram! Choraram! Tu não podes imaginar o

144

A CENTELHA DA VIDA

aspecto que eles terão dentro de duas ou três semanas! Não os


conhecerás! Este campo é o melhor de toda a Alemanha. É bem
conhecido como tal. Um sanatório!

Duzentos homens da coluna esperavam ainda diante do pequeno


campo. Os duzentos mais fracos, encostavam--se uns aos outros.
SuIzbacher e Rosen faziam parte do grupo. Os blocos estavam
alinhados à entrada. Sabiam que o próprio Weber dirigia a
distribuição. Para evitar que o chefe de campo os visse,
Berger mandara o 5O9 e Bucher buscar a sopa. Mas eles acabavam
de regressar da cozinha. A sopa só seria distribuída quando a
coluna estivesse instalada.

Não havia luz em parte alguma. Apenas Weber e o SS


Scharfuebrer Schulte tinham lanternas de bolso, que acendiam
de vez em quando, Os responsáveis dos blocos apresentaram~se.
- Mete este resto lá dentro - disse Weber ao segundo
responsável de campo.

O responsável de campo começou a distribuir os homens pelas


barracas. Schulte vigiava a operação. Weber continuou num
passo arrastado.

- Por que é que há aqui muito menos gente que alérr9 -


perguntou ao chegar diante da secção D da barraca 22.

o responsável de bloco Handke estava perfilado.


- Há menos espaço do que nas out ms secções, Herr
Stburmfuebrer.

Weber fez dardejar um feixe luminoso da lanterna. A luz varreu


os rostos abatidos. O 5O9 e Bucher eram os últimos da fila. O
feixe de luz deslumbrou o 5O9, ultrapassou-o e voltou a
fficá-lo.

- Estou a conhecer-te! Onde te vi eu já?


- Há muito tempo que estou no campo, Herr Sturrnfuebrer. A luz
desceu até ao número do prisioneiro. -já é tempo de
rebentares.
- É uni daqueles que foram convocados ultimamente pela
administração - explicou Handke,

- Ah, sim.
O feixe luminoso parou de novo sobre o número.
- Toma nota deste número, Schulte.
- Imediataniente - respondeu o Sebaifuebrei-Schulte numa voz
fresca e juvenil. - Quantos metemos aqui? @

- Vinte. Não, trinta. Apertar-sè-ào uni pouco mais. Schulte e


o responsável do campo fizeram a contagem e tiraram o caderno
de notas. os olhos dc;s veteranos seguiam o lápis de Schulte

G. O~ do Séc. XX 25 - 1O

145

ER1CH-M,@R1,4 REM.4RQUE

na obscuridade, Não o viram escrever o número do 5O9. Weber


não Iho,dissera@e a lanterna estava novamente apagada.

- Está pronto? - perguntou Weber.


- Perfeitamente.
- A administração concluirá amanhã as formalidades. Em frente!
E tratem de rebentar, se não viremos ajudá-los.

Weber afastou-se, confiante e satisfeito, pela rua do campo.


Os scbarfuebrerseguiram-no. Handke demorou-se ainda um
momento.

Os homens da sopa, sigam! - resmungou em seguida. Fiquem aqui


- murmurou Berger ao 5O9 e a Bucher. - Irão outros. Não convém
que vocês se arrisquem a encontrar Weber outra .vez.

- Schulte tornou nota do meu número?


- Não vi nada.
- Não - disse Lebenthal. - Eu estava diante dele. e prestei
atenção. Ele estava com pressa e esqueceu-st@.

Os trinta novos esperaram um momento, quase imóveis na


escuridão.

- Há lugar nas barracas? -, perguntou finalmente Sulzbacher.


- Água! - disse uma voz rouca ao lado dele. - Água! Dêem-nos
água, por amor de Deus!

Alguém trouxe um balde de metal meio cheio de água. Eles


precipitarani-se e viraram o balde. Só tinham as mãos para
poderem beber. Atiraram-se ao chão e tentaram apanhar uni
pouco da água entornada. Com os lábios cobertos por uma crosta
negra, lambiam o solo.

Berger notou que, Suizbacher e Rosen não se tinham atirado ao


balde. r

- Há uma torneira ao lado das latrinas - disse, - A água só


vem gota a gota, mas, com paciência, haverá que chegue para
beber. Agarrem o balde e vão buscá-la.

Um dos novos escarneceu.


- E enquanto lá vamos, vocês comem-nos a ração, não é?
- Eu vou - disse Rosen, agarrando o balde.
- Eu também - acrescentou Sulzbacher.
- Fica aqui - disse Berger. - Bucher irá com Rosen para lhe
mostrar o sítio.

Os dois homens partiram,


- Sou o responsável da camarata - disse Berger aos novos. -
Aqui sabernos comportar-nos. Aconselho-os a fazerem o mesmo,
se não não durarão muito tempo.

146

A CENTELHA DA VIDA

Ninguém respondeu. Berger perguntou a si mesmo se alguém o


teria escutado.

- Há lugar nas barracas? - perguntou novamente Sulzbacher.


- Não. Temos de dormir por turnos.Uma parte ficará cá fora.,
- Há alguma coisa que se coma? Andámos durante todo o dia sem
nada comermos.

- Os homens da sopa foram à cozinha@ Berger não acrescentou


que, na sua opinião, não haveria distribuição para os
recém-chegados.

- Chamo-me Sulzbacher. Isto aqui é um campo de exterminado?


- Não.
- Com certeza?
- Sim.
- Graças a Deus! Há câmaras de gás?
- Não.
- Graças a Deus! - repetiu Sulzbacher.,
- Tu falas como se tivesses acabado de chegar a um hotel de
luxo
- disse Ahasver. - Farias melhor em esperar uni bocadinho.
Donde vêm vocês?

1 - Fizemos cinco dias de trajecto. A pé, Éramos três mil *O


nosso campo foi extinto. Aqueles que fraquejavam eram
abatidos.

- Donde vieram?
- De Lohme. Parte dos recém-vindos estavam ainda deitados no
chão.
- Água! - gerneu uma voz.- Que estará ele a fazer?A encher a
barriga de água, o porco!

- Não era isso o que tu farias? - perguntou-lhe Lebenthal.


O homem fitou nele um olhar vazio.
- Água! - repetiu mais calmo., - Água, por piedade!
- Vieram de Lohme? - perguntou Ahasver.
- Sim,
- Conheceste lá um certo Martin Schirrimel?
- Não.
- E Moritz Gewürz? Era careca e,tú-tha o nariz achatado.
Suizbacher reflectiu, com -um ar esgotado.
- Não.
- E Ge-dalje Gold ? Este s6 tinha, uma, orelha - disse
Ahasver, cheio de esperança. - É coisa que se nota. Pertencia
ao bloco doze,

- Doze?
- Sim, há quatro anos.
- Meu Deus! SuIzahacher virou-se. A pergunta era demasiado
estúpida. Há quatro anos! Por que não há cem anos?

147

ERICH-MARIA REMARQUE

Deixa-o tranquilo, velhote, bem vês que ele está fatigado -

disse o 5O9.

- Eram meus amigos - desculpou-se Ahasver. - É natural que eu


queira saber dos amigos. ,

Bucher e Rosen regressaram com o balde. Rosen sangrava. A sua


sobrepeliz estava rasgada.

- Os novos batiani-se em volta da torneira -disse Bucher. -


Foi Mahner,quem nos salvou restabelecendo a ordem. Agora fazem
bicha para receberem a água cada um por sua vez. Tem de se
fazer o mesmo aqui, se não tornam a entornar o balde.

Os novos tinhani-se levantado.


- Ponhani-se em fila - gritou Berger. - Cada um terá a sua
parte. Há que chegue para toda a gente. Aqueles que não se
meterem na fila não beberão nada!

Obedeceram todos, com excepção de dois presos que se


precipitaram sobre o balde. Foram -derrubados a golpes de
cacete. Ahasver e o 5O9 foram buscar as suas gamelas e os
novos beberam, um de cada vez.

- Vamos ver se podemos arranjar mais - disse Bucher a Rosen e


a SuIzbacher quando o balde ficou vazio. -já não deve haver
perigo agora.

- Nós éramos três mil - repetiu SuIzbacher maquinalmente, como


se falasse consigo mesmo.

Os homens do rancho regressaram. Nada lhes tinham dado para os


novos. Imediatamente a zaragata começou. Os homens batiam-se
diante das secções A e B. Os responsávei& de camarata eram
impotentes para restabelecer a ordem. Apenas estavam, rodeados
por muçulmanos e os novos eram mais hábeis e menos resignados.

- É preciso dar-lhes qualquer coisa - disse Berger em voz


baixa ao 5O9.

- Sim, mas apenas sopa. Pão, de maneira alguma. Temos mais


necessidade do que eles. Estanios mais enfraquecidos.
- É justamente por isso que é preciso dar-lhes qualquer coisa.
Se não, eles próprios se servirão. Viste o que aconteceu lá em
baixo.

- De acordo, mas nada mais do que sopa. Temos necessidade do


pão., Vamos falar com aquele que se chania'SuIzhacher.

Foram procurá-lo.
- Ouve bem - disse Berger -, esta noite nada nos deram para
vocês. Mas nós vamos partilhar a nossa sopa convosco,

Obrigado - respondeu Sul-zbacher.


O quê?

148

A CENTELHA DA VIDA

Obrigado. Olharam-no, espantados. Não era costume no campo


dizer -obri~ gado".

- Tu poderás ajudar-nos? - perguntou Berger. - Se não os


vossos homens vão entornar tudo outra vez, e agora não é
possilvel, ir buscar mais. Há mais alguém entre vocês com quem
se possa contar?

- Rosen. E os dois homens que estão com ele. Os veteranos e os


quatro novos foram ao encontro dos homens da sopa e
rodearam-nos Berger exigira, antes, que os outros se pusessem
em fila.

A distribuição começou. Os novos não tinham gamelas. Deviam,


portanto, comer de pé e entregar o recipiente em que lhes
tinham dado a sua porção. Rosen vigiava para que nenhum homem
se apresentasse duas vezes à distribuição. Alguns dos
veteranos do pequeno campo protestaram.

- Restituir-vos-ão a sopa amanhã - disse Berger. - Trata-se


apenas de um adiantamento.

Depois virou-se para Sulzbacher-.


- Guardamos o pão para nós. Os nossos homens estão mais fracos
do que os vossos. Talvez amanhã haja unia distribuioo para
vocês.

- Sim. Obrigado pela sopa. Amanhã a restituiremos. Onde pode@


mos dormir?

- Vamos ceder-lhes algumas das nossas camas. Será preciso


dormir sentado. E mesmo assim não haverá, lugar todà a gente.

- E vocês?
- Nós, nós ficarei-nos cá fora. Mais tarde os acordaremos para
nos darem os lugares.

Sulzbacher abanou a cabeça.


- Não os conseguirão fazer sair quando eles estiverem a
dormir. Uma parte dos novos dormia já; de boca aberta, diante
da barraca.
- Deixa-os dorinir - disse Berger. E, olhando em tomo de si: -

Onde estão os outros?

-já se instalaram lá dentro - disse o 5O9. - Com esta escu


nidão nunca será possível fazê-los sair. Deixemo-los por esta
noite.

Berger olhou para o céu.


- Talvez não faça muito frio. vamos deitar-nos encostados à
parede. Temos três cobertores. ,

- Amanhã isto tem de mudar - disse o 5O9. - Nesta secção não


há lugar para a violência.

Acocorarani-se lado a lado. Quase todos os veteranos estavam


cá fora, até mesmo Ahasver, IÇxrei e o cão-lobo. Rosen,
SLilzbachèr-e mais dois outros novos estavam com eles.

- Estou desolado - disse 5u17,hacher.

149
ERICH-MARJA, UMARQUE

Não há razão para isso; vocês não são responsáveis uns pelos
outros.

- Vou P6r-nie de guarda - disse Karel a Berger. - Seis dos


nossos, pelo menos, vão morrer esta noite. Estão deitados em
baixo, à díreita, perto da porta. Quando estiverem
mortos,,poderemos trazè-los para fora e nieter-nos na cama
deles, revezando-nos.

- Como queres tu descobrir, na escuridão, se eles estão mortos


ou vivos? @-- É muito simples. Debruço-me para o rosto deles.
Sente-se bem se ainda respiram.

- Sim, mas enquanto tiramos uni para fora os que estão lá


dentro, apanham o lugar.

- Pensei nisso - disse Karei com ardor. - Eu chego e


previno-os. E, enquanto tiramos o morto, uni de nós torna
imediatamente o lugar dele.

- Está bern - disse Berger. - Nesse caso, presta atençãoA


noite arrefecia. Nas barracas ouvíam~se os adormecidos gemer e
soltar gritos angustiados.

- Meu Deus! - disse SuIzbacher ao 5O9- - Que sorte nós


tivemos! Pensávamos que chegávamos a um campo de exterminação.
Oxalá nos deixem ficar aqui!

O 5O9 não respondeu. -Soi-te!", pensava ele. Mas, na verdade,


assim era.

- Como era aquilo lá onde estavam? - perguntou Ahasver daí a

uni momento.

- Abateram todos os que não podiam andar, Nós éramos três mil.
-já sabemos. Tão poucas vezes o disseste já?!

Sim - respondeu Stilzbacher, desconcertado. Que viram vocês


pelo caminho? Corno está a Alemanha? Sulzbacher reflectiu uni
instante.
- Anteontem à noite tínhamos bastante água - disse, depois. -

Às vezes as pessoas davani-nos alguma coisa, Outras vezes,


nada. Nós éramos demasiado numerosos. 1

- Unia noite trouxeram---nos quatro garrafas de cerveja -


disse Rosen.

- Não é isso o que eu pergunto - disse o 5O9 com impaciência.


- Como estavam as cidades? Destruídas?

- Nunca atravessámos nenhuma cidade. Faziam-nos sempre


evitá-las.

- Então n@o viram absolutamente nada? SuIzhacher olhou o 5O9-


- Não é possível ver-se grande coisa quando mal se pode andar
e se tem um revólver apontado à nuca. Não vimos
caminhos-de~ferro.

15O

A CENTELHA DA VIDA

- Por que foi extinto o vosso campo?


- A linha da frente aproximava-se.
- O quê? Que sabes tu disso? Mas fala! Onde é Lohme? Longe do
Reno? Muito longe?

Suizbacher esfo£çava-se por conservar os olhos abertos.


- Sim, bastante longe, cinquenta, setenta quilómetros...
Amanhã
- disse ele ainda, e depois a cabeça pendeu-lhe para a frente.
-

Amanhã... agora preciso de dormir-

É a cerca de setenta quilómetros _@ disse Afiasver. já


lá'estive. Setenta? E daqui?
O 5O9 pôs-se a fazer cálculos.
- Duzentos... duzentos e setenta. Ahabver encolheu os ombros.
- 5O9 - disse - , tu pensas sempre em quilômetros, Lembras-te
de que eles podem fazer connosco o que fizeram com estes?
Extinguir o campo e fazer-nos partir, e para onde? E, nesse
caso, que será de nós? Nós, os do pequeno campo, ja não
podemos andar.

- Quem não puder andar será abatido! Rosen acordara em


sobressalto. Mas logo voltou a adormecer. Todos se calavam.
Nunca tinham reflectido, tanto.. Parecia-lhes, de repente, que
uma tefrivel ameaça pesava sobre eles. O 5O9 tinha os olhos
fitos nas nuvens prateadas qúe se acumulavam no céu. Depois
mergulhou o olhar no vale, onde a estrádabrilhava vagamente
nas trevas. -Não devíamos ter-lhes dado a sopa.,, pensou num
momento. "É preciso que possamos andar." Mas para que teria
servido isso? Quando MUito, tinham desperdiçado apenas, alguns
minutos de marcha. Ora os novos haviam sido empurrados pelas
estradas durante dias inteiros,

- Talvez não nos abatam a nós, se não pudermos andar - disse.


- Com certeza! - respondeu Ahasver. - Dar-nos-ão de beber, de
comer, roupas quentes, e puxarão dos lenços para nos dizerem
adeus!

O 5O9 olhou-o, Ahasver estava perfeitamente calmo. Nada já


podia abalá-lo.

- Aí vem Lebendial - disse Berger. Lebenthal sentou-se perto


deles.
- Soubeste alguma coisa lá em baixo, Léo? - pervntou o 5O9.
Léo acenou afirmativamente.
- Tencionam desenibaiaçar-se tão depressa quanto,possível da
nova coluna. Lewinsky soube-o pelo ruivo da administraçào.
Ainda não sabia como se arranjariam eles para isso. Mas não
vai levar muito tempo, porque desta maneira poderão levar os
mortos à conta da viagem.

151

£RICH-MAXA REMARQUE

Um dos novos endireitou---se bruscamente, gritando. Depois


tornou a tombar, ressonando de boca escancarada.

- São apenas os homens da coluna que eles. têm a intenção de


liquidar?

- Lewinsky nada mais sabe, mas manda. dízer-nos que nos


acautelemos.

- Sim, vai ser preciso estar atento.


O 5O9 calou-se durante uni momento.
- Em suma, é necessário calar o'bico? Foi isto que ele quis
dizer? Sim ou não?

- Evidentemente. Que queres tu que seja?


- Se prevenirmos os novos, eles também se acautelarão'-
declarou Meyer - , e se os SS quiserem liquidar um certo
número deles e não encontrarem que chegueni servít-se-ão dos
nosso s para perfazer a conta.

- É exactamente isso.
O 5O9 olhou Sulzbacher, cuja cabeça repousava pesadamente
sobre o ombro de Berger.

- Então que fazemos? Calamo-nos? A decisão era grave. Os


homens do pequeno campo estavam muito mais ameaçados
precisamente porque se encontravam mais enfraquecidos do que
os recém-chegados. Houve um longo silêncio.

- No, fim de contas, que pode isso ímportar-nos? - perguntou


Meyer. - Temos de pensar primeiro em nós.
1 Berger esfregava as pálpebras inflamadas. O 5O9 brincava
nervosamente com as abas do casaco. Ahasver virou-se para
Meyer. A pálida claridade reflectia-se nos seus olhos.

- Se não pensarmos neles disse -, então ninguém pensará


em nós.

Berger levantou a cabeça.


- Tens razão. Ahasver estava encostado, muito calmo, à parede.
O seu rosto devastado, os seus olhos, profundamente
enterrados, pareciam ver qualquer coisa só para ele visível.

- Vamos dizer a estes dois 1, declarou Berger@ - Eles


preveni-, rão os outros, se quiserem. Nada imis podemos fazer.
No fundo, não sabemos nada de positivo.

Karel saiu da barraca.


- Há uni morto - disse.
O 5O9 levantou-se.
- Vati-tos tirá-lo. Virou-se para Ahasver:
- Vem, velho, vais ocupar primeiro o lugar dele p ara
dortuires.

152

XIII

s blocos estavam alinhados na praça de chamada do pequ


eno campo. O ScbarfuebrerNiemann balançava-se, com
desembaraço, ora sobre unia perna ora sobre,a outra, Era um
homem de cerca de 3O anos, de cara estreita, orelhas pequenas
e afastadas do crânio e queixo fugidio. Tinha os cal>elos de,
um louro-cendrado e usava óculos sem aros. Sem o uniforme
tê-lo-lam tomado pelo tipo do pequeno empregado de escritório
que realmente fora antes de en-

trar para a SS e se tomar um homem.

- Sentido! Mernann tinha a voz aguda e uni pouco cansada.


- A coluna nova, três passos em frente,, Marche!
- Atenção - murmurou o 5O9 a Sulzbacher., As duas fileiras de
presos colocaram--se . d~ de Niemann.
- Doentes e inválidos! Fora da fileira e coloquem-se à
direita! ordenou.

Um movimento percorreu as fileiras, mas ninguém saiu. Os


homens desconfiavam; conheciam esta velha 2~nha.

- Vai-nos, vamos! Aqueles que quiserem ir para a enfermaria


coloquem-se à direita!

Alguns presos obedeceram, hesitantes. Niemann aproximou-se


deles.
1

- Que é que tu tens? - perguntou ao primeiro.


- Tenho os pés em ferida e um dedo do pépartido, Herr
Scharfuehrer.

- E tu?
- Unia hérnia dupla, Herr Scbarfuebrer. Niemann prosseguiu o
inteàogat6rio. Depois mandou regressar dois homens às
fileiras. Era uni velho processo para enganar a desconfiança
dos presos. O efeito não se fez esperar. Alguns presos
avançaram imediatamente. Niemann teve um movimento de
satisfação.

- Os cardiacos, uni passo em frente! Os homens incapazes para


trabalhos pesados, mas que ainda podem coser meias e deitar
solas.

Mais alguns presos se apresentaram, Niemann dispunha agora de


uns trinta homens e compreendeu que não conseguiria: obter
mais.

ladroufuriosaEntão os outros estão em plena fornia, hem?

153

ERICH-MARIA REMARQUE
mente. - Vamos ver isso! À direita, à direita! Passo de
corrida! Marche!

As duas fileiras começaram ac:p@rrer em volta da praça.


Passavam, ofegantes, conscientes do perigo que os ameaçava
também, perto dos outros presos, que se mantinham em sentido.
Se uni deles caísse esgotado, era provável que Niemann o
mandasse juntar aos outros inválidos. Ninguém sabia, além
disso, o tratamento que ele reservava aos presos antigos. ,
Pela sexta vez, os novos passaram em passo de corrida diante
dos antigos. Alguns tropeçavam já, mas tinham compreendido que
não era para medir a sua capacidade de trabalho que os faziam
correr. Era uma corrida contra a morte. Os rostos
brilhavam-lhes de suor e nos seus olhos lia-se a agonia lúcida
e desesperada que nenhum, animal conhece - porque é
característica do homem.

Aquei -es que se tinham declarado inválidos começavam também a


compreender. A inquietação devorava-os.

Dois deles tentaram juntar-se aos que corriam. Niemann


surpreendeu-os.

- Para trás, vocês! Entrem na fileira! Eles não ouvirarii;,


corriam como que ensurdecidos pelo medo. Depressa perderam os
tamancos, mas continuaram, de pés descalços e sangrentos; na
véspera não lhes tinham distribuído meias. Niemann não os
perdia de vista. Durante alguns momentos eles correram com os
outros. Mas quando nos seus rostos devastados começava já a
despontar a esperança, Niemann deu lentamente alguns passos em
frente e meteu-lhes uma rápida rasteira. Eles caíram e
quiseram levan tar-se imediatamente. Atirou-os outra vez ao
chão com um pontapé. Procuraram, então, fugir rastejando.

- De pé! - gritou ele com a sua voz de tenor doente. - Entrem


na fileira, marchem!

Durante todo este tempo Niemann voltava as costas à barraca


22. A corrida mortal continuava. Quatro homens tinham caído já
para não mais se levantarem. Dois deles tinham desmaiado. Um
trazia um uniforme de hússar que lhe'tinham dado na véspera,
outro, uma camisa de mulher, de rendas baratas, debaixo duma
espécie de cafetã muito curto. O kapo achara divertido
distribuir aos homens estes fatos que tinham vindo de
Auschwitz. Algumas dezenas de outros presos estavam mascarados
como para uni Carnaval.
O 5O9 viu Rosen tropeçar, meio curvado para a frente, e
abrandar perigosamente. Sabia que daí a alguns minutos ele ia
tombar completainente esgotado. "Não tenho nada com isso",
pensou, -não tenho de intervir. Sobretudo, não devo fazer
asneiras, Cada uni por si." Os presos passavam outra vez
diante da barraca, Rosen era agora o último

154

A CENTELHA DA VIDA

do pelotão. O 5O9 deitou um rápido olhar na direcção de


Niemann, que continuava de costas voltadas para a barraca.
Àssegurou-se, de que nenhum responsável de barraca reparava em
si.Toda a gente observava os dois homens que Niemann acabara,
de deitar ao chão. Flandke deu mesmo alguns passos em frente,
com o pescoço es- tendido. O 5O9 agarrou, pelo braço, Rosen,
que passava perto dele tubeando, puxou-o para si e enipurrou-o
para o meio dos presos que o rodeavam. @ Depressa! Para a
barraca!Esconde-tei

Ouviu atrás de si a respiração precipitada de Rosen; depois


percebeu vagamente um movimento nas suas costas e o ruído
cessou. Niemann nada vira. Permanecera voltado. Handke também
nada notara.
O 5O9 sabia que a porta da barraca estava aberta de par em
par. Esperava que Rosen o tivesse compreendido, Esperava
tanibéni que, se ele fosse apanhado outra vez, não o trairia.
Devia saber que, de qual+ quer forma, estaria perdido. Niemann
não contara os novos e Rossen tinha unia probabilidade. O 5O9
sentia, os joelhos "mereni e a garganta secar-se-lhe. O sangue
zurribia-lhe @,nos ouvidos. Deitou um olhar furtivo na
direcção de Berger. -Este,observava, imóvel, o grupo; que
continuava em passo acelerado, d~ndo homens atrás, cada vez em
maior número. O seu rosto tenso mostma quevira tudo. Depois o
5O9 ouviu, atrás de si, Lebenthal murmurar.

- Está na barraca. Os joelhos tremerani-lhe mais. Foi obr~o a


apoiar-se em Bucher.

Os tamancos que uma parte dos novos tinhanirecebido no decurso


da distribuição juncavam o solo. O& homens que não estavam
habítuados a trazê-los tinham-nos perdido na, corrida. Apenas
dois homens continuavam a batê-los,desesperadamente no chão
duro. Niemann limpava os õculos. Tinhâm-se coberto de vapor,
por causa da sensação de calor que sentia subir ~. nte o
espectáculo da agonia mortal dos presos que caíam, que se
erguiam, que caíam de novo. A sensação benéfica envolvia-lhe o
estôn-4go e alojava-se,4he atrás dos olhos. Experimentaia-a,
pela primeira- vez, em 1934, no dia em que matara o seu
prin-iciro judeu. Não tencionava matá-lo, i-nas depois
sentira-se invadido por um beni-estar desconhecido, Toda a sua
vida fora um amedrontado, um humilhado. Ao principio mal
ousava bater num judeu. Mas quando viu aquele arrastar-se pelo
chão e suplicar-lhe que lhe poupasse a vida, sentira, de
repente, tornat-se outro, mais forte, mais poderoso, O sangue
correra mais depressa, o horizonte, alargara-se. No seu
espírito o alojamentq mediocre,e burguês do pequeno
banqueirojudeu tomara as dimensóes dos desertos asiáticos de
Gerigiscão. O pequeno empregado Nieniann era agora senhor d2@
vida e

155

ERICH-MARLA REMARQUE

da morte, dispunha do poder, da omnipotência. A embriaguez


enlouquecedora que ela provocou dominou-o até ao momento em
que, por si mesmo, o primeiro golpe se abateu sobre o crânio
desfalecido que raros cabelos cobriam.

- Secção, alto! - ordenou. Os presos não acreditavam nos seus


ouvidos. Esperavam ter de continuar a correr até à morte. As
barracas, a praça e os homens giravam numa nuvem negra diante
dos seus olhos. Apoiavam-se uns aos outros. Niemann colocou os
óculos. Sentia-se,. de súbito, apressado.

- Tragam os cadáveres! Os presos olharani-no, espantados. Não


havia ainda cadáveres.
- Os homens que caíram - rectificou Niemann. Eles
reuniran-i---se, cambaleando, e agarraram os seus camaradas
esgotados pelos braços e pelas pernas. Alguns presos, caídos
uns sobre os outros, formavam um inextricável novelo humano. O
5O9 distinguiu ali SuIzbacher, que se desprendia a custo.
Viu-o dar pontapés a um homem que permanecia preso debaixo de
vários corpos; puxava-lhe pelos cabelos e pelas orelhas; por
fim, baixando-se, conseguiu arrancá-lo do grupo e pô-lo de
joelhos. O prisioneiro caiu para a frente. SuIzbacher pôs-se a
bater-lhe, agarrou-o depois pelos sovacos e esforçou-se por
pô-lo de pé. Em. vão. Recomeçava a encher de socos o corpo
inanimado quando um responsável de bloco o afastou. SuIzbacher
voltou ao assalto. O responsável de bloco deteve-o com um
pontapé. Supunha que SuIzbacher saciava um velho rancor contra
o prisioneiro desmaiado.

- Maldito esterco! - resmungou. - Deixa-lo ou não? Não vês que


ele já não dura muito tempo?

Pela entrada preparada na vedação de arame farpado, o kapo


Strohschneider chegava com o camião que servia habitualmente
para transportar os cadáveres. O motor detonava como uma
metralhadora. Strohschneider parou perto dos corpos
amontoados. Começaram a carregar o camião. Alguns, tendo
recuperado os sentidos, ainda tentaram fugir. Mas Niemann
estava atento a que nenhum dos prisioneiros condenados
escapasse. Vigiava também os homens que espontaneamente se
tinham declarado doentes.
1 - Aqueles que se apresentaram como doentes carregam os
outros no camião - ordenou. - Prisioneiros válidos, destroçar!

Os homens precipitarani-se para as barracas tão depressa


quanto podiam, enquanto os corpos desmaiados eram alinhados na
plataforma do camião. Strohschneider pôs o motor em marcha.
Conduzia suficientemente devagar para que os doentes pudessem
segui-lo a pé. Niemann acompanhava a coluna.

156

A CENTEUIA DA VIDA

os vossos sofrimentos vão acabar - disse ele com uma voz


diferente, quase amigável, às suas vítimas.

- Para onde os levas? - perguntou um dos novos da barraca 22.


- Provavelmente para o bloco 46.
- Que fazem lá?
- Não sei. Não quis dizer o que todos sabiam no campo. Niemann
tinha um bidào de gasolina e algumas seringas num dos
compartimentos do bloco experimental 46; nem uni sequer dos
prisioneiros regressaria vivo. Strohschneider levá-los-ia,
nessa mesma noite, para o crematório,

- Por que espancaste tu daquela maneira um dos homens? -


perguntou o 5O9 a Sulzbacher.

Sulzl-)acher olhou-o sem responder., Fez um esforço violento,


como se engolisse um churnaço de algodão;

- Era irmão dele - disse Rosen. Suizbacher vomitava agora, sem


que da sua boca saísse mais que uni pouco de suco gástrico
esverdeado. -

- Olha! Olha! Continuas aqui? Parece que se esqueceram de ti,


hen-L?

Handke mirava lentamente o 5O9 dos pés à cabeça. Era a hora da


chamada da noite. Os blocos estavam alinhados cá fora.

- Mas tinham dito que iam tomar nota do teu número. Tenho de
me informar.

Balançava-se nos calcanhares, fixando o 5O9 com os seus olhos


azul-claros, um pouco salientes., O 5O9 a=túiha-,-se
impassível.

- Como? - perguntou Handke.


O 5O9 não respondeu. Seria precísoser-se louco para irritar o
responsável do bloco, fosse de que maneira fosse. Ficar calado
ainda era o que havia a fazer de melhor. Tudo o que ele podia
esperar era que Handke esquecesse outra vez a sua existência
ou que estivesse sithplesmente a gracejar. Handke sorria,
mostrando os dentes amarelos e manchados.

- Como? - repetiu.
- O número dele foi anotado no outro dia - disse,
tranquilamente, Berger.

- Sim? - respondeu Handke, virando-separa: ele. - Tu sabes


muito, hen@?

- Sim. Foi o Scharjúebrer Schulte quem tomou nota. Eu vi. - Na


escuridão? Muito beni. Handke confinuava a balançar-se nos
calcanhares.

157

ERICH-MARIA REMARQUE

Nesse caso, posso ir descansadamente assegurar-me. Não haverá


mal nenhum, não é verdade?

Ninguém respondeu.
- Ainda podes encher a barriga esta noite - declarou
generosamente. - Não vale a pena ir interrogar o chefe de
bloco a teu respeito. Vou directamente onde preciso, meu
candidato à forca.
Passeou um olhar em volta. @ Firmes! -. ladrou. Bolte chegava.
Apressado, como de costume. Há duas -horas que perdia
regularmente às cartas e acabava justamente, de ter um jogo
magnífico. Deitou um olhar enfastiado aos mortos e desapareceu
tão depressa como chegara. Handke ficou sozinho. Mandou os
homens da sopa à cozinha e dirigiu-se para a vedação de araine
farpado que separava o pequeno campo do campo das mulheres.,
Parou e observou as barracas das mulheres por cima dos arames.
11 1

1 - Voltemos para a barraca - disse Berger. - Um de nós pode


ficar cá fora a espreitar.

- Eu - disse Sulzbacher.
- Avisa-nos logo que ele tiver partido. Os veteranos
reuniam~se na barraca. Era preferível não serem vistos por
Handke.

- Que vamos fazer? - perguntou Berger, muito inquieto. -

Dir-se-ia que ele está com a crise. Se nós tivéssemos


scbnapspara einbebedá-lo!

- Scbnaps! Lebenthal cuspiu.

E impossível! Absolutamente impossível! Talvez ele apenas


tivesse querido gracejar - disse o 5O9, Não acreditava muito
no que dizia, mas o caso já se dera várias vezes no campo. Os
SS tinham-se tomado mestres na arte de manter os presos numa
angústia permanente. Alguns mostravam-se incapazes - de
aguentar muito tempo. Uns atiravam-se contra os arames,
electrificados, a outros era o coração, que se ia abaixo.
Rosen aproximow-se@

- Tenho algum dinheiro - murmurou ao ouvido do 5O9. -

Toma-o. Pude escondê-lo e trazê-lo para aqui. Toma quarenta


marcos. Era assim que fazíamos lá onde estivemos. . .
Empurrou-4he as notas para a mão. O 5O9 sentiu-as e, quase,
sem dar conta do que fazia, agarrou-as. . - Isto não sei ve de
nada = disse. - Ele recebe-os, inete-os no bolso e acabará por
fazer o que tiver na cabeça.

Nesse caso proniete-lhe mais.;. E onde o arranjaremos n6s?


Lebenthal tern@-no - declarou Berger. - Não é verdade, Léo?

158
A CENTELHA DA VIDA

Sim, um pouco. Mas se nós começamos a dar---lhe dinheiro, ele


voltará todos os dias para pedir mais, até não tenúos nem mais
um tostão, Nessa altura não estaremos mais adiantados do que
agora e teremos perdido tudo.

Todos se calavam. Ninguém achava a opinião de Lebenthal


grosseira ou brutal. Era apenas realista e@nada mais. A
questão que se punha era simplesmente a de saber se valia
a,pena sacrificar todas as possibilidades de negócio de
Lebenthgl,para.asseguw unia prorrogação de alguns dias ao 5O9.
Os veteranos teriam menos que comer; tão pouco que alguns
deles, talvez inesmo todos, sucumbiriam. Ninguém teria
hesitado em dar tudo, se daí pudes@e_ resultar a salvação real
do
5O9, mas nada era menos certo do que'ela'. Lebenthal tinha
razão. E para prolongar a vida de uni só por mais dois ou três
dias não se podia, racionalmente, arriscar a de uma dúziã de
homens. Tal era a lei tácita e inexorável do campo de
concent6ção, é graças a ela é que tinham podido sobreviver até
aí. Todos à, conheciam, mas procuravam escapar-lhe desta vez.

Se nós pudéssemos abater essa carcaça - disse por fim, Bucher


com desespero.

- Como? - perguntou Ahasver. Ele é,dez vezes mais


forte do que nós.

- E se, todos ao mesmo tempo, @ con! as gamelas@.. Bucher


deteve-se. Sabia que a prõposta era insensata. Se fosse bem
sucedida, doze homens seriam enfÓrcados@_

- Ele continua lá? - perguntou Berget.,


- Sim, no mesmo sítio.
- Talvez se esqueça.
- Nesse caso não esperaria. Ele disse que esperava a sopa
da noite.

Um silêncio de morte pesou na dbs~dade.


- Sempre podes dar-lhe os quarenta marcos - disse Rosen.
depois de algum tempo.- São teus.;Ea tique eu os dou, a
ninguém mais. Só diz respeito a nós ambos.

-E certo- declarou Lebendial. Isso é certo.


O 5O9 deitou um olhar pela porta: Vim o vulto sombrio de
Handke recortar-se contra o céu. Reconhe@_-,eu a sensação já
experimêntada -

uma cabeça negra contra o céu e um grande perigo. Já-não sabia


exactamente quando... Olhou de novo pela porta e a sua
indecisão espantou-o. Sentia nascer dentro de si uma
resistência surda. Qualquer coisa em si resistia à ideia de
comprar Handke. Este sentimento era

novo. Até,então apenas conhecera o niedo.

- Vai - disse Rosen. - Dá-lhe o dinheiro e promete-4he mais.


O 5O9 hesitava, Não compreendia já o que se passava dentro de
si.

159

ERICH-MARIA REMARQUE

Sabia, sem dúvida, que as possibilidades de êxito eram poucas


se Handke tinha, realmente, a intenção de o perder. Fora
testemunha de numerosos casos deste gênero no campo;
despojavam um homem de tudo o que tinha e depois liquidavam-no
para que ele não pudesse falar. Mas um dia de vida mais era
mais uni dia de vida, e num dia muitas coisas se podíam.
passar.

- Aí vêm os homens & sopa ' anunciou Karei.


- Ouve - murmurou Berger ao ouvido do 5O9. - Tenta. Dá-lhe o
dinheiro. Se ele voltar para lhe darmos mais, arneaçamo-lo de
que .o denunciaremos por corrufflo. Somos doze testemunhas. É
bastante. Todos diremos que o vu-nos. Dessa maneira, ele não
se arriscará mais. É a única coisa que nos resta fazer.

- Aí vem ele - murmurou Sulzbacher de fora, Handke voltara-se


e avançara lentamente para a se cção D.
- Onde estás tu, carne de forca? - perguntou.
O 5O9 apresentou-se. Não tinha interesse nenhum em
esconder-se.

- Aqui estou.
- Muito bem. Vou lá agora. Faz as tuas despedidas e o
testamento. Eles virão buscar-te com tambores e clarins.

Deu uma risada. A alusão ao testamento era imensamente.


espirítuosa. Os tambores e os clarins não o eram menos. Berger
empurrou o 5O9. Este deu um passo em frente.
- Posso falar consigo um momento?
- Tu, comigo? Estás doido? Handke dirigia-se para a saída. O
5O9 seguiu-o.
- Tenho dinheiro - disse nas costas de Handke.
- Dinheiro? Quanto? Handke continuava a caminhar, sem se
voltar.
- Vinte marcos.
O 5O9 quisera, primeiro, prometer-lhe quarenta marcos, mas
impedíra-o aquela estranha resistência. Sentia dentro de si
uma espécie de revolta; oferecera pela sua vida apenas metade
do que possuía.

- Vinte marcos e dois pfenníg. Guarda-os! Handke apressava o


passo. O 5O9 conseguiu colocar-se a seu lado.

Vinte marcos é melhor do que nada. É uma miséria. Era inútil


oferecer-lhe agora os quarenta marcos. O 5O9 teve a sensação
de ter cometido uni erix) grosseiro, Pareceu-lhe que o seu
estômago estava a deslizar para uni abismo. A resistência que
sentira nascer desaparecera.

- Tenho muito mais dinheiro - disse rapidamente.

16O

A CÊNTELHA DA VIDA

Olha! Olha! - Handke parara. Uni capitalista! Um


capitalista rebentado! Quanto tens tu mais?

O 5O9 respirou fundo.


- Cinco mil francos suíços.
- O quê?
- Cinco mil francos suíços. Estão depositados num banco de
Zurique.

Handke riu à gargalhada.


- E tenho de acreditar. na tua palavra, meu pobre rámeloso?
- Nem sempre fui uni pobre rameloso. Handke fitou o 5O9
durante um momento.
- Transfiro metade deste dinheiro para o seu nome - disse o
5O9 com precipitação. - Basta unia simples assinatura e o
dinheiro é seu. Dois mil e quinhentos francos suíços.

Perscrutava o rosto pesado e inexpressivo que se estendia para


ele.
- A guerra acabará depressa. Quando isso suceder, será bom ter
dinheiro na Suíça.

Esperou. Handke continuava a não responder.


- Quando a guerra estiver perdida - acrescentou, lentamente, o
5O9.

- Muito bem - disse Handke a meia voz. -já estás a contar com
isso, hem? 3á fizeste os teus planozinhos. não é verdade? Mas
isso vai custar-te caro, meu pateta! Denuncíaste-te a ti
mesmo. Vais ter agora a secção política às costas. Divisas
ilegais no estrangeiro! Isto a acres~ centar ao resto! Meu
Deus, não queria ter a tua cabeça sobre os meus ombros!

- Ter dois mil e quinhentos francos e não os ter não é a mesma


coisa,

- Para ti também não é. Desaparece daqui! - berrou, de súbito,


Handke, repelindo o 5O9 com tanta violência que o fez rolar
pelo chão.

O 5O9 levantou-se penosamente. Berger aproximou-se. Handke


desaparecera na obscuridade. O 5O9 sabia que de nada teria
servido correr atrás dele. De resto, Flandke já ia longe,

- Que se passou? - perguntou Berger, impaciente.


- Ele não aceitou. Berger não respondeu; olhava o 5O9. O 5O9
notou que ele trazia uma cacete na mão.

- Oferecí-lhe muito mais do que tinha. Olhava em torno de si,


desorientado.
- Cometi, com certeza, um erro. Mas qual?
- Que poderá ele ter contra ti?
- Nunca me pôde suportar. Mas isso agora já não tem iniportân-

G. O~ do Séc. XX 25 - 11

161

ERICH-MARIA REMARQUE

cia. Até lhe ofereci dinheiro suíço, Francos. Dois mil e


quinhentos. Não quis,

Chegaram à barraca. Nada tinham a dizer, , Os outros


compreenderam o que se passara. Ninguém se mexeu, ninguém
recuou e, contudo, dir-se-ia que em volta do 5O9 se fizera o
vácuo, uni círculo invisível e intransponível que o isolava: a
solidão da morte.

- Miserável! - mumiurou ]kosen.


O 5O9 olhou-o. Salvara-o nessa mesma manhã. Era estranho que
tivesse podido fazer antes esse gesto e que se encontrasse
agora na situação de'não poder estender a mão a quem quer'que
fosse.

- Dá-me o relógio - disse a Lebenthal. ',


- Vem para a barraca - disse Berger -, vamos reflectir.
- Não. Agora só nos resta esperar. Dá-me o relógio e
deixeni-me só.

Estava só. Os ponteiros do relógio brilhavam vagamente no esci


iro. "Trinta minutos-, pensou. "Dez minutos para chegar à adm,
inistraçào, dez minutos para fazer a comunicação e receber
ordens, dez minutos para voltar." Meio círculo do ponteiro
grande era tudo o que lhe res-

tava agora de vida.

"E talvez não", pensou de súbito. "Se Handke falasse do


dinheiro suíço, a secção política interviria. Procuraria
apoderar-se ÇlO dinheiro e deixá-lo-ia com vida enquanto o não
alcançasse." Não pensara em tal ao falar do dinheiro a Handke;
contara apenas com a cobiça do responsável do bloco, Era a sua
última possibilidade. Mas não era certo que Handke denunciasse
a existência das divisas estrangeiras. Talvez ele se
contentasse em lembrar que Weber desejava falar ao 5O9.

Bucher avançou lentamente no escuro.


- Toma, aqui tens um cigarro - disse, hesitando. - Berger
pede-te que entres e que fumes ao pé de nós.

Um cigarro, Muito bem, Os veteranos ainda tinham um, uni


daqueles que Lewinsky trouxera depois da questão do,-,
bunker., o bunker.. Sabia agora de quem era o rosto que vira
contra o céu luminoso, aquele eni quem o de Handke o fizera
pensar. Era de Wel-)er. De Weber, que estava na origem de
tudo. :í

- Vem - disse Bucher.


O 5O9 abanou a cabeça. O cigarro. O cigarro do,cQndenado à
morte. De quanto tempo precisava para o fumar? Cinco minutos?
Dez, se o fumasse lentamente? Uni terço do seu tempo. Era
deniasiado. Tinha de fazer outra coisa. Mas o quê? Não havia
nada a fazer., Um brusco desejo de funiar secou-lhe, de
súbito, a boca. Resistiria. Fumar era confessar que estava
perdido.

162

A CENTELHA DA VIDA

Deixa-me! - murnitirou. - Vai-te enibora com essa porcaria!


Lenibrou-se de um outro desejo de tabaco. Desta vez não teve
de procurar muito tempo. Fora o charuto de Neubauer, quando
ele e Bucher tinham sido espancados por Weber. Outra vez
Weber. Unia vez mais, como anos antes.

Não queria pensar em Weber. Pelo menos agora. Olhou para o


relógio. Cinco minutos tinham passado. Levantou os olhos para
o céu. A noite estava húmida e suave. Era por unia noite como
esta que a natureza acordava. A noite das raízes e dos
rebentos. A Primavera. A primeira Primavera cheia de
esperanças. Uma pobre esperança desesperada, toda em farrapos,
a sombra duma esperança, o eco estranho e débil dos anos
passados, mas era quanto bastava para tudo transformar, para
tudo fazer dançar numa dança vertiginosa. Alguma coisa lhe
segredava que não devia ter dito a Haridke que a guerra estava
perdida.

Demasiado tarde. Agora acabara-se. O céu pareceu ensombrar-se,


cobrindo--se dunia fina poeira de carvão uma tampa baixa e
ameaçadora. O 5O9 respirou com dificuldade. Desejaria fugir de
rastos, esconder a cabeça debaixo da terra, arrancar o seu
próprio coração e dissimulá-lo num canto para que continuasse
a @pulsar quando...

Catorze, niinutos. Atrás dele, um murmúrio monótono,


salmodiante, estranho. -Ahasver", pensou. "Ahasver que reza.-
Há quanto tempo o ouvia? Pareceu-lhe ter levado horas a
compreender que alguém rezava por ele. Quantas vezes,ouvim
este mesmo murmúrio cantante? A oração dos mortos, o kadiscb.
Ahasver recitava já o kadiscb sobre a sua cabeça.

- Velho, eu ainda não estou morto - disse ele pala trás. -


Ainda estou longe de estar morto. Pára de rezar.

Alguém respondeu. Era Bucher.


- Ele não está a rezar.
O 5O9 não ouviu mais nada. E, de repente, sentiu que ele subia
'dentro de si. Familiarizara-se com muitos medos na sua vida:
conhecia o inedo cinzento, de batráquio, perante um cativeiro
que não acabaria nunca, conhecia o medo despedaçador que
precede a tortura, conhecia o ri-tedo profundo e ftiliiiinante
do desespero - conhecia-os a todos e a todos vencera, mas
conhecia também o outro medo, o último, e sabia que era ele
que ali estava agora: o niedo dos medos, o grande niedo da
morte. Havia anos já que ele não o visitava. Acabara por
acreditar que não voltaria mais, que ele o ignoraria
doravante, porque a

miséria, o perpétuo convívio com a morte e a indiferença


suprema o

haviam morto. Mesmo quando se dirigia com Bucher à


administração ele o poupara - mas eis que, de novo, lhe sentia
a pressão gelada ao longo das vértebras. Compreendeu
imediatamente que fora a espe-

163

ERICH-MARIA REMARQUE

rança que o fizera renascer. Era um contacto gelado, um grande


vãzio,,um desabamento, um grande grito silencioso. Apoiou as
duas mãos no chão e perscrutou a obscuridade. Não era já o
céu, esse estremecimento mortal que o sugava e que pesava
sobre si! Em que se tornara então a vida sob todo este
negrume? Onde estava então o doce ruído da erva que cresce?
Onde o eco, o terno eco da esperança? No fundo das suas
entranhas a última centelha de vida deitava um supremo brilho,
moribunda, presa de todas, as agonias, e, cai volta dele o
mundo, iinobilizava-se numa angústia de chumbo,. ,

O murmúrio. Que acontecera ao murmúrio? Acabara-se o murmúrio


tanibém. O 5O9 levantou devagar a mão. Hesitou antes de abrir,
como se segurasse um diamante que talvez se tivesse ~- orinado
em carvão. Os dedos abrirani-se. Esperou ainda alguns
instantes antes de olhar os dois ponteiros fósforescentes que
detinham prisioneira a sua vida.

Trinta e cinco minutos. Trinta e cinco! Cinco minutos além dos


que concedera a si próprio. Cinco minutos mais; cinco minutos
terrivelmente preciosos e raros. Mas era bem possível que a
comunicação à secção política tivesse exigido cinco minutos
mais, ou talvez Handke tivesse feito, as coisas com vagar. .
Sete minutos mais. O 5O9 não se mexia. Respirava e novamente
sentia que respirava. Continuava o silêncio. Nem unia chamada,
nem um tinir de metais, nem mesmo um passo. O céu continuava
ali e recuava. já não era a mesma obscuridade opressiva, a
mesma bruma enlutada. Um vento leve a animava.

Vinte ininutos. Trinta. Alguém suspirou atrás dele, O céu


apareceu mais claro ao longe. Outra vez o eco, um bater
longínquode coração, o ritmo frágil do seu pulso, e outra
coisa ainda: o eco do eco, mãos que eram outra vez mãos, a
centelha serripre cintilante que lançava uni novo brilho, mais
vivo ainda do que antes. Porque alguma coisa se lhe juntara
com o medo. A sua mão esquerda, sem força, deixou escorregar,
o relógio para o chão.

- Talvez... - murmurou Lebenthal atrás do 5O9, e calou-se,


receoso e supersticioso.

O tempo já nada era agora. Corria em vagas. Fugia por toda a


parte. A água do tempo, varrendo tudo à sua passagem,
ai-rasando as colinas. Não ficou surpreendido quando Berger
agarrou o relógio, dizendo:

- Unia hora e dez. Hoje já não haverá nada. Talvez nunca mais,
5O9. Talvez ele tenha reflectido.

- Sim - disse Rosen.


O 5O9 voltou-se.
- Léo, não é esta noite, que passam as raparigas?, Lebenthal
olhou-o, estupefacto.

164

A CENTELHA DA VIDA

- já estás a pensar nisso?


- sifil. "Em que pensar então", perguntou o 5O9 a si mesmo,
"se não em tudo o que me arranque a este medo que rne
transforma os ossos em gelatina?".

- Nós temos dinheiro - disse. - Só ofereci vinte marcos a


Handke.

- Só lhe ofereceste vinte marcos? - perguntou Lebenthal,


incrédulo.

- Sim. Vinte ou quarenta era o mesmo. Se ele aceitar,


recebe-'-os e acabou-se, e pouco importa que se trate de vinte
ou quarenta.
- E se ele voltar amanhã?
- Se voltar, receberá vinte marcos. Se me denunciar, virão os
SS, Nesse caso, o dinheiro deixa de ser preciso. @- Ele não te
denunciou, com certeza. Ele recel->erá o dinheiro.

Lebenthal dominara-se.

Guarda o dinheiro - disse. - Tenho que chegue para esta noite.

Viu o 5O9 fazer um gesto.


- Não quero - disse com violência.'- Tenho bastante. Deixa-me
tranquilo.

O 5O9 levantou-se lentamente. Tivera a sensação, há pouco, de


que nunca mais conseguiria manter-se de pé, de que os ossos se
tinham, de facto, derretido em gelatina. Fez alguns
movimentos, primeiro com os braços, depois com as pernas.
Berger seguiti--O. Ficaram calados um momento.

- Ephra1m - disse depois o 5O9. Pensas, que o medo


nos irá deixar agora?

Foi assim tão duro? Tão duro quanto era possível. Pior que
nunca. É porque estás agora mais agarrado à vida
disse Berger. julgas isso? Sim. Todos nós mudámos. Talvez. Mas
conseguiremos nós livrar-nos mais tarde do medo? Isso não sei.
Deste medo, sim, Era uni medo racional. Um medo fundado. Do
outro, do medo permanente, do medo concentracionário, desse,
não sei. De resto, que importa? É preciso, entretanto,
pensarmos no dia de amanhã. E ent Handke também.

- É justamente o que procuro esquecer - disse o 5O9.

165

in grupo de seis homens ultrapassou Berger, que seguia a


caminho do crematório. Conhecia um deles, o advogado Mosse.
Participara em 1932, como defensor da parte queixosa, num
processo criminal intentado contra dois nazis. Os nazis foram
absolvidos e Mosse enviado para um campo de concentração logo
que o Pai-tido subiu ao Poder. Berger perdera-o de vista desde
que estava no pequeno campo. Reconhecia-o agora, graças aos
óculos que ele usava

e a que faltava uma lente. Mosse não tinha necessidade de duas


lentes, pois apenas tinha uni olho. O outro fora-lhe vazado em
1933 como recordação do processo.

Mosse caminhava na ponta exterior da fileira.

Onde vão vocês? - perguntou-lhe Berger sem mover os lábios.


Para o crematório. Trabalhar.
O grupo passou. Berger notou que conhecia ainda outro homem:
Brede, antigo secretário do Partido Social-Democrata. Viu.
então que os seis homens eram prisioneiros politicos. Um ~que
trazia o triânguio verde dos presos de direito comum
acompanhava-os. Enquanto caminhava ia assobiando uma melodia.
Berger reconheceu uma banalidade de velha opereta.
Maquinalmente, as palavras vIérarn@lhe à memória: Adeus,
pequena jàda Campainha, adeus, v~mos a encontrar-nos...

Seguiu o grupo com os olhos. -Pequena fada Campainha",


@pensou, irritado. Tratava-se, sem dúvida, diuma telefonista.
Por que,lhe vinham à memória estas palavras? Por que se
lembrava desta banalidade e das palavras ainda por cima? Havia
tantas coisas mais importantes que esquecera!

Caminhava lentamente, respirando o ar fresco.


Atravessar,ocampo, de trabalho era quase, para ele, passear
nuniparque florido. Tinha ainda cinco minutos antes de atingir
o muro que rodeaya o crematório. Era estranho que tivessem
convocado novos prisioneiros, para trabalhar no crematório. A
brigada do crematório era constituida por um certo número de
presos que viviam separadamente. Eram mais bem alimentados do
que os outros e gozavam de certos privilégios. Em compensação,
eram habitualmente substituídos ao fim de alguns meses e
enviados à câmara de gás. A actual brigada estava de sei-viço

166

A CENTELHA DA VIDA

apenas há dois meses e era raro que apelassem para forças de


fora. Berger era quase o único. No princípio tinhani-no
convocado excepcionalmente, por alguns dias, Depois, tendo
morrido o seu antecessor, ficara. Não tinha direito a
abastecimento privilegiado e não partilhava da barraca da
brigada do crematório. Isto dava"lhe a esperança de não ser
despedido como os outros nos doisou três meses imediatos. Mas
não era mais do que urna esperança.

Ao entrar viu os seis homens alinhados no pátio interior. Não


longe, no meio do pátio, erguía-se a forca. Todos se
esforçavam por não ver a armação de traves. O rosto de Mosse
niodificara-se. O seu único olho fitava Berger com ânsia.
Brede baixava a cabeça.

o kapo voltou-se e viu Berger.


- Que vens tu aqui fazer?
- Sou do serviço do crematório. Inspecção de dentes.
- Arrancador de dentes? Então põe-ic ao fresco! Vocês, firmes!
Os seis homens mantinham-se tão erecto@ quanto podiam. Berger
passou perto deles. Ouviu Mosse murmurar qualquer coisa, mas
não, compreendeu. Não podia parar porque o k"po observava-o.
"E curioso-, pensou, "que uma brigada tão pequena seja vigiada
por um ka

po em vez de um simples chefe de trabalho.A cave do crematório


tinha um largo officio; oblíquo que dava para fora. Logo que
os corpos eram acumulados no pátio, faziam-nos escorregar por
esse buraco para a cave. Aqui despiam-nos se não estavam já
nus, registavam-lhes o número e procuravam as próteses de
ouro.

Era aí que Berger desempenhava as suas funções. Assinava as


certidões de óbito e arrancava os dentes de ouro. O seu
antecessor, um dentista natural de Zwíckau, morrera de um
envenaniento de sangue.

o kapo que vigiava o trabalho da cave chamava-se Dreyer.


Chegou alguns inínutos mais tarde.

- Vamos trabalhar - disse, sem entusiasmo, sentando-se a uma


pequena mesa coberta de listas.

Além de Berger, encontravam-se já a postos quatro presos


pertencentes à brigada do crematório. Colocaram-se perto do
respiradouro.
O primeiro morto deslizou até eles como um gigantesco besoiro.
Os quatro homens arrastarani-no pelo chão de cimento até ao
meio da cave. Estava já inteiriçado. Despirani-no@
rapidamente. Despoja~ ram-no do casaco. Para isso, um dos
presos curvou-lhe um dos braços para o chão para fazer
escorregar a manga. Quando o largou, o braço levantou-se
bruscamenrite, como uni ramo de árvore, As calças tiravam-se
com mais facilidade.
o kapo tomava nota dos números,
- Algum anel? - perguntou.

167

ERICH-MARIA REMARQUE

Não, não teni anel.


-Dentes? Dirigiu o feixe luminoso durna lanterna de algibeira
para a boca entreaberta. Uni delgado fio de sangue secara na
comissura dos lábios.

- Uma obturação de ouro à direita - disse Berger.


- Bem. Arranca-a. Berger ajoelhou-se com um botição ao lado da
cabeça, que um dos presos segurava com firrneza. Entretanto,
os outros despiam já o cadáver seguinte, gritavam o número
respectivo e atiravam à roupa para um canto, onde estava a do
primeiro. Com um ruído de tha'deira seca, os mortos eram
precipitados agora ao longo do declive. Chocavam uns com os
outros e os seus membros entrelacavam-se. Uni deles chegou com
os pés para diante e ficou de pé no fim do declive. Tapava a
abertura do respiradouro, de olhos escaricarados,.a boca'
torcida num esgar. As suas mãos aduncas estavam seinicerradas,
e uma medalha saía pela abertura da camisa. Os cadáveres
acumulavam' se atrás dele. Entre eles havia unia mulher de
cabelos compridos. Vinh4, prpvavelmente, do campo de escolha.
Chegou com a cabeça pai@ afrente e os cabelos cobriram a face
do morto. Este acabou por escorregar lentamente para o lado,
como que fatigado por todos estes cadáveres que sustinha, e a
mulher cobriu-o inteiramente com o corpo,,. D@eyer teve uma
*risada e passou a língua por uma borbulha que tinha no lábio
superior.

Berger conseguira, enfim, arrancar o dente, e colocara-o numa


caixa especial. Havia uma outra para os anéis. Dreyer r~ou a,
obturação.

- Firmes! - gritou, de repente, um preso. Os homens


imobilizaram-se em sentido. O Scb4#ue~ SS Schulte
entrara.

- À vontade! Schulte escarranchou-se numa cadeira, perto da


mesa.Examinou o monte de cadáveres.

- É claro. Há oito homens lá em cima a atirarem-nos - disse. -


É, demasiado. Vão-nie buscar quatro para trabalharem aqui. Tu
-

disse, designando um preso. @ . Berger estava a tir-ar um anel


de casamento. Geralmente era fácil: os dedos estavam delgados.
Colocou o anel ma caixa número dois e Dreyer registou~o. O
cadáver já não tinha dentes. Schulte bocejou, . @ O
regulamento exigia que se procedesse a unia autópsia: e que a
causa da morte fosse indicada na certidão, irias ninguém
cuidava disso. O médico do campo de concentração vinha muito
raramente, nunca examinava os moi-tos, e as causas de morte
inscritas nas ceiti-

168

A CENTELHA DA VIDA

dões eram sempre as mesmas. Quase sempre doenças do coração.


Westhof morrera também em consequência duma crise cardíaca. .
os corpos despidos eram, depois do registo, alinhados perto de
um

ascensor. Dois homens, encarregados dos fomos, accionavam o


ascensor logo que estes estavam livres.

O preso que saíra regressou com outros quatro prisioneiros.


Provinham do gi upo que Berger tinha visto. Mosse e Brede eram
dois deles.

- Em frente, marchem! - disse Schulte. - Ajudem a despir e ao

inventário dos fatos. Os fatos regulamentares de um lado, os


objectos pessoais do outro, o calçado à parte. Vamos!

Schulte era um rapaz de 23 anos, louro, de olhos cinzentos,


com

um rosto regular e aberto. Fazia já,parte dasJuventudes


Hitleriarias antes de o Pai-tido subir ao Poder. Fora ali que
se educara. Aprendera que havia uma raça de senhores e uma
raça de escravos e acreditava firmemente que assim era.
Conhecia de cor os princípios do racismo e os dognias do
Partido, que eram para ele palavras do Evangelho. Bom filho,
teria denunciado o pai se este se revelasse inimigo do regime.
A seus olhos, o Partido era infalível, não, conhecia nenhuma
outra au-
toridade. Os presos do campo eram inimigos do Partido e do
Estado, e, por essa razão, achavani-se colocados fora da
esfera de aplicação de qualquer piedade e de qualquer
humanIdade. Contavam menos do que animais. Matá-los era matar
insectos prejudiciais. Schulte tinha a

consciência perfeitamente tranquila. Dormia bem e só lamentava


uma coisa: não se bater na frente. Tinham-no colocado no cam,
po por causa de um aperto no coração. Era um amigo em quese
podia ter con-

fiança, amava a música e a poesia e considerava a tortura como


uni meio indispensável para arrancar informações dos presos,
uma vez que todos os inimigos do Partido mentiam. Matara já,
cumprindo or-,

dens, seis homens, e não pensara mais em tal: a dois deles


fizera-os morrer lentamente para conseguir os nomes dos seus
cúmplices. Gostava da filha de uni juiz de tribunal de
província e escrevia-lhe cartas em estilo cuidado, uni pouco
românticas. Nas horas de descanso gostava de cantar. Tinha uma
voz de tenor bastante bonita.

os últimos cadáveres, trazidos por Mosse e Brede, estavam


ainontoados perto do ascensor. O rosto de Mosse tinha
umaexpressão de alívio. Sorria para Berger. O medo de há pouco
fora injustificado. Acreditara que o mandavam para a forca.
Neste momento trabalhava como lhe tinham dito. Tudo corria
bem. Estava salvo. Trabalhava coni

rapidez para mostrar a sua boa vontade.

A porta abriu-se e Weber entrou,


- Firmes!

169

ERICH-MARIA REMARQUE

Todos os presos se puseram em sentido. Weber aproximou-se da


mesa. Calçava botas elegantes, admiravelmente engraxadas. As
botas eram quase a sua única paixão. Sacudiu a cinza do
cigarro que acendera para lutar contra o mau cheiro que os
cadáveres espalhavam.

- Está pronto? - perguntou a Schulte. '


- Perfeitamente,,Herr Sturm]itebrer. Acabou agora mesmo. Está
tudo. notado e registado.

Weber deitou uni olhar para as caixas. Agarrou a medalha que o


cadáver grande há pouco trazia.

- Que é isto?
- Um São Cristóvão, Herr Stui-infuebrer - explicou Schulte,
solícito. - Unia medalha que dá sorte.

Weber riu-se. Schulte não notara a ironia que proferira.

Bem - disse Weber, deixando cair a medalha. - Onde estão os


quatro lá de cima?

Os quatro homens apresentaram-se. A porta abriu-se, oulaa, vez


e o ScbarfuebierSS Günther Steinbrener entrou acompanhado dos
dois homens que tinham ficado no pátio.

- Juntem-se aos vossos quatro camaradas. Os outros saiam!


Subam!

Os presos da brigada desapareceram rapidamente seguidos por


Berger. Weber observava os seis homens que tinham ficado na
cave.

- Vocês ficam. Coloquem-se debaixo daqueles gancho& Quatro


fortes ganchos estavam chumbados na parede fronteira ao
respiradouro, a cerca de cinquenta centímetros das. cabeças
dos presos, que se tinham já encostado à parede. Num canto
estavam colocados uni banco de madeira e uma caixa que
continha pequenas cordas com um nó corredio numa extremidade.

Weber atirou o banco, com um pontapé, para diante do, primeiro


preso.

- Sobe!
O homem obedeceu, tremendo. Weber escolheu uma corda da caixa.

- Aqui tens, Günther - disse para Steinbrenner. - Pode começar


o divertimento. Mostra o que sabes fazer.

Berger fingia ajudar os homens a carregar os cadáveres nas


padiolas. Tratava-se dum trabalho que habitualmente não fazia;
estava dernasiado, enfraquecido para isso. Mas o chefe de
serviço gritara aos homens que subiam da cave que deviam
tornar-se úteis; era mais prudente fingir que lhe obedecia.
Um dos cadáveres carregado nas padiolas era o da mulher dos
cabelos compridos; havia também um homem cujo corpo parecia
modelado em cera suja. Berger levantou a mulher pelos ombros e

17O

A CENTELHA DA VIDA

meteu-lhe os cabelos debaixo das costas para que eles não se


inflamassem depressa de mais e não lhe queimassem as mãos. Era
estranho que não os tivessem cortado: noutros tempos os
cabelos das mulheres eram cortados com regularidade e
conservados. Havia, com certeza, poucas mulheres agora no
campo e a operação deixara de va-

ler a pena.

- Acabou-se - disse para os outros, Abriram a porta do fomo.


Um sopro ardente envolveu-os. Com um

empurrão fizeram rolar a maca de metal para o braseiro,

- Fechem as portas! - gritou alguém. - Fechem as portas! Dois


homens fizeram ressoar as pesadas portas, mas uma delas
abriu-se bruscamente, Berger pôde ainda ver a mulher
empinar-se subitamente como uma louca, A cabeleira em chamas
rodeava-lhe a

cabeça duma auréola selvagem e dourada. Depois a porta


fechou-se definitivamente. Unia lasca de osso entalada num dos
gonzos impedira-a de fechar-se da primeira vez.

- Que se passou? - perguntou um dos presos, assustado. Até


então apenas despira cadáveres.
- Ainda estava viva?

Não. Foi por causa do calor - respondeu Berger, tossindo.


O sopro ardente secara-lhe a garganta.
- Eles mexem-se sempre assim.
- Alguma vezes dançam valsas - disse um, homem corpulento que
fazia parte da brigada do crematório. - Mas que fazem vocês
aí, bandos de ratos de cave?

- Mandaram-nos para aqui.


O homem soltou uma gargalhada.

Para quê? Para serem também metidos no fomo? Há alguns novos


lá em baixo - disse Berger.
O homem, de súbito, deixou de rir.
- O quê? Novos? Que vêm eles fazer aqui?
- Não sei. São seis novos.
O homem fitava Berger. Os olhos, muito brancos, brilhavani-lhe
no rosto enegrecido.

- Não é possívell Só aqui estamos há dois meses. Não podem


substituir-nos ainda. Não têm esse direito! Mas isso será
verdade?

Sim. Foi o que eles disseram. Trata de te informares. Podes


informar-te? Tentarei - disse Berger. - Tens aí algum bocado
de pão ou

qualquer outra coisa que se coma? Dir-te-ei tudo.

O homem tirou uni bocado de pão do bolso e partiu--o em dois.


Deu o mais pequeno a Berger.

171

ERICH-MARIA REMARQUE

Toma. Mas trata de saber tudo. Temos de saber tudo exacta-

mente.

- Está bem, Berger quis sair. Alguém lhe tocou no ombro. Era o
kapoverde que tinha conduzido Mosse, Brede e os outros quatro
ao crematório.

- És tu o arrancador de dentes?
- sou.
- Há ainda um dente para arrancar lá em baixo. Tens de descer.
O kapo estava muito pálido. Encostava-se à parede, escorrendo
suor. Berger piscou o olho ao homem que acabara de lhe dar o
pão.
O homem seguíu-o até à porta.

-já temos a chave do problema - disse Berger, - Não vinham


para nos substituir. Estão mortos. Tenho de descer.

- Tens a certeza?
- Tenho. Se não não me diriam para lá ir.
- Graças a Deus! Respirava.
- Dá-me o pão - acrescentou ainda.
- Não. Berger meteu a mão no bolso para defender a sua
aquisição.
- Imbecil! É para te dar o bocado maior em troca! Uma coisa
vale bem a outra!

Fizeram a troca e Berger desceu à cave. Steinbrenner e,Weber


tinham saído. Apenas estavam Schulte e Dreyer. Em cada @ um,
dos ganchos estava pendurado um homem. Berger reconheceu
Mossê. Tinham--no enforcado com os óculos. Brede e o último
dos seis já tinham sido tirados dos ganchos e jaziam no chão.

- Solta aquele - disse Schulte com indiferença. - Tem unia

coroa de ouro.

Berger tentou levantar o corpo. Só o conseguiu com a ajuda de


Dreyer. O homem tombou no solo como uma boneca de sertadura.

É este? - perguntou Schulte. Sim. A vítima tinha uma coroa num


canino. Berger arrancou-o e pô-lo na caixa. Dreyer tomou nota.

- Os outros também têm alguma coisa? - perguntou Schulte.


Berger examinou os dois mortos deitados no chão. O' kapo
segurava a lâmpada de algibeira.

- Estes não têm nada. Num deles há obturações de aniálgania e


prata.

- Isso não. E os enforcados? Berger esforçou-se, em vão, por


soltar Mosse.

172

- Deixa - declarou Schulte impaciente. - Vê-se melhor quando


eles ainda estão pendurados.

Berger comprimiu a língua inchada que obstruía a boca


escancarada. O único olho de Mosse fitava-o, monstruosamente
aumentado pela lente dos óculos. A pálpebra da órbita vazia
estava meio levantada. Um pouco de humor escorria pela face. O
kapo estava inclinado perto de Berger. Schulte apertava-se
contra eles. Berger, sentiu o hálito de Schulte no pescoço.
Cheirava a pastilha de hortelã"pimenta.

- Nada - disse Schulte. - Vamos ao seguinte. o exame deste foi


mais fácil; já não tinha dentes da frente. Tinhani-lhos
partido. Duas chumbagens sem valor no maxilar inferior
direito. O hálito de Schulte fez cócegas outra vez na nuca de
Berger. A respiração dum nazi zeloso que fazia o seu dever
inocentemente, absorto na busca de coroas de ouro, surdo à
acusação que se escapava da boca recentemente assassinada..
Berger pensou, durante um momento, não poder suportar mais
tempo esta respiração jovem e atenta. "Dir-se-ia. que ele está
à procura de ovos da Páscoa", pensou.

- Bom, não há nada - disse Schulte, decepcionado. Agarrou a


lista e a caixa das coroas de ouro e apontou os seis mortos.

- Mandem-nos tirar daqui e limpem bem a cave. Depois saiu,


juvenil, de cabeça erguida. Berger começou a despir Brede. Não
era difícil porque os corpos ainda estavam quentes. Brede
tinha uma camisola de malha justa por baixo do casaco: de
couro e unias calças de civil. Dreyer acendeu um cigarro.
Sabia que Schulte não voltaria.

- Ele esqueceu-se dos óculos - disse Berger.


- O quê? Berger apontava Mosse. Dreyer aproximou-se. Berger
tirou os óculos do rosto morto. Steinbrenner achara divertido
enforcar Mosse com os óculos* '

- Tem uina lente em bom estado - disse o kqpo. - Mas que


queres tu que se faça disto? Urna lupa para divertir um
garoto? _ A armação é excelente.

Dreyer debruçou-se.
- E de níquel - disse com desprezo -, de simples niquel.
- Não - disse Berger. - É de ouro branco.
- Hem?
- É de ouro branco. o kapo agarrou nos óculos.
- De ouro branco? Tens a certeza?
- Absoluta. A armação está suja. Mas quando a tiverem lavado
com sabão, vera que é assim.

173

ERICH-MARIA REMARQUE

Drey,er sopesou a armação na palma da mão.

Então isto tem valor? Sim. É preciso registá-la. As listas já


aqui não estão - disse Berger,olhando o kapo. -

O Scharfuebrer SchmIte levou-as.


- Isso não tem importância. Vou ter com ele.
- Sim - disse Berger, continuando a fitar Dreyer. - O
ScharfuebrerSchulte não reparou nos óculos, ou então pensou
que não tinham valor. Posso enganar-me. No fim de contas,
talvez seja mesmo níquel.

Dreyer ergueu os olhos,


- Podíamos tê-los atirado fora - disse Berger. - Com as coisas
usadas, uma armação de níquel partida...

Dreyer pousou os óculos na mesa.


- Começa por acabar o teu trabalho.
- Sozinho não posso, eles são pesados de mais.
- Então, vai buscar dois homens lá acima. Berger subiu e
voltou com dois presos. Desligaram Mosse, O ar que se lhe
acumulara nos pulmões escapou-se pelos lábios, com um silvo,
quando desapertaram o nó corredio. Os ganchosestavam fL@ados
na parede exactamente à altura suficiente para que os
enforcados não tocassem no chão. Desta maneira, a agonia
durava sensivelmente mais tempo. Normalmente, um enforcado
fica com a coluna vertebral partida pelo choque. As coisas
passavam-se doutra maneira rnolmpério Milenário. As forcas
estavam previstas para provocarem umaestrangulação lenta. Não
bastava matar, era preciso, ainda, matar lentamente e com o
máximo do sofrimento. Uma das primeiras aquisições
hunianitárias da nova ordem curopeia fora a supressão dw
guilhotina e

o regresso ao machado. Quando o carrasco falhava o golpe,


via-se, por vezes, os condenados levantareni-se e tentarem
fugir com a cabeça meio decepada.

Mosse jazia agora completamente nu no chão. Tinha toda as


unhas partidas. A poeira do gesso ainda aderia a elas. O
agonizante enterrara-as na parede, onde ainda se viam os
sinais, à altura dos pés e das mãos.

Berger juntou o fato e os sapatos de Mosse aos objectos dos


outros presos. Deitou um olhar à mesa de Dreyer. Os óculos já
@14 não estavalii. E também não estavam com os papéis, cartas
sujas e outros objectos miúdos que tinham tirado das
algibeiras dos ni,ortos.

Dreyer trabalhava rapidamente, sem levantar os olhos.

174
- Que é aquilo? - perguntou Ruth Holland. Bucher apurou o
ouvido.
- Um pássaro a cantar. Deve ser um tordo.
- Uni tordo?
- Sim. Só ele é que canta tão cedo na Primavera. É uni tordo.
Agora estou a lembrar-ine.

Estavam acocorados de uni lado e do outro da dupla vedaçào de


arame farpado que separava do pequeno campo as barracas das
mulheres. Nada tinham a recear; o pequeno campo estava agora
tão povoado que havia homens sentados ou deitados por toda a
parte. Além disso, as sentinelas tinham deixado os postos
porque, terminado o seu quarto, o render tardava. A coisa
produzia-se agora, de tempos a tempos, no pequeno campo. A
disciplina afrouxara muito.

o sol declinava. Uni reflexo vermelho tingia todas as janelas


da cidade. Uma rua inteira que as bombas tinham respeitado
estava abrasada como se o fogo devorasse as casas. O rio tinha
as cores do céu atormentado.

- onde está ele a cantar?


- Além, debaixo das árvores. Ruth Holland observou, através
dos arames, o canto de paisagem que Bucher indicara: um prado,
um campo, algumas árvores, uma

granja com o tecto de colmo e mais longe, numa colina, uma


casa branca e baixa com uma pequena horta.

Bucher olhava-a. O sol adocava-lhe o rosto devastado. Tirou


uma côdea de pão da algibeira.

- Toma, Ruth. Berger deu-me isto para ti. Trouxe-o hoje de


propósito pala ti.

Atirou, com destreza, a côdea por cima dos arames. O rosto de


Ruth estremeceu. A côdea caíra ao lado dela. Ficou calada de
momento.

- É teu? - disse, depois, com esforço.


- Não, eu já tive a minha parte. Ela engoliu a saliva com
dificuldade.
- Isso dizes tu!
- Garanto-te. Viu-a fechar os dedos com avidez sobre a côdea
de pão.
- Come devagar - disse., - Faz mais proveito. Ela acenou
enquanto mastigava.
- Tenho de comer devagar, caiu-nie outro dente. Cacinuns atrás
dos outros. O que vale é que não doem. já perdi seis.

- Se não dói, não tem importância. Tivemos um camarada a quem


supurava todo o maxilar. Não deixou nunca de gemer de dor até
à morte.

Daqui por pouco tempo já não terei dentes.

175

ERICH-MÁRIA REMARQUE

Pões uns postiços. Lebenthal já usa unia dentadura postiça.


Não quero usar dentadura. Por que não? Há muitas pessoas que
têm dentadura. Isso não tem importância nenhuma, Ruth.

- Eles não me darão uma dentadura.


- Eles, não. Mas, mais tarde, manda-se fazer uma. Há
dentaduras magníficas. Bem melhores do que a de Lebendial, que
já tem vinte anos. Agora fazem umas novas, contou-me ele, que
nem se sentem. Seguram-se muito bem e são mais bonitas do que
os dentes verdadeiros.

Ruth tinha acabado de comer o pão. Volveu os olhos pálidos


para Bucher.

- Joseph, tu pensas verdadeiramente que alguma vez sairemos


daqui?

- Com certeza! É certo! Todos estamos persuadidos disso agora.


- E depois?
- Depois? Bucher não pensara nisso com exactidão.
- Depois estaremos livres - disse, sem que se lhe
representasse alguma coisa de claro.

- Teremos de nos esconder outra vez. Eles andarão outra vez à


caça de nós. Como dantes.

- Não nos perseguirão mais. Ela olhou-o longamente. -julgas


isso?
- Exactarnente. Ela abanou a cabeça.
- Deixar-nos-ão, talvez, em paz durante um certo tempo. Mas
depois recomeçarão. É só o que sabem fazer.

O tordo recomeçou a cantar. Era um som claro, muito doce, que


quase se tomava insuportável.
- Eles não nos perseguirão mais - disse Bucher. - Faremos um
bloco. Sairemos todos juntos do campo. A vedação de arame
farpado será deitada abaixo. Iremos por aquele caminho lá em
baixo, e ninguém disparará sobre nós, ninguém nos perseguirá.
1remos através dos campos até unia casa, como aquela branca
que tu vês, descansareinos em cadeiras...

Cadeiras. Sim, cadeiras autênticas. Haverá unia mesa e pratos


de porcelana e unia lareira...

E pessoas que nos porão fora. Não nos porão fora. Haverá uma
cama com cobertores e lençóis lavados. E pão, e leite, e
carne...

176

A CENTELHA DA VIDA

Bucher viu que o rosto dela se contraía.


- Tens de acreditar em mim, Ruth - gritou-lhe, desamparado.
Ela chorava, sem lágrimas. Nos seus olhos apenas se via
flutuar um véu indeciso.

- É tão dificil. acreditarJoseph.


- É preciso acreditar - insistiu ele. - Lewinsky trouxe outra
vez noticias frescas. Os americanos e os ingleses atravessaram
o Reno há muito tempo. Aproximani-se. Depressa nos libertarão.

A luz do poente transformou-se de súbito. O Sol acabava de


desaparecer por detrás da crista das montanhas. A cidade
mergulhou numa obscuridade azulada. As janelas apagarain-se. O
rio pacificou-se. Uma grande paz se espalhou. o canto do tordo
cessou. Apenas o céu continuava a flamejar. As nuvens eram
grandes barcos de nácar batidos pelas flechas luminosas do
Sol, vogando lentamente para a grande porta vermelha da noite.
Um último raio cala sobre a casa da colina e a sua brancura
cintilou na sombra, mais perto e mais longe do que há pouco.

Só quando ele estava inuito perto é que viram o pássaro. Uma


pequena bola com duas asas. Desenhou-se uni instante contra o
céu imenso e deixou-se cair de repente. Ambos o viram e ambos
fizeram um gesto; distinguiram, num segundo, a fina silhueta,
a cabecinha com o bico amarelo, as asas abertas e o peito
arredondado cheio de canções, e logo houve um ligeiro
crepitar, uma faísca nos arames electrificados, pálida e
mortífera sob a grande luz do poente, e nada mais houve depois
se não uma pequena massa carbonizada donde emergia uma patinha
delicada e um resto de asa que, ao roçar pelo solo, atraíra a
morte.

- Era o tordo, Joseph! Bucher não compreendeu o horror que


havia nesta voz.
- Não, Ruth - disse precipitadamente -, era outro pássaro. Não
era um tordo. E, se era, não era com certeza aquele que
cantava há pouco, não era o nosso, Ruth...

- Pensaste que eu me tinha esquecido de ti, hem? - perguntou


Handke.

Não. Ontem já era tarde. Mas temos o tempo todo para fazer a
partícipação. Amanhã, por exemplo.

Aproxiniou-se do 5O9.
- Milionário! Milionário suíço! Eles arrancar-te-ão o dinheiro
dos rins, franco a franco, a golpes de cacete!

G. Clá~ do Séc. XX 25 - 12

177

ERICH-MARIA REMARQUE

Não há necessidade de cacetadas - disse o 5O9- - É muito mais


fácil do que isso. Assino uni papel e o dinheiro deixa de ser
meu.

Sustentava o olhar de Handke.


- Dois mil e quinhentos francos é alguma coisa.
- Cinco mil rectificou Handke. -Julgasque a Gestapo irá
partilhar contigo?

1 - É verdade - concordou o 5O9 cinco mil francos


para a Gestapo.

- E para ti cacetadas, a cruz, o bunkere Breucr com os seus


métodos. E depois a forca.

- Quem sabe? Flandke soltou unia gargalhada.


- Quem sabe? Talvez te dêem uma autorização legalizada para o
dinheiro proibido?

- Isso não.
O 5O9 continuava a fitar Handke. Admirava-se por não sentir
medo, embora soubesse que estava nas mãos de Handke; mas um
sentimento mais forte se apoderara dele: o ódio. Não era o
pobre ódio dos campos de concentração, o ódio mediocre, no dia
a dia da criatura frustrada perante uma outra criatura mais
privilegiada. ,

Não, o que ele sentia era um ódio frio, lúcido e racional, e


tão clãraniente o sentia que baixou os olhos com medo de que
Flandke lho lesse no rosto.

- Não? Então quê, cãozinho sábio?


O 5O9 sentia o cheiro de Handke. Também isto era novo. O mau
cheiro do campo não deixara, até ali, lugar para os cheiros
individuais. .O 5O9 sabia que, se sentia o cheiro de Handke,
não era porque ele fosse mais forte do que os outros; sentia-o
porque odiava Handke.

- É o medo que te tira a voz? Handke deu-lhe um pontapé nas


canelas. O 5O9 manteve-se finne.
- Não creio que me torturem - disse calmamente, fitando Handke
outra vez. - Não seria inteligente. Em qualquer momento eu
poderia ficar-me nas mãos dos SS. Estou muito fraco e a minha
resistência já quase chegou ao fim. Pelo menos por agora é uma
vantagem. A Gestapo esperará, sem dúvida, que o dinheiro
esteja Ms suas mãos. Para isso, precisam de mim. Sou a única
pessoa que pode dispor dele. A Gestapo não tem poder sobre a
Suíça. Enquanto ela não tiver o dinheiro, estarei eu em
segurança. E isto durará algum tempo. Entretanto, podem
acontecer coisas.

Flandke meditava. O 5O9 seguia, na penumbra, o trabalho que


aquele rosto grosseiro reflectia. Observava apaixoriadamente
esta cara. Parecia-lhe que os seus próprios olhos se haviam
tornado em

178

A CENTELHA DA VIDA

projectores luminosos assestados no rosto de Handke e que lhe


aumentavam todos os pormenores. _ Então pensaste nisso tudo,
hein? - articulou, finalmente, o responsável do bloco.

- Não pensei em nada, é mesmo assim.


- E Weber? Ele tinha também duas coisas a dizer-te! E ele não
esperará.
- Esperará - replicou,'tranquilo, o 5O9, - Herr Sturmfitebrer
Weber terá de esperar. A Gestapo olhará por isso. Antes de
mais, ela quererá recuperar os francos suíços.

Os olhos pálidos e salientes de Handke animararri-se; a


mandíbula agitou-se.

- Tomaste-te muito esperto - disse por fim. - Ainda não há


muito tempo, mal podias ir à retrete! Nestes últimos tempos
vocês todos tornarani-se rijos como cabritos, meu monte de
esterco! Deixem estar que os ajudarão! Esperem um pouco!
Passarão todos pela chaminé!

Com o dedo indicador pôs-se a martelar o peito do 5O9.


- Onde estão os vinte marcos? Passa-os para cá e depressa!
O 5O9 tirou a nota do bolso. O desejo de recusar assaltara-o
durante um momento, mas compreendeu logo que unia recusa
equivaleria ao suicídio. Handke arrancou-lhe o dinheiro das
mãos.

- Em paga disto poderás arrastar a tua miséria rnais-um dia -


declarou, endireitando-se. - Um dia, vernie! Até amanhã.

- Um dia - repetia o 5O9. Lewinsky pensava.


- julgo que ele nada fará - disse depois. - Que proveito
tiraria se falasse?

o 5O9 encolheu os ombros.


- Nenhum. Mas o seu procedimento é imprevisível quando está
com a críse ou simplesmente com um copo no bucho.

- Temos de nos desembaraçar dele. Lewinsky pôs-se outra vez a


reflectir.
- De momento não podemos fazer grande coisa. Isto está a

aquecer. Os SS revêem as listas e fazem unia escolha. Fazemos


desaparecer no hospital todos aqueles que podemos. Mas dentro
de pouco tempo teremos de mandar para aqui alguns dos nossos.
Continuamos de acordo, não é verdade?

Sim. Com a condição de vocês lhes fornecerem a alimentação.


Bem entendido. Mas há outra coisa. Devemos contar com buscas
nas barracas. Poderão vocês esconder aqui alguns objectos?

179

ERICH-MARIA REMARQUE
- De que tamanho?
- Assim... Levinsky deitou uni olhar em redor. Ambos estavam
agachados no

escuro, atrás da barraca. Apenas se via o cortejo trôpego dos


niuçulnianos que se dirigiam para as latrinas.

- Do tamanho de um revólver, por exemplo.


O 5O9 sentiu a respiração faltar-lhe.
- Um revólver?
- Sim.
O 5O9 pernianeceu calado um momento. Depois disse, nunia voz

baixa e rápida:

- Debaixo da minha cama há um buraco no chão. Podem-se


deslocar as tábuas e esconder lá dentro objectos maiores do
que um revólver. E com facilidade. Nunca há inspecções. É
perfeitamente seguro.-

Falara, sem dar por isso, corno um homem desejoso de convencer


o seu interlocutor, não como uni honiem de quem se pretendia
fazer aceitar um risco.

Trouxeste-cí? - perguntou. Sim. Passa. Lewinsky olhou outra


vez em volta.
- Sabes o que isto representa?
- Com certeza - respondeu o 5O9 com impaciencia.
- Não foi fácil arranjá-lo. Foi preciso arriscar a pele vinte
vezes.
- Sim, Lewinsky, eu terei cuidado. Dá-mo. Lewinsky tirou um
embrulho da blusa e meteu--o nas, mãos do 5O9. Este agarrou-o.
Era mais pesado do que julgara.

- Que tem ele em volta?


- Uni trapo engordurado. O buraco debaixo da tua cama é bem
seco?

Sim - disse o 5O9. Não era verdade, mas ele não queria
devolver a arma.
- Há munições cá dentro?
- Sim, mas não muitas. Alguns cartuchos. Mas ele está
carregado.
O 5O9 meteu o revólver debaixo da cainisa e abotoou a blusa
por cima. Apertou-a contra o coração, sentindo um arrepio.
- Tenho de me ir embora - disse Lewinsky. - Tem cuidado.
Esconde-o já.

Falava da arma como de um ser humano.


- Da próxima vez trarei uni dos nossos. Vocês têm realmente
lugar?

18O

A CENTELHA DA VIDA

Percorria com o olhar a praça da chamada, onde se viam alguns


homens deitados no escuro.

- Temos lugar, sim, Para vocês haverá sempre lugar.


- Bem. Quando Handke voltar, dá"lhe mais dinheiro. Ainda têm?
- Um pouco. Para um dia.
- Tentarei trazer mais. Dá-lo-ei a Lei-)enthal. Está bem
assim, não?
- Sim.

Lewinsky desapareceu na sombra da barraca próxima. A.partir


dai avançou aos tropeções, como um niuçuliiiano que se
dirigisse às latrinas. O 5O9 permaneceu imóvel um momento.
Tinha as costas apoiadas à parede da barraca. Com a mão
direita apertava o revólver junto ao peito. Lutava contra o
desejo de desenrolar o trapo engordurado para apalpar o metal.
Adivinhava os contornos da coronha e do cano e parecia-lhe que
dele emanava unia obscura energia. Era a primeira vez, há
anos, que apertava nas mãos unia arma para se defender.
Deixara de ser completamente inofensivo, agora. Não estava já
inteiramente à mercê dos seus inimigos. Sabia que o seu
orgulho era ilusório e que. era caso algum deveria fazer uso
desta ari-na, mas bastava-lhe tê-la perto de si para se sentir
transformado. O instrumento de morte era unia fonte de vida.
Bebia nele unia força nova de resistência. Pensou em Handke.
Pensou no ódio que sentira contra ele. Handke levara o
dinheiro, mas fora mais fraco do que ele. Pensou em Rosen:
pudera salvá-lo. Depois pensou em Weber. Pensou nele
longamente e nos primeiros anos de campo. Era a primeira vez
que o fazia há muito tempo. Banira de si todas as recordações,
mesmo as que remontavam além do seu cativeiro. Não quisera
mesmo ouvir mais o@ seu próprio nome. Deixara de ser uni homem
e quisera que assim fôsse; a dignidade humana teria sido
excessivamente pesada de suportar. Tornara-se num número e
quisera que o designassem como tal. Estava sentado, em
silêncio, na noite, e apertava a arma, respirando
profundamente, e as recordações subiam dentro dele, e
parecia-lhe que bebia e comia alguma coisa invisível e
tonificante.

Ouviu o render das.sentinelas. Levantou-se com cuidado.


Cambaleou durante alguns segundos, como se tivesse beb. ido.
Depois contornou lentamente a barraca.

Uni homem estava acocorado perto da porta.


- 5O9! - inurniurou ele. Era Rosen. O 5O9 teve um sobressalto
como se acordasse de uni longo sonho. Baixou os olhos.

- Cliamo-nie Koiler - disse com uni ar ausente. - Frederie


Koller.

- Está bem - respondeu Rosen, sem compreender.

181

uero um padre - gemia Animers. _Q Isto durara toda a tarde.


Tinham tentado, em vão, desviá-lo da ideia fixa que
bruscamente se lhe impusera.

- Que entendes tu por padre? - perguntou-lhe Lebenthal.


- Que pergunta! Um padre católico, meu pobre judeu!
- Vejam isto! Lebenthal abanava a cabeça. - Uni
anti-semita. Era o que nos faltava!

---Como se não houvesse bastantes aqui! - disse o 5O9.


- Vocês são os culpados de ti-ido - respondeu Affimers,
rangendo os dentes. - Sem os judeus não estaria eu aqui.

- Sim? E porquê?
- Porque sem os judeus não haveria campos de concentração.
Quero um padre!

- Devias ter vergonha - disse Bucher, indignado.


- Não tenho de que envergonhar-me. Estou doente! Vão procurar
uni padre!

O 5O9 observou-lhe os lábios arroxeados, os olhos


profundamente enterrados nas órbitas.

- Não há padre no campo, Animers.


- Preciso de um. Estou no meu direito, unia vez que estou a
morrer.

- Começo a acreditar que nunca morrerás - disse Bucher de


i-nau humor. - Há já semanas que nos anuncias isso.

- Morro porque vocês, porcos judeus, me tiraram, sempre o que


me cabia. E agora nem mesmo querem ir buscar-i-ne uni padre.
Quero confessar-me. Que sabem vocês disto? Que faço eu nesta
barraca de judeus? Tenho o direito de estar numa barraca
ariana,

- Aqui, não. No campo de trabalho, sim. Aqui sornos todos


iguais. Animers desviou a cabeça com um gemido. No tabique,
por cima ,dos seus cabelos louros e sujos, uma inscrição a
lápis azul: EijGEN MA-
1941. ViA,<-;AA,(.,4.
- Como está ele? - perguntou o 5O9 a Berger.
- Há muito tempo que deveria estar morto. Mas suponho que este
é o seu último dia.

- Parece bem que sim, ele já confunde tudo.

182

- - Ele não confunde nada - declarou Lebenthal. - Ele sabe o


que diz.

- Espero que não - disse Bucher.


O 5O9 olhou-o.
- Ele nem sempre assim foi - disse calmamente -, mas
deitamn*i@-no abaixo. já não é o mesmo homem. Este que tu vês
formou-se com os destroços do antigo Ammers. E esses destroços
não eram muito

sãos. Bem o notei.

- Um padre - recomeçava Animers. - Quero confessar-me! Não


quero ser condenado para toda a eternidade.

O 5O9 sentou-se na borda da cama. Perto de Ammers, um homem da


última coluna, devorado pela febre, tinha a respiração curta e
rápida.

- É possível sem padre, Ammers - disse o 5O9. - Que terias tu


podido fazer aqui? Para nós não há pecado. A cada instante
expiamos. Arrepende-te do que te pesa na consciência. Quando a
confissão não é possível, isso basta. Está escrito no
catecismo. ,

Ammers deixou, por um momento, degemer.


- Tu também. és católico? - perguntou.
- Sou - disse o 5O9. Não era verdade.
- Então tu sabes. Preciso de um padre! Tenho de me confessar e
comungar! Não quero arder toda a eternidade!

Tremia. Tinha os olhos dilatados. A cabeça não era maior do


que dois punhos cerrados e os dois olhos pareciam comer-lhe
todo o

rosto. Tinha alguma coisa de morcego.

- Uma vez que és católico, sabes bem como é. Como um.forno


crematório, com a diferença de que nunca se está completamente
queimado, de que nunca se morre. É isto que tu me desejas?

O 5O9 deitou um olhar para a porta, que estava aberta. Um céu


se-

reno era emoldurado por ela como um quadro. Os olhos voltaram


a fitar a cabeça devastada, onde dançavam visões infernais.

- Para nós é tudo diferente, Ammers - disse finalmente. -


Seremos recompensados lá em cima. já passámos pelo Inferno.

Animers abanava obstinadamente a cabeça.


- Não blasfemes! - murmurou.

Depois semiergueu-se com dificuldade.


- Vocês... vocês... vocês têm saúde! E eu rebento! E logo
nesta altura! Ah, vocês podem rir-se! Eu ouvi tudo! Vocês
sairão daqui! Vocês vão escapar! E eu no fomo crematório! No
fogo! E para toda a

eternidade! Oooh.. .

Uivava como um cão à Lua, Uivava, com o corpo febrilmente

183

ERICH-MARIA REMARQUE

estendido para a frente. A boca era um buraco negro donde se


escapava um uivo cansado.
SuIzbacher levantou-se.

Vou eu - disse. - Vou procurar uni padre. Onde? - perguntou


Lebenthal. Não importa onde. À administração, perguntarei às
sentinelas. Não faças loucuras. Aqui não há padre. Os SS não
querem. Mandar-te-ão para o bttiiker.

- Tanto pior... Lebenthal fitava-o,


- Berger, 5O9, estão a ouvi-lo? SuIzbacher es 'tava muito
pálido. O maxilar inferior projectava-se para a frente. Não
queria dar atenção a ninguém. @

- Não serviria de nada - disse-lhe Berger. - E proibido. Não


conhecemos nenhum padre entre os presos. Se não já o teríamos
ido buscar, como deves supor.

Eu vou - repetia Sulzi-)acher. É um suicídio! Lebenthal


cerrava os punhos.
- E ainda po cima por um anti-sernita. SuIzbacher cerrou os
dentes.
- Pois bem, sim, por uni anti-semíta.
- Mescbuggei Mais um, Mescbugge!
- De acordo, Meschugge, eu vou.
- Bucher, Berger, Rosen! - disse o 5O9 muito calmo. Mas já
Bucher se atirara a SuIzbacher com uni cacete. O golpe,
bastante fraco, foi contudo suficiente para fazer cambalear
SuIzbacher. Todos se precipitaram e o seguraram contra o chão.

- Ahasver - gritou Berger -, traz as cordas do cão-pastor!


Abandonaram SuIzbacher depois de lhe terem. atado os pés e as
mãos.

- Se gritas, serás amordaçado - declarou o 5O9.


- Vocês não me compreendem.
- Sim. Ficarás assim até a crise te passar. já perdemos muita
gente nestes últimos tempos.

Arrastarani-no para um canto e não se preocuparam mais com


ele. Rosen levantou-se.
- Ele está ainda sol) o choque ela morte do irmão - disse em
voz baixa, como se sentisse necessidade de o desculpar. -
Conipreende-se..

Ammers enrouquecia. Disse dinda debilmente:


- Onde se esconde ele? Onde está o padre? Todos estavam já
fartos de o ouvir.
184

A CENTELHA DA VIDA

Não há realmente padre, nem sacristão, nem menino do Coro?


- perguntou Bucher. - Qualquer serve, contanto que tenhamos
sossego!

- Havia quatro na 17. Uni deles foi libertado; dois outros


morreram e o último está no bunker- disse Kebenthal, - Todas
as manhãs Breuer lhe bate com umas correntes; chama, ele a
isso dizer a sua missa.

- Por piedade! - continuava Animers. - Por amor de Deus!


- Creio que há na B uni hornem que sabe latim - disse Ahasver.
- Ouvi falar nisso há muito tempo. Não se poderá fazê-lo cá
vir?

- Como se chania ele?


- Não sei exactamente. DelIbr(ick ou Hellbrück, qualquer coisa
assim, O responsável da camarata está decerto ao corrente.

O 5O9 levantou-se.
- Vem aí Mahner. Vamos perguntar-lhe. Afastou-se com Berger.
- É talvez Hellwig - disse Mahner, - Ele fala toda a espécie
de línguas. Aliás, é um pouco maluco. Às vezes ouvimo-lo
declamar. Está na A.

- Deve ser ele. Alcançaram a secção A. Mahner parlamentou, com


o responsável da carnarata. Era um homem magro e delgado, com
uma cabeça piriforme. Por fim ele encolheu os ombros. Mahner
meteu~se num labirinto de camas, pernas, braços e corpos, ao
mesmo tempo que gritava o nome.

Ao fim de alguns minutos voltou com um honicin de expressão


desconfiada.

- Aqui está ele - disse o 5O9. - Saiamos, aqui não se ouve


nada.
O 5O9 pôs Hellwig ao corrente da situação,
- Tu falas latim? - perguntou depois, como conclusão.
- Falo. o rosto do homem era devorado por tiques nervosos.
- Vão roubar-me a gainela,
- O quê?
- Aqui estão sempre a roubar. Ontem foi a minha colher,
enquanto eu estava nas latrinas. Tintra-a escondida debaixo da
cama. E agora deixei a ganiela lá dentro.
- Então vai buscã-la. Hellwig desapareceu sem uma palavra.
- Não voltará - disse Mahner. Esperaram. A noite caía. Sombras
saíam da sombra; a obscuridade engendrava a obscuridade.
Depois Hellwig regressou, apertando U1114 ganiela contra o
peito.

185

ERICH-MARIA REMARQUE

- Não sei até que ponto Animers compreende o latim - disse o


5O9. - Pelo menos deve perceber ego te absolvo. Deve ter
retido isto. Basta que lhe digas estas poucas palavras e
qualquer outra coisa.

Hellwig oscilava, marchando sobre as suas grandes pernas.


- Virgílio? Horácio? - perguntou.
- Não terás qualquer coisa de mais religioso?
- Credo ín unum deum.
- Muito bem.
- Ou então: credo quia absurduin.
O 5O9 abriu os olhos.
- É o que todos nós fazemos - disse. Hellwig parou. Estendeu o
dedo indicador para o 5O9, como se quisesse es etá-lo.

1p
- E uma blasfémia, bem sabes, mas vou fazê-lo, apesar disso.
Ele não tem necessidade de mim. O arrependimento e a remição
dos pecados são possíveis sem confissão.

- Talvez ele não possa arrepender-se sem a assistência de


outra pessoa.

- Vou fazê-lo unicamente para o ajudar. Entretanto, eles vão


roubar-me a sopa.

- Mahner guarda-ta. Dá-me a gamela, eu tomarei conta dela


enquanto estiveres lá dentro.

Porquê? Ele terá mais fé em ti se chegares sem gamela. Está


bem. Entraram. A obscuridade era já quase completa na barraca.
Ouvia-se Ammers murmurar.

- É aquele - disse o 5O9. - Ammers, encontrámos um! Ammers


calou-se.
É verdade? - perguntou numa voz clara. Siln. Hellwig
inclinou-se para ele.
- Bendito seja.lesus.
- Bendito seja o Seu santo nome - murmurou Amniers com um
fervor infantil.

Começaram a falar em voz baixa. O 5O9 saiu com os outros. Um


crepúsculo suavíssimo acabava de morrer sobre os bosques. O
5O9 encostou-se à parede da barraca, que conservava ainda um
pouco do calor cio sol. Bucher sentou--se perto dele.

- É estranho - disse ao cabo dum momento de silêncio. -

Vêeni@-se morrer centenas sem que isso cause a menor


impressão, e, de repente, sentinio-nos chocados pela morte de
um só, a quem nem sequer estávamos muito ligados.

186

A CENTELHA DA VIDA

O 5O9 acenou a cabeça.


- A imaginação não sabe contar e o número, não alimenta os
sentímentos. Eles só sabem contar até um. Uni só... mas é
quanto basta quando se compreende verdadeiramente o que se
está a passar.

Hellwig saiu da barraca. Caminhava curvado para a frente e,


por um instante, dir-se~ia que trazia a obscuridade fétida
sobre os ombros, como uni pastor a unia ovelha negra, para
lavã-la na pureza da noite. Depois endireitou-se e tomou-se
uni prisioneiro como os outros.

- Então? Foi um sacrilégio? - perguntou o 5O9.


- Não. Apenas o assisti no seu arrependimento. Não lhe.dei os
sacramentos.

- Lamento não termos nada para te dar: um cigarro ou uni


bocado de pão - disse o 5O9, restituindo-lhe a gamela. - Mas
nós não temos absolutamente nada. Tudo o que podemos
oferecer-te é a sopa de Animers, se ele morrer antes da
distribuição.

- Não preciso de nada. Não quero nada. Sei-ia uma vergonha


pedir alguma coisa por isto.

O 5O9 notou então que Hellwig tinha lágrimas nos olhos.


Observou-o com estupefacção.

- Está calmo agora? - perguntou.


- Sim, Ele tinha roubado esta tarde um bocado de pão que lhes
pertencia. Insistiu para que eu lhes dissesse.

- Eu sabia.
- Pede que vão lá. Quer pedir perdão a todos.
- @las porquê, Senhor?

E o que ele pede. E particularmente àquele de vocês que se

chama Lebenthal.

- Ouves, Léo? - perguntou o 5O9.


- Quer regularizar depressa as suas contas com Deus - declarou
Lebenthal, irreconciliável.

- Não creio que seja isso. Hellwig meteu a gamela debaixo do


braço.
- É estranho, eu antigamente desejava ser padre - disse. - E
depois, bruscamente, renunciei. já não sei porquê agora. Tenho
pena.

O seu olhar indeciso errou pelos homens sentados.


- Sofre-se inenos quando se, crê em qualquer coisa.
- Sini, mas há muitas coisas em que se pode crer. Não há só
Deus.
- Decerto - retorquiu Hellwig com tanto calor que o teriam
julgado a dissei tar num salão. Mantinha a cabeça ligeiramente
inclinada para uni lado, como se desse atenção ainda a unia
voz.

- Foi uma espécie de confissão por necessidade - disse,


depois.
- Sempre houve baptismos por necessidade. Mas confissões...
-,O

187

ERICH-MARIA REMARQUE

rosto estremeceu-lhe. - É uma questão a apresentar aos


teólogos. Boa noite, meus senhores.

Encaminhou-se para a sua secção como unia aranha gigante. Ooss


outros seguiram-no com os olhos, surpreendidos. Fora,
sobretudo, aquela "boa noite, meus senhores"; desde que
estavam no campo de concentração nunca mais tinham ouvido tal
coisa.

- Vai ter com Anuners, Léo - disse Berger -, por que não
hás-de ir? Quando penso que aquele nos tratou por senhores!...

Lebenthal ainda hesitava.


- Vai - repetiu Berger -, se não ele volta a gritar. Nós vamos
desatar SuIzbacher.

O crepúsculo dera lugar a uma noite clara. Vindo da cidade


ouvia-se o badalar de um sino. Uma sombra azulada e violeta
enchia os campos.

Estavam sentados, em grupo, diante da barraca. Ammers


continuava a agonizar. SuIzbacher acalmara-se. Estava agachado
ao lado de Rosen, envergonhado.

Lebenthal levantou-se bruscamente.


- Que é aquilo? Olhava para uni campo, através dos arames.
Qualquer coisa saltitava nos sulcos, estacava, lançava-se
outra vez num salto.

- Uma lebre - disse Karel, o rapaz checoslovaco.


- Tu és doido! já viste alguma lebre?
- Onde nós morávamos havia-as. Vi bastantes quando era novo
- disse Karel.

Para ele a sua juventude terminara com o campo de


concentração, quando os pais tinham sido enviados para a
câmara de gás.

- Garanto que é unia lebre. Bucher semicerrou os olhos.


- Ou então um coelho. Mas não, é grande de mais para isso.
- Deus do Céu! - disse Lebenthal. - Uma lebre viva! Todos a
viam agora. Ela levantou-se um momento sobre as patas
traseiras e esticou as longas orelhas. Depois lançou-se num
salto.

- Se ela viesse até aqui! A dentadura de Lebenthal tremia de


emoção. Ele pensava na falsa lebre de Bethke, o cão baixote
pelo qual trocara o dente de ouro.

- Podíamos trocá-la. Não a comeríamos nós. Trocá-la-íamos pelo


dobro; não, por duas vezes e meia de carne estragada.
- Não a trocaríamos, Nós é que a havíamos de comer - disse
Meyerhof.

- Ah, sim? E quem a mandaria cozer então? A menos que a qui-

188

A CENTELHA DA VIDA

sses comer crua. De resto, se a desses a alguém para a cozer,


não @@ta,rest1tuirian1 - declarou Lebendial, começando a
irritar-se.'- É e@t"ordínárío o que julgam saber pessoas que
durante semanas não @1',$@drarn da barraca!

Meyerhof era um dos milagres da barraca 22. Durante duas sema-


:@Âas estivera à morte com unia broncopneumonia e disenteria.
Estava @@,ào débil que nem mesmo podia falar. Berger julgara-o
perdido. E, de súbito, restabelecera-se em poucos dias.
Ressuscitara dos niortos. Desde então, Ahasver só o tratava
por Lázaro Meyerhof. Era este o primeiro dia em que saía.
Berger bem lho proibira, mas, apesar disso, ele arrastara-se
para fora. Trazia o capote de Lebendial, o sweaterdo falecido
Buchsbaum e uni dóliiian de oficial húngaro que uni dos presos
recebera como casaco. A sobrepeliz furada por uni tiro, que
devia servir de camisa a Rosen, estava enrolada como unia
écbaipe em volta do pescoço. Todos os veteranos tinham querido
contribuir para ves-

ti-4o na sua primeira saída. Considerarani a cura corno uma


vitória na qual todos participavam.

Se ela vem para cá, toca no fio eléctrico. Ficaria logo assada
-

disse Meyerhof, cheio de esperança.

- Podíamos puxá-la com uni ramo bem seco. Sustendo a


respiração, observavam o animal, que saltava de rego em rego e
que parava, por vezes, com as orelhas erectas.

- Os SS vão atirar-lhe por sua própria conta - declarou


Berger.
- Não será fácil com uma bala e na escuridão - objectou o 5O9.
Os SS só estão treinados em abater homens pelas costas e a
poucos metros.

Ahasver mexia os lábios.


- Uma lebre! Que gosto terá?
- Tem gosto de lebre - explicou Lebenthal. - o que ela tem de
melhor é o lombo. É preciso lardeá-lo, para que dê suco.
Acrescenta-se-lhe uni molho de nata. É assim que a comem os
Gojims.

- Como as maçãs raspadas com açúcar - disse Meyerhof.


- Não, não é com maçãs, mas sim com creme de castanhas e
groselhas.

- É muito melhor com maçãs e açúcar. Isso de castanhas é bom


para os italianos!

Lebenthal fitou Meyerhof furioso.


- Tu... - começou. Foi interrompido por Ahasver.
- Que querem vocês que a gente faça duma lebre? Daria todas as

lebres do inundo por uni ganso. Um ganso gordo, bem


recheado...

- Com compota de maçãs...

189

ERICH-MÀRIA REMARQUE

Calem a boca! - gritou alguém atrás deles. - Que foi que vos
deu? É de endoidecer!

Estavam sentados, inclinados para a frente. Os olhos,


profundamente enterrados nas caveiras, seguiam com paixão as
evoluções da lebre. A menos de cem metros passeava unia
refeição fabulosa, unia bola de pêlo, que representava algumas
libras de carne, a salvação para alguns deles. Meyerliof
sentia-a em todas as suas entranhas; este animal representaria
para ele a certeza d@e evitar unia recaída.

- Vamos. Com ou sem creme de castanhas - gemia. Sentia, de


súbito, a boca seca e poeirenta como uni depósito de carvão.

A lebre ergueu-se e fare)ou. Foi então que um dos ocupantes da


torre de vigia mais próxima a descobriu.

- Meu Deus, Edgar, unia lebre! - gritou. - Fogo à vontadel


Algumas detonações ressoaram. Aqui e ali as balas faziam
saltar a terra. A lebre disparou à desfilada.
- Como vês - disse o 5O9 -, eles só sabem atirar aos
prisioneiros e a pouca distância.

Lebenthal suspirava, seguindo com os olhos a sombra que fugia.

- Morreu?
- Sim, Finalmente. Ainda queria que lhe tirássemos da cama o
novo, aquele que tem febre. Tinha medo de ser contagiado. Na
realidade, o outro é que foi contaminado. Por fim, pô&-se a
gemer, a barafustar. O padre não teve efeito radical.

O 5O9 acenou a cabeca.


- Morrer tomou-se dificil. Era mais fácil ainda há pouco
tempo. Agora é duro. Tão perto do fim.

Berger acocorou-se perto dele. Era depois da refeição da


noite. Para o pequeno campo havia uma sopa aguada; um quarto
de litro por preso. Pão, nenhum.

- Que te queria Handke? - perguntou Berger.


O 5O9 abriu a mão.
- Dar-nie isto: uma folha de papel branco e unia. caneta. Quer
que eu transfira para o nome dele o meu dinheiro suíço. E não
a metade. Quer tudo. Os cinco mil francos.

- E depois?
- Em troca, concede-me provisoriamente a vida. Fez mesmo
alusão a *uma espécie de protecção da sua parte.

Até que tenha a tua assinatura. Quer dizer até amanhã à noite.
É sempre assim. já nos aconteceu ter diante de nós nienos
tempo do que agora.

19O

A CENTELHA DA VIDA

Isso não chega. É preciso achar outra coisa.


O 5O9 encolheu os ombros.
- Talvez ele cumpra a promessa. Talvez pense que terá
necessidade de mim mais tarde, para receber o dinheiro. Também
pode pensar o contrário. Suprirnir-te para que não levantes
obstáculos.

- Não posso levantar obtãculos desde o momento em que ele


tenha a rninha assinatura.
- Ele não o sabe. E talvez seja mesmo possível. Tu deste-lha
sob ameaça de morte.

O 5O9 ficou calado um momento.


- Ephra@Íni - disse, depois calmo -, é inútil. Eu não tenho
nem um tostão na Suíça.

Berger olhou o 5O9 durante um momento.


- Tu inventaste tudo?
- Sim. Berger passou as costas da mão pelos olhos
lacrimejantes. Os seus ombros tremiam.

Que tens tu? - perguntou o 5O9. - Estás a chorar? Não, estou a


rir. É estúpido, mas rio. Ri, anda! Ri-se tão pouco aqui!
Rio-me porque imagino a cara do Handke em Zurique. Como
tiveste essa ideia?

- Não sei. Há sempre ideias quando a vida depende delas. O


princípal é ele ter engolido. Nem sequer pode verificar antes
do fim da guerra. É preciso que ele tenha fé.

- É verdade.
O rosto de Berger tornou-se sério.
- É por isso que eu não tenho confiança. Basta que lhe dê a
crise para se entregar a actos irreparáveis. É preciso
ganhar-lhe a dianteira. o mais seguro seria tu morreres.

- Morrer? Como? Nós não temos hospital. Como queres fazer


isso? Aqui é a última estação.

-Justamente graças à verdadeira última estação. Pelo


crematório.
O 5O9 perscrutou o rosto preocupado de Berger com os seus
olhos lacrimejantes e o seu crânio estreito e sentiu por ele
uni impulso de simpatia.

- Tu crês que é possível?


- Pode~se experimentar.
O 5O9 não pediu explicações. . Voltaremos a falar nisso -
disse. - Temos algum tempo diante de nós. Hoje só transfiro
dois mil e quinhentos francos para a posse

191

ERICH-MARIA REMARQUE

de Handke. Ele guarda-os e pede o resto. Ganharei assim ainda


alguns dias. E, depois, ainda tenho os vinte marcos do Rosen.

- E quando não tiveres mais nada?


- Nessa altura talvez haja novidades, Só é possível atender ao
perigo mais iminente. Cada perigo a seu tempo. Se não for
assini, acaba-se por enlouquecer.

O 5O9 mexia na folha de papel e na caneta de tinta permanente,


observando os reflexos baços que brincavam iva ebonite.

- É estranho- disse.- Há muito tempo que não tinha este


instruniento nas mãos. Uma caneta, uni papel. Antigamente
vivia disto. Poderei alguma vez recomeçar?

192

1 ...........

XV

s duzentos homens da nova brigada de desentulho estavam \_,-f


distribuídos pela rua, numa única e longuíssima fila. Era a
pri- ,meíra vez que os empregavam no interior da cidade. Até
então apenas @~m trabalhado nas fábricas destruídas dos
arrabaldes. @ , , Os SS ocupavam as saídas da rua. Além disso,
tinham colocado, de ,,,,Ibnge em longe, homens no passeio da
esquerda. O lado que mais sofrera fora o direito; as paredes e
os telhados tinham desabado para o leito da i-tia, tornando o
trânsito quase impossível.

Como faltavam pás e enxadas, a maior parte dos presos eram


obrigados a trabalhar só com as mãos. Os kapos e os chefes de
grupo estavam nervosos, hesitando sobre se deviam bater como
de costume ou se seria preferivel abstereni-se. É certo que a
rua fora proibida aos civis, mas não fora possível evacuar os
habitantes das casas ainda intactas.

Lewinsky trabalhava perto de Werner. Tal como vários


prisioneiros políticos pengosamente arneaçados, ambos se
tinham apresentado como voluntários para a brigada de
desentulho. O trabalho era mais duro do que em qualquer outro
lado, mas estavam livres por um dia dos SS do campo; quando
entravam à noite, era-lhes mais fácil desaparecer, em caso de
alarme, ao abrigo da escuridão.

- Viste como a rua se chama?- perguntou Werner a meia voz,


- vi. Lewinsky ria silenciosamente. Era a Hitlerstrasse.
- Este santo nome não a livrou das bombas, Transportavam unia
viga. As costas dos seus casacos zebrados estavam negras de
suor. Encontraram GoIdstein no sítio onde eram reunidos os
materiais retirados. Apresentara-se corno voluntário, apesar
da sua fraqueza cardíaca, e nem Lewinsky nem Werner tinham
feito objecção - ele fazia parte dos prisioneiros em perigo.

Estava pálido e ofegante.


- Cheira mal aqui. A cadáver. E não a cadáver fresco. Deve
ainda por cá haver corpos antigos de-baixo.

- É provável. Eles percebiam disto. Eram todos especialistas'


em cheiro de cadá-

ver.

G. Clásdeos, do Séc, XX 25 - 13

193

ERICH-MÁRIA REMARQUE

Amontoavam pedras ao longo duma parede, A caliça era


transportada em carrinhos. Atrás deles, do outro lado da rua,
havia uma mercearia cujas montras, apesar de despedaçadas, se
apresentavam outra vez guarnecidas de caixas. Por detrás delas
um homem de bigode observava o que se passava na rua. Possuía
o tipo dos manifestantes que, em 1933, desfilavam pelas ruas,
com cartazes convidando a população a não comprar nada nas
lojas dos judeus. Dir-se-ia que a sua cabeça estava cortada e
repousava acima do fundo da montra, como a das pessoas que se.
fazem fotografar nas feiras com uni corpo de aviador pintado
na tela do fundo. A sua cabeça encimava. unia piramide de
caixas vazias que lhe calhava perfeitamente,

Sob o arco durna porta que ficara intacta brincavam crianças.


Perto delas, uma mulher de blusa vermelha observava os
prisioneiros. Alguns cães saíram de repente da porta e,
atravessando a rua, dispersarani-se entre os prisioneiros.
Farejavani-lhes; as calças, e um deles, alegremente erguido
nas patas traseiras, pousou as da frente no peito do 71O5. O
kapo, a quem incumbia a vigilância desta secção, não sabia que
atitude tomar. Este cão era uni cão civil. Todavia, era
inconveniente fazer demonstrações de amizade a um preso,
sobretudo na presença dos SS. O 71O5 estava ainda mais
perplexo. Decidiu adoptar a única atitude não punível: fez
como se o cão não existisse. Mas o cão seguia-o, tomado duma
súbita amizade por ele. O 71O5 curvou-se e pôs-se a trabalhar
com dobrado ardor. Estava inquieto; este cão podia perdê-lo.

- Sai daqui, saco de pulgas! - gritou, por fim o kapo,


levantando um pau. . Tomara uma decisão. Era sempre preferivel
mostrar-se impiedoso na presença dos SS. Mas o cão não lhe deu
atenção; continuava a Sua dança amigável em redor do 71O5. Era
um grande perdigueiro alemão, castanho e branco.

O ka ,po começou a atirar-lhe pedras. A primeira atingiu o


71O5 no joelho; só a terceira apanhou o cão. O animal deu uni
salto para o lado, com uni ganido, e precipitou-se para o
kapo, ladrando. Este levantou o pau.

- Desapareces daqui ou não, carcaça?


O cão evitou-o, mas sem recuar. Contornou habilmente o kapo e
atirou-se a ele. O homenzinho deu unia cambalhota sobre a
caliça e achou-se imediatamente debaixo das patas do animal.

- Socorro! - gritou, sem ousar mexer-se. Os SS riam a


bandeiras despregadas. A mulher da blusa vermelha acorreu,
assobiando ao cão.
- Aqui! Aqui já! Oh, este cão! É insuportável! Arrastou-o pela
coleira para a "ta.

194

A CENTELHA DA VIDA

Fugiu - explicava ela, atemorizada, ao SS mais próximo. -

Bem viu que ele me escapou. Vai apanhar com o chicote.

O SS ria.
- Não vale a pena ralar-se! Ele podia arrancar-lhe uni bife
corri todo o sossego!

A mulher sorriu de leve. Tomara o kapo por um SS


- Obrigada! Muito obrigada! Vou atá-lo jà@ Mas pôs-se logo a
acariciar o animal. O kapo sacudia-se do pó. Os SS
continuavaiu a rir,

- Devias tê-lo mordido! - grito-Li uni deles.


O kapo não respondeu. Era o que havia sempre de melhor a
fazer. Continuou a limpar-se e depois avancou, furioso, para
os presos. O
71O5 esforçava-se por libertar uma bacia de W. C. dum montão
de pedras e caliça.

- Mais depressa, preguiçoso! - rosnou o kapo, dando-lhe um


pontapé.

1 O 71O5 canibaleou, mas agarrou-se à tampa da bacia, Todos os


presos observavam a cena disfarçadarnente. O SS que falara com
a mulher aproximava-se agora a passos lentos. Apanhando o kapo
desprevenido, atirou-lhe um pontapé ao traseiro.

- Deixa-o! Ele não tem culpa! Por que não vais antes morder o
cao ,coruja velha?

O kapo virou-se estupefacto. No seu rosto a cólera dera lugar,


subitamente, a unia careta servil.

- Está bem, está bem. Eu só queria...


- Raspa-te! Recebeu no ventre um segundo pontapé e afastou-se,
depois de se ter posto em sentido. O SS retirou-se devagar.

- Viste? - murmurou Lewinsky.


- Milagre e prodígio - respondeu Werner. - Mas talvez seja por
causa dos civis.

Disfarçadainente, os presos continuavam a observar o passeio


em frente, enquanto do passeio em frente os observavam, a
eles. Os dois passeios estavam separados apenas por alguns
metros, e, contudo, pertenciam a dois uníversos sem contacto
entre si. A maior parte dos presos nunca tinham visto a cidade
de tão perto desde o seu internamento. Tinham, de novo, o
espectáculo das pessoas ocupadas nos seus afazeres habituais.
Tinhara a sensação,,de obsérvar habitantes do planeta Marte.

Uma criada de avental azul com bolas brancas limpava as


vidraças ainda intactas duma casa. Tinha arregaçado as mangas
e cantava en-

-lia senhora idosa, de cabelos brancos, aparecia quanto


trabalhava. Ui à janela. o sol cala-lhe sobre o rosto, e
distingluiani-se as cortírias

195

ERICH-MARIA REMARQUE

abertas e alguns retratos nas paredes do quarto. Havia uma


farmácia à esquina da rua. O faniiacêutíco bocejava no vão da
porta. Unia rapariga de capa de leopardo atravessou a rua.
Trazia luvas e sapatos verdes. Os SS tinham-na deixado passar
e ela saltava destramente pelo meio do entulho. Muitos
prisioneiros não viam mulheres há anos. Todos a olharam, mas
só Lewinsky,,;e atreveu a segui-Ia corri os olhos.

- Cuidado - disse Werner. - Ajuda--l-ne aqui. Apontava um


bocado de pano que saía da caliça.
- Há aqui alguém. Começaram a afastar as pedras. Um rosto
terrivelmente desfigurado apareceu. A barba estava suja de
sangue e de gesso. Uma das mãos cobria-a em parte. O morto
erguera-a, sem dúvida, até ao rosto, num gesto de protecção,
quando a casa desabou.

Os SS lançaram alguns gracejos maliciosos à rapariga da capa


de leopardo. Ela ria, requebrando-se. Foi nesse momento que as
sereias corÉleçaram a uivar. O farmacêutico da esquina
desapareceu no interior da loja. A rapariga da capa de
leopardo hesitou, depois retrocedeu rapidamente. Tropeçou mim
monte de pedras e levantou-se com as meias rasgadas e as luvas
todas brancas de poeira. Os presos tinham cessado o trabalho.

- Não se mexam! O primeiro que se mexer é abatido! Os SS


acorriam das duas extremidades da rua.
- Reúnam-se por grupos! Em frente, marche! Os presos não
sabiam a que ordens obedecer. Por fim, os SS reuniram-nos em
rebanho. Começaram a soar tiros. Os Scbarfuehmrs discutiam as
disposições a tomar. Apenas o primeiro sinal de alei-ta fora
dado, mas todos os olhos se levantavam inquietos para o céu
radioso, que parecia mais límpido e deserto do que antes.

O outro lado da rua animara-se. As pessoas que ainda não


tinham sido vistas saíam das casas. Crianças gritavam. O
merceeiro dos bigodes irrompeu da loja e começou a escalar as
ruínas como uma larva gorda. Unia mulher embrulhada num xaile
de quadrados transportava, corri cuidado, unia gaiola onde se
agitava um papagaio. A idosa senhora dos cabelos brancos
desaparecera. A criadinha, de saias levantadas, saiu a correr.
Viani-se-lhe brilhar -as coxas brancas entre as meias pretas e
as cuecas azul-claras. Lewinsky seguia-a com os olhos. Atrás
dela, uma solteirona magra subia pelo entulho como uma cabra.
Os papéis estavam invertidos. A placidez do universo livre
desaparecera subitamente; os seus habitantes precipitavani-se,
assustados, para fora das casas, ni-tina corrida louca para os
abrigos. No outro lado da rua, os presos esperavam,
espectadores silenciosos e imóveis.
Um dos Scha@Jitebrenç pareceu aperceber-se disso.
- Meia volta à direita! - ordenou.

196

A CENTELHA DA VIDA

Os presos estavam agora virados para as ruínas. o sol


inundava-os
4~ luz inipiedosa. Numa das casas destruídas tinha sido
desimpeOída a entrada da cave. Viam-se os degraus da escada,
uma porta de @_eritrada, um corredor sombrio e, no outro lado,
um raio de luz que p

inha da outra saída. rov

Os Scba@fÚebrers estavam indecisos, Não sabiam o que fazer com


os presos. Nenhum pensava em fazê-los descer aos abrigos,
aliás já inteiramente ocupados pelos civis. Mas os SS não
desejavam perma- ,í@@'necer ali expostos. Alguns foram
inspeccionar as casas. Descobriram unia cave de betão.

As sereias mudaram de som. Os SS não hesitararn mais em correr


para a cave. Deixaram duas sentinelas à entrada da casa e duas
outras em cada extremidade da ri-ia.

Kapos!Chefes de secção! Estejam atentos! Se alguém se mexer,


atirem!

Os presos cerravam os dentes. Esperavam, com os olhos fitos


nas paredes em frente. Não lhes tinham dito que se deitassem,
de pé eram mais fáceis de vigiar. Esperavani silenciosos,
reunidos em rebanho pelos kapos e pelos chefes de secção. o
perdigueiro percorria as fileiras. Tinha fugido e procurava o
71O5. Quando o encontrou, pôs---de pé e lambeu-lhe a cara.

Durante um momento o silêncio foi completo. E, nesta atmosfera


enervante onde nem um sopro passava, elevaram--se, de súbito,
as notas de uni piano. Ressoavam nitidas e claras, e, na
terrível tensão da espera, Werner reconheceu imediatamente a
melodia: era o coro dos prisioneiros do Fídéfio. Não podia ser
a rádio, pois as emissões eram interrompidas em caso de
alerta; tinha de ser urna graforiola escondida, ou, então,
alguém que tocava piano diante da janela,ab. erta.

O barulho recomeçou. Weber esforçou-se por se concentrar nos


poucos acordes que pudera ouvir. Cerrando os niaxilares,
tentava prosseguir a melodia de memória. Queria desviar o
pensamento das bonibas e da morte. Se conseguisse encontrar a
continuação, estava salvo. Fechou os olhos e sentiu, atrás da
testa, os nós dolorosos do es-

forço mental. Não queria morrer. Nào.queria esta morte


estúpida. Não devia sequer pensar nela. Tinha de encontrar a
melodia, o canto desses prisioneiros libertados. Cerrou os
punhos e, procurou as notas do piano perdidas na tempestade
metálica do medo.

As primeiras explosões sacudiram a cidade. O assol-)ío das


bombas cobriu o uivo das sereias. O solo tremeu. Uma comija
soltou-se lentamente duma parede.

Vários prisioneiros tinham-seatirado ao chão, de bruços,


Acorreram chefes de secção.

- De pé! De pé!

197

ERICH-MARIA REMARQUE

Não se lhes ouviam os gritos. Sacudiam os homens deitados.


Goldstein viu o crânio de uni dos homens abrir-se e o sangue
bor h-ulhar. O seu vizinho agarrou o ventre com ambas as mãos
e tombou para a frente. Não eram as bombas; os SS disparavam,
mas os tiros não

se ouviam.

- A cave,! - gritou Goldstein a Werner no meio do estrépito. -

Ali, a cave! Eles não nos perseguirão!

Examinavam a entrada, que parecia aumentar. A obscuridade


fresca que a enchia era a salvação. Ela aspírava-os corno um
turbilhão negro e irresistível. Os presos olhavam como
hipnotizados. Uni mo-

vimento percorreu as fileiras. Wemer reteve GoIdstein.

- Não! Sem tirar os olhos da entr 'ada da cave, gritou,


através do ruído:
- Não! Não vás. Toda a gente seria ftizilada. Fica sossegado.
O rosto cinzento de Goldstein virou-se para ele. os seus olhos
pareciam lascas de ardósia delgadas e brilhantes. O esforço
obrigava-o a fazer caretas.

- Não é para nos abrigarmos!-- gritou. - É para fugirmos! Há


ou-

tra saída no fim.

Wemer sentiu um choque no estômago. Pôs-se subitamente a

tremer. Não eram as suas mãos nem os seus joelhos que tremiam;
eram

as suas artérias que tremiam no mais profundo de si mesmo. Era


todo o seu sangue que tremia. Sabia bem que unia evasão tinha
poucas probabilidades de êxito; mas s6 este pensamento era uma
tentação bastante: fugir, roubar roupas numa casa qualquer e
desaparecer na confusão.

- Não! Tinha querido murmurar esta recusa, mas gritou-a no


meio do en-

surdecimento geral.

- Não! Não se dirigia apenas a Goldstein, era também a si


mesmo que falava.

- Não! já não pode ser! É demasiado tarde! Sabia que seria uma
loucura. Tudo o que tinham podido alcançar até aí seria
anulado, camaradas seus pagariam com a vida, dez por cada
preso evadido, uni massacre, novo rigores no campo- e,
entretanto, a entrada escancarada convidava à fuga.

- Não! - gritou Werner, agarrando-se a Goldstein, sem saber se


ele o estava segurando ou se se agarrava a ele.

"O sol!"'pensava Lewirisky. Este maldito sol que denunciava


impiedos@imente as coisas e os homens. Por que não era
possível abatê-lo a tiros de canhão? Ali estavam, expostos ao
bombardeio dos aviões,

198

A CENTELHA DA VIDA

um gigantesco projector. E nem uma nuvem, nem a mais pequena


em! O suor escorria-lhe por todo o corpo. @'''As paredes
tremeram. Um abalo formidável sacudiu a rua e viu-se lanço de
parede, com unia janela despedaçada, tombar tentae. A parede
parecia irreal, quase inofensiva, quando desabou os presos. O
lanço devia ter uns cinco metros de extensão. Apeas se via
agora o preso sobre quem tinha caído a moldura vazia da

ela. Ele olhava em redor, sem compreender como se encontrava


terrado até à cintura e, contudo, são e salvo, Duas pernas que
emeroam das ruinas, perto dele, agitaram-se convulsivamente
antes de se

bilizarem por completo.

A tensão diminuía lentamente. O tomo aliviou o seu aperto,


quase perceptivelmente ao principio. Um raio de consciência
filtrou-se ,cérebros libertados. A tempestade continuava
enfurecida, mas to-

tinham compreendido que o perigo se afastara. Os SS saíram da


cave. Werrier olhou a parede que se erguia de novo nte de si.
Era uma parede vulgar onde tinham desobstruído a

da duma cave, e não já aquela boca irónica cheia de obscuras


romessas, Os seus olhos enoontramm outra vez, aos pés, a
cabeça arbuda do morto, mais adiante as duas pernas do seu
vizinho sepuldo. E as notas do piano ouviam-se novamente
através do ribombar ue diminuía. Apertou os lábios com força.

Ressoaram ordens. O preso salvo pela moldura da janela


libertou-se do entulho. Tinha uma entorse no pé direito.
Coxeava, sem se atrever a deixar-se cair. Um dos SS acorreu.

-.Depressa! Tirem-nos cá para fora! Os presos começaram a


afastar as pedras e a caliça, Trabalhavam rapidamente com as
mãos, as pás e as enxadas. Depressa libertaram os camaradas.
Eram quatro. Três deles estavam mortos. O quarto ainda vivia.
E triraram-no do seu buraco. Wemer procurava auxilio. Viu a
mulher da blusa vermelha sair do portal. Ela não descera ao
abrigo., Transportava com cuidado uma toalha e uma bacia de
água. Sem se preocupar com os SS, ajoelhou-se junto do ferido.
Os SS olhavam-na, indecisos, mas nada disseram. Ela tentou
lavar o rosto do ferido. Este cuspia uma espuma sangrenta, que
a mulher limpava. Um dos SS pôs- @-se a rir. Tinha ainda um
rosto de criança, corri o nariz arrebitado e as pestanas tão
daras que os seus olhos pálidos pareciam nus.
A D. C. A. cessou o fogo. No silêncio só ficou a ouvir-se a
música do piano. Werner podia agora determínar-lhe a origem.
Vinha duma janela do primeiro andar, por cima da mercearia.
Sentado a um piano

199

ERICH-MARIA REMARQUE

vertical, uni homem muito pálido prosseguia o coro dos


prisioneiros. Os SS riam. Um deles bateu com um, dedo na
testa. Werner perguntava a si mesmo se o pianista estivera
tocando para esquecer o bombardeamento ou se teria uma
intenção mais determinada. Tomou a decisão de pensar que se
tratava duma mensagem dirigida aos presos. Tinha como
princípio adoptar sempre a hipótese mais favorável quando isso
não implicava risco a correr. Este princípio ajudava-o a
viver.

Acorria gente. Os SS tomaram um ar marcial. As ordens


cruzavani-se. Os presos puseran-i-se em linha. O responsável
da coluna ordenou a um SS que ficasse junto dos mortos e dos
feridos; depois deu ordem aos presos para se dirigirem ao fim
da rua, em passo de corrida. A última explosão atingira um
abrigo. Os presos deviam desobstruir-lhe a entrada.

A cratera cheirava a enxofre e a ácido. Árvores meio


derrubadas torciam as suas raízes nas margens da cratera. A
grade do relvado estava arrancada e levantada para o céu. A
bomba não atingira directamente o abrigo, mas tinha-o afundado
em parte, soterrando-o.

Durante mais de duas horas os presos trabalharam para


desobstruir a entrada. Degrau a degrau, libertaram a escada.
Trabalhavam tão depressa quanto podiam e com tanto ardor como
se se tratasse de camaradas seus.

Foi precisa ainda uma hora para que a entrada ficasse livre.
Há muito tempo já que se ouviam gritos e pancadas. O abrigo
devia receber ar por um orifício que teria ficado livre. Os
clamores aumentaram quando foi feito o primeiro buraco. Uma
cabeça surgiu, aos gritos, enquanto duas mãos escavavam,
desajeitadamente, a terra. Parecia uma gigantesca toupeira
tentando abrir caminho.

---Cuidado! - gritou um dos chefes de secção. - Pode haver


ainda desabamentos!
As mãos continuavam o seu trabalho. Depois a cabeça foi
violentamente puxada para,trás e uma outra cabeça apareceu,
gritando também. Desapareceu por sua vez. Lá dentro, pessoas
tomadas de pânico lutavam para se aproximarem do,buraco
luminoso.

- Enipurreiii-nos! Vai haver feridos! É preciso alargar a


passagem! Os salvadores esforçarani-se por repelir as cabeças
para o interior. Morderani~lhes os dedos. Com picaretas
atacaram o cimento. Trabalhavam como se disso dependesse a sua
própria vida. Depressa a abertura ficou bastante larga para o
primeiro sair. Era um homem corpulento. LewInsky reconheceu
imediatamente o homem de bigode da mercearia. Conseguira
pôrm-se em primeiro lugar e trabalhava, ofegante, para
arrancar-se do buraco. O ventre ficou-lhe entalado. Lá

2OO

A CENTELHA DA VIDA

nde a obscuridade voltara a ser completa, os gritos


redoPuxavam-no pelas pernas para o fazerem cair. corro! -
gritou ele numa voz aguda e sibilante. - Socorro! me! Quero
sair daqui! Eu também quero sair! Dou-lhes... Us olhinhos
pretos saltavani-lhe das órbitas e o seu bigode tremia.
4ocorro, meus amigos! Peço-lhes!

ia uma foca caída na arinadilha e que tivesse adquirido o uso


lavra,

rrarani-no por debaixo.dos braços e arrancaram-no àquela o.


Ele caiu, levantou-se e deitou a fugir sem uma palavra. Fem
uni buraco com unia tábua para poderem alargá-lo sem ferir
upantes do abrigo. Depois afastarai-n-se. s que estavam ilesos
saíram um a uni. Mulheres, crianças, ris; uns pálidos,
apressados, todos encharcados de suor, salvos tún-iulo; outros
gritando, praguejando, sacudidos por soluços éricos, e, por
fim, lentamente e em silêncio, os que tinham conser-

o o sangue-frio. Desfilavam diante dos prisioneiros.

Meus amigos - murmurou Goldstein. - Ouviram? Meus ami- ,@,$ps,


peço-vos! Era a nós que ele se dirigiaLewinsky acenou a
cabeça.
Dou-lhes... (imitava a foca) absolutamente nada - concluiu. -

$afou-se como um macaco velho! Olhou para GoIdstein,.


- Que tens tu? GoIdstein. agarrou-se a ele, sufocado.
- Em vez de nos libertarmos - murinurou -, fomos nós que os
libertámos.

Teve um leve uni riso e tombou para o chão. Anipararani-no


para lhe amortecer a queda.

Depois esperaram que o abrigo ficasse vazio. Ali estavam,


prisioneiros há anos, abrindo alas diante daqueles
prisioneiros dalgumas horas que fugiam uns atrás dos o~s.
Lewinsky leinbrou-se dum acontecimento semelhante - o dia em
que os presos se tinham cruzado na estrada corri a coluna de
refugiados, Viu ainda' sair a criadinha do vestido azul de
bolas brancas. Ela sacudiu a roupa e dirígíti-lhe um sorriso,
Um homem muito idoso saiu entre os, últimos.
O seu rosto estava sulcado por longas rugas que o faziam
assemelhar-se a uni cão são@-beniardo. Voltou-se para os
presos:

- Agradeço-lhes - disse. - Lá dentro há ainda alguns que estão


enterrados.

2O1

ERICH-MARIA REMARQUE

Afastou-se lentamente, num passo pouco firme, mas cheio de


dignidade. Os presos desceram ao abrigo.

Regressavam ao campo de concentração. Estavam extenuados.


Transportavam os seus feridos e os seus inortos. O prisioneiro
que tinham desenterrado morrera. Uni crepúsculo magnifico
incendiava o céu e o ar estava tão puro que parecia que o
tempo parara e que, durante urna hora, não havia ruínas, não
havia morte,

- Somos uns belos heróis - disse Goldstein, que se recompusera


do desmaio. - E rebentamos n6s por esta gente.

Werner olhou-o.
- Não deves vir connosco trabalhar no desentulho. É uma
loucura. Estafas-te mesmo sem fazeres nada.
- - Que queres tu que eu faça? Tenho de esperar
tranquilamente que os SS me venham buscar, não?

- Vamos arranjar-te outra coisa. Goldsteín teve um sorriso


fatigado.
- Começo a estar maduro para o pequeno campo, hem? Werner não
mostrou surpresa.
- E por que não? É urasitio seguro e nós podemos ter
necessidade de um dos nossos lá.

O kapo que dera o pontapé ao 71O5 aproximou-se deste. Caminhou


durante um momento ao lado dele, meteu-lhe qualquer coisa na
mão e depois deixou-se distanciar. O 71O5 abriu a mão,

- Um cigarro - disse, estupefacto.


- As ruínas estão a fazer efeito - declarou Lewinsky. - Eles
pensam no futuro.

Werner acenou a cabeça.


- Cornecam. a ter medo. Olha para o kgpo. Talvez ele nos possa
ser útil.

Caminhava na doce luz da tarde.


- Unia cidade - disse Muenzer depois de uni silêncio. - Seres
livres. A dois metros, de nós. Tem-se a impressão de não se
estar já separado do resto do,mundo.

O 71O5 levantou a cabeça.


- Gostava de saber o que eles pensam de nós!
- Que queres tu que eles pensem? Sabe Deus quantos ignoram até
a nossa existência! Eles próprios não têm o aspecto de muito
felizes.

- Pela menos agora - disse o 71O5. Ninguém respondeu. Subiam a


encosta que conduzia ao campo.
- Gostava de ter trazido o cão - disse o 71O5.

2O2

A CENTELHA DA VIDA

Um belo bocado - replicou Muenzer. - Quinze' quilos de carne,


pelo menos,

Não era para o comer. Era simplesmente para o ter comigo.

O carro teve de parar, Todas as ruas estavam obstruídas.


- Volta, Alfred - disse Neubauer. - Espera-me em casa. Desceu
e prosseguiu o caminho a pé. Escalou unia parede que desabam
até ao meio da rua. O resto da casa continuava de pé. A parede
tinha sido arrancada como uma cortina de teatro, descobrindo
todos os quartos da casa. A escada não subia de um andar ao
outro. No primeiro, uni quarto de dormir de acaju estava
perfeitamente intacto. As duas camas estavam bem paralelas uma
à outra. Havia apenas unia cadeira tombada e um espelho
partido. No andar superior, o cano da água da cozinha tinha
sido arrancado. A água escorria pelo soalho, para cair em
seguida como unia cascata limpida. O divã de pelúcia vermelha
da sala não se deslocara. Molduras douradas pendiam de través
na parede florida. Um homem, com o rosto salpicado de sangue,
estava voltado para o lado da parede arrancada e olhava o
vácuo com um ar estúpido. Atrás dele agitava~se uma mulher em
volta de malas que ia enchendo de roupa, almofadas e bíbelots.

Nexibauer sentiu as pedras mexerem~se debaixo dos pés. Recuou.


As pedras continuavam a mover-se. Agachou-se e põs~se a tirar
o entulho e os blocos de estuque. Uma mão e um antebraço,
cobertos de poeira cinzenta, emergiram como uma serpente
fatigada.

- Ajudeiu-mei - gritou Neubauer. - Está aqui enterrada uma


pessoa!

Ninguém o ouvia. Olhou em redor. A rua estava deserta.


- Socorro! - gritou para o homem do segundo andar.
- Este limpava a cara sem responder. Neubauer afastou alguns
tijolos amontoados. Descobriu cabelos. Agarrou-os com arribas
as mãos e puxou-<:>s com toda a forca. Em vão.

- Alfred! - gritou.
O carro tinha desaparecido.
- Porcos! - berrou, de súbito, furioso. Nunca
aparecem quando s o precisos.

Recomeçou a trabalhar. o suor escorria-lhe pelo colarinho do i


iniforme. Perdera o hábito do esforço físico, -A Policia.,
pensava. "O serviço de socorro, onde se esconderão esses
mâdraços?-

Uni bloco deslocou-se e Neuhauer viu o que fora, alguns


mínutos antes, um rosto l-iLii@ixanc>. Não era mais do que uma
massa achatada e suja. O nariz fora esmagado, os olhos tinham
desaparecido ciffientados por uma poeira cinzenta, não havia
já sinal de lábios e a bóéa
2O3

ERICH-MARIA REMARQUE

estava obstruida por unia mistura de gesso e dentes


arrancados. Cabelos ensanguentados cobriam o resto da cara.

Neubauer teve um soluço e pôs-se a vomitar. Vomitou, ao lado


da face esmagada, uma porção de couve, salsichas, batatas,
pudim de arroz e café. Procurou apoiar-se em qualquer parte,
mas, não encon-

trando nada, virou-se para continuar a vomitar.

- Que se passa aqui? - perguntou alguém atrás dele. Um


desconhecido, que não ouvira aproximar-se, avançava com

uma pá na mão. Neubauer apontou-lhe a cabeça que emergia do


entulho.

- Está alguém enterrado? A cabeça mexeu-se um pouco. Um vago


estremecimento percorreu a crosta cinzenta do rosto. Neubauer
teve um novo soluço. Decididamente, comera demasiado ao
almoço.

Mas ele está a asfixiar-se! - exclainou o desconhecido,


acorrendo.

Pôs--se a raspar a face cinzenta para destapar o nariz e meteu


os dedos no lugar da boca.

O sangue jorrou bruscamente. A agonia animou debilmente a


máscara achatada. A boca soltava agora um estertor. Os dedos
fechavam-se convulsivamente sobre o pó e a cabeça cega tremia.
Um último estremecimento a percorreu e imobilizou-se. O
desconhecido levantou-se e foi limpar as mãos a uma cortina de
seda amarela que estava ligada a uma janela.

- Morto - disse. - Há mais alguns aí, debaixo?


- Não sei
- Não é da c asa?
- Não.
O homem fez uni movimento na direcção da cabeça:
- Era um parente, um amigo? Olhou a couve, as salsichas, o
arroz e as batatas, depois olhou outra vez para Neubauer e
encolheu os ombros. Não manifestava uni respeito excessivo
perante este oficial superior SS. Na verdade, o almoço era
razoavelmente copioso para estes tempos de penúria. Neubauer
sentiu-se corar. Deu bruscamente meia volta e desceu pelas
ruínas.

Foí-lhe precisa quase unia hora para chegar à Friedrichsallee.


A avenida estava intacta. Cheio de esperança, meteu-se por
ela. "Se as casas da esquina estiverem intactas, a minha loja
também terá sido poupada", pensou, sempre um pouco
supersticioso. As casas estavam intactas. As seguintes,
igualmente. Recobrou coragem e apressou o

2O4

A CENTELHA DA VIDA

s . -Recornecemos", disse consigo mesmo. "Se as duas primeiras


=S da pr6xinia rua ainda estiverem de pé, isso quer dizer que
esca-

unia vez mais." Os presságios foram outra vez favoráveis.


Apenas

a estava completamente destruída. Neuballer cuspiu. Tia


garganta seca. Confiado, virou para a Herniann Goeringstrasse
estacou.

As bombas haviam feito o seu trabalho. Os andares superiores


do
4rmazém tinham ruído. A comija angular desaparecera. Fora pro-

tada contra unia loja de antiguidades que ocupava o outro lado


da a. Em compensação, a deflagração lançara para o meio da rua
uni

de bronze. O sábio estava agora sentado, sozinho, numa pedra


lta do pavimento. Com as mãos cruzadas sobre o ventre, olhava
com

sorriso tranquilo todas aquelas ruínas ocidentais que se


estendiam @té aos muros calcinados da estação, como se
esperasse a multidão de espíritos asiáticos que o levariam
para a sua seiva natal, cujas leis, sem @ubterfúgios, exigiam
que se matasse para viver, e não que se vivesse
ra matar. Neubauer teve, no mesmo instante, a sensação de que
fora vilMente enganado pelo destino. Todas as ruas adjacentes
tinham dado presságios favoráveis - e ali estava o que ele
agora encontrava! Urna decepção pueril acabrunhava~o. Pouco
lhe faltou para chorar. Fazerem-lhe isto, a ele! Algumas casas
estavam ainda intactas. -Por que não o estava também a sua?",
pensou. -Por que o escolhera a sorte logo a ele, patriota
digno, esposo fiei e bom pai de família?"

Contornou a cratera. Todas as montras estavam pulverizadas.


Finos estilhaços de vidro cobriam o passeio e rangiam debaixo
dos pés. Chegou à secção "última moda para a mulher alemã". A
tabuleta pendia para o chão. Curvou~se para entrar lá dentro.
O fumo atacou-lhe a garganta, mas não viu fogo em parte
alguma. Os manequins jaziam uns sobre os outros. Parecia que
uma horda de selvagens acabara de violá-los. Alguns, deitados
de costas, tinham as salas levantadas, as pernas no ar; outros
estavam de bruços, com os braços partidos, oferecendo as
nádegas de cera. Um deles, completamente, despido, apenas
conservava as luvas; num canto, uma mulher só com unia perna
conservava o chapéu com o respectivo véu. E todos, qualquer
que fosse a sua posição, tinham uni sorriso discreto,
horrívelmente obsceno.

-4Deniolido", pensava Neubauer, "está tudo demolido, está tudo


perdido. Que ia dizer Selma? Não havia justiça.- Deu volta à
casa, enterrando-se até aos tornozelos no entulho e no vidro.
Chegado à esquina, descobriu um vulto que tentava fugir,
curvado para a frente.

- Alto! - gritou. - Alto ou disparo!


O vulto parou. Era uni homom pequeno e fraco.

2O5

ERICH-MARIA REMARQUE

Aproxinie-se!
O homem avançou, assustado. Neubauer só o reconheceu quando
ele chegou a alguns passos de si. Era o antigo proprietário da
loja.

- Blank - disse espantado. - É você?


- Sim, @Ierr Obei-stui-inban;ifuebrer.
- Que faz aqui?
- Desculpe-me, Hei-r Obei-sturnibannfuebrer. Tu... eu...
- Explique-se claramente, vamos! Que procurava aqui? Neubauer,
gracas ao un'lfoniie, recobrara depressa toda a sua
autoridade.

Eu... eu... Eu passava para... Para quê? Blank fez uni vago
gesto para as ruínas.
- Para gozar o espectáculo, hem? Blank teve um sobressalto.
- De modo algum, de modo algum, somente... é pena!
- Decerto, é pena. Agora pode rir-se!
- Eu não rio, eu não rio, Hei-r Obersturmbannfuebrer! Neubauer
observava-o. Bland, amedrontado, mantinha-se diante dele, com
os braços colados ao corpo.

- Você livra-se disto em melhores condições que eu - disse com


amargura Neubauer, depois dum silêncio. - Foi ou não foi bem
pago?

- Certamente, muito bem pago, Herr Obersturmbannfuebrer.


- Você ficou com bom dinheiro e eu com um montão de ruínas.
- É verdade, HerrObersturmbannfuebrer. Estou desolado,
absolutamente desolado. O acontecimento...

Neubauer não o ouvia. Pensava sinceramente que Blank tinha


feito um negócio de primeira ordem, Durante um instante,
considerou a ideia de vender-lhe por bom dinheiro o armazém
destruído. Mas isso era contrário às ordens do Partido. Além
disso, o armazém, mesmo destruído, valia vinte vezes o que
dera a Blank por ele. Sem falar do terreno. Pagara-lhe cinco
mil marcos. O aluguer anual representava vinte mil marcos só
para si. Vinte mil marcos! Agora perdidos!

Que tem? Por que está a agitar os braços? Por nada, Heff
Obersturmbanr@fúehrer. Dei uma queda há anos. Blank suava de
medo. Gotas grossas rolavani-lhe da testa para os olhos. O
olho esquerdo piscava menos que o direito. Do lado esquerdo
tinha uni olho de vidro. Receava que Neubauer interpretasse
mal a sua tremura nervosa. Engano semelhante custara-lhe caro
anos antes.

Mas Neubauer não dava atenção; naquele momento não pensava no


interrogatório a que Weber submetera Blank antes da compra da
loja. Olhava as ruínas que o rodeavam.

2O6

A CENTELHA DA VIDA

Teve mais faro que eu - disse. - Naquela altura não deu, Wvez,
bem conta disso, mas hoje teria perdido tudo, então estaria,
,ico está, com urna soma intacta guardada.

mo Blank não se atrevia a enxugar o suor.

Certamente, Herr Oberstun7ibannfuebrer - murmurou, Neubauer


olhou--o de súbito. Uma ideia acabava de lhe atravessar
O espírito. Durante as últimas semanas ela não deixara de se
lhe apresentar. Viera-lhe pela primeira vez no dia em que o
jornal de Mellen ,,tinha sido destruído; expulsara-a, mas ela
regressara como unia mos- @a teimosa. Seria realmente possível
que homens como Blank voltasr à superficie? A personagem
que tinha diante dos olhos não tinha em @.'tara para tanto,
tal era o lastimoso efeito que produzira. Mas as ruínas que o
rodeavam não eram mais brilhantes. Não anunciavam a vitória,
@.e muito menos a ele, a quem pertenciam. Selma e as suas
lamúrias vie- ,:@'ram-lhe à memória. E que dizer das notIcias!
Os russos estavam às portas de Berlini, não se podia
ignorá-lo. O Rur estava cercado, disso também não havia
dúvidas.

- Diga-me, Blank - disse com ar afável. - Não é verdade que o,


tratei correctamente?

- Perfeitamente! Perfeitamente!
- Está pronto a concordar, não?
- Absolutamente, Hérr Obmturmbani@fuebrvr, absolutamente!
- Com muita humanidade.
- Muita, Herr Obenturmbannfuebrer, e estou-lhe infinitamente
grato.

- Nesse caso, trate de não se esquecer! Corri todos os riscos


. por sua causa. Sempre queria saber o que faz ainda aqui na
cidade. "Deveria estar num campo de concentração há muito
tempo", esteve quase a acrescentar.

- Eu... eu... Blank estava pálido. Perguntava a si mesmo onde


queria Neubauer chegar. Sabia por experiência que uni nazi
amável tem sempre preparada uma brincadeira particularinente
atroz. Weber fizera-lhe dis~ cursos semelhantes antes de lhe
vazar o olho. Maldizia-se por ter cedido à tentação de
abandonar o buraco onde se escondia, para ir ver a sua antiga
loja.

Neubauer, que notava a sua perturbação, decidiu aproveitar a


ocasião.
- Está livre, Blank, e sabe bem a quem o deve, não é verdade?
_Sei-o perfeitarnerite,
HerrOberçtttrnibaitiijúehi-ei-.Agradeçc>-Ihe, agradeço-lhe
muito.

Blank nada devia a Neubauer. Sabia-o, e NeubaiLier tão bem


como ele. Mas tudo se confundia diante destes escombros
fumegantes. Não havia já a certeza de nada. Tinha de se prever
tudo. Neuhauer mal

2O7

ERICH-MARIA REMARQUE

podia concebê-lo, tuas quem sabe se não viria a ter, um dia,


necessídade deste pequeno judeu? Tirou uni Guarda Alemã do
bolso.

- Tome isto, Blank. Qualidade extra. Atravessámos momentos


dificeis. Não esqueça nunca até que ponto eu o protegi.

Biank não fumava. Depois das experiências que Weber fizera


nele com cigarros acesos precisara de anos para não ter uma
crise de nervos ao sentir,o simples cheiro do fumo de tabaco.
Contudo, não se

atreveu a recusar.

- Muito obrigado, Herr Obmttinnbannfuehrer, é muito amável,


Afastou-se prudentemente com o charuto na mão. Neubauer olhou
em, redor. Ninguém o vira conversar com o judeu, Melhor assim.
Esqueceu Imediatamente Blank e coi-neçou a fazer contas.
Depois teve uni ataque de tosse. O fumo tornara---se mais
espesso. Correu para a outra porta da loja. Um dos armários
ardia. Recuou, gritando:

- Blank! Blank! E não vendo ninguém:


- Fogo!Fogo!
O bairro estava deserto. A cidade ardia por toda a parte e os
bombeiros há muito já que não davam vencimento aos incêndios,
Ncubauer voltou ao armário ameaçado. Atirou-se a ele, agarrou
uni pacote de roupas e arrastou-o para fora. Não pôde fazer
outra víageni. Uma peça de renda inflamoti-se-lhe nas mãos. As
chamas lambiam os artigos de rayonne. Saiu no últirrio
momento.

Especado no passeio fronteiro, olhava agora o incêndio que se


desenvolvia. As chamas atacavam os manequins, corriam pelas
roupas, que reduziam a cinzas, e, de súbito, os manequins, ao
fundireni-se, aniniavatu---se de unia vida estranha.
Torciam~se, empinavani-se, levantavam os bracos, para logo os
deixarem cair, tombavam por fim, e o fogo lançava-se sobre
eles como sobre os cadáveres do forno creinatório.

O calor obrigou Neubauer a recuar. Esbarrou no buda e


sentou-se nele, sem à olhar. Mas logo se levantou de um salto,
profundamente picado pelo chapéu bicudo do sâl)io. O seu olhar
caiu então sobre o pacote que acabara de salvar das chamas.
Era tini estampado azul-celeste, salpicado de pássaros. Com
tini pontapé furioso, fê-lo voar. Porcaria! Para que servia
isto depois do que acontecera? Apan"hou-o e foi lançá-lo às
labaredas. Que o Diabo levasse tudo! Com mil raios! Afastou-se
num passo pesado. já não queria ver mais nada! Deus abandonava
os alemães! Wótàn fazia o mesino! Quem nião os abandonaria,
afinal?

Um rosto pálido apareceu por detrás de uni monte de pedras


calcinadas do outro lado da rua. Max Blank olhava Neubauer,
que se afas@ava. E, pela primeira vez desde há anos, sorria.
Sorria, ao mesmo tempo que despedaçava o charuto entre os seus
dedos magros.

2O8

XVI

ito homens estavam de novo reunidos no pátio do cremaffirio.


Todos tinham o tríângiito vermelho dos presos poriticos. rger
não conhecia nenhum deles, mas sabia o que os espetava, o kapo
Dreyer estava já no seu posto, na cave. Berger sentiu unia

stia, de que se defendera, até ai, à força de adiamentos.


Dreyer era ausente durante três dias e Berger não tinha podido
pôr em ução o seu plano. Desta vez já não podia recuar, tinha
de tentar

sorte, Começa pelos que estão aqui - disse-lhe Dreyer, mal


humodo. - Se não nunca mais acabanios. No pequeno campo estão
a cair aio moscas! Os primeiros mortos saltaram aos seus pés.
Três presos despim-nos e classifícaram os objectos que lhes
pertenâam. Berger fexaiiiirxoti-lhes os dentes. Depois os três
presos carregaram-nos no ascensor.

Schulte chegou meia hora mais tarde. Tinha um ar descansado e


calmo, mas nà<) parava de bocejar. Enquanto Dreyer escrevia,
Schulte, de vez em quando, olhava-lhe por cima do ombro.

Sebem que. a cave fosse ampla e arejada, o cheiro dos


cadáveres tornava-se cada vez mais forte. Não era só dos
corpos que ele se desprendia; os próprios fatos estavarn
impregnados. A avalancha de cadáveres não cessava: parecia ter
absorvido a noção do tempo. Berger não podia dizer se era para
ir almoçar ou para ír jantar que Schulte se levantava,
declarando que tinha fome.

Dreyer arrumou as coisas.


- Quantos temos nós de avanço no forno?
- Vinte e dois cadáveres.
- Bem. Paremos. Diz-lhes lá ern cima que não mandem mais antes
de eu voltar.

Os três outros presos saíram imediatamente. Berger arrastou um

últinio cadáver.

- Vamos! Manda-o para címa! - resmungou Dreyer. A borbulha do


lábio superior transforinara-se em furúnculo.

Berger endireitou-se.
- Esquecenio-nos de inscrever este.

C.CIÁ~Sél_XX25-14

2O9

ERICH-MÁRIA REMARQUE

- O quê?
- Esquecenio-nos de registar o falecimento deste preso.
- Estás doído? Tomámos nota de todos.
- Não é verdade, Berger fazia esforço para mostrar-se calmo.
- Falta um homem na lista.
- Meu Deus! - explodiu Dreyer. - Que mosca te mordeu? Que
significa isto?

- É preciso lançar mais um falecimento na lista.


- Ora essa! Dreyer olhava agora Berger fixamente.
- E porquê, fazes favor?
- Para que a lista fique exacta.
- Não te preocupes com a minha lista.
- Não me preocupo com as outras listas. Preocupo-nie apenas
com esta lista.

- E de que outras listas queres tu falar?


- Da dos objectos de ouro. Dreyer perinaneceu calado uni
momento.
- Mas que significa toda esta história ?- perguntou
finalmente. Berger recobrou o fÔlego.
- Quero dizer que me é indiferente que as listas de ob)ectos
de ouro estejarn ou não exactas.

Dreyer fez um gesto, mas dominou-se logo.


- As listas estão exactas - afirmou ameaçador.
- É possível. Também é possível que não estejam. Bastará
comparar.

- Comparar com quê,?


- Com as minhas próprias listas. Desde que trabalho aqui que
as faço regularmente. Para mais segurança. Para meu governo.

- Imaginem! Também faz listas, este segredinhos! E imaginas


que acreditariam mais nas tuas listas do que nas minhas?

- Não é impossível. Não tenho qualquer vantagem a tirar das


minhas listas.

Dreyer examinou Berger da cabeça aos pés, como se o visse pela


primeira vez.

- Nenhuma vantagen-i? É também a minha opinião. E foi para me


dizeres isso que esperaste esta altura, hem? Sozinho comigo.
Mas é o que te vai perder, cabeça de ovo!

Riu. O fulúnculo fazia-c, sofrer. Parecia.uni cão ruini a


mostrar os dentes.

- És capaz de me dizer o que me inipede de inartelar uni


bocado a tua cabeça de ovo e de te estender aí ao lado dos
outros? Ou então

21O

A CENTELHA DA VIDA

---de te apertar um pouco o pescoço? Talvez sejas tu,


justamente, quem A@jta na lista! Não haverá necessidade de
explicaçóes. Estamos sozi- ,@,@i@hos. Tu vais-te abaixo, muito
simplesmente. Coisa do coração. Uni <1@a mais ou a menos não
tem importância; aqui, ninguém irá meter o nariz. E eu
registo--te imediatamente.

Avançou para Berger. Pesava trinta quilos mais do que ele.


Mesmo '@"@nnado do seu boticão, Berger não tinha a menor
probabilidade de lhe resistir. Recuou um passo e tropeçou nos
mortos amontoados atrás de si. Dreyer agarrou-lhe o braço e
torceu-o. Berger deixou cair o ,@boticão.

Prefiro assim - disse Dreyer. Puxou Berger para si com unia


sacudidela. O seu rosto contraiu-se numa careta a poucos
centinietros do de Berger. Estava vermelho, com .o fuKinculo
brilhando sobre o lábio. Berger não abria a boca e mantipha a
cabeça afastada para trás.

Viu a mão direita de Dreyer levantar-se lentamente. Estava


per- @,,@fèítamente lúcido. Sabia o que lhe restava fazer. Só
dispunha de alguns áe ridos; felizmente, a mão parecia
mover-se ao retardador.

Eu previ isto - disse com rapidez. - Escrevi tudo num papel,


.!,'ienho a assinatura de testemunhas. A mão não parou.
Avançava devagar, mas ultrapassara já a cabeça de Berger.

-Mentiroso! -rosnou Dreyer. -Estás a verse te escapas, mas 'lá


não tens muito tempo para falar...

Não minto. Previmos que tentaria desembaraçar-se de mim.


O olhar de Dreyer perscrutava os olhos de Berger.
- Era essa mesmo a primeira ideia que acudiria a uni imbecil.
Está "Xudo escrito e, se eu não voltar esta noite, a
participação será apresen- ,,tàda amanhã de manhã ao chefe de
campo, com a lista que denuncia desapariçào de dois anéis e
dos óculos de ouro,

Urna inquietação passou no olhar de Dreyer.


- Foi isso mesmo - disse.
- Exactamente. Imagina que eu não sabia a que me arriscava?
- Sabias?
- Sim. Está tudo escrito. Weber, Schulte e Steinbrenner hão-de

-i. Estavam no nariz de ,lembi,w ze aliás, dos óculos que


desapareceran
111 1., 1, i . , São coisas qi ie não esquecem.

A i Je Dreyer parou, depois comegou a descer. \'i,, k.-ram


de ouro, tu mesmo o disseste.
1 1 -!ii@ de ouro, \:'!,, -, inham qualquer valor, canalha.
Erambonspara deitarfora.
11, >. lu dizer o que quiser. Temos o testemunho dos amigos do
@'pçeso a quem pertenciam. Eram de ouro branco maciço.

211

ERICH-MÁRIA REMARQUE

Esterco! Com um soco Dreyer repeliu Berger, que foi cair mais
adiante. Ao tentar levantar-se sentiu debaixo dos dedos os
dentes e os olhos de um cadáver. Saltou por cima dele sem
deixar de fitar Dreyer.

Este respirava ruidosamente.


- Bem. E que acontecerá depois, no teu entender, aos teus
amigos? Imaginas que serão recompensados por terem sido teus
cúmplices quando tentavas fazer inscrever um morto que não
existe?

- Eles não são cúmplices!


- Quem acreditará nisso?
- E quem acreditará em si quando o afirmar? Toda a gente
ficará convencida de que se trata de uma invenção sua para se
desembaraçar de mim por causa dos anéis e dos óculos.

Berger levantara-se. De repente sentiu que um tremor o


agitava. Baixou-se como se quisesse sacudir as calças. Não
conseguia dominar os joelhos e não queria que Dreyer o visse
tremer.

Dreyer não se apercebeu de nada. Apalpava o furúnculo com um


dedo. Berger notou que o furúnculo rebentara e que o pus
escorria.

- Não faça isso - disse.


- O quê? Porquê?
- Não toque no furúnculo. O veneno dos cadáveres é mortal.
Dreyer arregalou os olhos.
- Não toquei nos cadáveres hoje.
- Mas toquei eu. E você tocou em mim. Foi assim que o meu
antecessor morreu.

Dreyer retirou vivamente a mão direita e limpou-a às calças.


- Meu Deus, que vai acontecer-me? Maldita porcaria! já toquei
no furúnculo.
Olhou o dedo como se este tivesse lepra.
- Mas faz qualquer coisa! - gritou para Berger. - julgas que
tenho vontade de rebentar?

- Claro que não. Berger readquiriu a calma. O incidente


proporcionara-lhe uma trégua.

- Claro que não, agora que tudo se aproxima do fim - repetiu.


- Hem?
- Agora que o fim se aproxima.
- Qual fini? Faz alguma coisa, cão imundo, põe qualquer coisa
aqui em cima.

Dreyer estava pálido. Berger foi buscar uni frasco de tintura


de iodo que se encontrava numa prateleira. Sabia que Dreyer
não corria o menor perigo, o que, aliás, pouco lhe importava.
O essencial era ter-lhe

212

A CENTELHA DA VIDA

desviado a atenção. Passou wn pouco de iodo pelo furúnculo.


Dreyer deu um salto para trás. Berger foi colocar o frasco na
prateleira.

- Pronto, a ferida está desinfectada agora. Dreyer esforçou-se


por ver o furúnculo, entortando os olhos.
- Tens a certeza? Entortou outra vez os olhos. Depois mexeu o
lábio superior como um coelho.

Bem. Então, onde queres tu chegar exactamente? Berger


compreendeu que ganhara a partida. -já o disse. Mudar a
identidade de um morto. E tudo.
- E Schulte?
- Ele não deu atenção. Aliás, saiu por duas vezes. Dreyer
reflectia.
- E os fatos?
- Corresponderâo ao morto. O número também.
- Como assim? Tu...
- Sim - disse Berger. - Trouxe-os para fazer a troca. Dreyer
olhou-o.

Em conclusão, vocês previram tudo. Ou estarás tu sozinho


metido no caso?
Não. Dreyer enfiou as mãos nas algibeiras e deu alguns passos
de um lado para o outro. Depois parou diante de Berger.

E quem me prova que a tua pretensa lista não vai aparecer à


mesma um dia destes?

Eu. Dreyer encolheu os ombros e escarrou.

Até aqui apenas havia a lista - explicou Berger


tranquilamente. A lista e a acusação. Eu poderia utilizá-la
sem perigo. O pior que me podia acontecer era receber
felicitações. Depois disto - e apontou os papéis que cobriam a
mesa - sou cúmplice do desaparecimento de uni prisioneiro.

Dreyer reflectia. Mexeu prudentemente o lábio e recomeçou a

entortar os olhos.

- Para si o risco é muito menor - prosseguiu Berger enquanto o


observava. - A guerra está praticamente perdida. As tropas
alemãs foram repelidas, desde a África e Estalinegrado, para
cá das fronteiras e para cá do Reno. A propaganda e as armas
secretas nada podem contra isto. Dentro de algumas semanas ou
de alguns meses tudo es~ tará acabado. Nessa altura será
preciso prestar contas. Não há razão nenhuma para pagar pelos
outros. Se ficar assente que nos ajudou, estará salvo.

- Que são esses "nõs"?

213

ERICH-MARIA REMARQUE

Somos muitos. Por toda a parte. E não apenas no pequeno campo.

- E se eu os denunciar?
- Que tem isso que ver com os anéis e os õculos de ouro?
Dreyer ergueu a cabeça e sorriu, fazendo uma careta.
- Vocês calcularam tudo bem, não? Berger calou-se.
- O preso que vocês querem esconder tem a intenção de se
evadir?

- Não. Queremos simplesmente evitar-lhe isto. E Berger indicou


com o dedo os ganchos da parede.
- um político?

E. Dreyer franziu as pálpebras.


- E se se procede a unia inspecção rigorosa e o acham? Que
acontecerá?

- As barracas estão sobrepovoadas. Não o encontrarão.


- Podem reconhecê-lo, se é uni preso político conhecido.
- Não é conhecido. Além disso, nós, os do pequeno campo,
parecerno-nos todos uns com os outros.

- O vosso responsável de bloco está metido no caso?


- SinL1 - mentiu Berger. - Sem isso seria impossível.
- Têm amigos na administração!
- Temos an-úgos em toda a parte.
- O vosso protegido tem o número tatuado no corpo?
- Não.
- E as coisas dele?
- Sei quais as que é preciso trocar. já as pus de parte.
Dreyer deitou um olhar para a porta.
1 Então vá! Depressa! Antesque chegue alguérn! Entreabriu a
porta para escutar. Berger meteu-se entre os mortos e pôs-se a
revistá-los. No último momento viera-lhe uma nova ideia. Ia
proceder a uma dupla substituição. A confusão talvez fosse
assim bastante para que Dreyer não viesse a reter o nome do
5O9.

-Despacha-te, raios te partam! -praguejava Dreyer.


-Queprocuras tu ainda?

O terceiro morto prestava-se para a operação, pertencia ao


pequeno campo e não. estava tatuado. Arrancou -lhe o
casaco e vestiu-lhe o do 5O9, que trouxera escondido debaixo
da blusa. Depois atirou as roupas do morto para o meio das
outras, tirou destas uni casaco,e uma calças que tinha
preparado com antecipação. Enrolou-os em volta da cintura,
segurou-os com o cinto e vestiu o casaco.

- Está pronto.

214

A CENTELRA DA VIDA

Respirava com dificuldade. Manchas negras dançavam nas


paredes. Dreyer voltou-se.
Z
- Está tudo em ordem?
- Está.
- Bem. Eu não vi nada. Não sei nada. Estava nas latrínas. Do
que se acaba de passar só tu és responsável. Não sei nada,
está compreendido?

sim.
O ascensor desapareceu com a sua carga de cadáveres nus e
desceu vazio alguns minutos mais tarde.

Agora vou buscar os três homens lá de cima para que nos ajudem
- disse Dreyer. - Durante este tempo peri-nanecerás sozinho.
Compreendeste?

- Compreendi - respondeu Berger.


- E a lista?
- Trago-a amanhã. Ou então faço-a desaparecer.
- Posso confiar em ti?
- Absolutamente. Dreyer reflectiu uni momento.

Bem vistas as coisas - disse estás tão metido no caso como


exi F im-sino mais do que eu. Não é verdade?

Nl(iito mais. V. -,e és apanhado? '@:Io falarei. Tenho veneno.


1 )ecididamente, parece que não lhes falta nada. A expressão
de Dreyer denunciava uma espécie de admiração

V,,iava longe de imaginar que era assim. -Se iião, teria


tomado as minhas, precauçóes", pensava. "Estes maldit<)-,
(-adáveres ambulantes! Até disto é preciso desconfiar'."
(.()ineça a carregar o ascensor.

la ^e :ifastando.

Tome - disse Berger. - Torne isto ainda.


O quê? Bei'i w r tirou cinco marcos do bolso e colocou-os na
mesa. Dreyer lardow os.

- Ao menos isto pelo risco corrido.


- Na semana que vem terá mais cinco.
- E... porquê?

Por nada. Mais cinco marcos por hoje. Dreyer quis morder o
lábio, mas o fuKinculo fez-se lembrar brus@ amente.

215
ERICH-MARIA REMARQUE

Apesar de tudo, eu não sou um monstro - disse. - Nunca se


recusa um favor a um camarada,

Saiu. Berger, atacado de unia vertigem, encostou-se à parede.


Tudo correra bem. Melhor do que tinha esperado. Não tinha
ilusões; sabia que Dreyer procuraria, por todos os meios,
desembaraçar-se dele. A,ameaça do movimento de resistência do
campo e a promessa dos cinco marcos afastaram o perigo apenas
provisoriamente. Dreyer esperaria o dinheiro. Os criminosos
nunca perdiam de vista os seus interesses. Era unia das lições
que os veteranos tinham aprendido nas suas relações com
Handke. O dinheiro vinha de Lewinsky e do seu grupo. Eles
continuariam a ajudar o pequeno campo. Berger apalpou o casaco
que enrolara em volta da cintura. Era muito fino e o seu
próprio casaco ainda lhe flutuava no corpo. Não era possível
notar nada. Tinha a boca seca. O cadáver com o número falso
jazia a seus pés. Puxou um outro cadáver do monte e estendeu-o
ao lado do primeiro. No mesmo instante um novo cadáver desceu
pelo respiradouro. A descarga recomeçara.

Dreyer apareceu com os três presos, Deitou um olhar a Berger.


- Que fazes aqui? Por que não saíste? Era este o seu álibi. Os
três presos deviam fixar Berger que ficara sozinho na cave.

- Tinha ainda um dente para arrancar - disse Berger.


- Deixa-te de histórias! Só tens a fazer o que te mandani.
Sabe Deus o que pode acontecer!

Dreyer instalou-se à mesa, diante das listas.


- Vamos ao trabalho - ordenou. Schulte chegou, por sua vez.
Tirou da algibeira o Saber Víver, de Knigge, e mergulhou na
leitura,

Continuava a despir os mortos. O terceiro da fila era o homem


do número falso, Berger arranjara as coisas de maneira que ele
fosse despido pelos dois auxiliares. Ouviu gritar o número
5O9. Sebulte não levantou os olhos. Lia no clássico livrinho a
maneira de comer correctamente o peixe e os lagostins.
Esperava um convite dos sogros, eni Maio, e queria fazer boa
figura. Dreyer escreveu sem pestanejar o nome do morto e
comparou com a relação dos blocos. O quarto preso era
igualmente uni preso político. Berger encarregou-se dele.
Grítoi i

o número uni pouco mais alto e viu Dreyer levantar os olhos.


Depois pôs os objectos do morto na mesa. Dreyer olhava--o.
Berger fez-lhe uni leve sinal com os olhos. Depois agarrou nas
pinças e na lanterna de algibeíra e inclinou-se para o
cadáver. Tinha obtido o que queria. Dreyer supunha agora que
era o quarto nome, e não o terceiro, o do pris@oneiro que se
tratava de fazer passar por morto. Deste modo, não estava em
condições de vir a ser prejudicial.

216

A CENTELHA DA VIDA

A porta abriu-se e Steinbfenner entrou, seguido de Bruer, o


encarregado dos bunker, e do Scbarfuebrer Niernann.
Steinbrenner sorriu para Schulte.

Viemos para te substituir logo que os mortos que faltam este-


.'Jani registados. Ordem de Weber. Schulte fechou o livro.
- Acabámos depressa? - perguntou a Dreyer.
- Há ainda quatro cadáveres.
- Bem, então acabem. Steinbrenner encostou~se à parede,
riscada pelas arranhadelas dos enforcados.

Não tenham pressa, nós temos tempo. Mandem-nos depois os cinco


homens que estão a descarregar lá em cima. Temos unia pequeria
surpresa para eles.

Sim - disse Breuer -, hoje é o meu aniversário.

- Qual de vocês é o 5O9? - perguntou Goldsteiri.


- Porquê?
- Mandarani--me aqui. A noite caia. Goldstein acabava de ser
relegado para o, pequeno campo com doze outros presos.

- Foi LewInsky quem me mandou - disse para Berger.


- Tu és da nossa barraca?
- Não. Barraca 21. Era imposs;ivel, de momento, fazer doutra
maneira, Mais tarde arranjaremos isso. Tenho de ir o mais
depressa possível. Onde está o 5O9?

- O 5O9 já não existe. Goldstein levantou os olhos.


- Morto ou escondido? Berger hesitava.
- Podes ter confliança nele - disse o 5O9, que estava agachado
perto. - Lewinsky falou-nos dele na última vez que velo.

Virou-se para Goldstein.


- O meu nome agora é Florniann. Que há de novo? Há muito tempo
que não se ouve falar de vocês.

- @4uito tempo? Dois dias.


- E muito, Então, que há de novo? Aproxima-te uni pouco.
Ninguém nos ouvirá.

Sentarani-se, afastados,
- Ontem à noite, no bloco 6, pudernos ouvir as noticias da
r;ádío. Em inglês, Havia muitos parasitas, mas unia coisa é
certa. Berlim já está sob o fogo da artilharia russa,

217

ERICH-MARIA REMARQVE

- Berlira?
- Sim.
- E os americanos e os ingleses?
- A esse respeito nada de novo. Havia muitos parasitas e
tinhamos de ser prudentes. O Rur está cercado e eles estão
muito para cá do Reno, isso é certo.

O 5O9 tinha os olhos fitos nos ararnes farpados, onde brilhava


un-I resto de crepúsculo sob nuvens pesadas de chuva.

- Como tudo isto vai devagar-


- Devagar? Tu achas que isto vai devagar? Num ano as tropas
alemãs foram repelidas desde Berlini e desde a África até ao
Ri-ir, e ainda achas que isto não vai depressa?

O 5O9 abanou a cabeça.


- Não é isso que eu quero dizer. É lento para o campo de
concentração. Para nós. Compreendes? Há anos que aqui estou,
mas nunca a Primavera durou tanto tempo. É logo agora que
estarnos à espera.

- Compreendo. GoIdstein sorria. Os seus dentes sujos


cintilavam com uni brilho baço no rosto cinzento.

- Sei o que isso é. Principalmente à noite@. Quando não se


pode dormir nem respirar,

Os olhos não sorriam com o resto do rosto. Permaneciam cor de


chumbo, sem expressão.

- Nesse sentido é horrivelmente lento.


- Sim, é @isso o que eu quero dizer. Há algumas semanas nada
sabíamos. Agora o tempo parece ter parado. É estranho como
tudo muda quando nos pomos a ter esperança. A esperar. A ter
medo de não escapar no último momento.

O 5O9 pensava em Handke, Ainda não estava fora de perigo. Em


rigor, a substituição teria bastado se Handke não conhecesse
pessoalmente o 5O9, O 5O9 teria sido muito simplesmente o
morto, tal como o morto tinha sido inscrito com o número 5O9.
Estava oficialmente morto e chamava-se Flormann; contudo
permanecia no pequeno campo. Impossível tirar daí alguma
vantagem; mas já era muito que o responsável de bloco da
barraca 2O, onde Flormann morrera, se tivesse prestado à
combinação. O 5O9 devia tomar todas as precauções para que
HandIçe não viesse a reconhecê~lo. Tinha também de ter cuidado
para que ninguém o traísse. Além disso, havia sempre Wel-)er,
que podia reconhecê-lo no decurso duma revista inesperada.

Vieste só? - perguntou a Goldstein. Não. Há dois outros


comigo. Virão ainda mais?

218

A CENTELHA DA VIDA

-É provável. Mas nàooficiallilente. Nós teinos já escondidos,


pelo j~nos, cinquenta a sessenta homens.

- Como se arranjam vocês para esconder tanta gente?


- Mudam de barraca todas as noites. Nunca dormem duas vezes g

idas na mesma. u
- E se os SS os convocam à porta ou à administração?
- Não vão...
- O quê?
- Não vão - repetiu GoIdstein. Vi-ti o, 5O9 endireitar-se
espantado.

Os SS deixaram de poder exercer uma fiscalização séria


explicou. - A desorganização vem auinentando desde há semanas.
,,,F-Izenios tudo o que podíamos para isso. Os homens
convocados en-

,contravam-se sempre numa brigada ou, então, mais


simplesmente, @'ià!nguérn sabia onde estavam.

E os SS não vão buscá-los? Os dentes de Goldsteiti brilharam.


Não vão de muito boa vontade agora. Quando o fazem, vão en-i
grupo e armados. 56 os grupos, onde se encontrem Niemann,
Bruer ou Steinbrenner são ainda perigosos. i o 5O9 ficou
calado um, momento. O que acabara de ouvir era quase
inacreditável.

Há quanto tempo é assim? - perguntou. Há cerca de unia semana.


A situação modifica-se de dia para ,-dia.
- Tu pensas que os SS têm medo?
- Sim. Aperceberani-se, de repente, de quenós somos milhares.
E sabem o que se passa na frente.

- Em, conclusão, vocês não obedecem.


O 5O9 continuava a não compreender.

Olhedecemos. Mas obedecemos minuciosamente, e isso leva um


tempo interminável, e sabotamos tanto quanto podemos.
Infelizmente, os SS apanham inuitos dos nossos. Não podemos
salvar toda WL gente.

GoIdstein levantou-se.
- Tenho de arranjar sítio para don-nír.
- Se não encontrares, dirige-te a Berger.
- Está bem.

O 5O9 estava deitado peito du ii- i monte de in oitós, entre


as barracas. O nionte era mais alto do que de costume. Na
véspera não tinha

219

ERICH-MARIA REMARQUE

havido distribuição de pão. Quando isso sucedia, notava-se


sempre no dia seguinte pelo número de mortos. O 5O9
apertava-se contra os cadáveres para se proteger de um vento
frio e húmido que se levantara.

-Eles protegeni-me", pensou. "Eles protegein-me mesmo depois


de terem passado pelo fomo crematório." o fumo de Flomiann, de
quem ele usava agora o nome, devia estar sendo dispersado em

qualquer parte pelo vento frio e húmido; restavam ainda, sem


dúvida, alguns ossos calcinados que um moinho especial
depressa transformaria em farinha. Mas o seu nome, o que nele
havia de mais frágil e
de mais imponderável, ficara e servia de escudo a uma outra
vida que lutava para não sucumbir.

Ouvia os mortos gemerem e moverem-se imperceptivelmente. Os


tecidos e os humores trabalhavam. Uma segunda morte, química
essa, penetrava-os, decompunha-os, transformava-os em gás,
preparava a última deliquencência - e os ventres, que pareciam
ainda habitados por um reflexo de vida, inchavam para logo
baixarem, as bocas mortas exalavam suspiros, gotas espessas
rolavam das pálpebras como lágrimas tardias.

Os ombros do 5O9 estremeceram. Trazia vestido o dólman de um


hússar húngaro. Era uma das peças de roupa mais quentes que a

barraca possuía e vestiam-na aqueles que tinham de passar a


noite fora. Baixou os olhos para o reflexo baço das bandas do
dólman. Havia na situação uma certa ironia: no preciso momento
em que se lembrava do seu passado, de si mesmo, em que queria
deixar de ser um simples número, tinha de viver sob a
identidade de uni morto e de cobrir-se, de noite, com um
unifórrne húngaro.

Meteu as mãos nas mangas, tremendo. Podia entrar na barraca e


dormir algumas horas no fétido quente, mas sentia-se
demasiadamente agitado. Preferia ficar cá fora, sofrer o frio,
fitar os olhos no céu negro, esperar sem saber o que iria
acontecer nessa noite, esperar sem saber o que esperava. "É
esta expectativa que nos torna doentes", pensou. A expectativa
pesava sobre todo o campo como uma rede imóvel onde se
agitavam todas as angústias, todas as esperanças. -,Eu
espero", pensava, "e Handke e Weber espreitam-me; Goldstein
espera, e o seu coração doente ameaça parar a cada
niomento;.Berger espera, no receio de que a brigada do
crematório seja liquidada antes da libertação; todos
esperamos, perguntando se no último momento não nos irão
mandar para um campo de extenninação."

5O9 - disse Aliasver na obscuridade -, estás aí? Sim. Que há?


O cão-pastor morreu. Ahasver aproxiniava-se tacteando.

22O

A CENTELHA DA VIDA

Mas ele não estava doente - disse o 5O9. Não, ficou-se assim
enquanto dormia. Queres que te ajude a tirá-lo? É inútil, eu
estava cá fora com ele. Queria apenas dizer a alguém. Sim. Foi
assim, 5O9-

221

XVH

nova coluna chegou inesperadamente. As linhas de caminho-


~de-ferro entre a cidade e a região do Oeste tinham estado
cortadas durante alguns dias. Logo que o tráfico fora
restabelecido, chegaram vagões de mercadorias fechados num dos
primeiros comboios, Normalmente, deveriam ter sido dirigidos
para um campo de exterminação. Mas na noite seguinte uni novo
bombardeamento voltou a interromperas comunicações. O comboio
ficou um dia inteiro na estação e depois mandaram os
prisioneiros para o campo de Mellen.

Eram todos judeus. judeus de todos os pontos da Europa. judeus


romenos e húngaros, polacos e checos, judeus russos e gregos.
Havia-os provenientes da Jugoslãvia e da Holanda, outros da
Bulgáría e alguns mesmo do Luxemburgo. Falavam uma dúzia de
línguas diferentes e a maior parte deles não se compreendiam
uns aos outros. Até o y@ddísb comum parecia variar de uni
grupo para outro. Dois mil à partida, estavam agora reduzidos
a quinhentos, Tinham ficado centenas de cadáveres nos vagões
de mercadorias.

Neubauer estava fora de si.


- Que querem eles que eu faça! O campo já está atulhado! E
ainda por cima não foram mandados para aqui regularmente! Não
os conheço! É uma desordem espantosa! já não há organização em
pai-te alguma! Mas que se passará, meu Deus? Andava de um lado
para o outro no gabinete. Só faltava isto para completar os
seus aborrecimentos particulares! O seu sangue de funcionário
fervia. Não concebia que houvesse embaraços até este ponto por
causa de pessoas condenadas à morte. Parou, furioso, diante da
janela.

- Estão deitados por toda a parte com a sua trouxa, como


ciganos! Estaremos ainda na Alemanha ou nos Balcàs? Compreende
isto, Weber@?

Wel-)er permanecia impassível.


- Com certeza, a ordem veio de qualquer pai-te - disse. - Se
assim não fosse, não teriam subido.
- É isso! Unia ordem vinda não se sabe donde! Da estação, sem
dúvida! E nem sequer nos avisaram. Sem falar, bem entendido,
das for-

222

A CENTEUM DA VIDA

ades administrativas. Aparentemente, é uma coisa que já não em


parte alguma. Todos os dias aparecem serviços novos. Na ão
achavam que os prisioneiros gritavam demasiado e que isso a
produzir má impressão na população civil. Que tenho eu com não
me dirá? Os nossos prisioneiros não gritam aqui. 'iOlhou para
Weber, que permanecia indolentemente encostado à

Falou já com Dietz? - perguntou este. Não, ainda não, Tem


razão, vou falar imediatamente. Pediu a ligação e falou ao
telefone durante alguns ininutos. Depois ligou, visivelmente
acalmado. ,- Parece, segundo diz Dietz, que eles só passarão
unia noite aqui.
- devem ser distribuídos pelas barracas. Reúnem-se em blocos.
o é preciso registar a entrada aqui. Trata-se simplesmente de
os iar até amanhã de manhã. Entretanto, as comunicaçóes
estarão

belecidas. Olhou outra vez pela janela.

Mas onde diabo vamos nietê-los? Não há espaço em parte mal

Podemos deixá-los na praça de chamada. Mas nós temos


necessidade dela para reunir as brigadas amade manhã. Vai ser
outra confusão. Além disso, estes estranjas vão ar tudo. Isto
é impossível!

Pode-se metê-los na praça de chamada do pequeno campo. Ali ão


nos estorvarão.

- Haverá espaço suficiente?


- Será preciso fechar todos os nossos hornens,nas barracas.
Até ora havia sempre alguns que passavam a noite fora.
- Porquê? As barracas estão assim tão cheias?
- Tudo depende do que se entenda por cheias. Pode-se aperá-los
como sardinhas em lata. Ou ainda aniontoá-los uns sobre os
outros.

- Por uma noite passarão.


- Muitofacilwerite. Nenhuiu..,preso do pequeno campo quererá
ser incorporado na coluna.

We-ber largou a rir.


- Vão manter-se afastados dos outros como se eles tivessem
peste.

Neubauer teve uni risinho. Gostava de ouvir dizer que os seus


prísioneiros queriam ficar rio campo.

- Será preciso contar com uni grupo de guardas - disse -, se


Inao os novos espalham--se pelas barracas, e, então, a
confusão será total.

223

ERICH-MARIA REMARQUE

Weber abanou a cabeça.


- Não tenha receio, os ocupantes das barracas estarão atentos
a que tal não suceda, com medo de que levemos alguns deles
para substituírem os que faltarem.

- Muito bem, Convoque então alguns kapos e polícias bastantes


para a vigilância e mande fechar as barracas do pequeno campo.
Temos de passar sem projectores para guardar a coluna.

Dir-se-ia que um bando de grandes aves feridas se aproximavam


na sombra. Cambaleavam, tropeçavam e, quando um deles caía, os
outros pisavam-no com indiferença, sem o verem, até que os
últimos o levanwseni.

- Fechem as portas das barracas! - ordenou o ScharfuebrerSS


queguardava aentrada do pequeno campo. -Toda a gente
nasbarracas. Quem aparecer será abatido!

A massa dos recéni-vindos foi empurrada para a praça que as


barracas rodeavam. Cercavam-nas como unia vaga inquieta. Mas,
tendo alguns caído, outros agacharani-se ao lado deles,
formando uma ilhota pacífica no meio daquela multidão em
rnovimento. A noite caiu sobre eles como uma chuva de cinza.

Depressa adormeceram todos, mas o rumor não diminuiu. Sem


cessar, dos seus sonhos, das suas angústias, do seu despertar
súbito, elevavam~se vozes, estranhas e agudas, que se uniam,
por vezes, num longo lamento unânime, que subia algumas notas,
sempre as mesmas, para descer em seguida, batendo contra as
barracas como um mar desesperado contra arcas de salvação.
Toda a noite os ouviram nas barracas. os nervos dos homens
eram submetidos a uma tão rude provação que, logo às primeiras
horas, alguns, perdendo a cabeça, se puseram, por sua vez, a
uivar. Quando os recém~chegados os ouviram, redobraram os
gritos, o que acabou de excitar os de dentro. Parecia um
dilacerante lamento medieval -

até ao momento em que as coronhas martelaram furiosamente as


paredes das barracas, ao passo que se ouviam, lá fora, tiros e
o som mole dos cacetes nos corpos.

Então o ruído diminuiu. Os homens que gritavam nas barracas


foram dominados pelos seus camaradas, e a multidão dos outros,
lá fora, estava enfim dominada por um sono de morte, ainda
mais do que pelos cacetes. Estavam demasiado esgotados para
poderem sentir ainda as pancadas. O lamento erguía~se sempre
regularmente, mas mais débil, sem nunca cessar por completo.

Durante muito tempo, os veteranos ficaram à escuta. Escutavam,


tremendo, receando que unia sorte análoga lhes fosse
reservada. Exteriorniente, mal se distinguiam dos homens da
coluna - e, contudo, encerrados nas suas barracas polacas
cheias de agonias e de maus

224

A CENTELHA DA VIDA

iros, amontoados uns sobre os outros, deitados ao acaso sob os


.'glifos traçados pelos moribundos, sentiani-se ao abrigo do
sofrinto imenso e alheio que velava à porta.

Foram acordados, no dia seguinte, por vozes estrangeiras,


Ainda Zia escuro. Os queixumes haviam cessado. Mas ouviani-se
agora

arranhadelas tias paredes das barracas, como se centenas de


atacassem as tábuas. Arranhavam primeiro discretamente, com
precaução, depois ou- 'Iram-se pequenas pancadas batidas
timidamente nas portas, nas redes, e, por fim, uni ligeiro
inumiúrio, humilde, suplicante, quase balador, um canto
monótono, estranho, a voz despedaçada do

spero supremo: suplicavam que os deixassem entrar. Suplicavam


aos habitantes da arca que os salvassem do dilúvio. Tiin
renunciado aos gritos, abandonavani-se, resignados, às oras,
acariciando as tábuas das barracas, lutando já apenas com as
suas s sem força, com as suas doces vozes perdidas na noite.
- Que dizem eles? - perguntou Bucher.
- Suplicani-nos que os deixemos entrar pelo amor das nossas
es, pelo amor... Ahasver calou-se, sacudido pelos soluços.
- Não podemos - disse Berger.
- Sim, eu bem sei.
- Sim, eu bem sei. Unia hora mais tarde soou a ordem de
marcha. Lá fora cruzavam-se @as vozes de comando. Um imenso
lamento lhes respondeu. Novas vos soaram, mais fortes, já
furiosas.
- Vês alguma coisa, Bucher? - perguntou Berger. Estavam
acocorados diante da janela que ficava por cima da cama @@mais
alta,
- Sim. Eles recusam-se. Não querem.
- De pé! - gritavam lã fora. - Reunião para@ a chamada! Os
judeus não se mexiam. jaziam no chão, deitados ao comprido, e
olhavam os soldados com os olhos dilatados pelo terror. Outros
escondiani a cabeça entre os braços. @ - De pé! - rugia
Handke. - Vamos, acima! Querem que os ajudeni? Fora daqui!

A ajuda não serviu de nada. Estas quinhentas criaturas,


reduzidas, por não adorarem Deus da mesava maneira que os seus
carrascos, a

uni estado a que nem já se podia chamar huniano, não reagiam


aos

gritos, às injurias e as pancadas. Permaneciam deitados,


tentavarri abraçar-se ao solo, aferrar-se a ele - a teria
miserável e suja do

G. ~cos do Séc. XX 25 -1$

225

ERICH-MARIA REMARQUE

campo tornara-se para eles uni oásis de frescura. Sabiam onde


os queriam levar, Durante o tempo em que a, coluna caminhara
tinham seguido cegamente. Mas, unia vez parados e em repouso,
com igual cegueira se recusavam a partir'

Os guardas estavam indecisos. Tinham recebido ordem para não


matar homens à cacetada e a coisa estava a tornar-se dificil.
Como de costume, a razão da ordem era puramente
administrativa: a coluna não fora regularmente entregue ao
campo; era preciso, portanto, que o abandonasse tão completa
quanto possível.

Outros SS apareceram. O 5O9 viu mesmo, da janela da barraca


2O, Weber acorrer com as suas botas impecáveis. A entrada do
pequeno campo parou e deu unia ordem. Os SS apontaram e
fizeram fogo. As balas passaram assobiando mesmo por cima das
cabeças dos prisioneiros. Weber estava de pé, junto da porta,
com as pernas afastadas, as iii@os nos quadris. Esperava que
os judeus saltassem à primeira salva.

Eles ficaram impassíveis, Tinham-se tomado insensiveis a


qualquer ameaça. Pareciam decididos a não dar nem mais um
passo. Era provável que se deixassem fuzilar ali mesmo.

Weber mudou de cor.


- Ponham-nos de pé! - berrou. - De pé, à cacetada! De pé! Os
guardas precipitaram-se para a multidão dos presos. Os cacetes
e os punhos abatiam-se, os homens eram puxados pelos cabelos,
pela barba, recebiam furiosos pontapés nos ventres e nas
partes. Alguns foram mesmo postos de pé, mas logo se deixavam
cair como bonecos desarticulados.

Bucher observava o espectáculo com paixão.


- Olha para isto - disse Berger. - Não são apenas os SS que
batem com os verdes. Não são apenas os assassinos. Vêem-se
outras cores no meio deles. Também há dos nossos! Homens como
nós, transformados em kapos e policias! Batem tanto como os
seus senhores.

Esfregou os olhos com fúria, como se quisesse arrancá-los.


Perto da barraca havia uni velho de barba branca. O sangue
escapava-se-lhe da boca, avernitW-iando pouco a pouco a barba.

- Saiam da janela - disse Ahasver. - Se eles os vêem, vêm cá


buscá-los.

- Eles não podem ver-nos. A janela estava, com efeito, opaca


pela sujidade e do exterior nada se podia ver do que se,
passava na obscura barraca. Mas de dentro via-se bem o que se
passava lá 'fora.

- Vocês não deviam olhar - disse Ahasver. - É uni pecado fazer


isso quando não se é obrigado.

226
A CENTELHA DA VIDA

Não é uni pecado - disse Bucher. - Nós olhamos porque não m s


esquecer. Não viram ainda o bastante aqui no campo? Não -
disse Bucher, sempre inclinado para a janela.
O zelo dos guardas acabou por se fatigar. Teria sido
necessário star os homens, uns atrás dos outros. Para tal, mil
guardas não iam bastado. Por vezes conseguiam reunir dez ou
vinte judeus no

inho, nunca mais do que isso. Quando se tornavam mais numes,


deslizavam entre os polícias que os guardavam e juntavani-se
assa dos outros.
- Aí vem Neubauer em pessoa - disse Berger. Ele chegara, com
efeito, e falava a Weber.
- Não querem partir - dizia Weber, menos calmo que de stume. -
Podemos abater os que não se mexem. Neubauer soltava grandes
fumaças do charuto. O mau cheiro era ase insuportável.
- Sinistra aventura! Por que diabo os mandaram para aqui?
Teriam

melhor se os liquidassem lá onde estavam, eni vez de os pasem


por toda. a Alemanha, à procura durna câmara de gás! Sempre
ria saber porquê?! Weber encolheu os ombros.
- A razão é que mesmo o judeu mais miserável tem um corpo.
inhentos cadáveres são sempre quinhentos cadáveres. É fácil
tar, mas é muito mais difícil fazer desaparecer os restos. E
lá onde avam eram dois mil.
- Tolice! Quase todos os campos têm fornos crematórios!
- Sem dúvida, mas os crematórios trabalham devagar de mais
pesta altura. Sobretudo quando um campo tem de ser evacuado à

ressa.

Neubauer cuspiu um fio de tabaco.

Mesmo assim, não compreendo por que é que esta gente é enViada
para tão longe.

- E sempre por causa dos cadáveres. Weber recobrara a calma.


- As nossas autoridades não querem que sejam encontrados
demaSiados cadáveres. E, até agora, só os fornos crematórios
os fazem desaparecer de tal maneira que e impossivel
determinar o número de cadáveres, mesmo aproximado.
infelizmente, considerando a situação, trabalhavam muito
devagar, Não há nenhum meio moderno de fazer desaparecer
multidões inteiras. É sempre possível tornar a abrir, muito
tempo depois, as fossas comuns, para se inventarem histórias
de atrocidades. Viu-se isso na Rússia e na Polónia.

Mas, enfim, por que é que esta gentalha não foi abandonada no,

227

ERICH-MARIA REMARQUE

momento da retirada - corrigiu-se logo -, no momento em que


razões estratégicas exigiam o encurtamento das linhas de
comunicação? Eles não servem para nada! Por que não os
abandonaram aos russos e aos arnericanos para que os
divertissem?

- É sempre o problema físico - explicou Weber com paciência.


- Parece que os americanos trazem uma quantidade de
jornalistas e foffigrafós. Tirariam fotografias e teriam
espalhado, em seguida, o boato de que os prisioneiros estavam
subalimentados.

Neubauer tirou o charuto da boca e olhou Weber com atenção.


Não conseguiu saber se o seu chefe de campo troçava dele mais
uma vez. Nunca pudera descobrir as intenções reais de Weber
atrás da sua máscara de indiferença.

- Que quer isto dizer? - perguntou Neubauer. - Que diz? É


claro que estes homens estão subalinientados!

- Sim, é esse o gênero de baleias que a imprensa dernocrática


não pára de espalhar. O Ministério da Propaganda põe-nos todos
os dias em guarda contra esses rumores.

Ncubauer continuava a observar Weber. -Conheço-o tão mal-,


pensou. "Fez sempre o que lhe mandei, mas, no fundo, não sei
absolutamente nada dele. Não ficarei surpreendido no dia em
que se rir na minha cara. Ou mesmo na cara do Fübrer. É um
tarimbeiro sem verdadeiros princípios! É provável que não
respeite nada, nem sequer o Partido. Simplesmente, acha-se bem
nele.-

- Vejamos, Weber... - começou. Mas interrompeu-se logo.


"Histórias para quê?" Num momento um brusco terror o evadiu.

- É evidente que estes homens estão subalimentados - disse. -

Mas não é por culpa nossa. É o adversário, com o,seu bloqueio,


que a isso nos obriga. Não é assim?

Weber ergueu a cabeça. Não acreditava no que ouvia. Neubauer


olhava-o com uma atenção estranha.

- Claro - disse Wel-)er, tranquilo -, é o adversário com o seu


bloqueio.

Neubauer acenou com a cabeça. O medo desvanecera-se. Olhou


para o lugar da reunião dos presos.

- Falando com franqueza - disse com um ar confidencial -, há,


mesmo assim, diferenças consideráveis entre os campos. Os
nossos homens têm muito melhor aspecto do que aqueles; até os
prisioneiros do pequeno campo o têm. Não acha?

- Sim - replicou Weber, perplexo.


- Nota-se, comparando-os. O nosso campo é decerto uni dos mais
humanos de todo o Reich.

Neubáuer experimentava unia sensação de alívio.

228

A CENTELRA DA VIDA

É claro que há mortos. Muitos mortos até. É inevitável nos


tem- @que correm. Mas n6s somos humanos. Aqueles que já não
podem ,sâo obrigados a trabalhar. Quem faria tanto por
traidores e ini.@ da nação? quase ninguém. E o que eu penso.
Subalimentaçào? Não é por nossa culpa. DigoWeber... eu auer
acabava de ter uma ideia.

Ouça. Sei como vamos fazer sair estes homens. Adivinhe lá! Com

W-Cber riu. Tinha de concordar que o velho sempre andava


perdido

seus sonhos vazios.


- Excelente ideia - disse. - Onde os cacetes são impotentes a

fará milagres. Mas n6s não ternos rações suplementares


prontas. .- Pouco importa. Os prisioneiros do campo farão um
pequeno Ticio. Têm de provar que são camaradas. Comerão um
pouco me-

meio-dia, e será tudo. bauer endireitou-se, Eles compreendem o


alemão? -Alguns, sem dúvida.
- Há intérpretes? Weber interrogou alguns homens que tinham
estado de guarda. s voltaram empurrando três prisionelros na
sua frente.
- Vocês traduzirão para os vossos camaradas o que o Herr
~annfuebrervai dizer - ladrou Weber. Os@três homens espera-

lado a lado. Neubauer avançou um passo. Homens! - começou,


cheio de dignidade. - Foram mal infordos. É para uni campo de
repouso que os encaminham.
- Vamos! Weber deu um sopapo num dos intérpretes. Eles
pronuciaram mas palavras ininteligíveis. Os prisioneiros não
se mexeram. Neubauer comecou,
- Agora dirijam-se às cozinhas - acrescentow -
Distribuir-4hes- :,.ao café e víveres. Os intérpretes tomaram
a palavra, por sua vez. Ninguém se mexeu., Nem um sequer
acreditava nas promessas de Neubáuer. Tinham visto desaparecer
muitos presos fiados em discursos semelhantes. O alimento e o
banho eram para eles armadilhas mortais.

Neubauer perdia a paciência.


- Para as cozinhas! Em frente, marche! Há comida! Café!
Distribui, ção de víveres e de café! Há sopa!

Os guardas atiraram-se outra vez aos prisioneiros.


- Há sopa, não ouvem? Há sopa!

229

ERICH-MARIA REMARQUE

Acentuava cada palavra com unia pancada.


- Parem! - gritou Neubauer furioso. - Quem lhes mandou bater?
Raios os partam!

Os guardas retiraram-se precipitadarriente.


- Desapareçam! - gritou Ncubauer. Os assassinos tornaram-se,
de repente, simples presos, Refluíam, escondendo-se uns atrás
dos outros.
- Vão estropiá-los, e depois somos nós que ficaremos corri
eles às costas! - resmungava Ncubauer.

Weber assentiu com a cabeça.


- Quando os descarregaram na estação, mandaram-nos vários
caliliões de cadáveres para queimar.

- Onde, os meteram?
- Amontoados no crematório. Com a falta que temos de carvão!
Como se não tivéssemos bastantes mortos aqui!

- Com mil raios! Como vamos nós desembaraçar-nos destes?


- É o pânico total. Eles nem corlipreendem. o que se lhes diz.
Mas talvez se lhes der o cheiro...

- O cheiro de quê?
- O cheiro da comida. Ou se a virem.
- Acha que se mandarmos trazer um caldeirão?... Sim. As
promessas não fazem efeito nestes homens. É preciso que eles
cheirem ou vejam.

Neubauer concordou.
- É possível. Ainda temos alguns caldeírôes transportáveis.
Mande buscar um. Um ou dois. Com café. A sopa já está pronta?

- Ainda não, mas mesmo assim há--de aranjar-se maneira de


encher um caldeirão.

Os caldeiróes estavam prontos. Tinham-nos empurrado até cerca


de duzentos metros da multidão dos prisioneiros.

- Levem um até ao pequeno campo - ordenou Weber, - Depois


levantem a tampa e, assim que os homens se aproximarem, voltem
para aqui devagar. - Trata-se simplesmente de os pôr em
movimento
- explicou a Neubàuer. - Logo que, tenhamdeixado a praça* de
chamada, será muito mais fácil fazê-los sair.

É sempre assini@ Querem ficar onde doriniram porque


verificaram que nada lhes aconteceu durante a noite, Para eles
é uina espécie de garantia. A mudança faz-lhes niedo. Mas logo
que coinecem a andar deixarão de criar dificuldades.

- Comecem por levar-lhes o café - ordenou, - E não o tragam.


Distribuam-no.

23O

A CENTFLHA DA VIDA

caldeirão do café foi empurrado para o nieio dos homens@' Um

mergulhou nele uma concha e despejou-a na cabeça do niais


próximo. Era o velho da barba branca manchada de e. O café
correu-lhe pela cara abaixo e espalhou-se na barba pela
terceira vez, mudou de cor. -@elho levantou a cabeça e lambeu
algumas gotas ao mesmo

que agitava as mãos aduncas para se proteger. O kapo aptolhe


da boca a concha meio cheia. Bebe, velho, é café! elho abriu a
boca. Os riffisculos da garganta puserarri-se brusrite a
trabalhar. As mãos fecbaraili-se sobre a concha. Engolia com
unia pressa febril. Todo ele era uma deglutição trémula, cada,
desesperada. úm preso que se encontrava peito viu-o. Depois
uni segundo e uni

iro. Levantarani-se todos ao mesmo tempo, com as mãos estendia


boca aberta, empurrando--se, batendo--se furiosamente em r da
concha, pendurande>-se nela com todo o peso, numa cono de
cabeças e braços,

Ei, lá! Devagar!


O kapo não conseguia soltar a concha. Ao mesmo tempo que a pua
distribuia pontapés, mas com prudência, observando Neuhauer
esguelha. Entretanto, outros prisioneiros rodeavam o
caldeirão, de-

avam~se para o liquido quente. Tentavam beber, tirando o café


as suas mãos magras.

Café! Café!
O kapo conseguira livrar a concha.
- Ordem! - gritou. - Cada um por sua vez! Ponhan-i--se uns
atrás

outros!

mpo perdido. A avalancha era irresistivel. Os prisioneiros


nada iam, cheiravam o café, ou, antes, o liquido preto que lhe
fazia as zes, qualquer coisa quente se podia beber, e
precípítavam-se cemente sobre o caldeirão. Weber tivera razão;
pode o cérebro resar-se a qualquer serviço, que o estômago
permanece vigilante e

erioso.
- Agora façam recuar devagar o caldeirão - ordenou Weber.
Impossíve). A multidão rodeava a carreta por todos os lados.
Um :,dos guardas, estupefacto, tombou lentamente de lado. A
matilha acahava de fazer-lhe perder o equilibrio. Debateu-se
corno um nadador ,,etii dificuldade e desapareceu por
completo.
Formar! - gritou Weber. Os guardas e a Poricia do campo
acorrerani.

Para a frente! - comandou Weber. - Soltem o caldeirão do

ERICR-MARIA REMARQUE

A formação fendeu o aglomerado. Conseguiu rodear o caldeirão e


deslocá-lo. Estava já quase vazio. Enipurrarani-no diante
deles, ombro com ombro, num bloco cerrado. A multidão
seguia-os. Havia mãos que tentavam ai a iza hes por
e aixo s raços ou passar-lhes por cima dos ombros.
Avançavam lentamente. . @ De repente, unidos homens descobriu
o segundo caldeirão parado a pouca distância. Lançou-se para a
frente, em saltos grotescos, sempre cambaleando. Outros o
seguiram. Mas Weber estava atento. Rodeado de guardas sólidos,
o caldeirão foi logo afastado.

A multidão atirou-se atrás dele. Apenas ficaram alguns em


volta do caldeirão do café, com as mãos coladas à parede
interior, procurando lamber a humidade que restava, Uns trinta
estropiados tinham-se deixado ficar.

-Arrastem-nos com os outros- ordenou Weber- e formem um cordão


para,impedir que os homens voltem para trás!

A praça de chamada estava coberta de excrementos humanos, mas


os presos tinham ali passado uma noite tranquila. Era muito.
Weber tinha bastante experiência para saber que a multidão
tentaria voltar para lá quando o delírio da fome se tivesse
dissipado, corno a água reflui para os terrenos baixos. Era
isso o que ele, queria evitar a todo o custo.

Os guardas empurraram os retardatários diante de si e


arrastaram, ao mesmo tempo, os mortos e os moribundos. Havia
apenas sete mortos, o que se explicava por a coluna reunir
somente os quinhentos homens mais resistentes,

Chegados à saída do pequeno campo, alguns homens escaparam~se


e voltaram às barracas. Os guardas, embaraçados pelos mortos e
pelos moribundos, deixaram fugir três, Chegados às barracas,
estes puserani-se a sacudir as portas com desespero, A da
barraca 22 cedeu e eles atirafan@-se lã para dentro.

- Parem! - gritou Weber aos guardas quese dispunham a


persegui-los. - Fiquem aqui. iremos buscá-los mais tarde.
Tornem cuidado com os outros!
Atingida a estrada, a horda tinha feito meia volta. O
caldeirão estava vazio e eles tentaram,uma última resistência
quando os mandarani formar para a partida. Mas não eram já os
mesmos homens de há pouco. Até aí tinham fomiado um bloco
indivisível, levado aos limites do desespero.e animado por
unia força cega. A fome, a comida e o movimento tínham-nos
lançado agora no medo, que ia aumentando, dissolvendo a massa,
isolando os indivíduos fracos, desaniparados, cada uni com o
seu pequeno capital de resistência vital, presas fáceis,
dispersas pela corrida, A fome e a dor ei-ani de novo
sensíveis. Obedeceram.

232

A C6NTELHA DA VIPA

parte deles tínha, sido cercada pelo lado de cima; outra


parMeio do caminho; Weber encarregou-se do resto cornos seus ,
Evitavam os golpes na cabeça, limitando-se às pancadas no Os
grupos reconstituíam-se lentamente. Estavam alinhados a
aturdidos, aferrados uns aos outros para não caírem. Cada
moera ladeado por dois homens mais robustos. De longe, uma
unha desprevenida poderia tomá-los por um bando de alegres

es, canibaleando de braço dado, Foi então que alguns deles


seram a cantar numa voz fraca e desfalecida. Olhavam em
frente, beça erguida, sustendo os seus camaradas, Desfilaram,
assim, grande praça de chamada, diante das brigadas de
trabalho, e de-

ceram pelo poaào do campo.


- Que vão eles a cantar? - perguntou Weber.
- Um cântico para os mortos,

Os três fugitivos estavam escondidos na barraca 22. Tinham


pene-

tão longe quanto puderam. Dois deles enfiaram--se de cabeça


aixo dum catre. Viani-se-lhes tremer as pernas. Um estremento,
percoffia-as, parava, reprimido, para logo recomeçar mais

O terceiro passeava unia flace pálida pelos ocupantes da


barraca.

Meu Deus! Escondam-mel Meu Deus! Escondam-me! Meu Deus!


Repetia infatigavelmente as mesmas palavras, batendo com o
dedo cador no peito. Era tudo o que sabia de alemão, Weber
abriu btuscamente a porta.

Onde estão eles? Erguia-se na soleira da porta corri dois


guardas.

Então? É para amanhã? Ninguém respondeu.

Responsável de camarata! - gritou. Berger apresentou-se.


- Barraca 22, secção C! - pronunciou.
- Cala a boca! Onde estão eles? Berger não podia escolher.
Sabia que os fugitivos seriam encon~ trados sem dificuldade.
Sabia também que em caso algum a barraca devia ser revistada,
Dois presos políticos do cartipo de trabalho estavarti
escondidos ali.

Ergueu o braço para mostrar a cama, aias já uni dos guardas se


adiantava.

- Estào, ali! Debaixo da cama!


- Tirem-nos!

233

ERICH-MARIA REMARQUE

Uma luta rápida se travou na barraca repleta. Os dois guardas


agarraram os dois homens pelas pernas e arrancaram-nos do
esconderijo como rãs. Os dois prisioneiros aferravam-se com
todas as forças aos prumos da cama. Weber pisou~lhes os dedos.
Ouviram-se estalidos e depois as mãos abriram-se. Os dois
presos foram arrastados para fora. Não gritavam. Apenas
soltavam, quando os arrastavam na terra suja da barraca, um
longo gemido, fraco, agudíssimo, dilacerante. O terceiro
seguiu-os em silêncio, com o rosto lívido, em que os olhos
abriam dois grandes buracos negros.

Os prisioneiros que ele olhava enquanto saía desviavam os


olhos.

Weber, de pernas afastãdas, mantinha~se entre os umbrais da


porta.

- Cambada de porcos, quem lhes abriu a porta? Ninguém se


mexeu.
- Saiam! Saíram todos. Handke estava também ali.
- Responsável de bloco! - ladrou Weber. - Eu tinha dado ordem
para fecharem as portas! Quem a abriu?

- As portas estão carunchosas. Os fugitivos arrancaram a


fechadura, HerrSturmfuebrer.

- Ora essa! Como podiam ter feito isso? Weber inclinou-se para
a fechadura. Estava arrancada da madeira carunchosa do
tabique.

- Que ponham imediatamente outra fechadura! Há muito tempo que


isso devia estar feito! De que estiveram à espera?

- As portas nunca se fecham, HerrSturMfuebrer. Os homens não


têm latrinas na barraca.

- Não quero saber. Faça o que lhe digo. Weber rodou sobre os
calcanhares e afástou-se atrás- dos três presos, que tinham
abandonado toda a resistência.

Handke observava os prisioneiros. Este esperavam uma explosão


de furor. Nada disso aconteceu.

- Imbecis - disse tratem de me fazer desaparecer toda


esta porcaria.

- Vocês não teriaiu gostado, hem?, que a barraca fosse


revistada
- Berger não respondeu. Olhava Handke com uma expressão
pasmada. Handke soltou uni risinho rápido.

- Vocês julgani-me um cretino, não? Sei mais do que tu pensas.


Mas eu os apanharei! Todos, ouves-me?, todos os prisioneiros
políticos que se julgam muito espertos! Ouves-me?

234

A CENTELHA DA VIDA

lu Webel,, num passo pesado. Berger voltou-se. Goidstein atrás


dele. Que quis ele dizer?

er encolheu os ombros. Seja o que for, é preciso prevenir


Lewinsky o mais depressa

1. E retirar esta noite os que se escondem aqui. Talvez para o


2O. O 5O9 encarrega-se disso.
235

U m espesso nevoeiro caíra sobre o campo. As torres de vigia e


as vedações tinham desaparecido. Por um momento poderia
supor-se que o campo deixara de existir, que a bruma tinha
dissípado os arames farpados, espalhando por toda a parte uma
doce e ilusória liberdade, e que bastaria dar alguns passos
para verificar a ausência das vedações.

Depois o canto das sereias ergueu-se e as primeiras explosôes


ecoaram logo a seguir. Pareciam, na atmosfera algodoada, não
provir de parte alguma. O estrondear podia partir do céu, por
detrás da linha do horizonte, tanto como da cidade.
Repercutia~se corno o trovão de várias tempestades surdas.
Neste infinito branco e cinzento tinha-se a sensação de estar
ao abrigo de qualquer perigo.

Os homens da barraca 22 apertavam-se uns contra os outros,


esgotados, sobre as camas e pelos corredores. Pouco tinham
dormido e a fome atenazava~os. Na véspera tinham bebido apenas
uma sopa aguada. Mal davam atenção ao bombardeamento.
Tornara--se para eles um hábito, como fazendo parte da sua
existência. Nenhum deles esperava o silvo agudo, que aumentou
furiosamente, e a formidável explosão que se seguiu.

A barraca foi sacudida como por um tremor de terra. Ouvíu-se


no choque ressoante o claro tilintar das vidraças partidas.
- Somos bombardeados! Somos bombardeados! - gritou uma voz. -
Saiamos daqui! Toda a gente fora!

Houve uni momento de pânico. Caíam homens das camas. Outros


tentavam descer, tropeçavam nos ocupantes das camas inferiores
e formavam com eles novelos de braços e pernas. Punhos sem
força batiam ao acaso, os dentes das caveiras descobriam-se,
os olhos alargavam~se no fundo das órbitas. E tudo parecia
desenrolar---se num silêncio fantástico, pois o barulho da D.
C. A. e das bombas tomara-se tal que abafava completamente
qualquer outro ruído. As bocas abriani-se sem voz, corno se o
medo as tivesse emudecido.

Uma segunda explosão fez tremer o solo, O pânico subiu ao


auge. Os hornens ainda capazes de andar esmagavam-se nos
corredores; os outros, indiferentes, observavam da cama a
silenciosa gesticulação

236
A CENTELHA DA VIDA

radas, como uma pantomima onde eles não tivessem qual- @papel
a desempenhar. Fechem a porta! - gritou Berger.

siado tarde. Ela abriu-se bruscamente e o primeiro magote foi


tragado pelo nevoeiro. Outros se seguiram. Os vetemvam~se no
seu canto, lutando, por vezes, para não serem S. Fiquem aqui!
- gritou Berger. - As sentinelas vão atirar! fuga continuava,
Deiteni--se - gritou Lewinsky.

despeito das ameaças de Handke, tinha passado a noite na a 22.


Apesar de tudo, sentia-se ali mais em segurança. Na vêsquatro
homens do campo de trabalho, cujos nomes começavam letras H a
K, tinham sido surpreendidos pela brigada especial renner,
Brcuer e Mernann e conduzidos ao crematório. Era uma

eles que se procedesse tão burocraticamente, Lewinsky não que


a letra L fosse chamada. De bruços! - gritou. - Eles vão
disparar! Toda a gente fora! Não vamos ficar metidos nesta
ratoeira! Lá fora ressoavam já tiros através do ruído surdo
das bombas.
- já comecou! Deitar! Ao comprido! As metralhadoras são mais
rigosas do que as bombas! Lewinsky não tinha razão. Logo após
a terceira explosão, as mehadoras calarara-se. Os serventes
tinham abandonado as torres a

a pressa. Lewinsky rastejou até à porta.


- Não há perigo! - gritou a Berger, - Os SS desapareceram!
- Será preciso ficar cá dentro?
- Não! Não é mais seguro do que lá fora e, além disso, podemos
r entalados e ser queimados.
- Fora! - gritou Meyerhof, - Se os arames foram atingidos,
podemos fugir.

- Cala a boca, imbecil! Com esse fato serias imediatamente


apanhado e fuzilado.

Saiam! Abriram caminho até à porta.


- Fiquemos juntos! - gritou Lewinsky. Agarrou Meyerhof` pelas
abas e pôç,-se a sicudi-lo.
- Se fazes asneiras, quebrck-te o pescoço com as minhas
próprias mãos, ouviste?, Imaginas que nos podemos arriscar a
isso agora, pedaço de asno? Compreendes, ou será preciso que
eu te abata !mediatamente?

237
ERICH-MARIA REMARQUE

- Deixa-o - disse Berger. - Ele não fará nada. Eu o vigiarei,


Deitarani-se próximo da barraca, suficientemente perto para
poderem ainda distinguir as suas paredes sombrias nos
turbilhões da bruma. Dir-se-ia que uni invisível incêndio os
afogara em ondas de fumo. Estavam achatados contra o solo,
esmagados pela mão gigante do raio. Esperavam a próxima
explosão.

Ela não veio. Apenas a D. C. A. continuava a disparar. O


silêncio recaíra sobre a cidade. Em compensação, ouviam-se de
novo, e mais distintamente, os tiros ao longe.

- Dispararam no campo - disse SuIzbacher.


- São os SS. Lebenthal levantou a cabeça.
- Talvez as casernas tenham sido atingidas e Weber e
Nex-ibauer tenham niorrido. :-- Seria bom de mais - disse
Rosen. - Essas coisas nunca aconteceni. Com este nevoeiro,
eles não puderam fazer pontaria. Talvez até tenham atingido
algumas barracas,

- Onde está Lewinsky? - perguntou Lebenthal, Berger olhou em


volta.
- Não sei. Estava aqui ainda há poucos minutos. Tu não sabes,
Meyerhof?

- Não sei, nem me interessa.


- Foi talvez fazer uni reconhecimento. Apuraram o ouvido, A
tensão aumentava. Ouvíam~se ainda tiros isolados.

Talvez tenha havido evasões e andem agora a caçar os


fugitivos. Esperemos que não. Todos sabiam que os ocupantes do
campo seriam, nesse caso, reunidos para a chamada e que a
ordem de destroçar não seria dada antes de os evadidos serem
trazidos mortos ou vivos. isto significava dezenas de mortos e
a inspecção rigorosa de todas as barracas. E fora tainhêm por
isso que Lewinsky procedera com tanta severidade para com
Meyerhof.

- Mas para que tentariani eles evadir-se agora? - perguntou


Ahasver.

- E por que não? - replicou Meyerhof. - Cada dia...


- Cala-te! - interrompeu Berger. - Ressuscitaste dos mortos e
isso deu-te volta à cabeça. julgas-te uni Sansão agora. Não
andarias quinhentos metros.

- Talvez Lewínsky se tenha evadido. Teria razões para isso e


mais do que nenhum outro.

- Tolice, ele não se evadirá.

238

A CENTEWA DA VIPA

A. calou-se. Através do silêncio ouviram-se ordens e rumores

valeria mais meternio-nos na barraca? - perguntou Leben~

Tçns razão. - Berger levantou-se. - Todos os homens da C

GoIdstein, arranja as coisas de maneira que os vossos hose


escondam bem no fundo da barraca. Handke vai chegar de

nto para o outro. om certeza que eles não atingiram os SS -


disse Lebenthal. canalha safa-se sempre. Em compensação, é
provável que s centenas dos nossos tenham sido despedaçados.
Talvez os americanos se estejam a aproximar - disse, alguém
ma. - Talvez fosse já a artilharia. dos ficaram calados um
momento. Cala a boca! - disse depois Lebenthal de mau humor. -
Não o Diabo! Vamos! Entremos! Vai haver charnada, com certeza.
stejaram para a barraca. Houve unia nova confusão, receosos S
de irem encontrar o seu lugar já ocupado por um vizinho mais

te. Os mais inquie tos eram aqueles que dispunham da ponta


atre. Precipitaram-se para a barraca com gritos fracos e
roucos. estava ainda repleta e só havia lugar para menos de um
terço dos pantes. Uma parte dos presos ficaram lá fora, apesar
de todos os

amentos, A emoção esgotara-os. Erguidos uni momento pelo nico,


tinham encontrado a energia suficiente para se arrastarem

fora. Agora jaziam prostrados. Os veteranos puxaram alguns


para mrraca; verificaram no nevoeiro que dois deles estavam
mortos, gidos pelas balas.

Cuidado! Ouviam, nas trevas brancas, passos mais firmes que os


dos muçulnos. Os passos aproximarani-se e pararam diante da
barraca.
insky inclinou-se para o interior.

Berger - murmurou -, onde está o 5O9? Na 2O. Que se passa?


Chega aqui. Berger avançou até à porta.
- O 5O9 pode dormir descansado - disse Lewinsky numa voz úpida
e entrecortada. - Handke morreu.

- Morto por uma boinha?


- Não. Morto.

Que se passou? Os SS abaterani-no no meio do nevoeir6? Não.


Alguém o abateu. Basta isto, não? O essencial é que ele es-

eja morto, Estava a tornar-se perigoso. Foi no nevoeiro,

239

ERICH-MARIA REMARQUE

Lewinsky ficou, por momentos, silencioso.


- Encontrá-lo-ás no crematório.
- Se foi abatido à queima-roupa, vão encontrar sinais de
pólvora e urna queimadura.

- Não foi abatido à queima-roupa. Dois outros bonzos


encontraram a morte no nevoeiro e na desordem. Dois da pior
espécie. Especialmente o da nossa barraca. Tinha denunciado
dois homens.

Ouviu-se o sinal do fim de alerta. O nevoeiro rasgava-se como


tini

véu. Dir-se~ia que as explosões o tinhani despedaçado. Uni


rasgão de céu azul apareceu, logo pi ateado por uni raio de
sol. As torres de vigia emergiram como sombrios cadafalsos.

Alguém se aproximava.
- Cuidado - murmurou Berger. - Entra. Lewinsky, esconde-te!
Fechou a porta atrás dele.
- Não há perigo - disse Lewinsky. - É uni isolado, Há já unia

semana que eles não searriscam se não em grupo.

A porta abriu-se docemente.


- Lewinsky está aqui> - perguntou alguém.
- Que lhe queres tu?
- Vem depressa! Tenho-o aqui! Levvinsky desapareceu no
nevoeiro. Berger deitou um olhar em redor.
- Onde está Lebenthal?
- Foi à 2O levar a notícia ao 5O9. LewInsky regressou
precipitadamente.
- Ouviste alguma coisa de novo sobre o que se passou lá eiu
baixo? - perguntou-lhe Berger.

- Sim. Sai!
- Que há? Lewinsky sorriu lentamente. O seu rosto, molhado
pelo nevoeiro, alegrava-se.

- Uma parte da caserna SS desabou - disse. - Há feridos e


mortos. Não sei quantos, A barraca 1 teve perdas. o arsenal e
a sala de tortura sofreram prejuízos.

Perscrutou o nevoeiro corri desconfiança.


- Temos uma coisa para esconder. Talvez só durante esta noite.
Apoderámo-nos dunia coisa. Os nossos liorriens; tinham muito
pouco tempo até ao regresso dos SS.

- Passa - disse Berger. Aproximarani-se um do outro. Lewinsky


deu um embrulho pesado a Berger,

- Isso vem do arsenal - murmurou, - Esconde no teu canto.

24O

A CENTELHA DA VIDA

tenho outro, Metê~lo--emos no buraco que está debaixo da do


5O9. Quem é que lá dorme agora? Ahasver, Karel e Lebenthal.
Está bem - disse Lewinsky, soprando. - Eles trabalhafam de-

Foi logo que a bomba desmoronou a parede do arsenal. Os SS


fugido. Quando voltaram, os nossos homens já tinham desapahá
muito tempo. Fizemos outras aquisições, Serão escondidas

tifo. É preciso dividir os riscos, conipreendes? É o grande de


Werner. Talvez. Por essa razão, não deixaremos nada no campo
de tra- . Aliás, não apanháritos muita coisa e a confusão é
enorme. Por talvez eles não notem nada. Tentámos incendiar o
arsenal.

Vocês trabalharam bem - disse Berger. ewinsky acenou a cabeça,


@= Belo dia! Vem, escondamos tudo de niodo a que não nos
vejam. i ninguém suspeita de nada. Vai aclarar. Não pudemos
trazer mais as porque os SS regressaram muito depressa.
Julgavam que os arafarpados estavam destruídos. Disparavam
sobre tudo o que criavam, Contavam com evasões. Agora estão
calmos. Verificaram a vedaçâo estava intacta. Que sorte as
brigadas de trabalho não

saído hoje! Foi por causa das possíveis evasões com a ajuda do
iro, Assim, os nossos melhores elementos puderam intervir. Vai
er, provavelmente, unia chamada dentro de pouco tempo. Vem.
stra-me onde podemos esconder as nossas coisas.

Uma hora mais tarde o Sol descobriu-se. O céu estava


azul-pálido s últituos farrapos de nevoeiro desapareciam. Os
campos e as árvoestavam húmidos e frescos, dum verde-tenro e
viçoso, corno ppís durn banho de orvalho. A tarde chegou ao
bloco 22 a notícia de que vinte e sete presos tibani tombado
sob as balas durante e depois do bonibardeamento; oze deles
pertenciani à barraca 1; vinte e oito prisioneiros tinham sido
ridos pelos estilhaços das bombas. Dez SS estavam mortos.
Entre "< s, Birkhaeuser, da Gestapo; Handke e dois dos
responsáveis da bar-

a de Lewinsky tinham sido niortos igualmente.


O 5O9 chegou.
- Que aconteceu à ordem de transferência dos francos suíços
que deste a Handke? - perguntou-lhe Berger. - Que irá
passar-se se a encontrarem com ele? E se ela cal nas niãos da
Gestapo? Esquecemo-nos Completamente disso!

- Não esquecemos - disse o 5O9, tirando unia fôlha de papel do


bolso. - Lewinsky estava ao corrente e Ieinbrou-se. Trouxe as
coisas

G. OWIcos do Sé£. XX 25 - 16

241

ERICH-MARIA REMARQUE

de Handke, que um kapo dos nossos lhe tinha tirado logo depois
de morrer.

- Rasga-a! Lewinsky trabalhou kridamente! Berger respirou,

Espero que tenhamos um pouco de paz agora! Talvez. Tudo


depende do novo responsável de bloco que vai ser nomeado.

Uni bando de andorinhas apareceu de repente por cima do campo


de concentração. Descreveram largos círculos, depois desceram,
gritando, sobre as barracas polacas, quase roçando os telhados
com as suas asas brilhantes.

É a primeira vez que vejo pássaros no campo - disse Ahasver.


Procuram tini sítio @ para,fazer ninho - explicou Bucher.
Aqui? Leberittial ria.
- Elas já não têm campanários.
O fumo que cobria a cidade dissipara~se um tanto.
- É mesmo verdade! - disse Sulzbacher. - A última torre
desabou.

- E ali vão elas! Lebenthal abanava a cabeça, olhando as


andorinhas, que rodopiavam em volta das barracas, soltando
ptos agudos,

- E é para isto que elas vêm de Affica! Para aqui!


- Os incêndios expulsaram-nas da cidade. Olharam o vale.
- Que espectáculo! - murmurou Rosen.
- Deve haver unia quantidade de outras cidades que ardem como
esta - disse Ahasver. - Cidades maiores e mais importantes.
Deve ser belo!

- Pobre Alemanha! - disse alguém que se agachara perto.


- O quê?
- Pobre Alemanha!
- Raios te partam! Vocês ouvem isto?

Começava a fazer calor. À noite a barraca soube que o


cremaffiríO tinha sido igualmente atingido. Uni dos muros
desmoronara-se e a forca inclinava-se perigosaniente. Contudo,
a chaminé continuava a vomitar torrentes de fumo.

O céu cobriu-se. O tempo, tomou-se abafado. Não houve sopa


para o pequeno campo. Asharracas estavam silenciosas. Aqueles
que o podiam fazer instalaratit--se cá fora. Parecia-lhes que
o ar abafado devia alimentar. As nuvens espessas e lívidas
assenielhavam-se a

242

A CENTELHA DA VIDA

que talvez viessem a despejar maná, Lebenthal, que fora fazer

nhecimento, regressou esgotado, Contou que apenas quatro do


campo de trabalho haviam tido sopa. As outras nada m recebido.
O arsenal, dizia-se, sofrera prejuízos. Aparente- , os SS
ainda não tinham notado o desaparecimento das armas, calor
aunientava. A cídade estava banhada por urna luz estranha, que
sulfurosa. O Sol pusera-se há muito tempo, mas as nuvens

avam a irradiar aquela claridade pálida e amarelada que per-

Vai haver terripestade - disse Berger. ava deitado, lívido, ao


pé do 5O9Vamos esperá-la. Berger olhou-o. Os seus olhos
encheram-se de lágrimas. Muito

rite, virou a cabeça e, de súbito, uma onda de sangue


escapouhe da boca. Corria com tão pouco esforço e tanta
naturalidade D 5O9 só ao fim de certo tempo compreendeu o que
se passava. antou-se bruscamente.
- Que se passa? Berger! Berger! Berger encolheu-se e não se
mexeu mais.

Nada. Tu tens uma hemorragia? Não. Então... que é isso? É do


estômago.
O estômago? ",.',.,,,,Berger acenou. Cuspiu o sangue que lhe
restava na boca, Não é grave - inurmurou. É bastante grave,
Que devemos fazer? Diz o que é preciso que ,faça. Nada. Tenho
de ficar deitado, tranquilarnente. Queres que te levem lá para
dentro? Terás uma cama. Faremos ir alguns.

Deíxa-nie tranquilo.

-iorrer tantos, ele mes o


O 5O9 sentiu um desespero súbito, Vira n
ni tivera prestes a rnorrer tantas vezes, que se persuadira
de que uma morte já nada podia significar para ele. E agora
sentia-se atingido mo pela primeira vez. Parecía-lhe perder o
último e único arnigo sua v@da. Toda a esperança o ahandonou
11nediatan-iente@ Berger orria-lhe, corri o rosto encharcado
de suor, irias o 5O9 via-o já, in-16-

1, à beira do caminho de ciniento.


- Alguém deve ter ainda algunia coisa para comer! Ou uni medi-
.,,Caiiiento qualquer! Lebentl-iall

Nada de conier - intirmurou Berger.

243

ERICH-MARIA REMARQUE
Levantou a mão e abriu os olhos. -Acredita em mim. Quando eu
tiver necessidade de alguma coisa, direi. Agora, nada. Nada,
Acredita, é só do estômago.

Os seus olhos fecharani-se.

Depois do toque de recolher, Lewinsky saiu da barraca e foi


acocorar-se perto do 5O9.

- Por que não entraste para o Partido, afinal? -


perguntou-lhe.
O 5O9 olhava Berger, que respirava regularmente.
- @or que queres saber isso agora? - perguntou por sua vez.
- E pena. Gostava de ver-te entre nós.
O 5O9 sabia o que Lewinsky queria dizer. Os comunistas
formavam no campo uni pequeno grupo particularmente activo,
coerente e irredutível. Colaboravam, decerto, com os seus
camaradas, i-nas não depositavam neles inteira confiança e
visavam objectivos particulares. Protegiam e beneficiavam
sempre, em primeiro lugar, os seus próprios homens.

- Poditanios precisar de ti - disse Lewinsky. - Que fazias tu


antigamente? Quero dizer, profissionalmente.

- Redactor - respondeu o 5O9, espantado pelo som estranho


desta palavra.

- Temos precisamente necessidade de redactores.


O 5O9 não respondeu, Sabia que era tão inútil discutir com um
comunista como com um nazi.

- Sabes quem vai ser nomeado chefe de bloco aqui? - perguntou


ao fim de uni momento de silêncio.

- Sei. Provavelmente, um dos nossos. Com certeza uni poVítico.


No nosso bloco já foi nomeado. É do Partido.

- Então, vais voltar para lá?


- Daqui a um ou dois dias. Mas isso nada tem que ver com o
responsável do bloco.

- À parte isso, que sabes de novo? Lewinsky observou o 5O9 com


atenção. Depois aproximou-se dele.

- Contamos assumir a direcção do campo dentro de duas semanas,


mais ou menos.
- O quê?
- Sim. Dentro de duas semanas.
- Queres dizer que seremos libertados?
- Sim, seremos libertados e tomaremos a direcção do campo.
Quando os SS se retirarem, deve ficar tudo nas nossas mãos.

- Nossas de quem?

244

A CENTELHA DA VIDA

Lewínsky hesitou uni instante.


- Dos futuros chefes do campo - disse, depois. - Assim tem de
r, e eles estão já a organizar-se. Se não, seria uma confusão.
Temos estar prontos a intervir imediatamente. É preciso que o
reabasteento do campo seja assegurado sem interrupção. Isso é
o essenAbastecimento, administração... são milhares de homens
que não ,em ir-se embora de qualquer maneira.

Aqui não, com certeza. A maior parte deles nem sequer podem

-rios disso. Médicos, farmácia, meios de transporte,


reno-Tratarei ào dos depósitos de víveres por meio de
requisições nas aldeias...
- E como contam vocês fazer tudo isso?
- Seremos ajudados, claro, mas é preciso organizar tudo. os
!canos e os ingleses que nos libertarão serão conibatentes.
Não

ão preparados para administrar campos de concentração. Temos


nos encarregar disso, corri a ajuda deles, naturalmente.

5O9 via a cabeça de Lewinsky recortar-se no céu nublado. Era e


redonda, sem doçura. É singular - disse. - Como tão depressa
se conta com o auxídos próprios inimigos!

.11 @ Dormi - declarou Berger. - Agora estou bem. Era do


estôgo,nada mais,

Tu estás doente e não é do estômago - replicou o 5O9. - Nunca


dizer que o estômago pudesse provocar escarros de sangue.
Berger abria muitc, os olhos.
- Tive uni sonho estranho. Muito claro e muito verogimil.
Opeai um doente. Luz crua... @Os seus olhos mergulharan-i na
noite.
Lewinsky crê que seremos libertados dentro de duas semanas,
21m - disse o 5O9, cautelosaniente. - Eles recebem agora
notixom regularidade. ,Berger não se mexia. Parecia nem sequer
ter ouvido.
1 Eu operava - disse. - Tinha começado a abrir. Era uma secção
do estômago. Começo, portanto, e, bruscamente, paro: não

já o que havia de fazer. Tinha esquecido tudo. O suor


inundame. O doente estava diante de mim, anestesiado, com o
ventre

o, e eu já não sabia, Tinha esquecido a operação toda, Era

Não penses nisso; foi um pesadelo, nada mais. Quesonhos não o


eu tido! E que sonhos não continuaretrios a ter depois de
tersaído daqui!

245

ERICH-MARIA REMARQUE

O 5O9 começou a sentir muito distintamente uni cheiro de ovos


com presunto. Fez uni esforço para libe~~se da obscessão.

- Nem sempre serão cor-de-rosa, com certeza - disse.


- Dez anos. Berger continuava a olhar o céu. -- Dez anos de
nada! Dez anos que se foram! Nada mais! Sem trabalhar. Nunca
tinha pensado nisto. É provável que eu tenha esquecido muita
coisa. A falir verdade, não me lembro já exactamente como a
operação se faz. Nos primeiros tempos aqui no campo paSSava as
noites a refazer mentalmente operaçóes. Para me manter em
condições. Depois deixei-tile disso. É possível que eu tenha
esquecido completamente...

- As coisas deixam de estar presentes no espírito, mas, no


fundo, não esquecem verdadeiramente. É como as línguas
estrangeiras ou a bicicleta.

- Sim, pode-se esquecer. As mãos. A exactidão, Pode-se perder


a segurança. Ou deixar de estar em dia. Em dez anos passa-se
muita coisa, Fazem-se muitos progressos. Que sei eu deles?
Envelheci. Estou velho e fatigado.

- É curioso - dise o 5O9. - Por acaso pensei também na minha


antiga profissão. Lewinsky tinha-me perguntado o que fazia eu
dantes. Ele crê que dentro de duas semanas teremos saído
daqui, Imaginas o que será?
Berger abanou a cabeça com um ar ausente.
- Que aconteceu a todo este tempo? - disse. - Tu dizes duas
semanas, agora. E, de súbito, perguntamo~s: que aconteceu a
estes dez anos?

A cidade ardia no fundo do vale. O tempo continuava abafado,


apesar da noite. Do chão ia subindo uni vapor. Os relânipagos
faziam estremecer o horizonte, onde se via o esbrasear de dois
incêndios longínquos, outras cidades em chamas.

- Não valia mais deixar tudo isso agora, Ephraim, e


regozijarmo-nos simplesmente por não termos perdido a
faculdade de pensar?

- Sim, tens razão.


- Pensamos outra vez como seres humanos; quanto a saber o que
acontecerá depois do campo de concentração, para quê nos
preocuparnios?

Berger aprovou com a cabeça.


- E que me importa passajar meias durante o resto dos meus
dias, desde que tenha saído daqui'? Todavia... 'diu relâmpago
rasgou o céu. Muito tempo depois ouviii-se o trovão longínquo.

247

A CENTELHA DA VIDA

Queres entrar? - perguntou o 5O9- - Podes arrastar"te ou an-


4evagar?

tempestade desencadeou-se pelas onze horas. Os relâmpagos

am. o céu, descobrindo num segundo uma paisagem rivida, de


crateras e ruínas. Berger adormecera profundamente. O 5O9
sentado ma soleira da porta do bloco 22, A barraca estava-lhe
o aberta desde que Lewinsky matara Handke. Apertava o revólas
munições debaixo do casaco. Receava que a chuva os inuti-

se os deixasse no buraco habitual. entanto, nessa noite, pouco


choveu. A tempestade passou rapi-

depois dividiu-se e houve, durante muito tempo, várias temque


lançavam relâmpagos de horizonte a horizonte, como -Duas se
manas-, pensava o 5O9, olhando para além da veo a paisagem,
que se iluminava bruscamente, para logo recair na .
Parecía-lhe pertencer ela a um outro universo que não cessara,
últimas semanas, de aproximar-se progressivamente, de arran@

pouco a pouco a um no man's land desesperado, e que esagora


atrás do arame farpado, com o seu cheiro de campos dos, de
destruição e de incêndio, mas também com as suas

as suas florestas, a sua verdura. E enquanto os relâmpagos o


essavam e o iluminavam, o 5O9 sentia subir dentro de si um
pasesquecido, apagado, longínquo, quase incompreensível e
ines- . Estremeceu na noite quente. Estava menos seguro de si
do quisera fazer crer a Berger. Decerto lembrava-se, e isso já
era iderável, assim lhe parecia, mas seria bastante, depois de
anos dos no campo de concentração? Não sabia dizê-lo. Muitas
coitinham morrído entretanto. Ele apenas sabia unia coisa,,
viver era do campo; mas, para além, tudo se tomava incerto,
vago e trémue ele nada podia imaginar de definido, Lewinsky
podia-o, sim, mas se raciocinava como membro do Partido
Comunista. O Partido Ia

rvê-lo. Nele se encontraria a si mesmo, e isso lhe bastaria.


"Que restará?", perguntava -o 5O9, "Que me resta, além desta
vontade de er? A vingança? Mas a vingança não conduz a parte
alguma. A íngança pertencia a essa sombria metade, àquela que
era preciso su- 'mir. Mas então o quê?" Sentiu no rosto
algumas gotas de chuva

entes, corno lágrimas vindas não sabia donde. Quem tinha ainda
lárimas para chorar? Todas elas estavam queimadas, secas desde

itos anos. Um armricamento surdo, por vezes a perda de


qualquer sa que há muito tempo se considerava nula, era tudo o
que podia t@io%trar que ainda se tíntia alguma coísa a perder.
E esse termórnetro ,@atingiía há muito o nível de
sensibilidade mais baixo - uni frio mais i

ERICH-MARIA REMARQUE

intenso já só se manifestava pela queda dum membro gelado, um


dedo, um pé, que se iam quase sem sofrimento.

Os relâmpagos sucediani~se mais rapidamente e a colina


prõxiiiia era banhada por unia luz trémula e sem sombra, sob
uni céu negro, onde rolava uni trovão contínuo, Via-se' de
novo a longínqua casinha branca com o seu jardinzinho.
-Bucher", pensou o 5O9. "Bucher ainda tem qualquer coisa. É
novo, tem Ruth. Alguém que sairá com ele. Mas quanto tempo
durará isso? E, bem vistas as coisas, quem podia perguntá-lo?
Quem exigia compromissos? E quem podia comprometer-se?"

O 5O9 encostou-se ao tabique. -Que ideias estúpidas são


estas?", pensou. "Berger contaminou-me. Nós estanios
fatigados, é o que é." Respirou devagar e supôs reconhecer
através do fétido da praça e da barraca o odor da Primavera e
das germínações. A Primavera voltava em cada ano com as suas
andorinhas e as suas flores, indiferente à guerra e a morte,
aos lutos e à esperança. Regressava, estava ali. Não era isso
bastante?

Fechou a porta e dirigiu-se para o seu canto. Os relâmpagos


dançaram toda a noite diante das janelas partidas e a barraca
assemelhava-se a um navio deslizando silenciosamente num rio
subterrâneo eriçado de recifes, uingrande navio povoado de
mortos que uma sombria magia fazia respirar ainda e dos quais
alguns continuavam a lutar.

248

penas uma coluna tinha trabalhado na cidade. Continuara os


trabalhos de desentulho e dezoito novos cadáveres tinham
,tirados das ruínas. Agora voltava ao campo. s prisioneiros
atravessavam o centro da cidade. Os SS vigiavam luna, mas
tinham renunciado aos desvios pelos bairros menos idos para
esconder dos prisioneiros a extensão das destruições. Ira
tomavam o caminho mais curto, '@As ruas estavam devastadas. As
paredes de algumas casas tinham

projectadas sobre as casas fronteiras, corno para uma violação


truosa. Nalguns pontos. os montes de escombros atingiam s de
altura. No meio duma rua, semienterrado nas pedras e na ,
aparecia um piano com a tampa arrancada. As tecias estavam
ctas e alguns garotos divertiam-se a tocar o Horst Wessellied.
Algunotas ásperas soavam, mas mais de metade das cordas
estavam rtidas. Uma padaria sem tecto encontrava-se aberta.
Uma fila de soas apertava-se à espera. As pessoas estavani
cobertas de poeira, otadas, mas pacientes. Os prisioneiros
desfilaram ao lado delas. Os ,-gritaran-i ordens. Cheirava a
pão. No entanto, o odor adocicado e 'do dos cadáveres chegava
ali, penetrado pelos acres vapores de

e enxofre. A causa estava no calor anormal dos últimos dias. A


escapava-se em regatos dos canos rebentados. Alguns homens
uniforme de bombeiro abriam uma trincheira, Tinham trazido ma-
1 para reparar a canalização da água. Os tubos novos brilhavam
b sol. Causava espanto, alguém pensar ainda, no meio de todas
estas ínas, numa reparação tão vã e irrisória. Numa rua
adjacente, outra a de sinistrados esperava diante duma cozinha
rolante.

As vitrinas destruídas tinham sido já substituídas por ripas


de ,madeira, pranchas e rectângulos de cartão. Os uniformes
nazis tornaVam-se raros. Viam-se mais calçóes e botas do que
casacos, Estes `tinhani~se transforniado em casacos civis, Só
até à cintura se era ainda ,nazi. @ Os prisioneiros atingiram
os arrabaldes da cidade. Atravessavam unia das raras pontes
que tinham ficado intactas. Unia antiga figura de

Híno oficía1 do Partido Nazí. (M do T)

249

ERICH-MARIA REMARQUE

pedra que lhe decorava uma das extremidades perdera um braço e


a cabeça. A estátua equestre de Frederico, o Grande, na vasta
praça, fora arrancada do seu soco de granito. Frederico, muito
inclinado, parecia cavalgar em pleno céu. Com o braço
levantado, apontava umas pequenas nuvens que brilhavam ao sol.

A coluna meteu-se por uma rua guamecida de árvores, que as


bombas tinham inteiramente poupado@ Era, no meio das ruínas, o
testemunho duma paz esquecida. As árvores espalhavam uma
sombra verde, as casas eram maciças, sem fendas, o passeio
estava limpo, as vidraças intactas, guarnecidas por cortinas
garridamente pregueadas. Tudo isto parecia inconcebível.

Uni grupo de rapazes subia a rua em sentido contrário. Vestiam


unifon-nes. Eram robustos e sadios, cheios de vida e animação,
rapazes como todas as mães sonham ter. Viram aproximar-se os
prisioneiros e afastarani-se para o passeio. Os prisioneiros
desfilavam pelo meio da rua. Os rapazes, reunidos, falavam em
voz baixa. Um deles podia ter catorze ou quinze anos, os
outros eram mais novos. Tinha um rosto aberto e calmo, traços
finos, cabeça alongada, olhos azuis, uma mecha de cabelos
sedosos e louros. Levantou o braço e, a este sinal, o pequeno
grupo gritou para os prisioneiros:

- Abaixo os traidores! As suas vozes eram claras e límpidas.


Gritaram outra vez:
- Porcos judeus! Traidores! Toda a rua ressoava com os gritos.
Os pássaros deixaram de pipilar nas árvores. Unia janela
abriu-se. Os rapazes gritaram mais. Depois o mais velho deu
alguns passos, tirou um revólver do bolso, levantou a amia,
apontou rapidamente e fez fogo à queima-roupa contra o
prisioneiro mais próximo.

- Um canalha a menos - disse com a sua voz juvenil, recuando.


- É pena que eu não tenha mais cartuchos, se não liquidaria
ainda mais alguns.

O prisioneiro jazia na valeta. Uma mancha de sangue alastrava


debaixo da sua cabeça. Endireitou-se a custo e virou a cara
para o grupo de rapazes. Era. velho, o sangue corria-lhe r-to
maxilar rebentado, os seus olhos esgazeados cobriam-se
lentamente de um véu. O belo adolescente não desviou os olhos.
Examinava a ferida como conhecedor. Por fim, o crânio
sangrento inclinou-se. Os braços cederam. A perna direita
pôs-se. a tremer, até que se imobilizou também. _ Helrnuith,
que fizeste? - disse um do rapazes.

Dois SS acorreram.
- Que quer isto dizer? Que ideia foi esta?

25O

A CENTELHA DA VIDA

traidor a menos - disse Heirauth, afastando para trás a sua


ura. dias deixar isto connosco - resniungou, um dos SS. quê? -
disse Heimuth, fitando-o. Ixa, deixa - disse o segundo SS
nervosamente - Não vale ,arranjar mais questões, Em frente,
marchem! Continuem! -

ra os prisioneiros, tirando o revólver. - Em frente, já disse!


deixar ainda outro na valeta? Os quatro últimos encarredo
cadáver! una moveu-se de novo. Um dos SS ficou para tomar
contado do morto. ,Tu és um duro, hem? - disse para HeImuth.
Wehrvolf - respondeu o rapaz com orgulho. seus camaradas
conteniplarani-no com admiração. O SS revisalgibeiras do
prisioneiro e levantou-se. Heí1 Hitler! - dise Heimuth numa
voz breve. SS voltou-se: Hed Hífler! quatro últimos
prisioneiros agarraram o morto pelos braços e pernas e
levantaram~no. O grupo dos rapazes afastou~se. Heitomou a
dianteira. Cantar - ordenou. - Um, dois, três! .Principiaram
simultaneamente. Durante muito tempo ouviram as
vozes claras:

Wenn.luderiblut vom Messer sprízt Gebts nocb eínmal so gut

Esta canção quase se tornara um sucesso popular. As crianças


ca tinham ouvido outra coisa.

Bruno - disse Selma Neubauer numa voz calma -, não sejas pido.
Reflecte um pouco. Reflecte antes que os outros comecem
reflectir. É a nossa única possibilidade. Vende tudo o que
puderes. nosso terreno, o pomar, a casa, tudo, com perda ou
ganho, pouco Porta.
- E o dinheiro? Que vai acontecer ao dinheiro? Netibauer
abanava a cabeça com obstinação.

Se o que dizes for verdade, que valor terá ainda o dinheiro?

@Quandç) o sangue judeu jorra sol) as nossas facas, tujo coiTe


i~ iiiellior." do T)

251

ERICH-MARIA REMARQUE

Esqueceste-te da inflação depois da última guerra? Um milhão


valia exactamente um marco. Aplicações de capital era só o que
contava!

- Sim! Mas aplicações de capital que se possam meter na


algibeira. Selma Neubauer levantou-se e dirigiu-se a um
armário. Abriu-o e afastou algumas peças de roupa. Depois
tirou um cofrezinho, que abriu. Continha cigarreiras de ouro,
caixas de pó-de-arroz, alguns broches de diamantes, um broche
ornado com um rubi e vários anéis.

- Olha - disse -, aqui está o que eu comprei nestes últimos


anos sem tu saberes. Com o meu dinheiro e as economias que
pude fazer. Em compensação, vendi os títulos que possuía. Hoje
já não valem nada. As empresas estão destruídas. Mas isto
conserva o seu valor. isto pode levar-se. O que eu desejava
era que só tivéssemos jóias.

- Levar! Levarl Tu falas como se fôssemos gatunos em fuga!


Selma arrumou o cofre no armário. Conservara uma cigarreira,
que fazia brilhar, esfregando-a na manga do vestido.
- Pode acontecer-nos o mesmo que aos outros quando vocês
conquistaram o Poder. Pode ou não pode?

Neubauer deu um salto.


- Se te ouvissem - disse com um furor impotente -, podias ser
enforcada! Há homens que têm esposas compreensivas, que são
uma fonte de consolação quando eles voltam do trabalho, que os
alegram, mas tu! Lamúrias, "tu devias fazer isto", maus
agouros! Todo o dia! Toda a noite! Nem sequer já me deixas
dormir! E sempre: vender, vender!

Selma não o ouvia. Tomava a arrumar as pilhas de roupa sobre o


cofre.

- Diamantes - disse ela -, belos diamantes, límpidos. Sem


armação. Só as pedras mais belas. Uni quilate, dois quilates,
três quilates, até seis ou sete, se se encontrar. E bem
preferível a todos os teus Blanks, às tuas casas, às tuas
hortas, aos teus terrenos. O teu notário enrolou-te. Tenho a
certeza de que ele teve um lucro duplo. Os diamantes podem
esconder-se. Podem ser cosidos nos fatos. Pode-se mesmo
engoli-los. Os teus terrenos não.

Neubauer olhava-a fixamente.


- Como tu falas! ora tens uni medo histérico de algumas
bombas, ora pareces, falando, um judeu pronto a cortar uni
pescoço por dinheiro.

Ela teve um olhar de desprezo para o uniforme, o revólver e os


bigodes do marido.

- Os judeus não cortam o pescoço a ninguém. Os judeus


ocupani-se da sua família. Melhor que muitos super-homens
germânicos. Os judeus sabem o que há a fazer em caso de
perigo.

Sim? E que fizeram eles? Se soubessem o que havia a fazer, não


teriam ficado aqui e nós não os teríamos apanhado.

252

A CENTELHA DA VIDA

tinham previsto que vocês fariam deles o que fizeram. aplicava


água-de-colónia nas têmporas. pareces esquecer que desde 1931
o dinheiro não pode sair da a. Foi esse o inotivo que impediu
muitos judeus de se irem Por isso vocês puderam apanhá-los.
Muito bem. E tu agora
1exactaniente a mesma coisa, vocês serão apanhados precisa-
,,da mesma maneira.

bauer deitou um rápido olhar em tomo de si. Tem cuidado, com


mil diabos! Se te ouvem, estarnos perdidos! selho de guerra
popular não perdoa. Basta uma denúncia.

criada saiu. E por que não vos farão a mesma coisa que vocês
aos outros? uem? Os judeus? @abauer rebentou a rir. Imaginava
Blank a torturar Weber. Os judeus? Sentir-se-ão muito felizes
se os deixarem tranquilos. Não são os judeus. Os ingleses e os
americanos. bauer teve um novo acesso de hilaridade. Esses
ainda menos! Não querem saber disso! As medidas de pointerna,
tal como a organização dos nossos campos de concen-

deixam-nos perfeitamente indiferentes! Apenas se ocupam de es


internacionais e militares. Não compreendes? São democratas.
Tratar-nos-ão correctamente se ganharem, o ainda não está
assente. Militarmente. Correctamente. Teremos

às honras devidas aos vencidos. Eles não podem fazer outra Os


seus próprios princípios a isso os obrigam! Com os russos
diferente! Mas esses estão para o Oriente. Fica aqui então!
Verás o que te sucede! Perfeitamente, fico aqui e verei.
Poderás dizer-me para onde s se quiséssemos fugir? Devíamos
ter ido há anos até à Suíça, com os diamantes.. Deviamos,
devíamos! eubauer deu um violento soco na mesa. As garrafas de
cerveja pum-se a dançar.

Devíamos! Outra vez! Que devíamos ter feito? Talvez atravessar


fronteira num avião roubado, heni? Tu não sabes o que dizes.

- Não num avião roubado, mas podíamos ter feito algumas vians
durante as férias e levar o dinheiro e as jóias. Duas, três,
quatro

ens. E, de cada vez, deixar lá tudo. Conheço alguns que


fizeram

Neubauer foi até à porta. Abriu-a, depois voltou a fechá-la e


reessou. U - Sabes o que estás a dizer? É pura e simplesmente
alta traição.

253

ERICH-MARIA REMARQUE
Se urna só das tuas palavras fosse divulgada, serias fuzilada
imediatamente.

Selma fitou-o. Os seus olhos brilhavam.


- E depois? Estás ainda a tempo de mostrar que belo herói és.
Além do mais, ficarias desembaraçado duma mulher perigosa.
Talvez te agradasse.

Ncubauer não pôde suportar-lhe o olhar, Virou-lhe as costas e


pôs-se a percorrer o quarto de um lado para o outro.
Perguntava a si mesmo se ela saberia alguma coisa acerca da
viúva que recebia de tempos a tempos.

- Selma - disse, por fim, numa voz diferente que


significa tudo isso? É preciso que nos mantenhamos unidos!
Sejamos um pouco razoáveis. De momento nada podemos fazer;
temos de aguentar. Eu não posso ir-me embora, Estou
mobilizado. Para onde queres tu que eu vá? Para os russos?
Claro que não. Esconder-me em qualquer parte da Alemanha não
ocupada? A Gestapo apanhar-me-ia depressa e tu sabes o que
isso significa! Passar para o outro lado, para os americanos
ou para os ingleses? Também não. É preferível esperá-los aqui,
se não iriam supor que eu tenho alguma coisa a pesar-me na
consciência. já considerei todas estas possibilidades,
acredita. É preciso aguentar, não há outra coisa a fazer.

- sim. Ncubauer levantou os olhos, espantado.


- É certo? Compreendeste-me finalmente? Consegui convencer-te?

- sim. Olhou-a com desconfiança; custava-lhe a acreditar numa


vitória tão rápida. Mas Selma renunciara de súbito: as suas
faces amoleceram. "Convencer", pensava ela. "As suas provas!
Eles crêem no que julgaram provar... como se a vida obedecesse
a provas! Nada se pode tirar deles! São ídolos de barro. 86
crêem neles mesinos." Observou demoradamente o marido.
Olhava~o com uni estranho misto de piedade, de desprezo e um
resto de longinqua ternura. Neubauer sentiu-se pouco
à-vontade.

- Selma... - começoii. Ela interrompeu-o. .


- Bruno, unia última coisa, a últinia. É tudo o que te peço...
- Que ternos? - perguntou ele desconfiado.
- Transfere a propriedade da casa e do terreno para o nome de
Freya. Vaí,já falar com o notário. É só isto, nada mais.

- Porquê?
- Não é para sempre. Provisoriamente. Se tudo correr bem, em

254

A CENTELHA PA VIDA

altura se pode anular a transferência, Tu tens confiança na

dúvida, sem dúvida, mas a impressão que isso vai causar---

&o queiras saber da impressão! Sê realista. Freya era unia


uando conquistaram o Poder. Não podem acusá-la de nada.
catou-se. De novo o seu estranho olhar caiu sobre Neuhauer. s
somos soldados - disse ele. - Agimos segundo as ordens

mos. Unia ordem é urna ordem, toda a gente sabe isto. gou-se.
-brerordena, nós obedecemos. O F~erassume a responde completa
das ordens que dá. Repetiu-o bastantes vezes.

ta nada mais exige. E assim ou não? iii - disse Selma,


resignada -, mas vai ao notário, transfere s bens para o nome
de Freya. Oh, pensando bem.--- Posso falar-lhe nisso.

uni instante pensou em fazer esta diligência.

perdera a cabeça. Deu-lhe uma palmadinha no ombro. mos,


deixa-me tratar das coisas. Até agora sempre me saí

num passo pesado. Selma Neubauer aproximou-se da ja


'nela. bir para o carro. -Provas! Ordens!", pensava. "S6 têm
estas a boca para se defenderem. É perfeito enquanto dura.- E
não própria cúmplice também? Baixou os olhos para o anel.
Fazia vinte e quatro anos que o trazia. Era uma mulher
diferente o o pusera pela primeira vez. Fora preciso alargã-lo
por duas Fora também pedida em casamento por um judeu. Um
hoito afadigado e silencioso que nunca levantava a voz. Chamae
Joseph Bonfelder. Tinha emigrado em 1928 para a América, Um
rtalhão. Escapara a tempo. Soube notícias dele uni dia, por
uni ecido comum a quem ele escrevera, Prosperava. Ela ia
rodando sativamente o anel no dedo. "A Ainérica", pensava.
-Nunca há infla- . São muito ricosm

O 5O9 apurou o ouvido. Estava a reconhecer aquela voz.


Agati-se prudentemente atrás da pilha de mortos e escutou.
.Sabia que Lewinsky devia trazer nessa noite alguém do campo
de
lho que tinha de desaparecer durante alguns dias; mas
Lewinsky,
1 ao velho princípio segundo o qiial só os homens de ligação
se em conhecer uns aos outros, ft;ào tinha revelado a
identidade do céni-chegado.

O novo falava baixo, mas muito distintamente.

255

ERICH-MARIA REMARQUE

Temos necessidade de todos aqueles que estão cormosco dizia. -


Quando o Partido Nacional Socialista cair, não haverâ, ao
princípio, nenhuma,organização susceptível de tomar os
negócios políticos em mão. No decorrer dos últimos doze anos
todos os partidos foram dispersos e dizimados. Os
sobreviventes desapareceram. Ignoramos quantos restam. Serão
necessários homens decididos para refazer uma organização. Um
único partido permanecerá intacto no caos da derrota: o
Partido Nazi. Quero dizer, não a massa de simpatizantes, estes
aderirão a qualquer outro partido mas o núcleo central. Fará
uma retirada em boa ordem para a clandestinidade, à espera da
sua hora. É ele que será preciso combater, e para tal
precisamos de homens.

"É Werner", pensou o 5O9; "é ele com certeza; contudo, eu


estava convencido de que tinha morrido." Não podia ver nada; a
noite sem lua era impenetrável.

- As massas, lá fora, estão em grande parte desmoralizadas -

prosseguia a voz. - É o resultado de doze anos de terror, de


boicotagem, de denúncia e de medo, ao que se acrescenta agora
uma guerra perdida., O medo dos nazis pode ser inantido ainda
durante anos, pelo terrorismo e pela sabotagem. É preciso
ganhar a sua confiança, a confiança daqueles que foram
enganados e atemorizados. Paradoxalmente, os adversários dos
nazis resistiram melhor nos campos de concentração do que em
qualquer outro lado. Aqui, reuniram-nos; lá fora, os grupos
foram dispersos. Era difícil, no exterior, manterem-se em
ligação uns com os outros; aqui não podiam deixar de o estar.
Lá fora, cada um tinha de lutar sozinho; aqui,
encorajávanio-nos mutuamente, Eis um resultado que os nazis
não tinham previsto.

O desconhecido riu. Era um riso breve e sem alegria.


- Abstraindo os que foram assassinados - disse Berger - e os
que sucumbiram.

- Abstraindo esses, evidentemente. Mas restam-nos ainda


homens, e cada um delesvale mais de cem dos outros.

"É com certeza Werner", pensava o 5O9. Distinguia-lhe agora o


perfil ascético na sombra. "Recomeça. a analisar. Organiza
tudo. Faz discursos; continuou a ser o fanático e o teórico do
seu partido."

- É preciso que os campos de concentração se transformem nas


células de reconstrução - explicava a voz clara e doce. - Os
três pontos essenciais são os seguintes: primeiro, resistência
passiva e, em último caso, activa contra os SS, durante o
tempo em que eles estiverem ainda no campo; segundo, evitar o
pânico e os excessos quando assumirmos a direcção do campo.
Devemos demonstrar, duma inaneira exemplar, que somos
disciplinados e que não nos deixamos arrastar pela sede de
vingança. Tribunais regulares serão mais tarde...

O homem interronipeu-se. O 5O9 levantara-se e encaminhava-se

256

A CENTELHA DA VIDA

po, que compreendia Lewinsky, Goldstein, Berger e o


O. mer... - disse o 5O9. mem tentava penetrar as trevas. em és
tu? tou-se e avançou. gava-te morto! - disse o 5O9. r
encarava-o de perto. Iler - disse o 5O9. Xoller! Ainda estás
vivo? E eu que te julgava morto há muito

t u-o, com efeito. Oficialmente. o 5O9 - disse Lewinsky.


,tntão és tu o 5O9! Isso simplifica as coisas. Eu também estou
oficialmente. dois homens fitavani-se na obscuridade. A
situação não era Mais de uma vez um prisioneiro que toda a
gente supunha morto ,reaparecido com uma nova identidade. Mas
o 5O9 e Werner

iani-se antes da sua entrada no campo de concentração.

sido amigos, depois as suas opíníóes políticas tinhani-nos do.


Ficas entre nós? - perguntou o 5O9Sim, Alguns dias. Os SS
estão nas últimas letras do alfabeto - explicou Lewinsky.
anharam Vogel. Caiu nas mãos de um que o conhecia. Um o
Ui2terscbarfuebrer. Não serei pesado para vocês - acrescentou
Werner. - Eu mo proverei a minha subsistência.
- Claro - disse o 5O9 com unia imperceptível ironia. - Não
espe-

menos de ti.

Muenzer foinece-nos o pão amanhã. Lebenthal poderá ir lo.


Haverá mais do que eu preciso. O resto será distribuído pelo
grupo. Eu sei - respondeu o 5O9 -, eu bem sei, Werner, que não
s nada sem contrapattida. Ficas na 22? Podíamos arranjar-te
gar na 2O.
4

- Posso ficar na 22. Tu tanibém, aliás, agora que Handke


desapaceu.

Nenhum dos outros notou o duelo que esta troca de palavras en-
@ros dois homens encobria. -Como nós somos
pueris!", pensou o 5O9. om o pretexto de que há uma eternidade
fomos adversários políos, nenhuni dos dois quer hoje dever
seja o que for ao outro. Eu ínto uma satisfação estúpída por
ver Werner procurar reffigio aqui e

257
O. C~Cos do Séc. XX 25 - 17

ERICH-MARIA R~RQUE

ele lembra~me discretamente que sem o seu grupo eu teria sido


talvez liquidado por Handke."

- Ouvi o que dizias há pouco. Tens absoluta razão - disse. -

Que queres tu que façamos?

Tinham ficado cá fora. Werner, Lewinsky e Goldstein doriniaiu


na barraca. Lebenthal devia acordá~los ao fim de duas horas
para cederem os lugares. A noite estava abafada. Contudo, o
5O9 exigira que Berger se cobrisse com o quente dólinan
húngaro.

- Quem é o novo? - perguntou Bucher. - Um bonzo?


- Era-o antes da vinda dos nazis. Não de primeira grandeza.
Uni bonzo local. Activo. Comunista. Uni fanático sem sentido
de humor nem vida privada. Depois tornou-se tini dos chefes do
movimento clandestino do campo.
- Donde o conheces tu? o 5O9 reflectiu
- Até 1933 fui redactor da imprensa. Discutimos muitas vezes.
E muitas vezes ataquei o partido dele. O partido dele tanto.
como, os nazis. Éramos contra ambos.

E por quem eram vocês? Por alguma coisa que soa hoje duma
maneira bastante pomposa e cómica. Pela humanidade, a
tolerância e os direitos do indivíduo. É engraçado, hem?

- Não. Ahasver tossiu.


- Que há além disso?
- Há isto. Lebenthal riu.
- A vingança! - disse de repente Meyerhof. - Há ainda a
vingança! A vingança por tudo isto! A vingança por cada morto!
A vingança por tudo o que foi feito. Olho por olho, dente por
dente!

Todos levantaram a cabeça, estupefactos. O rosto de Meyerhof


estava alterado. Cerrava os punhos e martelava o chão de cada
vez que pronunciava a palavra víngança.

- Que foi que te deu? - perguntou-lhe Sulzbacher.


- E a vocês, que é que vos deu? - replicou Meyerhof.
- Está doido! - disse Lebendial. - Gurou-se e isso deu-lhe
volta à cabeça. Durante seis anos foi apenas iiiii pobre
insecto amedrontado que nunca se atrevia a abrir a boca.
Depois tini milagre salvou-o da ch,iminé, e agora está
transformado em Sansão Meyerhof!

- Eu não quero ser vingado - murinurou Rosen. - Quero


simplesniente sair daqui!

258

A CENTELHA DA VIDA,

E os SS safara-se sem prestarem contas? indiferente, Só peço


unia coisa: sair daqui! 'juntava as màos e falava com tanto
ardor que dir-se--la dedo da sua oração, desejo sair! Sair
daqui! diof fitou-O. $abes o que tu és? Ésala-te, MeyerhoP.

sentara-se. nhum de nós aqui é o que era nem o que


de,,eiafia,,er, O que

mente somos, isso vey-se-á mais tarde. Quem poderá -agora?


Tudo o que podemos fazer é aguardar, ter esperança êm rezar,
nchegou o dõlliian húngaro em volta dos onibros ç tornou a
Vingança - disse Ahasver, com ar pensativo,,alguns momentos
@,,gde. Haveria muita vingança, e a vingança engendra urna
,v,ingança. Procedan-ios antes de maneira,que nunca mais se
duza o que aqui vertws,

rizonte iluminou-se. Que foi aquilo? - perguntou Bucher.

trovejar longinquo lhe respondeu. Não é uni bombardeamento -


declarou SuIzbacher é unia tempestade. Está muito
abafado. Se começar a chover, acordaremos os homens do campo
de ho. Eles podem bem dormir aqui, são mais fortes do que nós.
'Vírou-se para o 5O9-
O teu arnigo, o honzo, conio os outros. @Houve um novo
relâmpago. Algum deles ouviu falar nunia deportação? -
perguntou bacher.
- Corrern boatos. Segundo o último, reuniriam mil presos.
- Meu Deus! A palidez de Rosen brilhava na sombra.
- E evidente que eles nos levarão a nós, os mais fracos. Para
se sembaraçarem de nós. Olhou o 5O9, Todos pensavam na última
coluna que tinhani visto.

E apenas um boato - disse o 5O9- - Agora todos os dias nos


egarn das Ia trínas mil notícias contraditórias. Permaneçamos
calmos quanto não vêm ordens. Nessa altura se verá o que
Lewinsky, Werr e Os homens da administraçào podera fazer por
nós. Ou o que nós esiiios podemos fazer aqui.

259

ERICH-MARIA REMARQUE

Talvez seja preferível deixar os bonzos dormir se começar a


chover - disse. Lebendial.

Rosen estremeceu.
- Viram como os SS os puxaram pelos pés, de debaixo da cama?
Lebenthal olhou-o com desprezo.
- Nunca viste nada pior na tua vida?
- vi.
- Um dia, encontrava-me eu num grande matadouro - contou
Ahasver. - Tinha lá ido para o sacrifício sagrado. Era em
Chicago. Por vezes, os aniniais suspeitavam do que se ia
passar. Cheirava-lhes a

sangue. Então, precipitavani-se, como no outro dia, não


importava onde, num canto. E eram puxados do mesmo modo, pelas
patas traseiras.

- Estiveste em Chicago? - perguntou Lebenthal.


- Estive
- Na América? E voltaste?
- Há uns vinte e cinco anos.
- E tu voltaste? Lebenthal fitava Ahasver.
- Alguma vez se ouviu coisa semelhante?!
- Tinha saudades da Polónia.
- Imagina... Lebenthal interrompeu-se. Estava perturbado.

26O

XX

e manhã o tempo aclarou e uma madrugada cinzenta e leitosa se


ergueu. Os relâmpagos tinham cessado, mas o rumor surdo nuava
a rolar ao longe, atrás da linha das florestas.
- Estranha tempestade! - disse Bucher. - Geralmente, vêem-se

pagos de calor e não se ouve o trovão quando a tempestade se

Aqui é exactamente o contrário. Talvez a tempestade esteja a


voltar - sugeriu Rosen. E por que voltaria ela? Lá onde eu
morava as tempestades passeiam, por vezes, durante s inteiros
entre as montanhas.
- Sim, mas aqui não estamos dentro dum círculo de montanhas.
apenas uma linha de insignificantes cumes lá em baixo.

Não tens outras perguntas a fazer? perguntou Lebenffial.


Léo - disse Bucher tranquilamente vê se tratas de nos
arran~ guma coisa para mastigar. Mesmo que seja uma sola de
sapato

Tu não queres que eu me encarregue de mais nada? -


pergunLebenthal, depois dum silêncio de estupefacção.
- Não.
- Bem. Então, repara bem no que dizes! E vai tu próprio
procurar a ração, fedelho! Nunca vi semelhante insolência!

benthal quis cuspir, mas tinha a boca seca e, no esforço que


fez, u-lhe a dentadura. Apenas teve tempo de a apanhar na
queda. ou a colocá-la.
- Aqui está o que se ganha em arriscar todos os dias a pele
por cês - disse amargamente. - Censuras e ordens! Daqui a nada
veres Karel chegar também com as suas ínstruções!
O 5O9 aproxiniou-se.
- Que se passa?
- Pergunta-lhe. - Lebenthal apontava Bucher. - Sua Excelêndá
ordens. Parece que tem a intenção de vir a ser responsável de
co!
O 5O9 olhou Bucher. -já não é o niesnio", pensou. "Não o notei
logo, s na verdade, ele está mudado."
- Afinal, que se passa de facto?

261

ERICU-MARIA REMARQUE

- Absolutamente nada. Falávamos da tempestade.


- Que têm vocês com a tempestade?
- Nada. Mas é estranho que se continuem a ouvir os trovões
quando não se vêem nem relâmpagos nem nuvens. Apenas há este
caldo cinzento por cima das nossas cabeças, que não é nuvem de
tempestade.

- Ora aí estão os problemas! Troveja, mas sem relâmpagos!


Gojim naches! - disse Lebenthal do seu lugar, rangendo os
dentes. Meschugge!

O 5O9 levantou os olhos para o céu. Estava cinzento, mas,


segundo lhe parecia, limpo de qualquer nuvem.

Depois escutou,
- Há realmente tro... Interrompeu-se de súbito. A si-ia
atitude mudou bruscamente. Escutava agora com todo o corpo.

- Mais outro - troçou Lebenthal. - A loucura faz adeptos hoje!


- Silêncio! - murmurou o 5O9.
- Então, tambénitu?
- Calas-te ou não? Deixa-te estar quieto, Léo! Lebenthal
calou-se. Compreendera que já não se tratava de tempestade.
Observava o 5O9, que escutava, muito concentrado, o longínquo
trovejar. Todos se calavam e escutavam agora com ele.

- Ouçam-me bem - disse o 5O9 lentamente e em voz baixa, como


se receasse que as palavras lhe escapassem. - Isto não é uma
tempestade, é...

Esperou ainda um momento e olhou em redor. Depois disse,


sempre em voz baixa:

- É a artilharia,
- Hem?
- É o fogo da artilharia, não é o trovão. - Todos os homens se
olhavam.

- Que têm vocês? - perguntou Rosen da soleira da porta.


Ninguém respondeu.
- Então? Ficaram petrificados? Bucher virou-se.
- O 5O9 diz que se pode ouvir o fogo da artilharia. Para isso,
a frente não pode estar muito longe.

- O quê? Rosen aproximou-se.


- É verdade? Não estarão a sonhar?
- Como queres tu que se brinque com este assunto?
- Mas não estarão enganados?
- Não - disse o 5O9.

262

A CENTELHA DA VIDA

u percebes alguma coisa disso? sim. Senhor! ,,tosto de Rosen


contraíu-se. Começou a soluçar, O 5O9 apurou

o ouvido. o vento rodar, ouviremos muito mais distintamente.


A. que distância julgas tu que eles ainda estão? < Não sei
exactamente. Cinquenta quilómetros. Sessenta. Não mais...
Cinquenta quilómetros? Não é muito. Não, não é muito. ---Eles
devem ter tanques - prosseguiu Bucher. - Não precisarão

ito tempo. Supondo que furam a frente, quanto tempo julgas tu


les levarão? Talvez um dia? stacou.

Uni dia? - repetiu Lebenthal. - Que dizes? Um dia só? Se eles


furarem a frente. Ontem não ouviamos nada. Hoje ous o
ribombar. Amanhã estarão talvez mais próximos. Portanto, is de
amanhã ou dentro de três dias... Cala-te! Não digas isso! Não
nos tomes completamente doidos! #ritou de súbito Lebenthal.
Mas é possível, Léo - disse-lhe o 5O9. Não! "@'Lebenthal tapou
os olhos com os punhos cerrados. Que pensas tu disto, 5O9? ,5
Bucher estava pálido como uni morto.
- Depois de amanhã? Ou daqui a quantos dias?
- Dias! - gritou Lebenthal, deixando cair as mãos. - Chmo é

ível que seja já apenas uma questão de dias? - murmurou


rapinte. - Anos e anos, uma eternidade, e, de repente, fala-se
de si Dias! Não mintam! Aproximou-se deles.
- Não mintam - repetia -, suplico--lhes, não mintam!
- Como podíamos nós mentir?
O 5O9 voltou-se. Goidstein estava mesmo atrás dele. Sorria.

Ouvi tudo - disse. Os seus olhos alatgarani-se, tomaram-se


imensos e negros. ntinuava a sorrir. Depois levantou uni braço
e unia perna como se isesse dançar. Por fim, o sorriso
apagou--se-lhe e ele ton-lhou para frente

- Desmaiou - disse Lebenthal. - Desabotoerrí-lhe o casaco. ,ou


buscar água. Deve haver ainda alguma na goteira. Bucher,
SulÊ)acher, Rosen e o 5O9 voltaram GoIdstein.

263

ERICH-MARIA REMARQUE

Será preciso ir procurar Berger? - perguntou Bucher. - Ele já


pode andar?

- Espera.
O 5O9 Inclinou-se para Goidstein. Desabotoou-lhe o casaco e
desapertou-lhe o cinto das calças. Quando se endireitou,
Berger estava ao lado dele. Bucher fora preveni-lo.

- Tu devias estar deitado na tua cama - disse o 5O9. Berger


ajoelhou-se junto de GoIdstein. e auscultou-o. Levantou-se
logo.

- Está morto - declarou. - O coração foi-se abaixo,


provavelmente. Era de esperar. Derani-lhe cabo do coração.

- Ele tinha ouvido - disse Bucher. - É o principal. Disse que


tinha ouvido tudo.

- Ouvido o quê?
O 5O9 passou o braço por cima dos ombros estreitos de Berger.
- Ephraim - disse docemente -, eu creio que será agora. Berger
levantou os olhos. O 5O9 sentiu de repente uma grande
dificuldade em falar.

- Além... - disse, e calou-se, apontando o horizonte. - Eles


aproximan-i--se, Ephrffim. Já podemos ouvi-los.

Olhava o arame farpado e as torres de vigia afogadas na luz


leitosa.
- Eles estão além, Ephralm.

Ao meio-dia o vento rodou e o ribombar tomou-se uni pouco mais


distinto. Dir-se-ia que uma fonte eléctrica longínqua entrava
em

contacto com mil corações ao mesmo tempo. As barracas estavam


agitadas. Apenas algumas brigadas saíram do campo. Por toda a
parte se viam rostos colados às janelas. Constantemente,
enquadravani-se nas portas vultos delgados,de pescoços
estendidos.

- Estarão a aproximar-se?
- Sim. Parece que o ribombar é mais nítido. Os homens da
secção de sapataria trabalhavam em silêncio. Os kapos faziam
respeitar a interdição de falar. Os guardas SS estavam
presentes. Os trinchetes fendiam o couro, cortavam as partes
apodrecidas, mas tinham, em muitas mãos, um sentido diferente
do de simples ferramentas: eram possíveis armas. De vez em
quando um olhar levantava-se para os kapospara os SS, para os
revólveres e metralhadoras que ainda na véspera não tinham
visto. Mas, apesar da vi~ gilância dos guardas, a secção
permaneceu ao corrente do que se passava durante o dia
inteiro. Todos os homens sabiam, há muito tempo, falar sem
mover os lábios, e de cada vez que um cesto cheio de peças de
couro era levado por dois homens, estes, que tinham

264

A CENTELHA DA VIDA

comunicar com o exterior, traziam a notícia para a oficina: a


a ouvír-se; ainda não parou."

ardas das brigadas exteriores de trabalho haviam sido teDeram


a volta à cidade, depois entraram pelo oeste, pela .do
mercado, na cidade velha. Os guardas estavam nervosos, ravam
ordens sem razão; os prisioneiros desfilavam ii-iipecaveí~ Até
então apenas tinham desentulhado nos bairros novos da Agora
penetravam pela primeira vez no interior da cidade vescobriani
toda a extensão das ruínas. Quase nada restava do Ae casas
medievais de madeira. A coluna atravessava as ruas

s; os habitantes que os viam passar paravam ou desviavam Os


presos já não se sentiam prisioneiros nestas ruínas. Parante,
tinham alcançado uma vitória sem mesmo terem estado tes, e os
anos de cativeiro não lhes pareciam já anos de derrota combate
mas sim anos de luta. E tinham vencido. E tinham

ivido. praça do mercado, a Câmara Municipal desabara.


Distribuíramenxadas e pás para retirarem os escombros.
Puseram-se ao o. O incêndio enchia a atmosfera com o seu odor;
no entanto, sioneiros sentiam o outro cheiro adocicado e
fétido, nauseante, iro que eles conheciam melhor do que
qualquer outro, o da carne decomposição. Toda a cidade
respirava, naqueles quentes dias de J , as emanações dos
cadáveres enterrados nos escombros. .Ão fim. de duas horas
descobriram o primeiro cadáver. Foram :,,botas que apareceram
em primeiro lugar. Era um HaupUbarrer SS. À- Os tempos mudaram
- murmurou Muenzer, - Os tempos mu-

m, finalmente! Agora são os mortos deles que nós


desenterramos! mortos deles! Recomeçou a trabalhar com dobrada
força.
- Cuidado! - rosnou um guarda, acorrendo. - Há um homem i! Não
estás a ver? Continuaram a deslocar o entulho, Apareceram os
ombros, depois cabeça. Levantaram o morto e retirarani-no.

- Continuem!
O SS, maidisposto, olhava o morto.

E tratem de ter cuidado agora! Tiraram, quase a seguir, três


outros membros do Partido e aliaram-nos junto do primeiro.
Seguravani-nos pelas botas e pelas angas do uniforme.
Experinientavani uma sensação de profunda

anheza: até aí só tinham transportado os seus caniaradas,


despe-

265

ERICH-MARIA REMARQUE

daçados e sujos, saindo dos bunkers, da sala de tortura,


moribundos ou mortos já. Depois, nos últimos tempos, alguns
civis. E eis que, pela primeira vez, eram os cadáveres dos
seus inimigos que transportavam. Trabalhavam com uni ardor que
não era habitual. O suor inundava-os, tal o zelo com que
procuravam encontrar o maior número possível de cadáveres.
Afastavarn a madeira e o ferro com um vigor de que jamaís
teriam suspeitado, rancorosos e satisfeitos, procurando mortos
como se de pepitas de ouro se tratassem.

Unia hora mais tarde, tiraram Dietz. Tinha o pescoço quebrado.


A cabeça pendia-lhe para o peito, como se tivesse querido
abrir a garganta com os dentes. Ao princípio não lhe tocaram.
Começaram por libertá-lo completamente. Os dois braços
fracturados pareciam ter uma articulação suplementar.

- Há tini Deus - murmurou o vizinho de Muenzer sem olhar para


ninguém. - Apesar de tudo, há um Deus! Há um Deus!

- Cala--te! - gritou uni SS. - Que é que tu dizias? Atirou-lhe


um pontapé.
- Que disseste tu? Ouvi-te dizer qualquer coisa!
O homem levantou-se. Tinha tudo sobre Dietz.
- Disse que era precisa unia padiola para o Herr
Obergruppenfue,brer - replicou, sem pestanejar. - Não o
podemos transportar corno os outros.

- Não tens nada que falar! Ainda somos nós quem manda aqui!
Está percebido, hem?

- Sim. "Ainda", pensou Lewinsky. -Nãs ainda mandamos! Logo,


eles sabem." Levantou a pá.

O SS olhou Díctz e, involuntarianiente, pôs-se em sentido. Foi


o que salvou o prisioneiro que acreditava outra vez em Deus. O
SS deu meia volta e foi buscar o chefe da coluna, que se pôs
também em sentido.

- As padiolas ainda não vieram - explicou o primeiro SS. A


resposta do prisioneiro que acreditava em Deus tinha--O
inipressionado. Era verdade que não se podia arrastar pelos
pés e pelos braços um oficial tão graduado.

O chefe da coluna olhava em redor. Notou uni pouco mais longe


urna porta meio enterrada nos destroços.

- Tirem aquilo, servirã provisoriamente. Fez continência aos


despojos mortais de Dietz.
- Deitem o HerrObeigruppeiifi@ebrercoin cuidado naquela porta.
Muenzer, Lewínsky e dois outros foram buscar a porta. Era um
trabalho esculpido do século " onde estava representada a
descoberta de Moisés nas águas do Nilo. Agarraram Dietz e
depuse-

266

A CENTELHA DA VIOA

Sobre a porta. Os braços oscilavam em todos os sentidos e a à


",Pen eu

d completamente para trás. ado, patifes! - gritou o chefe


da coluna.

jazia sobre a larga porta. Debaixo da mão direita o pe-


@,Moisés sorria no seu cesto de vifficnzer notou-o.
"Esqueceratu-se de mandar tirar a porta da Municipal", pensou.
"Moísés, os judeus, tudo isto acontecera raó, a opressão, o
mar Vermelho, a salvação.. Oito homens para conduzir a
padiola! ze homens se precipitaram com um ardor desconhecido
até dia. O chefe da coluna estava indeciso. Na frente
erguia-se a Ma-

Irche, em ruínas. Reflectiu uni momento e depois repeliu a


!dela

lhe apresentara. Não se podia transportar Dietz para unia


igreja

Por sua vontade, teria telefonado a pedir ínstruções, mas as

errompidas. Via-se obrigado ao Icaçôes telefónicas estavam int


detestava e receava acima de tudo: tomar urna iniciativa.
uenzer disse qualquer coisa. O chefe da coluna notou-o.

Hem? Que dizes tu? Aproxima-te, patife) tife parecia ser a sua
expressão favorita. Muenzer avançou e

em sentido, Disse que talvez seja indigno de uni


Obergruppenfuebrer ser

do por presos. @itava no chefe da coluna uni olhar firme e


respeitoso,

O quê? Patife! Que tens tu com isso? Por quem queres que ele
levado? Nós temos... nterrompeu-se. A objecção de Muenzef não
parecia destituida de damento. O morto deveria, normalmente,
ser transportado por SS;

os prisioneiros não podiam ficar sem vigilância-


- De que estão à espera? - gritou. - Em frente, inarchem!
Acabava de ter urna inspiração.
- Para o hospital! Ninguém poderia dizer o que ia o hospital
fazer de um morto. Mas va-se dum local neutro que parecia
convir.
- Eni frente! K se à frente do cortejo, Também isto lhe
pareceu impor-se. Um Mercedes descapotâvel desembocou de
súbito na praça.

ava devagar e parecia procurar uma passagem no meio dos e%-

nibros, A sua carroçaria elegante e luzidia contrastava


violentante com aquele cenário de devastação. O chefe da
coluna pôs--se se1ntido. Um Mercedes descapotável cia,
necessariamente, o carro

cial de alguma alta personagern. Dois oficiais superiores SS


ocupa-

111 a retaguarda; um terceiro estava sentado ao lado do


niotorista. AImas inalas graneles estavam amarradas no
exterior do carro. @outras

ERICH-MARIA REMARQUE

malas, mais pequenas, enchiam o interior. Os oficiais faziam


urna cara de desaprovação. o motorista era obrigado a conduzir
lentamente através das ruínas. Passaram mesmo ao lado dos
prisioneiros que transportavam Dietz sobre a porta. Evitaram
olhar para ele.

- Vamos! - disse o oficial que estava ao lado do motorista.


Mais depressa!

Os prisioneiros não se mexeram. Lewinsky sustentava o ângulo


inferior direito da porta. Olhou para a cabeça oscilante de
Díetz, o

rosto esculpido do pequeno Moisés, todo sorridente por ter


sido salvo das águas, depois o Mercedes com as suas bagagens e
os oficiais em fuga e respirou profundamente.

O carro ultrapassou-os devagar.


- Porcaria! - disse de repente uni dos SS, um bruto gigantesco
com o nariz achatado.

- Porcaria! Nojenta porcaria! E não era aos prisioneiros que


se dirigia. Lewinsky escutou. O ribombar longínquo fora
coberto, durante um

momento, pelo motor do Mercedes, mas ouvía-se de novo, surdo e


implacável, como o rufar de uni tambor subterrâneo
acompanhando esta marcha funebre.
- Em frente! - ordenou o chefe da coluna irritado. - Em frente
e mais depressa!

A wde passou rapidamente. O campo estava cheio de boatos


diferentes. Corriam duma barraca para a outra e mudavam de
hora a hora. Ora os SS tinham partido, e depois uma testemunha
afirmava que eles tinham, pelo contrário, recebido reforços,
ora os tanques americanos estavam às portas da cidade, e
sabia-se depois que se tratava de tropas alemãs encarregadas
de defendê-la.

Às 3 horas chegou o novo responsável de bloco. Era uni


vermelho, não um verde.

- Não é uni dos nossos - disse Werner, decepcionado.


- Por que não,um, dos nossos? - perguntou-lhe o 5O9.
- É uni político, e não uni de direito comum. Que entendes tu
por nossos?

- Tu sabe-lo bem. Por que fazes essa pergunta? Estavam


sentados na barraca, Werner queria esperar o toque de recolher
para voltar ao campo de trabalho. O 5O9 escondera-se para ver
quem era o novo responsável de bloco. Ao lado deles um
prisioneiro de cabelos brancos sujos morria de unia pneumonia.

- Um dos nossos e uni prisioneiro que faça parte do movimento

268

A CENTELHA DA VIDA

o do campo - explicou Werner. - Era isto que querias


O? o - replicou o 5O9. - Não era isso o que queria saber e não

o que tu querias dizer. ,Sim, provisorianiente, era o que eu


queria dizer. Sim, provisoriamente. Enquanto a solidariedade
forçada for ne-

aqui. E depois? epois - disse Werrier, espantado de tanta


ignorância será preciso que haja um partido para assumir o
Poder. Um unido, e não unia multidão de homens apanhados ao
acaso.

ogo, o teu partido. O Partido Comunista. E que outro partido


então? Não importa qual - disse o 5O9. - Desde que não seja
outra @@ partido totalitário. erner teve uni riso breve. Pobre
louco! Nenhum outro partido, e uni partido totalitário! Tu és
os sinais resplandecentes na parede? Todos os partidos do

estão gastos. Só o comunismo permanece forte. A guerra vai r.


A Rússia ocupou uma grande parte da Alemanha. Ela é, de , a
potência europeia mais forte. O tempo das coligações passou.
,foi a última. Os aliados ajudaram o comunismo e enfraquecee a
si mesmos, os ingénuos. A paz mundial dependerá---
- Eu sei - interrompeu o 5O9. - Conheço a cantiga. Diz-nie s o
que aconteceria àqueles que são contra vocês se vocês alcan-

e assumissem o Poder. Ou àqueles que não são dos vossos? mer


ficou calado uni momento. @I_ Há várias possibilidades -
disse, por fim. Sei quais são. Tu também. O assassinato, a
tortura e os campos concentração? É nisso que tu pensas?

Também penso nisso. Conforme as necessidades. _,@i está o


progresso! Valeu-nos a pena estar aqui! E uni progresso @
declarou Werner, ímperturbável. - E um esso no que diz
respeito ao objectivo. E também no que se refere rneios. Nós
nada faremos por crueldade. Unicamente por necesde,
- já ouvi isso em qualquer parte. Especialmente quando Weber
enterrava fósforos debaixo das unhas e os acendia. Era
necessápara colher infonnações. A respiração do prisioneiro
dos cabelos brancos tomou o ritmo ir-

lar do estertor da morte, que toda a gente conhecia no campo


de centraçào. Por vezes inteirompia-se, e ouvia-se então, no
silêno lorigínquo ribonibar no horizonte. O estertor do
moribundo e ribonibaç respondiani-se un, ao outro como uma
lítania, Werner

269

ERICH-MARIA REMARQUE

olhou o 5O9. Sabia que Weber o tinha torturado durante semanas


para arranrar-lhe nomes e endereços. E entre estes o seu. O
5O9 não falara. Mais tarde, Werner viera a ser traído por um
membro cio seu partido menos resistente do que o 5O9.

- Por que não te juntas a nós, Koller? - perguntou-lhe. -


Podias ser-nos útil,

- Lewisky fez-me a mesma pergunta. Além disso, nós, tu e eu,


já discutimos há vinte anos. Werner sorriu. Era um sorriso
afectuoso e desarmante.
- Discutimos, é certo, e mais de tinia vez. No entanto, eu
repito a minha pergunta. O tempo do individualismo passou. Já
não se pode lutar sozinho. E o futuro é nosso. Não do centro
corrupto.

O 5O9 levantou os olhos para a cabeça ascética que tinha


diante de si,

- Quando tudo tiver acabado aqui - disse, lentamente -,


desejaria saber quanto tempo será preciso, depois da vossa
subida ao Poder, para que te tornes meu inimigo, tal como
aqueles da torre de vigia.

- Não muito tempo. Formânios uma união sagrada contra os


nazis. Ela acabará com a guerra.

O 5O9 acenou afirmativamente.


- Queria saber também de quanto tempo precisarias, se
chegassem ao Poder, para me mandares prender outra vez.

- Não muito tempo. Continuas a ser perigoso. Mas não te


torturariam.

O 5O9 encolheu os ombros.


- Serias preso e far-te-iam trabalhar. Ou, então, serias
fuzilado.
- Ai está a consolação. Foi sempre assim que eu imaginei o
vosso paraíso.

A tua ironia é fácil. Sabes muito bem que a força é


necessária. É tinia arma de defesa ao principio. Mais tarde
deixa de ser útil.

- Sim - disse o 5O9. - Uma tirania não pode nunca dispensá-la.


E recorre a ela cada vez mais, de ano para ano. Tal é o seu
destino. E também a sua queda. Tens uni exemplo aqui.

- Não, Os nazis cometeram o erro essencial de empreender uma


guerra que estava acima das suas forças.

- Não foi uni erro. Foi unia necessidade. Não podiam fazer
outra coisa. O desarmamento e a paz eram a falência para eles.
E é igualniente o que vos espera,

- Não. Nós ganharemQs; a nossa guerra. Fazenio-4a doutra


nianeira. De dentro.
- Sim, do interior e contra o interior. Vocês podiam conservar
este campo; depressa o encheriam.

27O

A CENTELHA DA VIDA

dúvida. - Werner tornara-se grave. - Por que não te @úôs? -


repetiu. mente por essa razão. Se, urna vez livre, tivesses o
poder,
-' s. Eu não te liquidaria. Eis a razão. uços do homem dos
cabelos brancos tornaram-se mais espalzbacher entrou, tece que
amanhã de manhã os aviões vêm bombardear o £1es querem
destruir tudo,

baleia das latrinas - declarou Werner. - Quem me dera sse já


escuro! Tenho de ir lá abaixo.

,che£ levantou os olhos para a casa branca que se erguia na


colia intacta e os raios obliquos do poente banhavam-na. As
Ido pomar brilhavam docemente como se já as flores brancas

das cerejas as cobrissem. Acreditas agora? - perguntou. -


Podes ouvir os canhões.

ni-se de hora a hora. Vamos sair daqui. de novo para a casa


branca. Era o seu talismã.. enquanto ela cesse intacta, tudo
caminharia bem para eles. Ruth e ele con-

vivos e seriam salvos.. Sim.

estava agachada perto da vedação de arame farpado, E para onde


iremos quando sairmos daqui? - perguntou. Para longe, Tão
longe, quanto possivel. Para onde? Não importa. Talvez o meu
pai esteja vivo ainda. cher não esperava que assim fosse, mas
nunca tivera a certeza seu pai tivesse morrido. O 5O9 tini-ia
a prova de que ele morrera, guardara sempre silêncio.

Eu já não tenho ninguém - disse Ruth. - Estava presente o os


levaram para a câmara de gás. Talvez os tivessem apenas
incorporado numa coluna e os ssem viver em qualquer parte. A
ti deixaram-te viver. Sim - disse Ruth. - A inini deixaram-me
viver. Em Osnabruck tinhamos unia casinha. Talvez ela exista
ainda. Isaram-nos de lá. Se não estiver destruída, talvez a
recuperemos, sim fosse, podiamos ir morar para lá, @Ruth
Holland não respondeu. BucheT olhou e viu que ela chorava. ase
riunca a víta chorar e supôs que era pela famítia
desaparecida. s a morte era um fenónieno tão quotidiano no
campo que lhe pare-

exagerado manifestar uma dor tal depois de tantos anos...

Tu não deves pensar nos que n-iorrerati-i, Ruth - disse com


unia

271

ERICH-MÁRIA REMARQUE

sombra de inipacíência. - Se não nunca mais conseguiremos


voltar a viver.

- Não penso nos mortos.


- Então, por que choras? Ruth Holland limpou os olhos com os
punhos.
- Queres saber por que não me gasearani com os outros? -
perguntou,

Bucher pressentiu confusamente que ia ouvir qualquer coisa que


seria preferivel ignorar.

- Não precisas de mo dizer - declarou. - Mas podes dizê-lo, se


quiseres. Isso não tem importância nenhuma,

- Tern importância, tem. Eu tinha 17 anos. Não era nessa


altura tão feia como agora. Foi por isso que me deixaram viva.

- Sim - disse Bucher sem compreender. Ela olhou~o. Pela


primeira vez, Bucher notou que ela tinha uns olhos cinzentos
muito transparentes. Nunca tinha reparado.

- Não compreendes o que isto significa? - perguntou ela.


- Não.
- Deixaram-me viva porque precisavam de mulheres. Mulheres
novas para os soldados. E também para ucranianos que se batiam
ao lado dos alemães. Compreendes agora?

Bucher ficou calado um momento, aturdido. Ruth observava--o.


- Foi isso o que eles fizeram de ti? - acabou ele por
perguntar. Bucher não a olhava.
- Sim, foi isto o que fizeram de mini. Ela já não chorava.

Não é verdade. É verdade. Não é isso o que eu quero dizer.


Quero dizer que não é verdade, tu não querias.

Ela teve um riso breve e amargo.


- Onde está a diferença? Bucher olhava-a agora. O rosto dela
parecia sem expressão, era apenas uma máscara dolorosa, tão
dolorosa que ele sentiu, de repente, sem mesmo a ouvir, que
ela dissera a verdade. Isso provocava-lhe uni dilaceramento
interior, mas ele não queria render-se ainda - de niomento só
queria uma coisa: que o rosto virado para ele regressasse à
vida.

- Não é verdade - disse. - Tu não quiseste isso. Tu estavas


fora da questão. Tu nada fizeste,

O seu olhar parecia vir de inuito longe.

É verdade, são coisas que não esquecem, Nenhum de nós sabe o


que poderá esquecer e o que não

272

A CENTELHA DA VIDA

Todos temos muito que esquecer. SC não, valeria mais ficar

r. r acabava de repetir unia frase que o 5O9 tinha pronunciado

Quanto tenipo se passara depois? Anos? Engoliu a saliva

vives - pronunciou com dificuldade.

eu vivo, mexo-me, digo palavras, como o pão que tu me @,e, o


resto também vive! Vive! Vive! as mãos apertando as têmporas,
ela voltou a cabeça, -Ela c., pensou Bucher, "ela olha-ine
outra vez." Não é já para o céu

a casa da colina que se díTíge, vives - repetiu. - Isso Ine


basta. deixou cair as mãos, Criança - disse com desespero. -
Que sabes tu disto? Não sou uma criança. Nem mesmo Karel, corn
os seus 11 anos. abanou a cabeça. Não é isso. Poi: agora
acreditas no que dizes. Mas por quanto ? O resto voltará. Para
ti, como para mim. As recordaçóes mais quando... r que me
disse ela ísto?", pensou Bucher. -Não mo devia ter dito: da
saberia, era como se nada tivesse sucedído." Não sei o que
queres dizer - respondeu. - Mas eu creio que os submetidos a
regras diferentes das dos outros. Há prisioneiqui que mataram
homens porque assim era preciso (pensava em
sky), e estes prisioneiros não se consideram. mais assassinos
do os soldados que estão na frente. Estes não são assassinos.
Nós não mos igualmente. O que nos aconteceu não pode ser
julgado ndo as normas habituais.

Mudarás de opinião quando tiveres saído daqui. Ia olhava~o.


Bucher compreencleu, de repente, o motivo porque

nifestara tão pouca alegria nas últimas semanas. Tinha medo, o


da libertação.
- Ruth - disse, sentindo uni brusco calor ínvadi-lo -, isso

ou. Esquece. Obrigaram-te a unia coisa que te fazia horror.


Que agora? Nada. Tu nada fizeste. Tu fizeste apenas o que os
outros ériani, e dísso nada restou se não o horror que
sentias,

Eu vomitava - disse ela a meia voz. - Vomitava quase sempre


pois. Por fim iiiandaratii-me para aqui. Ela continuava a
olhá-lo.

E aqui está o que eu te dou: cabelos grisalhos, umaboca


elesdena e Lima prostituta. A palavra fê-lo estremecer;
perruaneceu muito tempo sem respon-

Cléssicos do Séc. X X 25 - 18

273

ERICH-MARIA REMARQUE

Eles humilharam-nos a todos! - disse, por fim. - Não és a


única. Todos aqueles que estão aqui, todos aqueles que
estiveram no campo de concentração. A ti humilharani-te no teu
sexo; a todos nós, no nosso orgulho, e mais ainda do que no
nosso orgulho: em tudo o que de humano há em nós. Calcaram-no
a pés, cuspiram-lhe em cima, rebaixaram-nos de tal maneira que
perguntamos como pudemos sobreviver. Pensei nisto muitas vezes
nestas últimas semanas. Falei igualmente com o 5O9. Fizeram
toda a espécie de coisas... a mim tambéni@ aliás...

- O quê?
- Prefiro não dizer. O 5O9 disse que não era verdade enquanto
não o reconhecêssemos interiormente. Cornecei por não
compreender o que ele queria dizer. Agora sei. Eu não sou um
cobarde e tu não és unia prostituta. Tudo o que nos fizeram
nada significa se não nos reconhecermos nisso.

- Eu reconheço-me.
- Deixarás de reconhecer-te quando sairmos.
- Será pior ainda.
- Não. Se assim fosse, só muito poucos de nós poderiam
continuar a viver. Humilharam-nos, mas, no fundo, não somos
nós que estamos humilhados, são aqueles que o fizeram.

Quem disse isso? Berger. Tens bons mestres. Sim, aprendi


muitas coisas. Ruth deixou pender a cabeça de lado. Tinha
ainda o rosto fatigado e doloroso, mas a expressão amarga
desaparecera.

- Há tantos anos que isto foi! - disse ela. - E vai ser


preciso enfrentar os problemas quotidianos.

Bucher viu a sombra azulada das nuvens envolver a casa branca


da colina. Ficou surpreendido, durante um momento, de que ela
continuasse lá ainda. Parecia-lhe que devia ter sido
aniquilada por urna bomba silenciosa. Mas ela continuava ali.

- Não será:melhor esperar que saiamos daqui e experimentar


antes de desesperarrnos? - disse.

Ela olhava õs dedos magros; pensava nos seus cabelos


grisalhos, nos dentes que lhe faltavam, e lembrou-se de que
Bucher, durante anos, não vira unia única mulher fora do
campo.

Era mais nova do que ele, mas sentia-se mais velha alguns
anos. As recordaçóes pesavam-lhe como chumbo. Não acreditava
numa palavra sequer do que ele aguardava com tanta confiança,
e, contudo, havia dentro de si uma última esperança e a ela se
agarrava.

- Tens razão, joseph - disse-lhe. - Vale mais esperar.

274

A CENTELHA DA VIDA

ou para a barraca. O vento cingia-lhe a saia suja contra as


suas pernas. Bucher seguiu-a com os olhos e sentiu de repente
a ferver dentro de si. Sabia que, nada podia fazer. Sabia que
era
dominar esta cólera e compreender melhor ele próprio o que a
de dizer a Ruth- Baixou os olhos. Uma fonniga corria no solo,
ndo um escaravelho morto. O escaravelho era pequeno, mas
rentava uni fardo gigantesco para a formiga. Tudo dependia do

de vista que se adoptasse, antou-se lentamente e dirigiu-se à


barraca. Não podia suporr-a, o céu sereno.

275

eubauer não podia desprender os olhos da carta. Releu o último


parágrafo: Por consequência, eu vott---me embora. Se queres
deixar-te apanbar, isso é contigo. Por mim, queroficar livre.
Levo Freya. Vem ter connosco. Selma." Por endereço, uma aldeia
bávara.

Neubauer passeava em redor um olhar desorientado. Não


compreendia. Não era possível. Elas iam regressar de um
momento para o outro. Abandonã-lo agora - era inconcebível!
Onde estava então a grande fidelidade dos nibelungos? Onde
estava então a mulher germânica que combatia ao lado do
esposo?

Sentou-se pesadamente numa poltrona francesa. A cadeira gemeu.


Ele levantou-se, mandou-a passear com um pontapé e deixou-se
cair no divã. Ferro velho! Que vinha aquilo fazer ali, quando
ele não devia ter se não honestos móveis alemães, como toda a
gente? Fora por causa da mulher que mandara vir aquelas
coisas. Ela tinha lido qualquer coisa sobre o assunto e
desejara logo tê-las. Que lhe importava a ele, rude e sincero
companheiro de Hitler? Tomou balanço para aplicar outro
pontapé no frágil móvel, irias reconsiderou. Para quê, afinal?
Talvez pudesse vender tudo isto um dia... Mas quem se
preocupava com objectos de arte quando os canhões ribombavam?

Levantou-se e pôs-se a percorrer a casa. Abriu o guarda-fato.


Tinha ainda uma esperança antes de deitar um olhar lá para
dentro, mas renunciou logo a ela. Selma levara os abafos e
tudo, o que representava valor, por mais pequeno que fosse; o
cofre das jóias desaparecera. Fechou lentamente as portas e
demorou-se um momento diante do toucador. Maquinalmente,
desrolhou um frasco de cristal da Boémia e levou-o ao nariz.
Não sentiu. cheiro. Era um presente que vinha dos dias
gloriosos vividos na Checoslováquia. Selma não o levara. Por
ser muito frágil, provavelmente.

Dirigiu-se de súbito, a passos largos, para um armário


embutido na parede, abriu-o bruscamente e pôs-se a procurar
uma chave. Não procurou muito tempo. A gaveta secreta estava
aberta e vazia. Selma levara todos os valores. Até mesmo a sua
cigarreira de ouro com uma cruz gamada de brilhantes - uni
presente da fábrica quando ele fazia ainda parte dos servicos
técnicos. Deveria ter ficado lá e continuar

276

A CENTELHA DA VIDA

ros; camaradas. Tinha de reconhecer que a ideia do carripo

ração provara ser completamente desastrosa. É certo que iros


anos a colheita tinha sido boa, mas agora tinha o campo s.
Mesmo assim, fora um dos comandantes mais humanos. Era Mellen
não era uni dachau, nem um oranienburgo, nem um

ld - sem falar, bem entendido, dos campos de extermina-

rou o ouvido. Uma das janelas estava aberta e um cortinado de

a enfunava-se na corrente de ar, como um fantasma. Este


ribombar no horizonte! Dava cabo dos nervos! Fechou a a
pressa, entalou o cortinado. Tornou a abrir e puxou o
cortipara dentro. A inusselíria ficou presa nunia esquina e
rasgou-se.

r fechou bruscamente a janela, praguejando. Depois


dirigiuinha. A criada, que estava sentada à mesa, levantou-se
dum vê-lo entrar. Ele resmungou sem a olhar. Ela estava,
evidenteao corrente de toda esta porcaria! Tirou uma garrafa
de cerveja ira. Encontrou ainda meia garrafa de Swinbaeger,
que levou ente para a casa de jantar. Depois voltou. Tinha-se
esquecido pos. A criada, que estava de pé, perto da janela, e
escutava, vi-

ruscamente, como se tivesse sido apanhada em falta. preciso


fazer alguma coisa para o almoço? Não.

outra vez. A genebra era forte e perfumada, a cerveja fresca o


exacto, Fugir, pensava ele. Como judeus. Piores do que juOs
judeus não faziam isto. Os judeus aguentavam com firmeza.
ra-o mais de uma vez. Iludido! Abandonado! Aqui estava tudo
ganhara! Teria gozado mais a vida se não tivesse sido um bom
família. E fiei. Quer dizer ... quase fiei. Fiei, sim, quando
se penem tudo o que podia ter-se proporcionado. Por algumas
rapa-

A viúva. não contava, por assim dizer. Alguns anos antes fora
iva que queria salvar o marido do campo de concentração, O ela
não teria feito para isso! O marido niorrera havia já muito @
o que ela ignorava, evidentemente. Noite encantadora! Mais

ela portara-se como uma idiota quando lhe entregaram a caixa


artitos com as cinzas. A culpa era dela se acabara por ser
presa. Oberstui-m ban i-tf14eb rer não podia consentir que lhe
escarrassem ara. ,Serviu-se dum segundo copo de Steffibaeger,
Por que pensava ? Ah, sim, a propósito de Selma. Não lhe
tini-iam faltado ocasiões. ara escapar mais de unia. Havia
alguns que não se privavam. Até snio o coxo do Binding, da
Gestapo. Uma por dia! Afastou a garrafa. A casa parecia tão
vazia que dir-se-ia ter Selma elo os móveis. Levara Freya. Por
que não tivera ele uni filho? NàO

277

ERICH-MARIA REMARQUE

fora por sua culpa, com certeza! Ah, que desgraça! Olhou em
redor. Que fazia ainda ali? Tentar encontrá-la? Nessa maldita
aldeia? Devia estar ainda a caminho. Podia levar muito tempo
antes de chegar.

Baixou os olhos para as botas impecavelmente limpas. A sua


honra sem mancha suja agora pela traição. Levantou@se
pesadaniente e atravessou a casa deserta para sair.

O Mercedes esperava em frente da porta.


- Para o, campo, Alfred!
O carro avançava devagar através da cidade.
- Pára! - disse Neubauer de repente. - Para o banco, Alfred!

Saiu tão empertígado quanto lhe era possível. Ninguém devia


suspeitar! Era o cúmulo! Ridicularizá-lo ainda por cima! Ela
tinha levantado nietade do dinheiro depositado. Quando
perguntou por que não o tinham informado, falarani-lhe,
encolhendo os ombros, duma conta comum. Pensava-se mesmo
ter-lhe feito unifavor, a ele Netibauer. Os levantamentos
elevados eram mal vistos nas esferas superiores,

- Para o pomar, Alfred! Levaram bastante tempo a sair da


cidade. Mas o pomar esperava-os, docemente banhado pela luz da
manhã. As árvores de faito floriam por toda a parte, os
narcisos, as violetas, o açafrão, punham manchas coloridas na
verdura, como ovos de Páscoa multicores. A natureza ignorava a
traição - as flores vinham na altura devida -, po~ dia ter~se
confiança nela. Pelo menos aqui não havia leviandade.

Entrou no estábulo. Os coelhos roíam atrás da rede. Os seus


olhos rosados não reflectiam qualquer alusão às contas
bancárias. Neubauer introduziu uni dedo pela rede e pôs--se a
coçar a branca pelagem dos angoras.Tinha pensado, em certa
altura, em mandar fazer uma estola para Selma. Pobre tolo sem
malícia, a quem toda a gente enganava!

Apoiado à rede, olhou pela porta que ficara aberta. Na tepidez


calma do estábulo a sua indignação transformava-se nuina
imensa piedade por si próprio. O céu radioso, uni ramo florido
que se balançava na abertura da porta, os doces focinhos dos
animais na penumbra, tudo o encorajava.

O ribombar longínquo fez-se ouvir de novo, Era mais irregular,


mas mais polente. Este rufar subterrâneo, amortecido,
penetrava irresistivelmente a intimidade da sua melancolia.
Troava, troava sem cessar, e dentro de si o medo regressava.
Mas era uni niedo diferente agora. Mais profundo. Doravante,
Netibauer estava sozinho. Não podia enganar-se a si mesmo à
força de querer convencer os outros. O inedo invadia-o por
completo, apertava-lhe a garganta, alcançava o estômago, subía
aqui até à garganta, voltava a descer pelo estômago, até às
entranhas, "Nada fiz de ina1% pensava Ncubauer sem convicção.

278

A C£NTELHA DA VIDA

nas o meu dever. Tenho testemunhas, inuitas testemunhas. W


1-,está para o afirmar; ainda ultimamente lhe dei uin charuto
em @o mandar prender. Outro qualquer ter-lhe-ia apanhado a
loja

dar um tostão. Ele mesmo o reconheceu, há-de repe"o; fui , ele


o dirá sob juramento.- -Ele não dirá nada", pensou alguêrn
,.de si. Voltou-se como se acabassem de falar nas suas costas.
olhos encontraram os ancinhos, as enxadas, as pás, com os rtes
cabos de madeira pintados de verde. Por que não era ele

onês, uni hortelão, um estalajadeiro, qualquer coisa, enfim?


le maldito ramo que floria! Era fácil florir assim, sem
resporisae! Mas para onde ir quando, se é
Obersturmban?@fuebrO. De uni ,o@ russos, do outro os ingleses
e os arnericanos; para onde ir, condições? Selma era
simplória. Fugir dos americanos era aprose dos russos, e podia
desconfiar-se das intenções destes. Por coisa tinham vindo de
Moscovo e Estalinegrado, axravés das províncias assoladas.
.bauer enxugou a testa. Deu alguns passos. Os joelhos
tremiamTinha de reflectir seriamente. Saiu do estábulo às
apalpadelas, ,,,estava fresco. Aspirou-o profundamente, mas
pareceu-lhe que

a, ao mesmo tempo, o ribombar irregular que vinha do


horiSentiu-lhe a vibração nos pulmões e experimentou um novo
leciniento. Encostado a uma árvore, pô&-se a vomitar nos
narcimuito debilmente, sem arrancos.

A cerveja - disse para si mesmo, - A cerveja e o Steffibaeger.


,me valeram de nada. Deitou. um olhar para a porta do pomar.
Alfred não pudera vê-lo.

rou-se ainda um momento. Depois sentiu o suor serrar corri o


Voltou ao carro em passos vagarosos. Para o bordei, Affred!
Que disse, Herr Obersturmbannfuebrer? Para o bordei! - berrou
Neubauer, tomado de súbita cólera. preendes o alei-não ou não?
- O bordei está fechado. Foi transformado em hospital de
socorro.
- Então, para o campo@ Subiu. Para o campo - para onde podia
ele ir agora se não para

- Que pensa da situação, Weber? weber olhava-o com


indiferença,
- Notável.
- Notável? Realmente?

279

ERICH-MARIA REMARQUE

Neuhauer procurava uni charuto. Depois lenibrou-se de que


Weber não os fumava.

- Infelizmente, já não tenho cigarros aqui. Restava-nie unia


caixa, mas desapareceu. Sabe Deus onde a terei metido!
Olhou descontente as janelas tapadas por pranchas. As vidraças
partidas aquando do bombardeamento não tinham podido ser
substituídas. Ignorava que os cigarros haviam sido roubados na
confusão e que, por intermédiá do escriturário ruivo e de
Lewinsk-y, tinham assegurado dois dias de pão aos veteranos.
Por felicidade, os seus dossiers continuavam ali - as suas
ínstruções filantrópicas, que Weber e outros constantemente
tinham desviado do sentido que os orien -

tara. Observava Weber às escondidas. o chefe de campo


parecii~lhe duma calma iiiiperturl)ãvel, apesar de tudo o que
podia ter na consciência. Os últimos enforcanientos lá
estavam.

Neubauer sentiu de novo a queimadura do niedo. Estava coberto,


duplamente coberto. E no entanto...

- Que faria, Weber - disse-lhe cordialmente -, se durante um


certo tempo, por razões militares, compreende... enfim, se
durante um curto período de... digamos, de espera, o inimigo
viesse a ocupar o território, o que - acrescentou -, como a
história demonstrou muitas vezes, não significa de niodo algum
unia derrota?

Weber escutara-o com urna sombra de sorriso.


- Para uma pessoa como eu haverá sempre trabalho -respondeu
tranquílamente. - Nós safar-nos,~emos sempre, mesmo, se tal
for preciso, sob outros nomes. Eu serei de boa vontade
comunista. Não haverá nacionais--socíalistas durantes alguns
anos. Toda a gente vai ser democrata, Isso não tem
importância. Cedo ou tarde entrarei provavelmente para o
serviço duma polícia qualquer. Com documentos falsos, talvez.
Então, o trabalho recomeçará.

Neubauer sorriu. A segurança de Weber era comunicativa.


- Não é má ideia. E eu? Que pensa que vai ser de mim?
- Quanto a isto, não sei! Tem unia família, Hérr
Obersturmbann- .1@tehi-er. Não lhe será fácil desaparecer e
arranjar unia nova pele.
- Isso é verdade.
O bom humor de Neuhauer desaparecera outra vez.
- Sabe, Weber, gostaria de dar unia volta pelo campo, Há muito
tempo já que o não faço.

Quando chegou à secção de desinfecção, o pequeno campo já


estava alei-ta. A maior pai-te das armas tinham sido levadas
já para o campo de trabalho por Werner e Lewinsk-y; apenas o
5O9 conservava

28O

A CENTELHA DA VIDA

4evólver. Insistira para que lho deixasse i e escondera


de~ da cama.

quarto de hora mais tarde as latrinas transmitirara a


espantosa

inspecção não tinha uni carácter punitivo; as barracas não


istadas corri minúcia; Neubauer tinha mesmo um ar benévolo.
povo responsável de bloco estava nervoso. Lançava ordens a e a
direito. Não grites assim - disse Berger. - Não adiantas nada.
O què? Jâ disse! Gritarei como me agradar! Toda a gente fora!
Alinhados a quatro! dava em volta da barraca. Os homens que
podiam andar reunise. @ão está aqui toda a gente. Há ainda
outros!

E preciso que os mortos também entrem na formatura? Cala-te!


Toda a gente cá fora, mesmo os que estão deitados! Cluve. Não
se trata de inspecção. Não foi dada orden-i nenhuNão tens
necessidade de fazer sair antecipadamente os homens

rraca. responsável suava de furor. Eu faço o que quero. Sou o


responsável do bloco, Onde se meaquele que está sempre sentado
com vocês? Contigo e contigo? Apontava Berger e Bucher.

responsável do bloco abriu a porta da barraca para ir ver. Era


preente o que Berger queria evitar, custasse o que custasse. O
5O9 a escondido lã dentro; era preciso que não se encontrasse
de

com Weber. Ele não está aqui - disse Berger, barrando a


entrada.
O quê? Tira-te dai!
O responsável do bloco fitava--o. Bucher e Sulzbacher ladearam

r.
- Que significa isto? - perguntou o responsável do bloco.
- Ele não está aqui - disse Berger sem se mexer. - É quanto

Queres que te digam como Handke morreu? Vocês estão doidos?


Rosen e Ahasver juntarara-se aos outros três.
- Vocês já se lembraram de que eu posse, quebrar-lhes os rins
a os? - perguntou o responsável do bloco,

Ouve - disse Aliasver, apontando o horizonte com o seu inador


ossudo. - o ribonibar está já mais perto.
- Não foi o bombardearriento, que o matou - declarou Bucher.
- Não liquidámos Handke. Não fomos nós - disse Suizbacher.
Nunca ouviste falar duma justiça secreta do campo?

281

ERICH-MARIA REMARQUE

O responsável do bloco recuou uni passo. Sabia beni o que


tinha acontecido a outros traidores e denunciantes.

- Vocês fazem parte dela? - perguntou incrédulo.


- Sê razoável - disse Berger, tranquilamente, - É inútil
envenenarmo-nos uns aos outros. Quem desejará ainda ser
inscrito na lista dos que têm contas a prestar?

- Quem é que falou nisso?


O responsável do bloco pôs-se a gesticular.
- Se ninguém me põe ao corrente do que se passa, como posso eu
adivinhar o que se trata? Então, que se passa? Até agora
sempre fui de confiança.

- Então tudo !rã bem.


- Aí vem Bolte - disse Bucher.
- Bom, bora...
O responsável do bloco puxava as calças.
- Terei'cuidado. Podem contar comigo. Eu sou dos vossos.

"Miséria", pensou Ncubauer. "Por que diabo não caíram aqui as


bombas? Tudo ficaria resolvido da melhor fórma! O acaso dispõe
sem- pre mal as coisas!"

- E aqui está o campo de repouso - disse.


- O campo de repouso - repetiu Weber. -Sim, claro - Neubauer
encolheu os ombros. -Averdade é que não os fazemos trabalhar.

- Não. Weber achava divertida a ideia absurda de fazer


trabalhar estes fantasmas.

- O bloqueio - disse Ncubauer. - Não é por nossa culpa. Os


responsáveis são os nossos inimigos.
Virou se para Weber.
- Isto aqui cheira mal como unia jaula de macacos. Não se pode
fazer nada contra este cheiro?

- Disenteria - disse Weber. - Estamos num campo de repouso


para doentes.

- Decerto, para doentes. Neuhauer agarrou imediatamente a


deixa.
- Doentes, desintérícos, é por isso que cheira aqui mal. Seria
exactamente o mesmo num hospital.

Passou uni olhar indeciso em redor.


- Os homens não podeiri sequer toíiyar banho?
- Há demasiado perigo de contágio. De resto, é por isso que
esta

282

A CEhTELHA DA VIDA

campo está relativamente isolada. Os balneários são do outro

auer teve uni movimento instintivo de recuo ao ouvir falar de

emos roupa bastante para esta gente mudar? As coisas sujas ser
queimadas, não? Não é forçoso. Podem ser desinfectadas. Há
bastante roupa no . Receb emos remessas maciças de Belsen. Bém
- disse Neubauer, aliviado. - Nesse caso, mande proce- @lia
distribuição de blusas e calças em bom estado, ou de outros e
que disponhamos, assim como de cristais de carbonato de
1ra desinfecção. Isto terá logo um aspecto diferente. Tome
nota. primeiro responsável de bloco, um prisioneiro
corpulento,
1docilmente. Velar porque tudo seja mantido num estado de
rigorosa limpeza u Neubauer. Rigorosa limpeza - repetiu o
responsável de bloco.

er reteve uma gargalhada. Ncubauervoltou-se para os presos:


Têm tudo o que precisam? resposta tinha-lhes sido inculcada
durante doze anos. Perfeitamente, Herr Obenturmbannfuebrer.
Muito bem. Destroçar. eubauer deitou um novo olharem redor. As
velhas barracas eram s como caixões. Teve uma súbita
inspiração. Mande plantar qualquer coisa verde em volta -
disse. - Algumoitas do lado norte e um canteiro de flores ao
longo das paredes "sul. Isso alegrará. Nós devemos ter muitas
plantas no jardim?!
Às suas ordens, Herr Obeisturmbannfuebi-er! Então, não
percamos tempo. Comecem por aqui. Pode-se fazer esmo diante
das barracas do campo de trabalho. Neubauer era arrastado pela
sua !dela. O jardineiro aparecia nele.

Primeiro, uma fila de violetas; não, antes primaveras: o


amarelo ressai mais. Dois homens tonibaran-i lentamente no
chão. Ninguém ousou corrê-los.
- Primaveras. Teremos bastantes primaveras no jardim?
- À suas ordens, Herr Oben%ttírrnbam@fÚebrer.
O responsável do bloco estava em sentido.
- Temos primaveras bastantes..Iã floridas mesmo.
- Bem, faça isso. E mandem tocar algumas vezes a orquestra do
impo perto daqui, de modo que estes homens possam aproveitar.

Neubauer afastou-se, seguido pelos seus subordinados.


Recobrara

283

ERICH-MARIA REMARQVE

parte da sua calma. Os prisioneiros não tinham de que se


queixar. Anos sem critica tinham-no habituado a considerar
corno uni facto real o que lhe agradava acreditar. Esperava,
pois, que os homens o vissem tal como queria parecer: tini
chefe que fazia o que podia em favor deles, apesar das
circunstâncias dificeis..fá há muito tempo que não sabia que
eles eram homens.

284

uê? - perguntou Berger incrédulo. - Não temos nada para mer


esta noite? Nada. Não há sopa? Nem sopa nem pão. Ordem formal
de Weber. .,E para os do campo de trabalho? Nada. Nada esta
noite para todo o campo.

er virou-se. Vocês percebern isto? Distribueni~nos fatos e


suprimeni---nos a

Também nos distribuíram primaveras.


15O9 apontava de um lado e do outro da barraca os dois pobres
iros de terra remexida onde algumas plantas acabavam de mor-
am-nas trazido alguns prisioneiros por volta do meio-dia.
Podíamos talvez comê-las, Não te arrisques a isso, Se elas
desaparecessem, não teríamos para comer durante unia semana.
Mas porquê, meu Deus? Depois de toda a conversa de Neubauer ei
por acreditar que íamos ter batatas na sopa. I

endial interveio, eb

É Weber, não é Neubauer. Weber está furioso com ele. Pensa o


outro está a querer cobrir-se, o que, aliás, é verdade. É por
essa o que contraria tanto quanto pode as ordens de Neubauer.
Soube na administração. E também o que dizem Lewinsky, Werner
e os tros. E, bem entendido, quem paga somos nós.

Vai haver mais mortos. Levantaram os olhos para o céu


avermelhado.

Weber disse na administração que ninguém devia ter ilusões, e


tinha a intenção de nos manter apertados. Lebenthal tirou a
dentadura da boca, examinou-a rapidamente e nou a colocá-la.
Gritos agudos elevarani-se na barraca. A notícia espalhava-se.
guns esqueletos saíram num passo mal seguro e foram
inspeccionar gartielas para ver se os não teriam enganado e se
delas não sairia ,n cheiro de comida. As ganicias estavam
secas e limpas. Os lamentos

285

ERICH-MARIA REMARQUE

aumentaram. Muitos deixavani-se simplesmente cair no chão e


martelavam a terra com os seus pequenos punhos ossudos. A
maior parte deles desapareceram rapidamente, ou, então,
deitavani-se, de boca aberta, com os olhos dilatados. Vindas
do interior, ouviani-se as vozes débeis daqueles que não
podiam andar. Não era já uma sequência de gritos articulados;
era uma espécie de coro desesperado, unia melopeia doce, sem
palavras, sem rezas, sem imprecações, para além de qualquer
revolta. Era o último sopro de vida que se escapava num
murmúrio, um pipilar, um rangido, como se as barracas fossem
enormes caixas cheias de insectos moribundos.

Às sete horas a orquestra do campo começou a tocar. Estava


reunida do lado de fora do pequeno campo, mas tão perto que a
ouviam distintamente. As instruções de Neubauer tinham sido
cumpridas sem demora. O primeiro trecho foi, como de costume,
a valsa preferida do comandante: Rosas do Sul.
- Alimentemo-nos de esperança, uma vez que nada mais nos resta
- disse o 5O9. - Comamos todas as nossas esperanças!
Disparemos os nossos últimos cartuchos de esperança! Temos de
escapar daqui! E escaparemos!

O pequeno grupo estava muito perto da barraca. A noite estava


fresca, mas não sofriam demasiado o frio. Logo às primeiras
horas a barraca contava já vinte'e oito mortos; os veteranos
tinhani-nos despojado dos fatos utilizáveis e cobriram-se com
eles para não sucumbirem ao frio. Não queriam entrar na
barraca. A morte estava ali por toda a parte, com os seus
gemidos, os seus soluços, os seus estertores. Depois de três
dias sem pão fora suprimida a sopa. Em todas as camas lutavam
homens, abandonavam-se, morriam. Os veteranos não queriam
entrar. Não queriam dormir entre eles. A morte era contagiosa
e parecia-lhes que o sono os entregaria a ela sem defesa. Por
isso tinhani-se agachado cá fora, apertados nos fatos dos
mortos, os olhos fitos no horizonte, donde viria a liberdade.

- É só uma noite - disse o 5O9. - É só esta noite!


Acrediteni-Me. Neubauer vai descobrir o que se passa e dar
unia contra-ordem amanhã. Eles já estão divididos. É o começo
do fim, Vimos já tanta coisa! É só esta noite!

Ninguém respondeu. Apertavani-se uns contra os outros como


animais no Inverno. Tanto como o seu calor, coinunicavani-se
uma vontade de viver decuplicada, de que tinham mais
necessidade ainda que do calor.

- Falemos de nós - disse Berger -, mas que não seja disto.


Virou-se para SuIzbacher:
- Que vais tu fazer depois de saíres do campo?
- Eu?

286

A CENTELHA DA VIDA

sitava.
1mais não falar antes de tempo, isso traz azar. não traz azar
agora - respondeu o 5O9 vivamente. - Evilar durante anos
porque tal coisa ter-nos-ia corroído. Mas Preciso falar. Numa
noite como esta que outra coisa podemos imenterno-nos de todas
as nossas esperanças. Vamos, que quando saíres, Sulzbacher?
,,-,Não sei onde está a minha mulher. Ela estava em
Dusseldórfia. 'rfia está destluída. 'Se ela ainda está em
Dusseldõrfia, está em segurança. Dusselestá ocupada pelos
ingleses. A rádio reconheceia-o há muito

u, então, está morta! - disse SuIzbacher. Tem de se prever


isso tarribém. Que sabernos n@?s dos que filá fora? E os que
estão lá fora, que sabem eles de nós? - disse Bucher.
O9 olhou-o. Não lhe tinha dito que o pai estava morto e como
ra. Esperava a libertação. Bucher suportaria então melhor a
notí-

novo e o único que partiria acompanhado. Era sempre tempo er.


Que vai ser de nós quando sairmos? - disse Meyerhof. - Há
1,1 anos que estou no campo,

E eu há doze - disse Berger. Há tanto tempo? És um político?


Não. Apenas, de 1928 a 1932, tratei uni nazi que velo a ser
deGruppenfuebrer. Mais ainda, nem fui eu; ele foi à consulta e
foi do por um dos meus amigos, que era especialista. O nazi
veio ter igo porque morava na mesma casa do que eu. Era mais
prático.

E foi por isso que ele te mandou prender? Sim. Era sifilítico.
E o médico especialista? Mandou-o fuzilar. Quanto a mim, pude
fazê-lo acreditar que o sabia o que ele tinha e quesupunha
tratar-se de inflamações devis a consequências da última
guelra. Apesar disso, por maior pruncia, mandou-nie prender.
- Que contas fazer se ele ainda estiver vivo quando saíres?
Berger reflectiu.
- Não sei, francamente.
- Eu matava-o! - declarou Meyerhof.
- Para ser preso outra vez? - disse Lebenthal, - E para ser
conenado a dez ou vinte anos por homicídio?

Que vais fazer quando saíres, Léo? - perguntou o 5O9. -Abrirei


um negõcio de capas. Meia confecção, de boa qualidade.

287

ERICH-MARIA REMARQUE

- Capas? No Verão?
- Há capas de Verão. Poderei também fazer fatos completos. E
capas para a chuva, naturalmente.

- Léo - disse o 5O9 -, por que não continuas na alimentação?


Haverá mais procura do que de capas, e tu tens feito
maravilhas aqui.
- Achas? Lebenthal estava visivelmente lisonjeado.
- Absolutamente!
- Talvez tenhas razão. Pensarei nisso. Produtos americanos,
por exemplo. Lembrani-se do toucinho americano depois da outra
guerra? Era grosso, branco e tenro como maçapão, com um tom
rosado...

- Cala a boca, Léo! Estás doido?


- Não. Foi só uma Wela que tive. Pergunto a mim mesmo se eles
o mandarão desta vez. Ao menos para nós!

- Cala-te, Léo!
- E tu, Berger, que vais fazer? Berger passou a mão pelos
olhos inflamados.
- Entrarei como aprendiz numa farmácia. Vamos a ver se poderei
fazer alguma coisa desse género. Por que operar... com estas
mãos? Ao fim de tanto tempo...

Apertou os punhos debaixo do casaco que atirara sobre os


ombros.
- já não posso pensar em tal. Serei farmacêutico. E tu?
- Minha mulher pediu o divórcio porque eu era judeu. Não tive
mais notícias dela.

- Tu vais, depois disso, pôr-te à procura dela? - perguntou


Meyerhof,

Rosen hesitou.
- Talvez tenha cedido a unia pressão. Que podia ela fazer? Fui
eu o primeiro a aconselhá-la.

- Talvez se tenha tornado de tal modo feia que o problema


ficaria resolvido para ti - disse Lebenthal. - Talvez fiques
contente por te desembaraçares dela,

- Nós também não rejuvenescemos.


- Não. Nove anos,... SuIzbacher tossiu.
- Que emoção voltar a ver os nossos ao fim de tantos anos!
- Considera~te feliz se tens ainda alguém para voltar a ver.
- Depois de tanto tempo - repetia SuIzbacher, - Comoserã
possível reconhecerino-nos?

Ouviram, entre o deslizar macio dos muçulmanos, uns passos ma


is firmes.

288
A CENTELHA DA VIDA

nçào - murmurou Berger. - Tem cuidado, 5O9Lexvinsky - disse


Bucher, que reconhecia os homens pelos

sky avançou, e fazem vocês? Nada para engolir hoje? Um dos


nossos está

as. Pôde roubar pão e cenouras. Tudo o que se cozia era nzos,
Nada a fazer a esse respeito. Tomem, aqui está um pão e
algumas cenouras cruas, Não é grande coisa, mas nós não
tivemos mais, rger - disse o 5O9 -, faz a distribuição. ve
meia fatia de pão e uma cenoura para cada prisioneiro. ,Comam
devagar. Mastiguem até que nada fique na boca.

r deu-lhes primeiro as cenouras, depois, ao fim de alguns o


pão. recemos malfeitores, a comer desta maneira, às escondidas
sen. Então, nào comas nada, únbecil - replicou Lewinsky seca-

insky tinha razão. Rosen bem o sabia. Queria dizer que fora
esta noite estranha, em que tinham falado do futuro para era
fome, que lhe surgiraaquela ideia, e que esta não tinha sennão
em função desse futuro. Mas renunciou à explicação.'era cada
de mais e não tinha grande importância. Eles estão a virar a
casaca - contou Lewinsky, numa voz rouca ada. - Os verdes
fazem o mesmo. Nós deixamo-los fazer. Os os responsáveis de
bloco, os responsáveis de camarata. Mais se fará a escolha. E
também dois SS. E o médico do hospital, por cima.
O porco! - disse Bucher. Sabemos o que ele vale, mas pode
ser-nos útil. Transmite-nos ticias, Esta noite chegou uina
ordem de deportação, Heni? - exclarnararti Berger e o 5O9 ao
mesmo tempo, Deportação. Devem ser colocados dois mil homens,
Querem fazer evacuar o campo? Querem dois mil homens.
Provisoriamente. A deportação. Aqui está o que receávamos -
disse Berger. Acalmeta-se, O escriturário ruivo está atento.
Se elaborarem lista, vocês não serão incluídos. Temos amigos
em toda a parte ra. Além disso, parece que Neiihauer hesita.
Ainda não transmitiu

em. Eles não vão sujeitar-se a uma lista - disse Rosen. -


Reunios homens ao acaso, como faziam lá onde eu estive quando
não

m outro processo. Mais tarde fazem a lista.

~Cos do Sk. XX 25 - 19
2<W

ERICH-MARIA REMARQUE

- Não se enervem. Ainda não chegámos a esse ponto. Tudo pode


mudar de um momento para oputro.

- Ele diz-nos para não nos enervarnios. Rosen tremia


convu6ivamente.
- Se preciso for, esconder-vos-ão no hospital. O médico agora
fecha os dois olhos. Já lá temos uni bom número de presos em
perigo.

- Fala-se também em deportar as mulheres? - perguntou Bucher.


1@

- Não, isso não farão eles. Há muito poucas aqui.

Lewinsky levantou-se.
- Vem - disse para Berger. - Foi para te levar que eu vim.
- Para onde?
- Para o hospital. Vamos esconder-te por um dia ou dois. Temos
um sítio perto da secção tifo. Nem um nazi se arrisca lá. Está
tudo pronto.

- Mas porquê? - perguntou o 5O9.


- A brigada -do crematório. Vão liquidá-la amanhã de manhã. É
o rumor que corre: -Ninguém sabe se Berger fará parte da
fornada. Eu creio que sim.

Virou-se para Berger:


- Tu viste de mais no crematório. Vem, será mais prudente.
Muda de roupa. Deixa as tuas coisas aqui num morto e traz as
dele.

- Vai! - disse o 5O9.


- E o responsável de bloco? Vocês podem fazer isso?
- Sirn - disse Ahasver, com surpresa geral. - Ele não abrirá o
bico. Pode-se confiar.

- Bem. O escriturário ruivo está ao corrente. Dreyer rebenta


de medo pela sua própria pele no crematório. Não te procurará
entre os mortos.

Lewinsky respirou ruidosamente pelo nariz.


- De resto, há--os até de mais. Anda-se por cima deles a todo
o comprimento do caminho. Serão precisos quatro ou cinco dias
para queimá-los. Nessa altura haverá outros. A desordem é tal
que já ninguém se entende. O essencial é que não te encontrem.

Um sorriso passou-lhe no rosto.


- Nestas ocasiões é sempre mais seguro. Permanecer longe das
balas.

- Vamos - disse o 5O9. - Procuremos um morto que não esteja


tatuado.

Tinham pouca luz. O grande clarão vermelho que dançava no


poente não os auxíliava. Tinham de se curvar sobre os mortos
para ver

29O

A CENTELHA DA VIDA

cro estava tatuado no braço. Encontraram uni que tinha


aproalente a altura de Berger e despiram-no. amos, depressa,
Ephraiiii! am sentados do lado da barraca que a sentinela não
podia ver. Muda de roupa depressa, aqui - murnitirou Lewinsky.
-

o menos testemunhas, melhor. Dá cá o teu casaco e as calças.

er despiu-se. Recortou-se no céu como uni arlequim fanA


distribuição inesperada de roupa de baixo valera-lhe unias de
mulher, que lhe caíam até metade da barriga das pernas, também
unia camisa muito decotada, sem mangas. Amanhã indiqueiu-no
como morto. Está bern. O chefe de bloco SS não o conhece.
Quanto ao resel do bloco, cá nos arranjaremos. insky teve um
riso breve. Vocês estão bastante bem organizados. Vem, Berger.

Como vêem, serripre há unia ordem de deportação!

n olhava fixamente Berger, que se afastava. ulzbacher tinha


razão, não devíamos ter falado do futuro.

s azar. Tolice! Tivemos comida, Berger está salvo. Não é certo


que auer transmita a ordem. Que queres tu com o teu azar?
Talvez sses garantias para alguns anos? Berger voltará? -
perguntou alguém atrás do 5O9. Ele está salvo - disse Rosen,
arnargamente -, ele não será de~ do. Cala a boca! - replicou o
5O9 com dureza. pois voltou-se. Karel estava atrás de si.
Voltará, com certeza, Karel - disse. - Por que não ficas na
ca? ,Karel encolheu os ombros. Julguei que vocês tinham um
bocado de sola para mastigar. Toma, aqui tens uma coisa melhor
- disse-lhe Ahasver, dane o seu bocado de pão e a si-ia
cenoura, que guardara para a nça.
1@Karel pôs-se a comer devagar. Vendo os olhares dos outros
fitos

levantou-se e desapareceu. Quando voltou, já não mastigava.


Dez ininutos - disse Lef-)enthal, olhando o se-ti relógio de
tel. - Boa prova, Karel; eu não faria tanto. Acabei era dez
sendos.

Não poderíamos trocar o relógio por víveres, Léo? - pergun-

291

ERICH-MARIA REMARQUE

- Esta noite não podemos trocar nada, nem mesmo ouro.


- Pode-se comer fígado - disse Karel.
- Hern?
- Figado. Figado fresco. Desde que se extraia logo, pode-se
comê-lo.

- Extraí-lo donde?
- Dos mortos,
- Quem te ensinou isso,Karel? - perguntou Ahasver depois dum
silêncio.

- Foi Blatzek.
- Qual Blatzek?
- Blatzek do campo de Bruenn. Ele disse que era preferivel
isso a niorrer. Os mortos estão niortos, disse ele, e de
qualquer maneira hão-de queiniá-los. Ensinou-me muitas.
coisas. Mostrou-nie como se

finge de morto e como se deve correr quando fazem fogo sobre


nós, em ziguezague, irregulamiente, baixarído-nos e
levantando-nos. E também como se arranja lugar para respirar
na fossa comum e como se sai do ãindo dela durante a noite.
Blatzek sabia um montão de coisas.

- Tu também sabes coisas, Karel.


- Com certeza; se assim não fosse, já não estaria aqui.
- Decerto, mas falemos doutro assurito - disse o 5O9.
- Ainda é preciso vestir o morto com a roupa de Berger. Foi
fácil. O morto ainda não estava rígido. Amontoaram outros ca-
dáveres sobre ele. Depois voltararn aos seus lugares. Ahasver
pôs-se a murmurar.

- Tens muito que rezar esta noite, velho - disse Bucher


sombriamente.

Ahasver levantou os olhos. Durante iiiii instante escutou o


ribombar longinquo.

- Quando o prúneiro judeu foi assassinado por eles sem que os


assassinos fossem levados ao tribunal, eles transgrediram a
lei da vida
- pronunciou lentamente. - Rirani. E di~rani: "Que é uni
punhado de judeus em relação à Grande Alenianha?" Eles
desviaram os

olhos. Tinham o Exército, que não estava ainda nas màos dos
assassinos. Podiam ter modificado tudo num dia. Mas deixaram
andar. É por isso que Deus os fustiga agora. Unia vida é unia
vida, seja ela a mais miserável,

Recomeçou a murmurar. Os outros calarani-se. O vento


refrescava, Apertaraiu-se mais uns contra os outros.

292

293

A CENTELHA DA VIDA

-Brcuer acordou. Com a mão entorpecida acendeu arjiieht"

de cabeceira. Imediatamente se acenderam duas manchas

sa. Eram duas pequenas lâmpadas eléctricas habilmente s


órbitas duma caveira. Quando Breuer premia de novo o

todas as outras lâmpadas se apagavam - apenas a caveira uava a


brilhar na noite. Era dum efeito admirável. Breuer ficara
tado. Ele próprio tivera a ideia.

ia ainda na mesa uni prato com migalhas -de bolos e uma chá-
,de café vazia ao lado de alguns livros. Romances de aventuras
May. As suas preocupações literárias não iam mais longe, além
edição fora do mercado sobre a vida amorosa e obscena de
'dançarina.
t ireitou-se, bocejando. Tinha uni gosto fétido na boca.
Apurou ido uni instante. As células do bunkerestavam
silenciosas. Ninousava gemer. Breuer ensinara bem a sua gente.
clinou-se para tirar uma garrafa de conhaque de debaixo da e
alcançar um copo na mesa. Encheu-o e esvaziou-o. Depois tou
outra vez. A janela estava fechada; no entanto, julgou ouvir

nibar dos canhões. Deitou um segundo copo e bebeu. Depois

u-se e olhou o relógio. Eram duas horas e meia. Enfiou as


bobre o pijama. Precisava das botas. Gostava de dar pontapés
no e. Sem botas o efeito era medíocre. O pijama era prático@,
o

estava sufocante. Breuer dispunha de bastante carvão. No tório


começava a faltar, mas Breuer constituíra, a tempo, uma a para
as suas necessidades pessoais. '@,Atravessou lentamente o
corredor. Cada cela era provida de um pelo qual se podia ver o
que se passava dentro. Breucr não Isava de o fazer. Conhecia o
seu jardim zooffigíco, como, orguamente, o denominava. Por
vezes dizia também o meu circo, e

-se um domador com o seu chicote. ginava Visitava as celas


como uni conhecedor a sua cave de vinhos. E, ascorno um
conhecedor escolheria a mais velha garrafa, Brcuer decinessa
noite, ocupar-se do seu mais antigo cliente. Era Luehbe, da
7. Abriu-a. A cela era pequena. Um grande radiador, aberto ao
máximo, manti-

ali uni calor insuportável. Uni homem estava acorrentado aos s


pelos pés e pelas mãos. Tombava, desmaiado, rente ao chão.
-111er observou-o um momento. Depois foi buscar uni canjirào
ao

dor e regou o prisioneiro como uma planta fanada. A água


vaiZou~se, fervendo sobre os tubos. Luebbe não se mexia,
Brcuer tou as correntes. As mãos queimadas desligarani-se. O
resto do iiirão inundou a cabeça no solo, Unia poça de água
formou-se. -uer voltou a sair com o canijirão para o encher de
novo. Lã fora

ERICH-MARIA REMARQUE

parou. Duas celas mais longe alguém gemia. Pousou o canjirão e


entrou devagar. Ouviram-no murmurar; depois foram. golpes
surdos, um espezinhar, o tilintar duma corrente de ferro, o
ruído de uni corpo ar-

ristado pelo chão, mais pancadas e, de súbito, um grito


dilacerante que acabou num estertor. Alguns choques surdos
ainda e Bretier reapareceu. A sua bota direita estava
moffiada. Encheu o canjirão e

regressou, sem se apressar, à cela 7.

-Vejam isto! já acordou! Luebbe jazia no chão, com. o rosto


virado para baixo. Esforçava-se para juntar a água com as mãos
para a lamber. Tinha os movimentos desajeitados dum sapo
ferido. Apercebeu-se, de repente, do canjirão da -água.
Ergueu-se com um gemido débil e deslocou-se para lhe deitar a
mão. Bretier pisou-lhe os dedos. Luebbe fazia esforços vãos
para soltar-se das botas. Estendia o pescoço com todas as suas
forças para o canjirâo, os lábios tremiam, toda a sua cabeça
tremia. Arquejava penosamente.

Brcuer observava-o com olho de conhecedor. Luebbe já não


aguentava muito tempo.

-Vamos, bebe! - rosnou. - Bebe o vinho do condenado! Riu da


graça que proferira e levantou os pés. Luebbe, com as inaos
livres, lançou-se sobre o,canjirão com. tanta pressa que quase
o tombou. Não acreditava na sua felicidade.

- Bebe devagar - disse Brcuer -, ternos tempo. Luebbe bebia


perdidamente, Atingira o 6.11 grau do programa educativo de
Breuer: arenques secos e água salgada por única alimeriução
durante alguns dias, seguida de suspensão no radiador aquecido
ao máxinio.

- Basta - decidiu por fim, Brcuer, arrancando o canjírão a


Luebbe., -Agora, de pé, e vem con-úgo.

Luebbe levantou-se, cambaleando. Encostou-se à parede e


pôs--se a vomitar a água,

- Vês? - dis@se Bretier com. ar triunfante. - Eu bem te disse


que bebesses devasar! Vamos, para diante.

Empurrou Luehbe na sua frente, pelo corredor, até ao quarto.


Luebbe tombou no soalho.

- Levanta~te e senta-te nesta cadeira --disse Breucr. - Vamos!


Luebbe içou-se para a cadeira e esperou a tortura seguinte.
Nada mais conhecia além disso,

Brcuer olhou-o pensativo.


- És o tlieu mais intigócliente, Luebbe. Seis meses, não é
verdade?
O fantasma teve um. movimento.
- Não? - repetiu Breucr.
O fantasma acenou com a cabeca.

294

A CENTEWA DA VIDA

Tempo corno diabo - prosseguiu Breucr. - Muito tempo. isto


ços. Acabei por sentir por ti um espécie de amizade. É
esquisito, mesmo assim. Pessoalmente, nada tenho contra ti,
bem sabesSabes, não é assim? - repetiu. - Sabes ou não?
fantasnia acenou outra vez. Contírittava à espera da tortura
te. A questão é com vocês todos. Estamo--nos nas tintas para o
índi-

er meneou gravemente a cabeça e deitou uni conhaque. É pena.


Eu gostava que tu aguentasses. Só te faltava ser pendupelos
pés e unia pequena cura; depois terias saído. Sabias?
fantasrna acenou. Não tinha a certeza de que assim fosse, mas
ade é que Brcuer soltava por vezes prisioneiros que não eran-i
ssamente condenados à morte, depois de ter-lhes Infligido toda
série de torturas, Obedecia assim a unia espécie de
regulamento-. ,resistisse ao tratamento tinha a sua
oportunidade. A seu pesar, ia como que unia admiraçào pelas
suas vitinias que demonstravam

resistência. Conio muitos nazis, gostava de consíderar-se como


cavalheiro cheio de espírito desportivo. @--É pena - disse
Bicuer -, gostaria imenso de te deixar ir

ra. Tu tiveste coragem. É pena que, apesar disso, me


veja ado a liquidar-te. Sabes porquê? Luebbe: não respondeu,
Brcuer acendeu uni cigarro e abriu a Ia. Apurou o ouvido um
moniento.
- É por isto. Ouves? :,Luebbe seguia-o com os olhos sem o
compreender.

a attffl@aria! A artilharia inimiga - disse, - Eles


aproximam-se. causa deles! É por isso que tu vais ser
liquidado esta noite, meu
Fechou a janela

Pouca sorte, hem? Riu, fazendo unia careta,

Exactamente poucos dias antes de eles vos tirarem daqui. Unia


dadeira macaca, hem? Estava encantado com a !deia. O serão não
deixava de ter uni certo

amento: unia pequena tortura moral para terminar,


- Na verdade tinia autêntica macaca, heni?
- Não - tivurmurou Luebbe.
- O quê?
- Não.
- Estás assim tão farto da vida? Luebbe abanou a cabeça.
Bretier olhava---o surprendido. Sentia que

295

ERICH-MARIA REMARQUE

já não tinha diante de si a massa inerte de há pouco. Luebbe


parecia, subitamente, sair de uni dia de repouso.

- Porque eles vão apanhá-los - articularam os seus lábios


dilacerados. - A todos!

- Estupidez! Estupidez! Breuer foi tomado de súbita raiva.


Cometera um erro. Em lugar de torturar Luebbe, acabava de lhe
dar uma satisfação. Mas como poderia supor que aquele animal
ligasse tão pouco à vida?

- Não tenhas ilusões! Nós não perderemos! Batemos em retirada,


e é tudo. A frente desloca-se.

Não conseguira ser convincente, bem o sabia. Bebeu unia


golada. "E, de resto, que importância tem isso?", pensou,
bebendo ainda outro golo.

- Pensa o que quiseres - disse depois. - Seja como for,


tiveste macaca. Sou obrigado a liquidar-te.

Começava a sentir o efeito do álcool.


- É pena para ti e para mim. A vida era bela. É certo que para
ti não o @era tanto, devemos ser justos.

Luebbe observava-o, apesar da sua fraqueza.


- O que me agrada em ti é que nunca cedeste. Mas tenho de
liquidar-te para que não contes nada. Sobretudo tu, o mais
velho cliente. Tu em primeiro lugar. Os outros também terão a
sua vez - acrescen-

tou com ar bonacheirão. - Nunca deixar testemunhas é um velho


princípio nacional-socialista.

Tirou um martelo da gaveta da mesa. -Para ti será rápido.


Pousou o martelo ao lado. No mesmo nioniento, Luebbe
levantou-se, cambaleando, e estendeu as mãos queimadas para o
martelo. Breuer repeliu--o sem dificuldade com uni soco.
Luebbe caiu.

- Vejam isto! - disse Breuer jovial. - Uma última tentativa!


Tens razão! Por que não? Deixa-te estar sentado no chão,
tenho-te melhor ao alcance do braço.

Pôs a mão em concha no ouvido.


- Hemi5 Que,dizes; tu?
- Eles hão-de apanhá-los a todos... da mesma maneira...
- Ali, Luebbe, não digas tolices! Era o que tu querias,
evidentemente. Eles não farão .,isso. São demasiado sensíveis.
De resto, nessa altura, já eu cá não estarei há muito tempo,
nenhum de vocês falará.

Bebeu um golo.
- Queres ainda um cigarro? - perguntou de repente. Luebbe
olhou-o.
- Sim - disse. Breuer colocou-lhe uni cigarro nos lábios
sangrentos.

296

A CENTELHA DA VIDA

Toma!

deu uni cigarro e serviu-se de uni por sua vez. bos fumavam em
silêncio. Luebbe sabia que estava perdido. rava o ouvido na
direcção da janela. Breuer esvaziou o copo. Depousou o cigarro
e agarrou o martelo. @,- Maldito sejas! - murmurou Luebbe. ,O
cigarro não lhe caiu da boca, ficou colado ao lábio superior,
O cio caiu várias vezes sobre Luebbe que deslizou devagar para
o

Brcuer fizera-lhe um favor não lhe batendo com a ponta. uer


permaneceu sentado um momento, com ar meditativo. O ebbe
dissera voltava-lhe ao espírito. Sentia~sevagamente lesaLuebbe
enganara-o. Deveria ter suplicado. Mas Luebbe não tinha

ado, teria sido mesmo inútil inatá-lo lentamente. Teria


estertoluas isso não contava, É o corpo que tem o estertor, e
este não

do que uma respiração sibilante, nada mais, Brcuer escutou o


ar longínquo atrás da janela. Era preciso que alguém
suplicasse do fim da noite, se não qualquer coisa estaria
irrernediavelmente a. Era isso mesmo; sabia-o agora, Não podia
ficar-se com a vitóde Luebbe. Levantou-se pesadamente e
dirigiu-se à cela 4. Ficou

ito. Unia voz desgarradora ergueu-se imediatamente e foram,


is, uivos, gritos, súplicas, lágrimas, e foi preciso um certo
tempo ra que a voz se quebrasse pouco a pouco e se calasse por
fim, Breuer voltou ao quarto satisfeito.

Seja como for, ainda os dominamos! - disse para o cadáver de


bbe, dando-lhe um pontapé.
O choque não foi violento; no entanto, qualquer coisa pareceu

r no rosto do morto. Bretier inclinou-se. Ia jurar que Lúebbe


lhe itara a língua de fora, uma língua cinzenta. Mas descobriu
que o cirro tinha continuado a arder na boca do morto; o
choque fizera sim-

-mente cair a pequena coluna de cinza. Brcuer sentku-se subi-

nte fatigado, Nem sequer tinha coragem para tirar o morto do


arto. Meteu-o, por isso, debaixo da cama a pontapés, Tinha
muito

po até ao dia seguinte. Uma nódoa sombria ficara no soalho.


uer sorriu sonhadoramente, "E eu nem sequer podia suportar a
-ta do sangue quando era criança!", pensou. "É engraçado!"

297

s mortos amontoavani-se. O camião não fizera a sua ronda


habitual. Suspensas dos cabelos, das pestanas, dos dedos dos
mortos, cintilavam gotas de chuva. o ribombar do horizonte
calara-se. Até à meia-noite os presos tinhani visto os
relâmpagos dos disparos e ouvido o trovão das deflagraçóes -
depois, tudo se tornara silencioso,

O Sol erguia-se. O céu estava azul; o vento suave e quente. As


estradas em volta da cidade estavam desertas, Nem sequer uni
refugiado. A cidade jazia no vale, negra e queimada; o rio
desenrolava-se como unia imensa serpente enfartada de
podridão. Em parte alguma se viam soldados.

Nessa noite caíra uma chuva cerrada e tépida durante uma hora,
e alguns charcos se tinham formado no campo de concentração. O
5O9, agachado perto de uni deles, viu-se reflectido por acaso.

Inclinou-se sobre a toalha de água brilhante e clara. Não se


lembrava de quando se vira pela útima vez a um
espelho..Tinharn~se passado anos, sem dúvida, e o rosto que se
aproximava era-lhe desconhecido.

A sua cabeleira rara e grisalha fora castanha e espessa antes


do campo. Sabia que ela mudara de cor; verifi=a-o pelas
manchas de cabelo que caíam regularmente sob a máquina do
barbeiro. Mas aqueles cabelos cortados que juncavam o chão
nunca lhe tinham parecido completamente seus, Deste rosto nada
reconhecia, nem mesmo os olhos. A pálida claridade no fundo
das órbitas, por cima de um maxilar devastado, e as narinas
desmedidas era tudo o que o distíngUla de iiiii morto.

"Sou eu... isto?", pensou. Olhou-se outra vez. Deveria ter


pensado que se assemelharia aos outros prisioneiros, mas esta
ideia nunca se lhe apresentara claraii,iente. Vira os seus
camaradas transforniarem-se de ano para ano, mas essa
insensível transforniaçào chocara-o infinitamente menos, agora
que a verificava, de repente, em si mesmo. No fundo, pouco lhe
teria importado que os seus cabelos se tivessem tornado raros
e grisalhos, que o seu rosto não fosse mais do que a sombra do
rosto cheio

298

A CENTELHA DA VIDA

emente desenhado de que se recordava - o que o consternava


@oftcontrar-se em frente de uni velho.

aneceu imóvel um momento. Muitas ideias lhe tinham vindo


últimos dias, i-nas não ainda a de que fosse um velho. Doze
anos muíto. Doze anos de cativeiro já era muito mais. Mas doze
anos po de concentração? Quem poderia dizer o que isso
repreria mais tarde? Teria ele ainda forças bastantes? Ou ia
desmoroe logo depois da libertação, com o uma árvore
apodrecida por tro, que pode ainda iludir durante o tempo
calmo, mas que tomba meira rajada de vento? Porque estes anos
de cativeiro eram bem acalmia, intermínável, terrível,
solitária, infernal, sim, mas, apesar udo, Lima acalmia. Nem
um rumor do mundo exterior chegava até s. Mas que lhes iria
suceder quando os arames farpados tom-

ni?
O 5O9 baixou outra vez os olhos para a superfície clara -Os
meus os", pensou. Inclinou-se para a frente para os ver de
mais perto,

a estremeceu sob a sua respiração e a imagem desapareceu. "E


eus pulmóes, que funcionam ainda," Mergulhou as mãos na áglua
a salpicar diante de si, "E as minhas mãos, que podem destruir
imgem." -Destruir", pensou. "Mas construir? Serei eu ainda
capaz de outra a que não seja de ódio? O ódio apenas é pouco.
E preciso mais que o ódio para viver. "

Levantou-se, Bucher aproximava-se. "Ele tem o que me falta,, é


o", pensou.
- 5O9 - disse Bucher _, viste? O crematório já não trabalha.
- Tens a certeza? -A brigada foi liquidada. Não parece que
tenham formido outra. Crgiunto a. mim mesmo porquê? Será, por
acaso... Olharam-se.

Ter-se-á tornado inútil agora? Dar-se-á o caso... Bucher


parou.
- _que eles se estejam a retirar? - disse o 5O9.
- Por que não? Não vieram buscar os mortos esta manhã, Rosen e
Sulzbacher aproximarani-se. -já não se ouve a artilharia -
disse Rosen. - Que estará a acontecer?

- Talvez tenham conseguido furar a frente.


- Ou tavez fossem repelidos, Parece que os 55 vão defender o
campo.

Outro hoato (Ias latrínas. De cinco em cinco minutos sai de lã

299

ERICN-MARIA REMARQUE
uni. Se realmente eles querem defender o campo, seremos
bombardeados.

O 5O9 levantou os olhos. "Quem dera que fosse já noite-,


pensou. "Há mais segurança na obscuridade. Quem sabe o que irá
acontecer ainda? O dia dura rã ainda horas e à morte poucos
minutos bastam." A quantos@inortos ocultariam ainda as horas,
cujo cortejo inipiedoso era dirigido pelo Sol em ascensão?

- Uni avião! - gritou de repente SuIzbacher. Apontava uni dedo


para o céu, muito excitado. Uni segundo mais tarde todos
distinguiiam a Eequena mancha brilhante.

- com certeza uni aparelho alemão - murmurou Rosen -, se não


já teriam dado o alerta.

Procuravam com os olhos um lugar abrigado. Corria o boato de


que os aviões alemães tinham recebído a missão de arrasar o
canipo no útimo momento.

- E só um, um só! Ficaram. Para boinhardear o campo teriam


enviado, sem dúvida, mais de uni avião.

- Talvez seja um avião de observação americano - disse


Lebenthal, que acabava de chegar. -já não dão o alerta por tão
pouco.

- Que sabes tu disto? Lebenthal não respondeu. Todos tinham os


olhos fitos na mancha, que aumentava com rapidez,

- Não é um avião alemão - disse SuIzbacher. Vía-se agora com


nitidez o aparelho, que picava em direcção ao campo. O 5O9
tinha a impressão de que uma mão saída do solo o puxava para a
terra pelas tripas. Sentía-se exposto, nu, em terreno
descoberto aos golpes duma divinidade de morte que se
precipitava sobre ele. Apercebeu-se de que os outros estavam
deitados no chão; não poderia dizer porque permanecia de pé. ,

Foi então que ressoaram detonações. O avião endireitou-se,


virou sobre uma asa e começou a descrever um círculo em volta
do campo. Os tiros provinham do campo. As metralhadoras
crepitavam atrás das casernas. O avião desceu mais. Todos
levantaram os olhos para ele. E, de súbito, as asas oscilaram.
Dir-se-ia que o avião fazia sinais. Os presos julgarani, a
princípio, que fora atingido; mas ele descreveu uni novo
circulo e as suas asas balançaram outra vez como as de urna
ave. Depois retomou altitude e afastou-se, seguido pelo fogo
das metralhadoras. Disparavani também agora de váiias torres
de vigia. Depois o tiroteio cessou e não se ouviu mais do que
o ronronar do motor.

- Era urn sinal - disse Bucher.


- Parecia que nos fazia sinais com as asas, como alguém que
agitasse a mão.

3OO

A CENTELHA DA VILM

Era uni sinal para nós, é mais que certo! Se não fosse isso,
que

querido fàzer@? uis mostrar-nos que sabia que estamos, aqui!


Era para nós! Não ser se não isso, Que pensas tu, 5O9? É
também a minha opinião. , quase o primeiro sinal que recebiam
do exterior desde que ni no campo de concentração. A terrível
solidão de tantos anos a doravante quebrada. Sabiam agora que
não estavam mortos a mundo. Pensavam neles. Libertadores
desconhecidos fahes sinais..Iá não estavam sós, Era a primeira
saudação da lide. já não eram a escória da Terra, desprezados,
enlameados,

do que vernies - tinham voltado a ser homens, para homens m


não conheciam. ue é isto que me dá?", pensou o 5O9. "Lágrimas?
Eu? Um velho?"

bauer examinava o fato, Selma pendurara-o em evidência no rio,


Compreendera a sugestão. Um fato civil - não o usava desde .
Um fato cinzento, sal-e-pimenta. Ridículo. Soltou-o do cabide
o examinar melhor. Depois fechou à chave a porta do quarto,
desuniforme e enfiou o casaco do fato. Muito apertado.
Impossível á-lo, mesmo encolhendo a barriga. Colocou-se diante
dó es- . Tinha um ar estúpido. Devia ter aumentado, pelo
menos, e a vinte quilos. Não era de estranhar. Antes de 1933
tinha de tantas economias!

esquisito como a sua segurança o abandonava quando não a


uniforniizado! Como se sentia acobardado e mole! olhou as .
Ficar-lhe-iam ainda pior do que o casaco. Era inútil experiar.
E, afinal de contas, para quê tantas preocupaçóes? Entregaria

po nas mãos do vencedor. Correctamente. Seria tratado com


correcção militar. Havia, para tal, tradições, fórmulas,
regras miliantigas. Era soldado, não é verdade ? Trazia
unifórme. Oficial rior. Haviam de compreender-se. cubauer
empertigou-se. Era impossível que viesse a ser inter- .
Provavelmente apenas durante algum tempo. Com certeza num lo
dos arredores, com homens da sua posição. Perguntou a si pró~
como iria entregar-se à prisão. Segundo as regras militares,
bem idido. Unia continência impecável. Não a saudação
hitleriana, a mão levantada - era melhor não a fazer. Com unia
simplicimilitar, levando a mão ao quépi. u alguns passos e fez
a continência, Sem rigidez, de igual para Recomeçou. Não era
coisa fácil chegar à proporção jus@a de çào e dignidade
elegante. A mão ia sempre muito acima. Era

3O1

ERICH-MARIA REMARQUE

esse diabo da saudação hitleriana. No fundo, unia forma bem


estúpida de saudar, pelo menos para os adultos. Levantar a mão
estava muito bem para escuteiros, não para oficiais. Era
estranho, ainda assim, que durante.tanto tempo se tivesse
feito esta saudação!

Recomeçou o seu exercício de continência militar. Mais


devagar! Sem pressa! Recuou alguns passos diante do espelho e
avançou para a sua imagem: "General, tenho a honra de me
entregar ... "

Era pouco mais ou menos isto. Antigarnente entregava-se a


espada ao proferirei-n-se,estas palavras. Napoleão III em
Sedan: lembrava-se por ter visto a cena nos livros escolares.
Ele não tinha espada. O revólver? De modo algum! Além disso,
não podia conservar uma arma consigo. Faltava-lhe treino.
Deveria tirar o cinturão com o revólver?

Deu mais alguns passos. Não devia aproximar-se demasiado, bem


entendido. Estacar a alguns metros: "General ... "

E por que não "camarada"? Não, se tivesse que entender-se com


um general. Neste caso, devia ser necessário talvez saudar com
mais rigidez e apertar-lhe em seguida a mão. Um aperto breve,
correcto. Não sacudir a mão. Enfim, o respeito do adversário
em frente do adversário. De oficial para oficial. No sentido
mais amplo da palavra, todos eram colegas, ainda que
pertencendo a campos adversos. A derrota viera depois duma
luta encarniçada. O vencido corajoso tinha direito a todas as
atenções.
Neubauer sentia tremer dentro de si o antigo escriturário dos
correios e telégrafos. Sentia-se nas vésperas dum momento
histórico: "General ... "

Dignidade. Em seguida, um aperto de mão. Talvez depois uma


ligeira refeição em comum, como o tinham feito, dizia-se,
certos adversários particulannente corteses. Rorrimel com
ingleses feitos prisioneiros. Era pena que não falasse inglês.
Enfim, não faltariam intérpretes entre os presos.

Corno se habituara depressa à saudação militar à antiga


maneira! No fundo, nunca fora um nazi fanático. Um funcionário
sim, o fiei funcionário da pátria. Weber e os seus sócios,
Dietz e a sua facção, esses, sim, eram nazis!

Neubauer tirou um charuto Romeu e Jufieta. Era preferível


fumá-los. Podia deixar quatro ou cinco na caixa. Na altura
própria ofereceria um ao adversário. Um bom charuto
contribuiria para resolver as coisas.

Puxou algumas fumaças. E se o adversário quisesse ver o campo


imediatamente? Muito be ni. E se alguma coisa lhe
desagradasse, ele, Neul-)auer, agira sempre conforme ordens
recebidas. Isto seria compreendido por soldados. O coração por
vezes apertado, mas...

Teve unia inspiração súbita. Unia sopa, uma sopa espessa e


abun-

3O2

A CENTELHA DA VIDA

,'Eis o que era preciso! Era sempre a primeira coisa que se


insa. Ia tomar imediatamente todas as disposições para que as
fossem aumentadas. 'Mostraria assim que, logo que deixara de

nstrangído a obedecer a ordens, fizera tudo o que lhe fora


1 pelos presos. Ia dirigir-se directamente aos dois
responsávèis

o. Eles próprios eram presos, testemunhariam mais tarde a or.

ínbrenner estava em frente de Weber, O seu rosto irradiava


zelo. Dois presos abatidos quando tentavam evadir-se -
anunciou.
s atingidos na cabeça. ber levantou-se devagar e sentou-se na
beira da mesa. A que distância? Um a trinta e outro a
quarenta. Com certeza? inbrermer corou. Abatera os dois presos
apenas a alguns metros, isos para que os férinientos não
apresentassem sinais de queiras. E eles tentaram evadir-se? -
perguntou Weber. Sim.

os sabiam perfeitamente que não era assim. Tratava-se simnte


do nome dum jogo inventado pelos SS. Tiravam o boné a preso,
atiravani-no para trás e davam ordeiu ao prisioneiro para
scá-lo. Se ele atravessava a linha interdita, abatiam-no pelas
s... por tentativa de evasão. O atirador tinha geralmente
alguns s de licença.

Queres ir de licença? - perguntou Weber. Não. Por que não?


Pareceria que a minha intenção era esconder-me. ,Weber ergueu
as sobrancelhas e pôs-se a balançar lentamente a sobre que
estava sentado. O reflexo do sol na bota em moto corria aqui e
além nas paredes despidas, como uma clara e ria borboleta.
- Então, não tens medo?
- Não. Steinl-)renner olhava Weber bem a direito. 'Q @ Está
bem. Nós temos necessidade de hornens corajosos, sobre-

agora. @,Weber obsei vava Steinbrenner há já muito tempo.


Agradava-lhe. muito jovem e conservava alguma coisa daquele
fanatismo que fi.@

antigamente a celebridade dos SS.

3O3

ERICH-MÁRIA REMARQUE

Sobretudo agora - repetiu Weber. - Precisamos de SS... dos


autênticos. Compreendes o que quero dizer?

- Perfeitamente ou, pelo menos, assim me parece. Steinbrenner


corou de novo, Weber cia o seu modelo. Tinha por ele uni
respeito cego, a admiração de uni rapazinho por uni chefe
pele-vermelha. Ouvira falar da coragem que Weber mostrara nas
desordens no Saale, em 1933; sabia que ele participara no
assassinato de cinco operários comunistas e cumprira quatro
meses de prisão; os operários tinham sido arrancados da cama
no meio da noite e mortos a pontapé diante das famílias. Sabia
também o que se contava dos ínterrogatõrios a que ele submetia
os presos na sede da Gestapo e da maneira como tratava os
inimigos do regime. Não desejava se não unia coisa:
assemelhar-se tanto quanto possível ao seu ideal. Crescera no
seio do Partido. Tinha 7 anos quando os nazis conquistaram o
Poder e representava o produto acabado da sua educação.

- Admitiu-se demasiado nos 55, sem rigorosa discriminação. É


agora que a escolha se vai fazer. É agora que se vai ver quem
são aqueles que têm categoria! Os belos dias da corrupção
passaram. Sabes isso?

- Perfeitamente. Steinbrenner estava imobilizado na posição de


sentido.
- Reunimos já aqui unia dúzia de homens seguros. Escolhidos
com cuidado.

Weber examinou Steinbrenner com um olhar ínquisitorial.


- Vem esta noite,ãs oito e meia. Decidiremos então.
Steinbrenner, entusiasmado, fez meia volta e afastou-se. Weber
levantou-se. -Mais um", pensou. "Será bastante para reduzir a
nada as precauçôezinhas do velho." Riu. Apercebera-se há muito
tempo de que Ne ubauer procurava nietamorfoscar-se num anjo de
pureza, atirando-lhe todas as responsabilidades para cima das
costas. Este último pormenor importava-lhe pouco; no ponto em
que estava nada mais podia coi@npromet"o, mas não gostava dos
anjos de pureza.

A tarde passou rapidamente. Os'SS só rananiente apareciam no


campo. Ignoravam que os presos tinham armas e não estava aí
portanto, a razão da sua prudência . Mesmo cem vezes mais
armados de revólveres, os presos não tinhama menor
possibilidade de vencer as metralhadoras num combate em
regra.,O que fazia recuar os SS era, mais simplesmente, a
multidão imensa dos presos.

Às três horas os alto-falantes transiiiitira-i@n os nomes de


vinte presos, com a ordem de se reunirem dentro de dez minutos
junto da porta. Isto podia significar tudo: um interrogatório,
correio ou niorte,

3O4

A CENTELHA DA VIDA

cção clandestina do campo fez desaparecer -os vinte presos das


harracas; sete deles foram escondidos no pequeno campo. A
orfoi repetida, Todos os presos chamados eram políticos,
Ninguém
ceu, Era a primeira vez que o campo desobedecia abertamente.
depois, todos os presos foram convocados para a praça de da. A
direcção clandestina deu ordem para permanecerem nas cas. Era
mais fácil fuzilar os prisioneiros em massa na praça de

da. Wel-)er desejaria fazer entrar em acção as metralhadoras,


não ousava ainda proceder tão abertamente contra a vontade de
bauer. A direcção clandestina sabia, por intermédio da
admíníso, que a ordem provinha de Weber, e não de Ncubauer.
Weber ber pelo alto--falante que o campo não teria que comer
enquanto se reunisse e não fossem entregues os vinte
políticos. ,As quatro horas chegou uma ordem de Ncubauer. Os
responsáveis 'campo tinhan, de se apresentar imediatarnente a
ele. Obedeceram. campo esperou o seu regresso com ansiedade.

,Regressaram ao fim, de meia hora. Neubauer aiostrara-lhes a

iii de deportação. Era a segunda que recebia. No espaço de uma


1 dois mil presos deviam ser reunidos e levados. Neubauer
deciaque adiaria a execução da ordem até ao dia seguinte. A
direcção destina do campo reuniu-se imediatamente no hospital.
Obtee, em primeiro lugar, do médico SS Hoffniann, que virara a
casaca, promessa de que empregaria a sua influência junto de
Ncubauer ra que a convocação dos vinte políticos, fosse
igualmente adiada ra o dia seguinte e a chamada geral anulada.
O médico dirigiu-se ediatainente ao comandante. A direcção
clandestina do campo idiu que em caso algum, no dia seguinte,
a ordem de deportação ta obedecida. Se os SS tentassem reunir
pela força os dois mil sos, ser-lhes-ia oposta uma sabotagem
geral, Os prisioneiros tenni, escapar-se-lhes nas barracas e
luas do canipo por todos os elos. Os presos armados
ajudá-los-iani na niedida do poss@ivel. Ha-

motivos para crer que os SS, tirando unia dúzia de fanáticos,


não distinguiriam nesse trabalho por uni zelo excessivo, Foi,
pelo nie-

o que fez saber o Scharfueb rer SS Bieder, em quem se podia


ter .ança. Finalmente, duzentos checos comunicaram, a sua
decisão e se apresentarem como voluntários para a deportação,
se esta fosse, @,pesar de tudo, posta em execução, a fim de
salvarem duzentos ou-

,,tros presos menos resistentes.

Werner, apertado nunia blusa de enfermeiro, escondia-se não


longe da secção tifo.
@:Ç. Ç~Cos do Séc. XX 25 - 2th

3O5

ERICH-MÁRIA REMARQUE

Basta aguentar ainda um dia - murmurou. - Cada hora que passa


trabalha por nós. Hoffinann está ainda com Neubauer?

- Sim.
- Se ele não conseguir nada, temos de desembaraçar-nos
sozinhos.

- Pela violência? - perguntou Lewinsky.


- Pela violência não, mas pela meia violência. Mas só amanhã.
Amanhã seremos duas vezes mais fortes do que hoje.

Werner deitou um olhar pela janela e mergulhou de novo nas


suas notas.

- Recomecemos. Temos pão para quatro dias, à razão de uma


raçao por dia. Qual é a situação no que respeita à farinha, à
sêniola e

às massas?

Então estamos de acordo, doutor, tomo inteira


responsabilidade. Até amanhã.

Neubauer seguiu com os olhos o médico-chefe, soltando um


ligeiro assobio. "Também tu", pensou. "Bem vistas as coisas,
quantos mais formos, melhor. Defender-nos-emos uns aos
outros." Colocou cuidadosamente a ordem de deportação num
sobrescrito especial. Depois dactilografou numa pequena
máquina portátil as suas próprias instruções, destinadas a
fazer retardar a execução da ordem, e meteu-as no mesmo
sobrescrito. Esta ordem de depomção era providencial. Neubauer
reabriu o sobrescrito e sentou-se outra vez diante da máquina
de escrever. Dactilografou devagar uma outra nota - a ordem de
Weber de que não se procedesse a qualquer distribuição de
comida era anulada. Era dada, pelo contrário, ordem para
distribuir unia sopa abundante nessa noite. Tratava-se de
pequenas coisas, mas

convinha não descuidar nada.


Um ambiente pesado reinava na caserna SS. O Oberscharfuehrer
Kaminler entregava-se a especulações melancólicas. As pensões
de reforma seriam pagas? Teria direito a elas? Estudante
falhado, não tinha qualquer meio, de ganhar a vida. O antigo
moço de matadouro Flo~ restedt: perguntava a si mesaio se
todos os suspeitos que lhe tinham passado pelas mãos, de 1933
a 1935, estaflam mortos. Desejava vivamente que assim fosse.
Para vinte deles era certo, ele próprio os liquidara à
vergalhada e à paulada. Mas faltava-lhe a prova quanto a dez
outros. O antigo empregado de comércio Scbar@@hrerBolte
gostaria de consultar uni especialista de leis para saber se
as concussões a que se entregara no exercicio da sua profissão
civil estariam ou não anuladas por prescrição legal. Nieniann,
o homem das seringas, tinha na cidade um cúmplice homossexual
que lhe prometera documentos de

3O6

A CENTELHA DA VIDA

I ação falsos, mas tinha nele apenas uma confiança mediocre,

tia a si mesmo reservar-lhe a sua última injecção . O SS Duda


ava passar-se para a Espanha ou para a Argentina; pensava que
conturbados tempos devia continuar a haver necessidade de s a
quem nada fizesse recuar. Bretier matava no bunker o vigáólico
Werkmeister, estrangulando--o lentamente, com grandes alos de
espera. O Scbarfitebrei- Sorrimer, homem de pequena ra que não
se cansava de fazer uivar de dor os presos altos, lhava na
melancolia nostálgica das mulheres envelhecidas que am com os
dias passados da juventude. Urna meia dúzia de SS esam que os
presos interviessem em seu favor; outros acreditavam na
vitória da Alemanha; outros queriam tornar-se coniunistas; in
número deles tinhani-se já persuadido de que nunca haviam
verdadeiramente nazis e muitos não pensavani nada porque

perdido o hábito deste gênero de exercício, Mas quase todos m


consciência de haverem agido sempre de conformidade com

ens recebidas e que não tinham, por consequência, pessoal e


namente, nada a censurar-se.

Já passou mais de unia hora - disse Bucher. lhava as torres de


vigia vazias. Os serventes tinhara-se retirado guém viera
substituí-los. O caso sucedera já algumas vezes, mas te no
pequeno campo e durante alguns minutos apenas. Desta não se
viam sentinelas en-i parte alguma. ão se poderia dizer se o
dia durara três ou cinquenta horas, de inaneira, era grande a
emoção. Todos os homens estavam esgo-

s, mal podiam falar, A princípio não tinham prestado grande ão


à circunstância de as torres não terem sido reocupadas. Fora
er quem o notara uni pouco mais tarde. Verificara então que o
po de trabalho estava igualtuente sem sentinelas.

Talvez já tenham pai-tido. Não, Lebenthal ouviu dizer que


continuavam lã. Puserani-se a esperar. As sentinelas não
reapareceram. A sopa foi tribuída. Os homens de faxina
contaram que os SS permaneciam no

o. No entanto, pareciam estar a preparar-se para partir. A


chegada da sopa provocou uma desordem sem força. Foi preo
fazer recuar os esqueletos esfomeados.

Há que chegue para toda a gente! - gritou o 5O9. - Mais do e


costume! Muito mais! Cada uni terá a sua parte. A calma foi
finalmente rêstabelecida. Os mais robustos fÓrmarárn@ in
cordão protector em volta do caldeirão e o 5O9 procedeu à
distri-

ição. Berger continuava escondido no hospital.

3O7

ERICH-MARIA REMARQUE

Olhem para isto! Até há batatas! - disse Ahasver, - E tendôes!


É um milagre!

Efectivamente, a sopa estava muito mais espessa e era quase


duas vezes mais abundante do que costume. Havia também porção
dupla de pão. Era ainda muito pouco, mas o pequeno campo mal
podia conceber urna abundância semelhante.

- O velho esteve em pessoa na cozinha - contava Bucher. -

Nunca vi nada parecido desde que estou aqui.

- Ele procura defender-se. Lebenthal acenou afinuativamente.


- julgam-nos mais estúpidos do que somos.
- Nem isso - disse o 5O9, pousando a sua gamela vazia ao lado.
- Eles nem sequer se dão ao trabalho de perguntar o que nós
podemos pensar, Julgam que estamos como eles queriam que
estivéssemos, e é tudo. E assim em toda a parte. Sabem tudo e
sempre melhor do que os outros. Foi por isso, aliás, que
perderam a guerra. julga- vam-se mais bem informados que
ninguém sobre a Rússia, a Inglaterra e a América.

Lebenthal arrotou.
- Que ruído delicioso - disse, com recolhimento. - Senhor!
Quando arrotei eu pela última vez?

Estavam excitados e fatigados. Ocupavam uma ilha invisível. Em


volta deles os muçulmanos morriam. Morriam apesar da sopa mais
espessa. Moviam lentamente os seus membros de aranha com
pequenos gritos, murmúrios, e adormeciam para sempre.

Bucher atravessou lentamente, e tão erecto quanto lhe era


possível, a praça de chamada em direcção à dupla vedaçào de
arame farpado que separava o pequeno campo das barracas das
mulheres. Encostou-se a ela.

- Ruth! Ela esperava do outro lado. O crepúsculo coloria~lhe


as faces e dava-lhe uma aparência de saúde, como se ela
tivesse já comido várias refeições copiosas,

- Aqui estanios - disse Bucher -, abertamente e sem


preocupação.

Ela acenou-lhe. Um leve sorriso afiorou-lhe os lábios.


- Sim, é a primeira vez.
- Estamos encostados aos arames como à grade dum jardim. sem
medo, Como à grade dum jardim, na Primavera.

E, contudo, o medo não os abandonara. De vez em quando olhavam


para trás e para as torres desertas. O medo estava
profundaniente firmado neles, bem o sabiam. Sabiam também que
era preciso lutar contra ele e venc&lo. Sorriam um para o
outro e cada uni

3O8

A CENTELHA DA VIDA

rava reter mais tempo do que o outro aquele rápido olhar para
uarda. tros presos puseram-se a ii-nitã-los. Aqueles que o
podiam fazer

am-se e iniciavam uni tímido passeio. Alguns aproximados


arames farpados mais do que era permitido - tão perto as
sentinelas já teriam disparado se estivessem no seu posto.
arri nisto uma estranha satisfação, pueril na aparência, e, no
ennada havia menos pueril. Avançavam, circunspectos, sobre as
pernas de cegonha, alguns com tã o pouca firmeza que
necessitade uni ponto de apoio; as cabeças erguiaiti-se, os
olhos destes s devastados não estavam já voltados para o chão
ou perdidos no o - recomeçavam a ver. Qualquer coisa esquecida
acordava nos cérebros, dolorosamente, qualquer coisa que os
perturbava e de não tinham ainda encontrado o nome. Divagavam
assim pelo o, entre os montes de cadáveres, entre os montes de
camaradas rentes a tudo, que níorriarn ou apenas se mexiam por
um pouco

ento - fantástico passeio de esqueletos em que, apesar de não


se extinguira unia centelha de vida, crepúsculo morreu.
Sombras azuladas invadiram o vale. Dea a colina desapareceu.
As sentinelas não tinham voltado. A noite eu por completo,
Bolte não apareceu para a chamada da noite.

sky trouxe notícias. Toda a gente se afadigava nas casernas.


Os canos eram esperados de um momento para o outro. A coluna
deportados não seria formada no, dia seguinte. Neubauer
descera

de. Lewinsky riu, mostrando todos os dentes. já não será por


muito tempo! Tenho de voltar! Levou corn ele dos prisioneiros
escondidos. A noite estava calma, imensa, repleta de estrelas.

3O9

XICIV

barulho começou de madrugada. De inuito longe, no silêncio,. o


5O9 ouviu, primeiro, gritos. Não eram gritos de homens
torturados era a alegre algazarra dum bando de bêbados.

Soaram tiros. O 5O9 apalpou o revólver. Introduzira-o debaixo


da camisa. Tentava descobrir se eram só os SS que disparavam
ou se os homens de Werner já respondiam. Depois houve unia
descarga de metralhadora.

Rastejou para detrás de uma pilha de cadáveres e observou a


entrada do pequeno campo. Fazia ainda escuro e, como o solo
estava juncado de cadáveres dispersos, podia passar
depercebido deitando-se entre eles.
Os gritos e as detonações duraram alguns minutos. Depois a
algazarra aproximou-se. O 5O9 chegou-se para o monte de
cadáveres. Via o tai-tamu<Jear vermelho das metralhadoras. De
todos os lados silvavam balas. Uma meia dúzia de 58
can-únhavaiii pela rua central do campo disparando. Atiravam
sobre as barracas, à esquerda e à direita. De vez em quando,
balas.perdidas enterravam-se nos mortos com um ruído flácido.
O 5O9 achatava-se contra o solo, completamente oculto.

Aqui e além erguiani-se presos como grandes aves assustadas.


Batendo os braços, vacílavarn, sem saber para onde ir.

- Deitem-se! - gritou o 5O9. - Finjam-se mortos! Deíxein-se


ficar deitados, sem se mexerem.

Alguns ouviram-no e deixarani-se cair no chão. Outros


precipitavani-se para as barracas e apertavam-se uns contra os
outros à entrada.

o hando ultrapassou as latrinas e marchou sobre o pequeno


campo. A porta voou bruscamente. O 5O9 distinguia na sombra
vagos vi iltos e rostos contraídos, iluminados pelos tiros.

- Por aqui! - gritou um deles. - Vamos às barracas de madeira,


-,,amos aquecer os caniaradinhas. Eles devem ter frio. Por
aqui!

- Vamos, despacha-te, Steinbrenner, passa os hidões!


O 5O9 reconheceu a voz de Weber.
- Há ali uni monte deles diante da porta! - gritou
Steinl)renner. A metralhadora cuspiu para o grupo sombrio que
seapertava contra a porta e que logo tombou lentamente.

31O

A CENTELHA DA VIDA

Bravo! E agora vamos a isto!


O 5O9 ouviu um glu-glu. Parecia que despejavam água.
Distinguiu bidões balanceados com toda a força. O líquido
jorrava sobre as

es das barracas. Cheirava a gasolina. O bando de escol de


Weber tinha festejado a partida. À meia-noite gara a ordem de
retirada e a maior parte dos soldados puseram-se peaminho; mas
Weber e a sua quadrilha dispunham ainda de uma rerva de
scbnaps e todos estavam agora com a mais alegre disposição. o
queriam retirar-se sem dar pela última vez unia volta ao
campo. eber ordenara que se levassem bidões de gasolina.
Queria atear uma

eira festiva de que por muito tempo se lembrariam. Tiveram de


deixar as barracas que não eram de madeira. Em comnsação, as
barracas polacas, de pranchas, iam ser a sua alegria.
- Em frente, para o fogo-de-artificio! - gritou a voz juvenil
de inbrenner. Um fósforo inflamou-se, depois toda a caixa. O
homem que a serava deitou-a ao chão. Uni outro SS atirou um
fósforo aceso para

bidão que estava junto da barraca. O fósforo apagou-se. Mas um


to azulado, partido do ponto vermelho do primeiro fósforo,
correu '- chão em direcção à barraca, subiu ao longo da
parede, dispersouem leque e logo se transformou numa
superfície gasosa e trémula, aspecto bastante inofensivo,
semelhante a uma descarga eléctrica, e sem espessura, que o
primeiro sopro de ar extinguira. Mas, de súbito, ouviu-se um
crepitar e as chamas rasgaram o véu inoso e irromperam, por
cima do telhado. A porta entreabríu-se.

Fogo sobre os que saem - ordenou Weber. Tinha uma metralhadora


debaixo do braço. Disparou. Um vulto tombou na soleira da
porta. "Buclier", pensou o 5O9asver." Eles dormiam
habitualmente junto da porta. Uni SS lanu_se para a frente,
puxou o vulto que obstruía a porta e tomou a chá-Ia antes de
recuar de um salto.

-Agora podemos ir! É a caça ao coelho bravo! As chamas subiam


já em feixes. Através dos grunhidos dos SS istinguiam-se os
gritos dos prisioneiros. A porta da secção vizinha )riu-se por
sua vez. Saltaram homens para fora. As bocas abriani-se
111O buracos negros. Uma rajada acolheu-os Nem um passou da
soira. Tremiam diante da porta como um cacho de aranhas
gigantes.

Até aí o 5O9 permanecera estendido no chão. Devagar,


sentou-se. s vultos dos SS distincytiiani-se nitidamente
contra o incêndio. Desbriu Wel-)er, de pé, com as pernas
afastadas. "Lentamente", pensou

mesmo tempo que uma tremuna o sacudia de alto a baIxo.


entamente, uni após outro." Tirou o revólver da camisa. Num
breve

311

ERICH-MARIA,REMARQUE

silêncio ouviu o clamor dos prisioneiros aumentar. Sem mais


reflexão, fez pontaria e apertou o gatilho.

Não ouviu a detonação no meio das outras detonações. Weber não


se mexera. E, de repente, veio-lhe à ideia de que não sentira
no braço o choque do recuo da arma. O coração apertou-se-lhe
horrivelmente.
O revólver não funcionara.

Nem sentiu os dentes enterrarem-se-lhe nos lábios. Uma


fraqueza caía sobre ele como a noite. Apertava os dentes
convulsivamente para não se afundar nas trevas. A arma devia
estar húmida, portanto, inutilizável. Lágrimas, o gosto do
sal, a raiva e, de repente, debaixo do dedo, uma revelação
brusca. A mão deslizou na superfície polida, encontrou unia
alavanca de metal que cedeu - esquecera-se do travão de
segurança.

Teve sorte. Nenhum SS se voltara. Nada esperavam do lado onde


-ele se encontrava. Corriam, gritavam, disparavam contra as
portas. O
5O9 levantou a arma até ao rosto. Na claridade incerta podia
ver que o travão de segurança estava descido agora. Deitou-se
sobre os cadáveres, apoiado nos cotovelos. As mãos continuavam
a tremer. Segurava o revólver com as duas mãos para apontar
melhor. Weber estava a uma dezena de metros dele. O 5O9
respirou várias vezes lenta e profundamente, depois reteve a
respiração, retesou os músculos dos braços e dobrou
lentaniente o dedo sobre o gatilho.

A detonação perdeu-se entre os outros tiros. Mas o 5O9 sentiu


o recuo forte da arma. Disparou outra vez. Weber tropeçou para
a frente, olhou para trás, espantado, e tombou de joelhos. O
5O9 continuava a disparar na direcção do próximo SS, que
estava armado de uma metralhadora. Apertou ainda várias vezes
o gatilho quando já não lhe restavam mais cartuchos.

O SS não caiu..O 5O9 permaneceu indeciso uni segundo, com o


revólver agora inútil nas mãos. Esperava ser abatido
imediatamente. Mas ninguém reparara nele no meio, da
fuzilaria. Deixou-se escorregar para detrás da pilha de
cadáveres.

Foi então que um dos SS viu Weber.


- Ei, Stui-Mfuebrer!- gritou. Weber encontrava-se um pouco
afastado e nenhum dos seus companheiros o vira cair.

- Sturn@fuehrer! Que aconteceu?


- Está ferido?
- Quem fez isto? Qual de vocês?
- SttírMfuehrer! Não lhe veio outra ideia se não a de que
Wober fora vítima dum acidente causado por imperícia.

- Meu Deus! Quem foi o imbecil?

312

A CENTELHA DA VIDA

Ouvirani-se novos tiros Mas eles provinham desta vez do campo


trabalho. Viani-se rápidos clarões na noite.
- Os americanos! - gritou uni dos SS. - Depressa, fujamos!
Steinbrenner fez fogo na direcção das latrinas. ,,í_
Safénio-nos pela direita! Pela praça de chamada! - gritou ém.

Depressa, antes que nos cortem a retirada! E o Stuiwifuebrer?


Não podemos arrastá-lo! Os tiros aproximavam-se. Os SS
contornaram, correndo, a barraca chamas. O 5O9 levantou-se.
Cambaleando, dirigiu-se para a porta. iu, tornou a levantar-se
e, finalmente, abriu a porta.
- Saiam! Eles fugiram!
- Ainda continuam a disparar!
- São os nossos! Saiam! Alcançou, vacilando, a porta seguinte
e começou a desimpedir a rada dos cadáveres que a obstruíam.
- Saiam! Saiam! Eles já fugiram! Vultos saltaram por cima dos
mortos. O 5O9 alcançou a secção A. porta já ardia. Era
impossível aproximar-se. Pôs-se a gritar com to-

as suas forças. Ouviu ainda detonações, depois um estalido.


Uma

inflamada caixi-lhe sobre os ombros. Tombou, levantóu-se


mbaleando, sentiu uni novo choque violento e s6 voltou a si
quando tava no chão. Fez uni esforço para levantar-se, mas não
conseguiu. .",Ouviu vozes longínquas e viu, como a uma
distância infinita, homens que corriam. Não eram já SS, eram
os prisioneiros que transportavam feridos. Tropeçaram nele.
Rastejando, afastou-se para o lado. De súbito, uma fadiga
mortal o invaditi. Ao menos que conseguisse

do caminho! Falhara o segundo SS. Talvez o próprio Weí@,ber


escapasse. Tudo fora inútil. Por sua causa tudo se perdera.

Afastou-se mais. O monte de cadáveres estava ali. Era ali que


tinha o seu lugar. já não sei-via para nada, Bucher estava
morto. Ahasver ,estava morto. Devia ter dado o revólver a
Bucher. Este tê-lo-ia utilizado melhor. "Para que serviria
ele?"

Apoiou-se com dificuldade nos cadáveres. Uma dor o


atormentava. Passou a mão pelo peito e levantou-a até ao
rosto. Estava coberta de sangue. Olhou-o com indiferença,
Deixara de ser ele próprio. Sentiu ainda o calor do incêndio,
ouviu alguns gritos, depois tudo se

Quando voltou a si, a barraca ainda ardia. Por toda a parte


cheI@. rava a madeira carbonizada, a carne queimada e em
decomposiçâO.'

313

ERICH-MÁRIA REMARQUE

O incêndio aquecera os mortos. E como estavam ali há alguns


dias, começavam a gotejar e a cheirar mal.

Os gritos tinham cessado. Uni interminável cortejo


transportava os que tinham escapado mais ou menos
profundamente queimados. O
5O9 distinguiu a voz de Bucher. Nem tudo fora, portanto,
inútil. Olhou em redor. Ao fim de algum tempo percebeu
qualquer coisa que se me~ xia perto dele. Levou alguns
segundos a reconhecer weber.

Estava deitado de bruços. Conseguira arrastar-se para detrás


da pilha dos mortos antes da chegada de Werner e dos seus
homens. Não o tinham descoberto. Estava estendido, com uma
perna encolhida e os braços em cruz. Uni fio de sangue
escapava-lhe dos lábios. Vivia ainda.

O 5O9 tentou levantar a mão. Quis chamar alguém, mas já não


tinha força para tanto. Tinha a garganta seca. Apenas saía
dela um estertor, imperceptível no crepitar do incêndio.

Weber vira o movimento da mão do 5O9. O seus olhos


seguiram-na. Depois encontraram os do 5O9. Os dois homens
olharam-se.

O 5O9 não sabia se Weber o reconhecera. Também não podia dizer


o que os olhos dele exprimiam..Mas sentiu, de súbito, que era
preciso que os seus pernianecessem niaís tempo abertos que os
de Weber, Tinha de viver mais tempo do que ele. Teve, de
repente, a sensação estranha de que esta insignificante
vitória se revestia de uma importância imensa, que o valor do
que tinha sido a sua fé, a razão de ser dos seus sofrimentos,
da sua luta, dependia dos poucos instantes durante os quais a
vida continuaria a brilhar nos seus olhos quando já se tivesse
apagado nos olhos do adversário, Era um combate singular, o
julgamento de Deus. Se triunfasse, então aquilo que
representava tudo para ele, aquilo que pagara com a sua
própria vida, triunfara igualmente. Era preciso fazer um
último esforço. Uma vez mais tudo estava nas suas mãos - tinha
de vencer.

Respirava docemente, com prudência, até ao limite do


sofrimento. Via o sangue cair gota a gotados lábios de Weber e
perguntava a si mesmo se também ele estaria a perder sangue.
Sentia-lhe o gosto na boca, mas lembrara-se de que mordera
profundamente os lábios. Levou a mão à boca.

Os olhos de Weber seguiram-lhe o movimento e fixarani-se outra


vez no 5O9-

O 5O9 tentou reflectir; queria lembrar-se de tudo o que lhe


parecia estar em jogo. Receberia daí uni acréscinio de forças.
Mas não era capaz de fixar o pensamento em coisa alguma.
Tratava-se daquela coisa tão simples no homem sema qual o
niundo inteiro seria votado à destruição - isto ainda o seu
cérebro esgotado sabia. E essa coisa tão simples tem de
aniquilar o mal radical, o Anticrísto, o crime contra

314

A CENTELHA DA VIDA

pírito. "Palavras-, pensou, "Palavras que não dizem o que


ímport ;a,." ara que tinha ele ainda necessidade de palavras?
Tratava-se de entar, de viver mais tempo do que o outro e nada
mais. @,@Era estranho que ninguém os tivesse visto ainda.
Quanto a ele, era

reensível. Havia tantos mortos em redor! Mas o outro! Devia


ser que estava na sombra projectada pelos cadáveres. O
uniforme. era gro e a luz não se reflectia nas botas. E também
não havia muita.

te perto. Os prisioneiros tinhani-se reunido um pouco mais


longe, te das barracas. As paredes estavam derruídas em vários
pontos. antos anos de miséria e de morte, quantos nomes e
inscrições esta- 'M a arder? Houve uni estalo violento. As
labaredas saltaram na obscuridade. tecto da barraca
desmoronava-se no meio de um imenso feixe de ntelhas. O 5O9
viu tições brotarem de toda a parte. Desciam muito ritaniente,
em voo planado. Uni deles caiu sobre o monte dos ca-

eres, chocou com uni pé, rolou e parou em cima de Weber,


sando-lhe na nuca. Os olhos de Weber puseram-se a trerner. Do
colarinho do seu uni-

e começava a levantar-se fumo. O 5O9 podia, inclinando-se um


uco, tirar o pedaço de madeira, ou, pelo menos, quase
acreditava der fazê-lo; não sabia exactamente se fora atingido
no pulmão e se sangue não lhe brotaria pela boca. Mas não era
essa, no entanto, a
7 _ão que o impedia de agir. Nem, aliás, uni desejo de
vingança. O que
- 111 ,tava e jogo era doutra ordem. Corno vingança, teria
sido benigna.

As mãos de Weber agitarani-se. A cabeça tremia. O tição


contiva a arder sobre a nuca. o uniforme estava carbonizado. A
cabeça meu outra vez, fazendo deslizar o tição mais para a
frente. Imediaente, os cabelos começaram a crepitar. Unia
chama mais longa ml--)ia as orelhas e a parte superior do
crânio. O 5O9 via agora mais tíntamente os olhos de Weber, que
quase saltavam das órbitas. O ngue escapava-se em jactos pela
boca, que se movia sem ruído. ada se ouvia a não ser.os
estalidos da barraca que acabava de arder.

A cabeça estava agora pelada e negra. O 5O9 não podia


desprender i olhos dela. O tição carbonizava-se. O correr do
sangue findava.

Tudo se extinguia. Já nada restava além daqueles olhos. O


resto do ndo deixara de existir. Era preciso que eles
deixassem de ver.

O 5O9 não podia dizer se a espera tinha durado minutos ou


horas, as os braços de Weber pareceram, sem movimento
perceptível, iniriçar-se de repente. Depois, os olhos
transformarani-se, deixaram e ser olhos. Agora não eram mais
do que duas superficies glaucas.
5O9 permaneceu imóvel ainda um momento. Depois, com cuidado,
)oiou-se sobre um braço para se aproximar do corpo. Antes de
andonar-se queria ter a certeza. Só na cabeça sentia firmeza;
<:> seu

315

ERICH-MARIA REMARQUE

corpo já não tinha peso e tinha, ao mesmo tempo, o peso de


toda a Terra. Mal reagia ainda. ImpossIvel movê-lo para a
frente.

Curvou-se lentamente, levantou um dedo e pousou-o num dos


olhos de Weber. A pálpebra não se moveu. Weber estava morto. O
5O9 tentou sentar-se. Não o conseguiu, mas o esforço que fez
provocou o que há pouco receara: qualquer coisa de morno, que
parecia vir das profundezas da terra subiu dentro dele e
extravasou. O sangue corria facilmente e sem dor, inundando a
cabeça de Weber. Era como se

regressasse, por todo o corpo do 5O9, à terra donde subira


como uma fonte tépida. O 5O9 não fez esforco para o reter. Os
seus braços amoleceram. Viu no meio dum nevoeiro o gigantesco
vulto de Ahasver. -Portanto-, pensou ainda, "ele não ... "
Depois, a terra que o sustentava transformou-se num pântano e
ele foi tragado.

Só unia hora mais tarde o encontraram. Procuravam-no desde o


momento em que a confusão diminuíra. Bucher tivera, por fim, a
ideia de voltar à barraca e rebuscar as cercanias.
Descobrira-o atrás do monte de cadáveres.

Lewinsky e Werrier aproximaram-se.


- O 5O9 está morto - disse Bucher. - Morto por unia bala.
Weber também. Estão ambos caídos ali.

- Uma bala? Então, ele estava fora da barraca?


- Sim, estava fora.
- Tinha o revólver com ele?
- Sim.
- E Weber também está morto? Então, foi ele quem matou Weber
- disse Lewinsky.
Levantaram o cadáver e estenderam-no ao comprido. Depois
viraram Weber.

- Sim - declarou Werner -, é isso mesmo, tem duas balas nas


costas.

Olhou em volta e encontrou o revólver, Agarrou-o.


- Aqui está. Vazio. Ele utilizou-o.
- Temos de levá-lo - disse Bucher.
- Para onde? Há mortos por toda a parte. Mais de setenta
queiniados vivos. Mais de cem feridos. Deixemo-lo aqui
enquanto não há lugar.

Werner olhou Bucher.


- Sabes gu!ar@?
- Não.
- Precisávamos... - interrompeu-se. - Que digo eu? Vocês são

316

A CENTELHA DA VIDA

pequeno campo. Precisamos de mais homens para os camiões.

Lewinsky! Sim. É pena que este tenha acabado assim. Sim.


,,,Afastaram-se. Lewinsky deitou um último olhar para trás
antes de ir Werner. Bucher ficou sozinho, A manhã vinha
cinzenta. Os resda barraca ardiam ainda. Setenta mortos. "Sem
o 5O9 teria havido is", pensou Bucher. Deixou-se ficar por
muito tempo. o calor da barraca espalhava-se redor como uni
Verão artificial. Sentiu-o, depois esqueceu-o. O estava morto.
Com ele o número de vítimas parecia elevar-se a

s centenas.

Os homens de Werner tomaram rapidamente a direcção do campo.


meio-dia, a cozinha funcionava. Presos amiados ocupavam as
saí- do campo, para o caso de os SS voltarem. Uma comissão em
que

aiu representadas todas as barracas foi constituída e pôs-se


diatamente ao trabalho. Formou-se uma brigada encarregada de
uisitar o mais cedo possIvel, viveres nos arredores.
- Vou tomar o seu lugar - disse alguém a Berger. Berger ergueu
os olhos. Estava tão fatigado que não compreendia

Uma injecção @ disse, estendendo o braço. - Se não desmaio.


omeço a não ver claro.

- Eu dormi - respondeu o interlocutor -, venho substituí-lo.


- N6s quase não temos anestésicos. Precisamos deles com
urgêna. Os homens ainda não voltaram da cidade? Aqueles que
enviámos

hospitais?
O professor Swoboda, de Bruenn, prísioneiro da secção checa,
mpreendeu o que se passava. Tinha diante de si um autómato
esgoo de fadiga que continuava a trabalhar maquinalmente.
- Tem de ir dormir agora - disse em voz mais forte. Os olhos
avermelhados de Berger piscaram.
- Sim, sim - respondeu, enquanto se inclinava novamente para
iii corpo coberto de queiniaduras.

Swoboda agarrou-o por um braço.


- Vã dorii-úr! Eu substituo-o! Vá dormir!
- Dormir?
- Sim, dormir.
- Está bem, está bem. A barracaBerger teve uni relâmpago de
lucidez.
- A barraca ardeu.

317

ERICH-MARIA REMARQUE

Vá para o vestiário. Arranjaram lá algumas camas para nós. Vá


deitar-se. Irei acordá-lo daqui a algumas horas.

- Algumas horas? Se não fico a pé, nunca mais acordarei. Tenho


ainda de... a minha barraca... é preciso que...

- Venha - disse Swoboda, energicamente. -já trabalhou


bastante.

Fez sinal a um assistente.


- Leve-o para o vestiário. Há camas para os médicos. Agarrou-o
pelo braço e fê-lo dar meia volta.
- O 5O9 - disse Berger meio adormecido.
- Sim, sim, está bem - disse Swoboda, que não compreendera
nada. - O 5O9, claro. Tudo vai bem.

Berger deixou tirar a blusa branca sem resistência. Lá fora o


ar bateu-lhe no rosto como uma pesada vaga. Ele cambaleou e
parou. A -água continuava a escorrer sobre ele.
- Meu Deus, mas eu operei! - exclamou. Olhava o assistente.
- Corri certeza - respondeu este. - Não fizeste outra coisa.
- Eu operei - repetiu Berger.
- Mas decerto. Primeiro fizeste pensos corri azeite, gordura,
enfim, tudo o que podia servir! E, depois, de repente,
agarraste no bisturi para limpar uma chaga. Deram-te duas
injecções e quatro chávenas de chocolate. Com esta quantidade
de feridos tiveste de trabalhar sem descanso.

- Chocolate?
- Pois então, os camaradas têm ti-ido o que querem. Chocolate,
manteiga e sabe Deus mais o quê!

- Operei. Eu operei - murmurava. Berger.


- E de que maneira! Não teria acreditado se não estivesse lá!
Com o teu peso! Mas agora tens de dormir algumas horas! Vais
ter uma cama autêntica. De um SúbarfuebréO Formidável! Vem!

- Eu, que julgava..


- O quê?
- Eu julgava que nunca mais poderia... Berger olhava as
iiiâos. Virou-as e deixou-as cair.
- Sim - disse -, dormir...

O dia estava cinzento. A excitação aumentava. As barracas


zumbiam como colmeias. Foi um estranho período de incerteza,
de liberdade ainda na escravatura, cheio de esperanças, de más
e boas notícias, de angústias senipre renascidas. As brigadas
SS, as tropas alemãs até mesmo destacamentos da juventude
Hitleriana podiam

318

A CENTELHA DA VIDA

rvir a cada momento. Havia, é certo, as armas encontradas no


enal, mas algumas companhias bem armadas teriam sido rudes

rsárias para o campo e alguma artilharia liquidá-lo-ia


depressa. Os mortos tinham sido transportados para o
crematório. Não se poproceder doutra maneira. Foi preciso
amontoá-los como achas de a. O hospital estava sobrepovoado.
No princípio da manhã foi, de repente, assinalado um avião que
rgia das nuvens baixas, do lado de lá da cidade. ..-A emoção
apoderou-se dos prisioneiros.
Para a praça de chamada! Toda a gente para a praça de chamada!
s os que ainda puderem andar! ois outros aviões saíram das
nuvens e descreveram um círculo s do primeiro. Os motores
zumbiam. Todos os rostos estavam virados para o céu. Os aviões
aproximarani-se rapidamente. Os chefes tinham réu-

unia parte dos homens do @campo de trabalho na praça de ada e


dispuserani-nos em duas longas filas forniando unia gi~
fttesca cruz. Lewinsky mandara trazer lençóis da caserna.
Quatro sos agitavam-nos em cada uma das extremidades da cruz.
Os aviões, agora por cima do campo, descreviam círculos cada
vez is baixos.
- Olhern - gritou uma voz, - As asas outra vez! Os lençóis
agitavani-se, mil braços se levantavam, os prisioneiros itavam
através do zumbido dos motores. Alguns tiraram o casaco

fazerem sinais. Os aviões desceram mais unia vez, a unia


altura ssima, uma vez mais as asas acenaram, depois
desapareceram. A multidão dispersou-se. Os olhos pesquisavani
constantemente céu.

Toucinho - disse alguém. - Depois da guerra de 14 houve tes de


toucinho de exportação. E, de súbito, viram, na estrada do
vale, o vulto atarracado do Imeiro tanque americano.

319

XXV

ma claridade prateada banhava o pomar. As violetas espalhavam


o seu perfume. As árvores de fruto da vertente sul pareciam
cobertas de borboletas rosadas e brancas. Alfred caminhava à
frente. Três homens o seguiam. Avançavam em silêncio. Alfred
apontou-lhes o estábulo. Os três americanos separarani-se sem
um palavra.

Alfred empurrou a porta.


- Neubauer - disse -, saia da!! Um grunhido saiu da quente
obscuridade.
- O quê? Quem está aí?
- Saia,
- O quê? Alfred... és tu, Alfred?
- sim. Novo grunhido.
- Caramba! O que eu dormi! Sonhei... Limpou a garganta.
- Sonhei disparates. Era a mim que dizias para sair? Um dos
soldados colocara-se sem ruído ao lado de Alfred. O feixe
luminoso duma lâmpada de bolso dardejou na sombra.

- Mãos acima! Sala daí! Na luz crua da lâmpada via-se Neubauer


deitado, meio despido, numa cama de campanha. Com os olhos
inchados, pestanejava sob a luz deslumbrante da lanterna.

- O quê? - disse numa voz pastosa. - Que se passa? Quem é


você?

- Mãos acima! - disse o americano. - Chama-se Neu6auer?


Neubauer semiergueu as mãos e acenou a cabeça,
- Comandante do campo de concentração de Mellen? Neubauer
acenou outra vez.
- Saia daí. Neubauer viu o cano duma metralhadora apontado
para ele. Levantou-se e ergueu as mãos com tanta precipitação
que os dedos foram chocar com o tecto baixo do estãbulo.

Não estou vestido. Saia!

32O

A CENTELHA DA VIDA

Neubauer avançou, hesitando. Estava em mangas de camisa, com


,,@botas e calção. Esperou, cinzento de poeira, mal acordado.
Um -dos -soldados apalpou-lhe as algibeiras rapidamente. Um
outro inspeccio 1-

o estãbulo. Neubauer olhou para Alfred.


- Foste tu que os trouxeste aqui?
- Fui.
- Judas!
- Você não é um Cristo, Neubauer, e eu nunca fui uni nazi -

`respondeu Alfred serenamente.


O americano que entrara no estábulo saiu abanando a cabeça.

Em frente! - disse aquele que falava alemão. Era uni cabo.


- Posso enfiar o meu casaco? - perguntou Neubauer. - Ficou no
estábulo, atrás da coelheira.

o cabo hesitou um momento. Depois foi e voltou com uni casaco


,civil.

Não, este não - explicou Neubauer -, eu sou soldado. Queria o


casaco do uniforme.
- Você não é soldado. Neubauer teve uni sobressalto.
- É o meu uniforme de membro do Partido.
O cabo tornou a entrar no estábulo e trouxe o casaco do
uniforme, que deu a Neubauer. Este enfiou-o, abotoou-o e
disse, empertigando-se:

- Oberstimnbanr@fuebrer Neubauer, à sua disposição.


- Bem, bem, adiante. Atravessaram o jardim. Neubauer descobriu
que abotoara mal o

casaco. Desabotoou-se e repôs os botões nos seus lugares.


Decididamente, nada caminhava como tinha desejado. Weber, esse
traidor, pregara-lhe uma partida infame com a sua fogueira
festiva. Seria fácil provar que ele agira por sua própria
conta. Neubauer não tinha volta,4o ao campo desde a véspera.
Soubera a notícia pelo telefone. Contudo, era uma história
levada do diabo, logo naquele dia. Depois vinha Alfred, o
segundo traidor, que resolvera muito simplesmente não
aparecer. Neubauer tinha-se achado sem carro para fugir, corno
decidira no último momento. As tropas já tinham partido. Não
podia meter-se nos bosques. Escondera-se então no pomar.
Pensara que nunca iriani procurá-lo ali. Mas tivera tempo de
rapar o seu bigode à Hitler. Alfred, que canalha!...

- Sente-se ali - disse o cabo, indicando-lhe um assento.


Neubauer subiu para o carro. "É a isto, provavelmente, que
eles chamam uni jipe>,, pensou. Os homens não se mostravam
hostis. Pelo

C. Clássicos do Séc. XX 25 - 21

321

ERICH-MARIA REMARQUE

contrário, correctos, Uni deles devia ser emigrado alemão.


Ouvira falar desses grupos de compatriotas alemães fixados no
estrangeiro. o Bund, ou qualquer coisa desse gênero.

- Fala muito bem o alemão - disse, tranquilamente.'


- É natural - replicou o cabo com frieza -, sou de
Francoforte.
- Oh! - fez Neuhauer, Decididamente, era um dia péssimo. Sem
contar com os coelhos que tinham sido roubados. Quando entrara
no estábulo, as portas das coelheiras estavam abertas. Mau
presságio, Àquela hora deviam estar provavelmente a cozer na
panela de algum bruto.

O portão do campo estava escancarado. Bandeiras improvisadas


tinham sido arvoradas nas barracas. O grande alto-falante dava
instruções. Um dos camiões acabava de chegar com bidões de
leite. As ruas estavam cheias de presos.

O carro que transportava Neubauer parou diante da


Konimandantur. Um coronel americano dava ordens a alguns
oficiais que o rodeavam. Neubauer desceu, deu um puxão ao
casaco para o desenrugar e avançou.

- obersturmbaniifuebrerNeubauer. Tenho a honra de me pôr à sua


disposição.

Fez a saudação militar,


O coronel olhou para o cabo. Este traduziu.
- Is this tbe son of a bitcb? - perguntou o coronel.
- Yes, sir.
- Put hiin to work over tbere. Shoot bijij, ífbe inakes
afialse inove. Neubauer apurava o ouvido tanto quanto podia.
- Vamos - disse--lhe o cabo -, ao trabalho. Há mortos a
transportar.

Não era nada disto que Neubauer esperava

Eu sou uni oficial - balbuciou. - Tenho patente de coronel.


Pior ainda. Tenho testemunhas! Fui humano! Pergunte aos
homens! Eu tenho a impressão de que serão precisos alguns
homens para impedir os seus de o cortarem aos bocadinhos -
respondeu o cabo.
- Não serei eu que me oporei. Vamos, para a frente!

Neubauer deitou um último olhar ao coronel, que parecia tê-lo

este o filho durtia cadeI,.i?@ @Sir1i, sedior." "Ponfia~oa


trabaffiaracoiâ. Abatam-nose fizer uiril-novilliento
suspeito." Eminglês, no orkg&ial. (Y do T.)

322

A CENTELHA DA VIDA

quecido já. Deu nieia volta. Dois homens ladeavam-no, um outro


uía-o. Reconhecerani-no logo aos primeiros metros. Os dois
americanos,

endo uni conflito, chegarani-se mais para Neubauer. Um suor


frio adiu Neubauer. Com os olhos fitos na sua frente,
caminhava como quisesse ao mesmo tempo ir mais depressa e
diminuir o passo. Mas nada se passou. Os prisioneiros viram
passar Netibauer sem mexerem. Não se atiraram a ele,
afastarani-se para o deixar passar, guém se aproximou. Não
houve um grito, uma pedra, nem sequer pau se levantou.
Contentarani-se com vê~lo passar, abrindo alas ão desfitando
dele os olhos durante todo o interminável caminho ue conduzia
ao pequeno campo. @.. Neubauer, ao princípio, suspirara de
arívio. Depois, o suor pôs-se correr mais abundante. Murniurou
qualquer coisa. Não levantou os

os, mas sentia todos os olhares fitos em si. Sentia-os corno


se ínúros ralos de uma gigantesca porta de prisão estívessem
apontados iitra ele. Corn o rosto em fogo, apressou o passo.
os olhares tornavam-se oleráveis. Eram outras tantas
sanguessugas agarradas à sua pele que e sugavam o sangue.
Instintivamente, sacudiu-se. Em vão. Sentia-se

o se tivesse a pele toda perfurada, As artérias batiam.


- Eu sempre... - murmurou. - Não... o meu dever... mas que
erem eles de mim, afinal? ,,,Estava encharcado quando chegaram
ao local da barraca 22. Seis prisioneiros trabalhavam já com
alguns kapas sob a vigilância de

ados americanos. Neubauer estacou com um sobressalto. O chão


estava juncado de squeletos carbonizados.

-Que é... que é isto?

Não se faça imbecil! - respondeu o cabo, furioso. - Foi a aca


que incendiou. Deve lá haver ainda dentro trinta mortos, pelo
nos. Vamos, trate de desenterrar os ossos!
- Eu nunca ordenei isto...
- Claro que não.
- Não estava cá... não fui informado. Foram outros que o
fizeram r sua própria conta...
- Claro, claro, senipre os outros. E aqueles que rebentararri
aqui rante anos? Tanibéni não foi você, não?
- Eram ordens. O dever...
O caf)o virou-se para uni homem que estava ao lado--
- Aqui estão duas desculpas que se ouvirão constantemente na
Uemanha nestes próximos anos: "Erain ordens e ett não tínba
conbefinento."

323

ERICH-MARIA REMARQUE

Neubauer não o ouvia.


- Tentei sempre fazer o melhor possível.
- E isto - disse o cabo, amargamente - será a terceira
desculpa! Vamos - gritou -, ao trabalho! Desenterre os
mortos!Julga que é fácil não lhe partir a cara?

Neubauer curvou-se e pôs-se a rebuscar molemente os restos


carbonizados.

Transportavam-nos em carros, em padiolas improvisadas, ãs


costas. Alguns apoiavan-i-se uns aos outros. Reunirani-nos nos
corredores da caserna SS, desenibaraçarani-nos dos farrapos
que os cobriani ainda e que foram destruidos. Depois,
conduzirani-nos aos duches dos SS.

Muitos não compreendiam o que iam fazer deles, esperavam


silênciosamente nos corredores. Foi só quando o vapor começou
a espalhar-se pelas portas abertas que alguns pareceram
acordar. Re~ fluíram para a saída com gritos de niedo.

- Para o banho! Para o banho! - gritavam-lhes os camaradas, -

É preciso tomar banho!

Tempo perdido. Os esqueletos agarravani-se uns aos outros e


fugiam como caranguejos. Para eles as palavras banbo e vapor
eram sinónimos de câmara de gás. Mostrarani-lhes sabão e
toalhas. Em vão.. Conheciam esta velha artimanha para
atraí-los para as câmaras de gás. Quantos tinham agonizado com
um bocado de sabão e uma toalha na mão? Foi só quando os
primeiros presos voltaram a passar por eles à saída dos duches
e lhes confirmaram que realmente se tratava de água quente e
banho e não de gás, que começaram a ganhar confiança.

O vapor escapava-se ern turbilhóes das caldeiras de faiança. A


água quente era suave corno uma grande mão acariciadora. Os
prisioneiros abandonavam-se a ela e os seus membros inagros,
de grossas articulaçóes nodosas, erguiani-se e desciam,
patinando. As crostas de sujidade endurecida amoleciam e
dissolviani-se. O sabão vestia aquelas carnes famintas e o
calor penetrava--os até aos ossos. Água quente - há muito
tenipo que tinham esquecido já o que isso era.
Abandonavani-se-lhe, e, para muitos, foi esse o primeiro
indício con~ creto da sua libertação.

Bucher estava sentado ao lado de Lebenthal e de Berger. O


calor invadia-os duma felicidade animal. A felicidade do
renascer, do re~ gresso à vida; era ela que reanimava, enfim,
o seu sangue gelado, as suas células esgotadas. Unia
felicidade vegetal, uma água soalhenta

324

A CENTELHA DA VIDA

afagava e acordava os germes da vida. E com as crostas do


corpo ém as da alma desapareciam. Sentiam-se envolvidos,
protegidos mais primitivo dos elementos - o calor. Eram os
primeiros ris diante do primeiro fogo. @Pistribuírani-lhes
toalhas. Limparam--se e, com espanto,

riram a sua própria pele. Por mais lívida e manchada que essse
ainda, parecia-lhes duma brancura miraculosa. Deram-lhes fatos
linipos. Apalparatu-nos e examinarani-nos por to tempo antes
de os vestirem. Depois conduzirani-nos à cama-

O banho, reanimando-os, fatigara-os. Caminhavam já meio


imecidos, dispostos agora para outros milagres. As camas
brancas não os espantaram. Mal as olharam e continua-

a andar, quando o americano que os conduzia os fez parar.

É aqui - disse-lhes. Entreolharam-se.


- Para nós?
- Sim, para dormir.
- Para quantos? "Lebenthal apontou a cama mais próxima,
fazendo um sinal para cher e para si próprio.
- Para dois? - perguntou. - Ou para três? - disse, puxando
Berr para eles e levantando três dedos.
O soldado americano sorriu, Avançou para Lebenthal e empur--o
para a cama com doçura e firmeza; depois empurrou Bucher

a segunda cama, Berger para a terceira e Suizbacher para a


cama inte.

Assim - disse. Cada um na sua cama! Com uni cobertor! Desisto


de perceber - declarou Lebenthal. - Até travesseiros os!
- Sleep - disse o soldado -, sleep! As tong as you want'.
Bucher abanou a cabeça.
- E são estes os nossos inimigos! Tinham encontrado um caixão.
Era uma caixa negra e leve, de ensões normais; contudo, era
demasiadamente larga para o 5O9. ia-se, com facilidade, alojar
lã dentro outro como ele. Era a lineira vez, depois de muito
tempo, que ele dispunha de tanto

aço só para si. Cavarani-lhe uma cova no sítio da antiga


barraca 22, Pensaram que aquele o lugar que melhor lhe
convinha. A noite caía quando c>

"Durinain! Durniam quanto qtiiserem.- Eni inglês, no original.


(N. do T.)

325

ERICH-MARIA REMARQUE

transportaram para lá. A Lua subia num céu nublado. Alguns


hornens do campo de trabalho ajudaram-nos a descer o caixão.

Tinham uma pequena pá. Cada uni deles aproximou-se e atirou um


punhado de terra para a cova. Estavam todos ini fito fracos.
Ahasver aproximou-se demasiado do buraco, escorregou e caiu
sobre o caixão. Foi preciso ajudá-lo a sair da cova. Alguns
homens mais robustos do campo de trabalho ajudarani-nos a
enchê-la.

Retirarani-se. Rosen levava a pá. Quando passaram diante da


barraca 2O, estavam a retirar um morto. Dois SS levavani-no às
costas. Rosen parou. Eles quiserarn evitá-lo. O primeiro SS
não era outro se não Niemann, o hornem da seringa. Os
americanos tinhani-no prendido fora da cidade e trouxeram-no
para o campo. Era o Scbarftíehrer a quem o 5O9 arrancara
Rosen. Rosen deu uni passo atrás, levantou a pá e bateu com
ela na cara de Niemann. Ia bater outra vez quando um soldado
americano, que vigiava o trabalho, lhe tirou docemente a pá
das mãos trémulas.

- Come, come, weW take care of tbat lateil. Rosen tremia.


Niemann apenas tinha uma arranhão na cara. Berger agarrou
Rosen pelo braço.

- Vem, isto não é contigo, estás muito fraco. Rosen desatou a


chorar. Sulbacher agarrou~lhe a mão. - @le será julgado,
Rosen, por tudo o que fez.
- E preciso matá-los, inatá-los! Se não isto não terá servido
de nada! Se não eles recomeçarão!

Arrastaram-no. O americano entregou a pá a Berger.


- É estranho - disse Lebenthal depois dum momento. - Eras tu
que falavas sempre em perdoar...

- Deixa-o, Léo.
- Oh, deixo-o, sim.

Todos os dias grupos de presos deixavam o campo de


concentração. Os trabalhadores estrangeiros que ainda podiam
andar foram os primeiros a partir. Uma parte dos polacos
ficou. Não queriam ir para a zona russa. A maior parte dos
homens do pequeno campo estavam demasiado fracos para poderem
viajar; tinham ainda necessidade de alguns dias de cuidados.
Além disso, muitos não sabiam para onde ir. A sua familia
estava dispersa e dizimada, os seus bens roubados, a sua terra
devastada. Estavam livres, mas não sabiam que fazer da
lilPerdade, e permaneciam no campo. Não tinham dinheiro.
Ajudavam

"vanios, vanios, nós tratarenios dis%o elepois." Em inglês, no


ori~1. (X do T.)

326

A CENTELHA DA VIDA

limpar as barracas. Tinham uma cama e eram alimentados. Reuni-


,,@,;ram-se em pequenos grupos.

Eram os que sabiam que ninguém os esperava. Havia os que tam-


,@bém ainda tinham esperança. Faziam investigações. Viam-nos
descer ,,@'todos os dias à cidade munidos de cartas de
racionamento entregues :pela administração civil ou militar.
Regressavam com datas incertas no coração.

Tudo era diferente do que tinham esperado. A expectativa da


libertação enchera tão amplamente os seus pensamentos que, na
sua maior ,Parte, nada tinham imaginado para além dela. E ali
a tinham agora, e

@,o que ela mostrava não era um paraíso cheio de milagrosos


encontros,

e reuniões maravilhosas. Muitos tinham vagamente esperado


encon- @rat-se, de repente, transportados para o passado, para
um tempo sem guerra nem miséria. Atrás deles, o abandono, a
solidão, as ruínas das @$uas míseras recordações diante deles,
um deserto onde brilhava um .@.poucO de esperança, Desciam ao
vale com alguns nomes de seres
1 1 humanos na cabeça, com os nomes de alguns lugares, de um
outro campo, e todas as suas esperanças repousavam num ténue
talvez. Es- ,@Peravarn encontrar uma pessoa, por vezes duas -
raramente mais.

O melhor é partir o mais depressa possIvel - disse Sulzbacher.


Não há mais nada a esperar, e quanto mais esperarmos mais
','aumentarão as dificuldades. Se continuamos à espera, vamos
parar a ,@,ouüo campo previsto especialmente para aqueles que
não sabem para, onde ir.

- Tu crês que terás forças?


- Aumentei cinco quilos.
- Não é bastante.
- Não tenho a intenção de me fatigar.
- Para onde queres tu ir? - perguntou-lhe Lebenthal,
- Para Dusseidórfia. Procurar a minha mulher.
- Como queres tu chegar a Dusseidórfia? Há comboios para lá?
Sulbacher encolheu os ombros.

Não sei, mas há outros dois prisioneiros aqui que querem ir


para ,@'ãqueles lados. Para Solingen e Duisburg. Iremos
juntos.
- Conhece-los há muito tempo?
- Não, mas já é muito não ir sozinho.
- Isso é verdade.

É tanibém a minha opinião. Apertou a mão aos camaradas.

Tens comida? - perguntou-lhe Lebenthal.

327

ERICH-MARIA REMARQUE

Para dois dias. No caminho dirigir-nos-emos às autoridades


americanas. Havemos de nos arranjar.

Desceu para o vale com os outros dois, o que queria ir para


Duisburg e o que se dirigia a Solingen. Fez um último gesto de
adeus e não voltou mais.

- Ele tem razão - disse Lebenthal. - Eu também me vou embora.


Vou à cidade esta noite. Tenho de falar com alguém com quem
vou associar-me. Vamos abrir unia loja. Ele tem capital, eu
tenho experiência.

- Muito bem, Léo. Lebenthal tirou do bolso um maço de cigarros


americanos e ofereceu em volta.

- Eis a grande mercadoria - disse. - Cigarros americanos. Tal


como depois da última guerra. É preciso não deixar escapar a
ocasião.

Olhou o maço encetado.


- Melhor do que todas as moedas do inundo, é o que lhes digo.
Berger sorriu.
- Isso é mesmo teu, Léo - disse. Lebenthal olhou-o com
desconfiança.
- Nunca te disse que era um idealista.
- Não te aborreças. Disse-o sem segunda intenção. Tu
valeste-nos muitas vezes.

Lebenthal sorriu, lisonjeado.


- Faz-se o que se pode. É sempre bom ter um homem de negócios
entre os amigos. Se eu puder fazer alguma coisa por vocês...
Tu, por exemplo, Bucher, queres ficar aqui?

- Não, espero que Ruth recobre um pouco mais as forças.


- Muito bem. Lebenthal tirou unia caneta americana e escreveu
qualquer coisa num bocado de papel.

- Toma, aqui tens o meu endereço. Se for preciso.. .


- onde arranjaste a caneta? - perguntou Berger.
- Troquei-a. Os americanos coleccionam recordações do campo.
- O quê?
- Coleccionam recordações, não importa o que seja. Pistolas,
punhais, distintivos, chicotes, bandeiras... é uni negócio
excelente. Tomei as minhas precauções para não ser apanhado
desprovido.

- Léo - disse Berger -, tu és reconfortante. Lel-)enthal


acenou a cabeça sem se admirar.
- Ficas aqui, entretanto?
- Sim, fico aqui.
328

A CENTELHA DA VIDA

Então ver-te-ei de tempos a tempos. Durmo na cidade, mas venho


comer aqui. - Era o que eu pensava que farias.

- Evidentemente. Tens cigarros bastantes?


- Não. Lebentl-ial tirou dos bolsos dois maços completos: deu
um a Berger e o outro a Bucher.

- Que é que tu tens mais? - perguntou Bucher.


- Latas de conserva. Lebenthal olhou o relógio.

Tenho de ir. Tirou de debaixo da cama uni impermeável


americano novo e enfiou-o. Desta vez ninguérn falou. Os seus
camaradas não se surpreenderiam mesmo que um automóvel o
esperasse à porta.

- Não percam o meu endereço - disse ele a Bucher. - Seria pena


não nos voltarmos mais a ver.

- Não o perderemos.

- Partimos juntos, Karel e eu - disse AhasverVinham


despedir-se de Berger.
- Fiquem ainda algumas semanas aqui - disse este. - Vocês
@,estão ainda muito fracos.
- Queremo-nos ir embora.
- Sabem para onde?

Não. Então, por quee partem? Ahasver teve,um gesto vago. -já
ficámos aqui muito tempo. Estava envolvido numa velha peliça
cinzento-escura com unia espécie de gola de cocheiro que lhe c
aía até aos cotovelos. Era um @@'@@,~nte de Lebenthal, cuja
loja já estava aberta. Pertencera a um

professor de liceu morto no último bonibardeamento. Karel,


esse, @@e,stava vestido com peças díspares de uniforme
americano.

Karel tem de se ir embora - disse Ahasver. Bucher interveio.


Examinou o trajo risível de Karel.

Que é isto? Os americanos adoptarani-no. O regimento que aqui


esteve "',primeiro. Mandaram buscá-lo num jipe. Vou fazer um
bocado do, '@aminho com ele.

ém te adoptaram a ti? E só por uni bocado do caminho. E


depois?

329

ERICH-MARIA REMARQUE

Depois? Ahasver olhou pala o vale. A sua capa flutuava ao


vento.
- Há tantos campos onde eu tinha amigos! Berger olhou-o.
"Lebentl-ial vestiu-o como era preciso. Parece um peregrino.
Vai andar em peregrinação de campo em campo, de túmulo em
túinulo. Mas qual foi o prisioneiro que teve o luxo dum
túmulo? Que vai ele procurar?"

- Bem sabes - disse Ahasver -, acontece muitas vezes


encontrarmos assim pessoas no caminho.

- Sim, velho. Olharam-nos enquanto eles se afastavam.


- É estranho que nos separemos assim, uns após outros - disse
Bucher.

- Tu também partes dentro de pouco tempo?


- Sim, mas nós não nos devíamos perder de vista.
- Devemos - disse Berger -, devemos.
- Temos de nos reunir um dia. Depois de ti-ido o que vivemos
juntos. Um dia, não importa quando.

- Não. Bucher levantou os olhos.


- Não - repetiu Berger. - É preciso não esquecer, sim, mas não
devemos fazer do que vivemos uma espécie de culto, -Se não
ficariamos sempre debaixo da sombra destas malditas torres.

O pequeno campo estava deserto. Tinham-no limpo e os seus


habitantes haviam sido distribuídos pelo campo de trabalho e
pela caserna SS. Espalhavam ondas de sabão, de água, de
desinfectante, mas o cheiro da morte, da sujidade e do horror
continuava a flutuar na atmosfera. Numerosas aberturas tinham
sido feitas na vedação de arame farpado.

Não tens medo de estar fatigada? - perguntou Bucher a Ruth.


Não. Então, vamos partir. Em que dia estamos? Quinta-feira. ,
Quinta-feira. Que felicidade os dias voltarem a ter nome! Aqui
só tinham números. Sete por semana. Todos iguais.
A administração do campo acabara de entregar-lhes os
documentos.

- Para onde vamos? - perguntou Ruth.


- Para ali. Bucher apontava a colina onde se erguia a casa
branca.
- Temos de a ver de perto. Ela deu-nos sorte.

33O

A CENTELHA DA VIDA

E depois? Depois voltaremos. Aqui há que comer. Não voltemos


para cá. Nunca mais. Bucher olhou Ruth espantado.

Muito bem. Espera, eu vou buscar as tuas coisas. Ocupavam


pouco espaço as coisas. Mas tinham pão para alguns dias e duas
latas de leite condensado.

- Vamos mesmo? - perguntou ela. Ele notou-lhe a impaciência.


- Claro, Ri ith - disse, ? Despedirani-se de Berger e
passaram pela porta aberta no arame farpado do pequeno campo.
Por várias vezes se tinham encontrado ,,I já fora do campo,
nunca durante muito tempo, é certo, mas era sempre @,a mesma
comoção por se sentirem do outro lado. A corrente eléctrica e
as metralhadoras apontadas para a faixa de terreno pelado
pareciam continuar a ameaçá-los. Estremeciam de cada vez que
atravessavam a:,cerca de arame farpado. Mas, para além, o
mundo estendia-se até "ao infinito.

Caminhavam lentamente, uni ao lado do outro. O céu estava


encoberto e suave. Durante anos tinham corrido, rastejando ao
longo das

redes - agora caminhavam devagar, muito direitos, e nenhum


peAgo se precipitava sobre eles.

É inacreditável - disse Bucher -, o milagre perpetua-se. Sim,


quase faz medo. Tu querias voltar-te, não o faças! Sim, é
instintivo. Voltamo-nos mesmo sem querer. Tentemos esquecer,
se pudermos. Sim.. Atravessaram um caminho. Diante deles
estendia-se um prado sal- ,picado de primaveras amarelas.
Tinham-no visto muitas vezes do mpo de concentração. Bucher
pensou durante um momento, nas imaveras murchas de Neubauer em
volta da barraca 22. Expulso U.

ento. amos atravessar pelo meio dos campos. Achas que se pode?
Creio que nos podemos permitir muitas coisas. E, além disso,
;@,emos de nos exercitar a vencer o medo. Sentiram a erva
debaixo dos pés. Durante anos não tinham cQnheo se não a terra
batida do campo de concentração.

Vamos pelaesquerda - disse Bucher. Viraram à esquerda. Foi


preciso contornar uma nogueira, que rOÇa,@' t@Lni à passagem.
Acariciaram as folhas e os botões da árvore.

Agora à direita.

331

ERICH-MÁRIA REMARQUE

Voltaram à direita. Obedeciam aos seus caprichos com unia


alegria infantil. já ninguém lhes dava ordens, podiam fazer o
que quisessem. Nem um grito, nem um tiro.

- É como num sonho - disse Bucher. - Tem-se medo de acordar


outra vez na barraca e na lama.

- Nunca tive desses sonhos. Era sempre aos gritos que eu


acordava.

- Nós dissemos que não voltartamos a falar nisso. Sobretudo


hoje.
- Está bem.
- O ar aqui é diferente. É um ar vivo que se respira. Ruth
aspirou profundamente. Bucher observou-a com atenção. As faces
estavam um pouco rosadas e os olhos brilhavam.

- Sim, é um ar vivo, cheio de perfumes, sem mau cheiro. Tinham


chegado à fila dos ulmeiros.
- Podíamos sentar-nos aqui - disse ele. - Ninguém nos impede.
Poderemos mesmo dançar se o coração o pedir.

Sentaram-se. Olhavam os besoiros e os pássaros. No campo de


concentração só havia ratos e grandes moscas azuladas. Perto
dos ulmeiros ouviram o murmúrio de um riacho. A água clara
fugia. No campo de concentração sempre lhes faltava. Aqui
corria e ninguém precisava dela. Quantos hábitos novos a
adquirir!
Desceram para o vale. Iam devagar, paravam multas vezes para
descansar. Encontraram um bebedouro e quando, finalmente,
olharam para trás, o campo de concentração tinha desaparecido.

Permaneceram muito tempo sentados. O campo de concentração e a


cidade em ruínas já não estavam na si ta frente. Viam apenas
um prado e o céu suave por cima. Um vento tépido
acariciava-lhes o rosto. Parecia que ele expulsava todas as
teias de aranha do passado.

"É talvez assim que é preciso começar", pensou Bucher. "Partir


do zero. Sem amargura, sem ódio, sem recordações, com o que se
tem de mais simples, o sentimento da vida. Não o sentimento
de que se vive apesar de tudo, mas com o sentimento de que se
vive, simplesmente." Não se tratava de uma renúncia, sentia-o
bem. O que o 5O9 exigira dele sabia-o: que fosse daqueles que
se salvaram para testemunhar e lutar. Mas ele sentia agora que
a mensagem de que os mortos o tinham encarregado só seria um
fardo suportável se ele fosse ajudado por este sentimento de
vida simples e forte. Só ele lhe daria a energia para não
esquecer e ao mesmo tempo não sucumbir às recordações. Era o
que significavam as últimas palavras de Berger.

- Ruth - disse, depois dum silêncio -, quando se vem de tão


longe deve-se ter uma imensa faculdade,de ser feliz.

332

A CENTELHA DA VIDA

o pomarestava em flor. Quando se aproximaram da casa descobr


i-ram que uma bomba cavara uma cratera no lado de trás. Uma
parte .4O edifício estava destruída. Apenas a fachada virada
para o campo de :ePacentração estava ainda intacta. Abriram
unia pequena porta entalhada e acharani-se diante dum montão
de escombros.

Não era uma casa o que nós víamos. Tanto melhor não termos
sabido que estava em, ruínas. Tinham acreditado que se
agarrariam à vida enquanto a casa perIpanecesse intacta,
Tinhani-se agarrado a esta ilusão, a esta fachada ,que
mascarava escombros. Esta ironia era também uma consolação.

sta fachada ajudara-os, não pediam mais.


Não encontraram mortos. A casa estava, sem dúvida, abandonada
muito tempo. Descobriram, sob as ruínas, urna porta meio
arran- ,5@ç4da cios gonzos. Atrás havia uma pequena cozinha,
apenas parcial- ,g,Oente destruída. A chaminé estava intacta.
Havia ainda até algumas *Igideiras e uma caçarola. Foi-lhes
fácil endireitar o tubo do fogão e
2 ê@-Io sair por uma janela.

Podemos acender lume - disse Bucher há bastante lenha


fora. Continuou a busca.

Há colchões lá em baixo. Podemos tirá-los em poucas horas.


Esta casa não é nossa. Não é de ninguém. Podemos ficar aqui
alguns dias, para meçar.

À noite os dois colchões estavam instalados na cozinha. Tinham


hado também cobertores poeirentos e unia cadeira em bom
estado. gaveta da mesa continha ainda alguns garfos, colheres
e unia faca.@ fogo estalava na fornalha. O fumo escapava-se
pelo tubo ligado à nela. Bucher prosseguia a sua busca lá
fora.

Ruth tinha descoberto um pedaço de espelho e escondera~o na


21@. $ibeira. Sentada perto da janela, conteniplava-se agora
nele. Ouviu ucher chamá-la e respondeu sem afastar os olhos do
que via. Os ,cabelos grisalhos, os olhos mortiços, a boca
amarga e todos aqVeles. ,dentes que lhe faltavam. Olhou-se
longamente, sem piedade. Depois'. tirou o espelho ao fogo.

Bucher entrou. Tinha achado ainda unia almofada. O céu


esMvá:!@ ,-,Verde como uma maçã e a tarde tranquila. Olharam
pela janela, pa@J&, ,O tiveram subitamente a consciência da
sua solidão, Haviam deixadOI Sa= O que ela era. Nunca tinham
deixado o campo de conc~,. t@ação, as multidões de presos, as
barracas sobrepovoadas, as Ia, theias. Fora bom ter camaradas,
mas muitas vezes se tini

333

ERICH-MARIA REMARQUE

oprimidos por nunca poderem estar sós. A multidão esmagava o


indivíduo e fazia dele um elemento sem personalidade.

- Como é bom sernios senhores de nós, enfim, Ruth.


- Como se fôssemos os últimos homens. Não, como se fôssemos os
primeiros.
Dispuseram os colchões de maneira a poderem olhar pela porta
aberta. Encetaram algumas latas de conserva para jantar;
depois, sentaram-se um ao lado do outro na soleira da porta.
Os últimos clarões do dia morriam por detrás dos escombros.

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